Dossiê - FILOSÓFICA BIBLIOTECA · sarcasmos e a ferocidade de ontem. E também, é claro,...

13
Dossiê Dossiê Dossiê Dossiê Dossiê Sartre fotografo por Willy Ronis

Transcript of Dossiê - FILOSÓFICA BIBLIOTECA · sarcasmos e a ferocidade de ontem. E também, é claro,...

Page 1: Dossiê - FILOSÓFICA BIBLIOTECA · sarcasmos e a ferocidade de ontem. E também, é claro, afogados na multidão, sacudidos, às vezes arrastados pela tor-rente, às vezes empurrados

Do

ss

Do

ss

Do

ss

Do

ss

Do

ss

Sartre fotografo por Willy Ronis

Page 2: Dossiê - FILOSÓFICA BIBLIOTECA · sarcasmos e a ferocidade de ontem. E também, é claro, afogados na multidão, sacudidos, às vezes arrastados pela tor-rente, às vezes empurrados

52 Cult - maio/200052

SARTRE,A TRANSPARÊNCIA E

O OBSTÁCULOManuel da Costa Pinto

Rep

rodu

ção

52 Cult - maio/200052

Page 3: Dossiê - FILOSÓFICA BIBLIOTECA · sarcasmos e a ferocidade de ontem. E também, é claro, afogados na multidão, sacudidos, às vezes arrastados pela tor-rente, às vezes empurrados

maio/2000 - Cult 53

Albert Camus escreveu no ro-

mance A peste que uma “uma forma

cômoda de travar conhecimento com

uma cidade é procurar saber como se

trabalha, como se ama e como se

morre”. O mesmo é válido para os

homens e, quando se celebra os vinte

anos de morte de uma personalidade

como Jean-Paul Sartre, o acento recai

necessariamente sobre suas exéquias

– pois elas revelam os extremos da

reverência apaixonada e do ódio

respeitoso. O enterro do autor de Anáusea foi provavelmente o último

grande cortejo público de um inte-

lectual francês, reunindo uma

multidão que incluía intelectuais,

estudantes, políticos, operários,

militantes e minorias de toda ordem.

A dignidade reservada e familiar que,

apenas quatro anos depois, marcou o

sepultamento de Michel Foucault –

sucessor natural de Sartre no posto de

figura central da intelectualidade

francesa – mostra a singularidade do

escritor existencialista, seu status de

estadista sem Estado que encarnava a

consciência e as contradições de uma

era: o século de Sartre.

É esse aliás o título do mais impor-

tante livro publicado no âmbito das

homenagens ao pensador da rivegauche: Le siècle de Sartre, do filósofo

Bernard-Henri Lévy (editora Grasset).

E a obra começa, justamente, pela cena

cinematográfica (e impensável em

qualquer outro país que não a França)

de uma manhã de abril, luminosa e

friorenta, com grupos que se formavam

diante do prédio em que Sartre vivera,

no boulevard Edgar Quinet, e seguiam

para o cemitério de Montparnasse:

“Esses milhares de homens e

mulheres, talvez dezenas de milhares,

vindos de todas as regiões do mundo,

tinham em poucos minutos invadido

as aléias do cemitério. Esses viventes.

Esses fantasmas. Esses insurgentes e

esses pequenos burgueses misturados

num zunzunzum contido. Esses

esquerdistas. Essas crianças. (...) O

grupo da NRF [Nouvelle Revue

Française] e o da Associação dos Argeli-

nos da França. Esses paparazzi à

espreita. Essas mulheres em lágrimas.

Esses cachos de jovens que provavel-

mente não o tinham lido, mas que

estavam ali, pendurados nas árvores.

Africanos. Asiáticos. Vietnamitas da

tendência Île de Lumière e vietnamitas

da tendência Ho Chi Minh – que gos-

tariam de ter se evitado, mas que a

massa, que não se mete nesse tipo de

querela, lançava uns contra os outros.

Rostos célebres. Anônimos. Casais que

o arrastão havia separado e que se fala-

vam à distância antes de se perderem

de vista. Antigos adversários, o crânio

luzente de um, o olhar melancólico

do outro – com um ar tão emocionado

que por pouco teríamos esquecido os

sarcasmos e a ferocidade de ontem. E

também, é claro, afogados na multidão,

sacudidos, às vezes arrastados pela tor-

rente, às vezes empurrados para fora

do cortejo, o círculo dos íntimos, os

apóstolos, cujos nomes eram murmu-

rados com a consideração respeitosa

que se dirige às testemunhas da

verdadeira fé – e mais longe ainda,

sentada sobre um banquinho portátil,

diante da cova aberta, com o turbante

em desordem, atropelada e quase

brutalizada, apesar do fiel que tentava

abrir aos socos um pouco de espaço

em torno dela, uma mulher bela e

triste, perdida em seu luto. Quem era

HÁ VINTE ANOS MORRIA O ESCRITOR EFILÓSOFO QUE DOMINOU A CENA

INTELECTUAL FRANCESA DO PÓS-GUERRA ECUJA OBRA POLIÉDRICA MARCA O TRIUNFO DA

LITERATURA SOBRE OS ATAQUES SOFRIDOS

PELO EXISTENCIALISMO

Na página oposta, reunião no ateliê de Picasso, em Paris.Em pé, da esquerda para a direita: Jacques Lacan, Dominique Éluard,

Pierre Reverdi, Louise Leiris, Picasso, Zance de Campan,Valentine Hugo, Simone de Beauvoir e Brassaï.

Sentados Jean-Paul Sartre, Albert Camus,Michel Leiris e Aubier.

Page 4: Dossiê - FILOSÓFICA BIBLIOTECA · sarcasmos e a ferocidade de ontem. E também, é claro, afogados na multidão, sacudidos, às vezes arrastados pela tor-rente, às vezes empurrados

54 Cult - maio/200054

o homem capaz de produzir seme-

lhante prodígio? Que misterioso poder

de sedução havia feito com que uma

única vida fosse suficiente para reunir

fervores tão disparatados? Como, por

que uma voz, uma única voz, a voz seca

e metálica de Sartre, tinha conseguido

se fazer ouvir em tantas línguas e por

tantos destinos singulares?”

Esse trecho inicial dá bem o tom

do livro de Lévy – um livro apaixo-

nado, explicitamente simpático a seu

herói, aparentemente hagiográfico,

mas que na verdade é um panegírico

da figura do intelectual total, do leitor

onívoro e escritor polígrafo que autor

de As palavras encarnou como nin-

guém nesse século que assim podemos

considerar legitimamente o “século de

Sartre”. A cena do cemitério de Mont-

parnasse concentra o desenvolvimento

das mais de 600 páginas seguintes. Lévy

retoma a vida conjugal ou as muitas

vidas conjugais que Sartre manteve, a

partir do epicentro Simone de Beau-

voir, com inúmeras amantes; a obra

literária materializada em romances

como A náusea e Os caminhos da liber-dade e em peças teatrais como As mos-cas e As mãos sujas; a filosofia de O sere o nada e Crítica da razão dialética; os

engajamentos sucessivos (suas ligações

com a Resistência, com o Partido

Comunista, com os rebeldes de maio

de 68 e com os maoístas) – Lévy reto-

ma essa incandescência criativa, essa

voracidade intelectual, esse ativismo

político e sexual para traçar não um

retrato harmônico que seja a síntese

dialética da tese-antítese ambulante

que foi Sartre, mas um instantâneo,

sempre provisório, das diferentes

personas que o coabitam.

Na verdade, essa figura poliédrica

criada por Lévy obedece a uma

preocupação legítima: formular um

antídoto para duas variedades de

veneno que começavam a se espalhar

pela vida intelectual francesa logo após

aquela manhã em que Paris enterrou

seu último ídolo supremo. O primeiro

veneno – no fundo inofensivo, é bem

verdade – diz respeito à vida íntima

do filósofo. Com a publicação de Acerimônia do adeus, por Simone de

Beauvoir, e com a publicação da

correspondência entre eles (Cartas auCastor), o grande público teve acesso

ao caráter das relações amorosas entre

os dois: o caráter livresco, mais do que

carnal, de sua cumplicidade conjugal;

o caráter carnal, e partilhado em

epístolas libertinas, dos relaciona-

mentos extra-conjugais de ambos; o

bissexualismo de Castor (apelido de

Simone de Beauvoir) e seu êxtase nos

braços de Nelson Algren (a editora

Nova Fronteira acaba de lançar um

volume com suas cartas ao poeta norte-

americano) – enfim, toda uma minúcia

de detalhes que fazem as delícias da

imprensa marrom e dão munição à

baixeza de críticos que querem reduzir

uma obra a sublimações neurastênicas,

a sintomas de uma pretensa patologia

erótica. O segundo veneno – muito

mais maligno – é aquele que quis

vestir o cadáver de Sartre com o fardão

do humanista profissional, esclero-

sado, nostálgico de totalizações e

grandes sistemas filosóficos, cioso de

sua autoridade de maître à penser.

Bernard-Henri Lévy consegue uni-

ficar essas duas formas de maledicência

num alvo comum, respondendo com o

único argumento que nos fez e nos faz

ler Sartre: a literatura, e não apenas

sua ficção teatral e seus romances ou

contos, mas a escrita sartreana, essa

prosa ensaística ímpar, nem exclusi-

vamente conceitual, como nos filósofos

tradicionais, nem aquela “transmutação

estética do desespero” que Starobinski

vê nos moralistas franceses e que po-

demos ver também em Camus (o amigo

com o qual Sartre rompeu e que ho-

O filósofoJean-Paul Sartrenos anos 50

Page 5: Dossiê - FILOSÓFICA BIBLIOTECA · sarcasmos e a ferocidade de ontem. E também, é claro, afogados na multidão, sacudidos, às vezes arrastados pela tor-rente, às vezes empurrados

maio/2000 - Cult 55

menageou, comovido, após o acidente

de carro que o matou em 1960: sempre

a morte a dar a última palavra sobre os

homens), mas tudo isso reunido numa

mesma “vertigem da letra”, no “duplo

romance da literatura e da vida”.

“Duplo romance da literatura e da

vida”. Não se trata de um jogo de

palavras de Lévy. Se é verdade que

todo romancista nos passa, cifrada no

texto, a chave da gênese pessoal de

sua obra (uma obsessão, um rancor, um

amor, uma nostalgia) e se podemos,

não obstante, aproveitar a obra sem

utilizar a senha de acesso a seu segredo

(os estruturalistas e, antes deles, os

formalistas russos nos ensinaram que

a obra é tudo e a vida, quase nada),

em Sartre tudo se passa como se vida

e obra existissem para arrancar a si

mesmas de sua gratuidade.

Vida vivida como obra: eis o sentido

das cartas trocadas entre Sartre e

Beauvoir. “Como não se surpreender,

no coração do século XX, mas no mais

puro estilo do século XVIII, com esta

relação, ao mesmo tempo feliz e

perigosa, límpida e misteriosa, que tem

tanto de ‘casamento de almas’ quanto

de libertinagem? (...) Não com-

preenderemos nada da relação entre

Sartre-Beauvoir se, para o mal e para o

bem – os livros que eles escreveram a

partir disso... –, não tivermos em mente

o modelo precedente de Laclos...

‘Adeus, minha encantadora Castor. Ela

acaba de chegar e termino essa carta

sob seu olhar. Você conhece meus

sentimentos, mas não ouso escrevê-los,

pois poderiam ser lidos às avessas’: é

uma cena das Relações amorosas ou da

vida de Casanova”, escreve Lévy sobre

o paralelismo entre Valmont/Sartre e

Marquesa de Meurteuil/Simone de

Beauvoir. Mas o que importa nesse

paralelismo é o “programa de verdade”,

a “transparência sem desejo de

pureza”, a elisão entre público e

privado, o conúbio “amor e liberdade”

que perpassa essa história que encontra

na escrita a sua necessidade.

O imoralismo, o desejo de transpa-

rência e a promiscuidade paradoxal-

mente fiel de Sartre em relação a

Beauvoir e vice-versa pertencem a uma

intuição primeira que governa sua vida

e sua filosofia – que governa sua vida

porque governa sua filosofia (e

facilmente poderíamos aplicar a Sartre

o raciocínio de Merleau-Ponty sobre

Cézanne: não devemos buscar as razões

dessa obra na sua biografia, mas

devemos ver, nos acontecimentos dessa

vida, a biografia que essa obra exigiu).

Em O ser e o nada, Sartre havia pos-

tulado a existência de uma contrapo-

sição fenomenológica entre, de um

lado, a opacidade das coisas, dos entes

ou objetos do mundo, do ser-em-si,

com sua viscosidade resistente ao sen-

tido; e, de outro, a consciência indi-

vidual, esse nada, essa pura vacuidade

para-si que se abre para a experiência

do objeto e o “nadifica”, transfor-

mando sua opacidade em idéia, senti-

mento – incluindo-se aí (e isso será

decisivo) até mesmo uma outra cons-

ciência (um outro sujeito), que será

percebida também ela como objeto

opaco e será “nadificada”. No encon-

tro entre dois Nadas, entre duas cons-

ciências, portanto, uma resistirá à

tentativa da outra de transformá-la em

objeto, em Ser do mundo, em contin-

gência, postulando assim uma neces-

sidade (a determinação de uma cons-

ciência por outra) que, por brotar ao

mesmo tempo desse encontro inter-

subjetivo e da exigência de que a

consciência resista a se tornar “puro

objeto para o outro”, implica também

o reconhecimento de que “estamos

condenados à liberdade”.

A partir daí, os domínios do amor,

da política e da arte adquirem em

Sartre transformam-se em espaço de

Michel Foucault, sucessor deSartre no papel de estrela dafilosofia francesa

Div

ulga

ção

Page 6: Dossiê - FILOSÓFICA BIBLIOTECA · sarcasmos e a ferocidade de ontem. E também, é claro, afogados na multidão, sacudidos, às vezes arrastados pela tor-rente, às vezes empurrados

56 Cult - maio/200056

CRONOLOGIA

1905 Nasce no dia 21 de junho em Paris.

1924-28 estuda na École NormaleSupérieure, na mesma turma deRaymond Aron, Canguilhem e PaulNizan. Conhece Simone de Beauvoir.

1931 É nomeado professor de filosofiaem Havre.

1933 Leciona do Instituto Francês deBerlim.

1934 Volta à França, onde leciona emdiversos liceus.

1939 Com a eclosão da Segunda Guerra,é mobilizado pelo exército francês.

1940 É preso pelos alemães em Padoux(Lorena).

1941 É libertado e volta para a França.

1942-44 Professor de khâgne (cursopreparatório paea a École NormaleSupérieure) no liceu Condorcet, em Paris.

1943 Publica O ser e o nada.

1945 É colocado em licença por prazoindeterminado. Funda, com MauriceMerleau-Ponty, a revista Les TempsModernes. Viaja aos EUA como jornalista.

1952 Adere ao Partido Comunista.

1960 Publica Crítica da razão dialética. Visitao Brasil.

1964 Publica As palavras. Recusa o PrêmioNobel de Literatura.

1965 Adota Arlette El Kaïm.

1968 Engaja-se no movimento estudantil demaio. Condena a invasão daTchecoslováquia pelos tanques soviéticos.

1970 Apóia o grupo maoísta “EsquerdaProletária” e torna-se diretor do jornal ACausa do Povo, evitando assim represálias aseus editores.

1973 Assume a direção do jornal esquerdistaLibération. Fica totalmente cego e deixa deescrever.

1980 Morre em Paris no dia 15 de abril.

VIDA E OBRA DE

POU

LOU

Sartre, de Denis Bertholet (editoraPlon, 600 págs.), não é certamente umabiografia tão reveladora quanto aquelade Camus escrita por Olivier Todd (quemostrava o fundo de desespero dodonjuanismo solar do autor de O mito deSísifo) – talvez porque a vida pública deSartre seja demasiado conhecida. Mas éde qualquer forma um trabalho minuciosoem que Bertholet (autor de uma obra sobrea vida de Paul Valéry) estabelece umdiálogo cerrado com As palavras – afascinante autobiografia em que Sartrefala do seu sentimento de desenraizamentodo mundo em função da morte de seu pai,quando ele ainda era um recém-nascido(o que justificaria a famosa frase “Eu nãotenho super-ego” e explica sua obsessãocom a idéia de gratuidade, de não-determinação das coisas e de si mesmo, queele tentou corrigir pela literatura, com aqual o escritor justapõe um universonecessário ao mundo contingente que ocerca).

As vicissitudes do pequeno Poulou, suadupla experiência de reinar absoluto numlar burguês e descobrir a um só tempo sua

feiúra física e a condescendência comque era tratado pelos adultos, estão nagênese de uma trajetória intelectualmarcada pela idéia de desalienar-se

de si mesmo que começa a ser formulada,objetivamente, com seu ingresso naprestigiosa École Normale Supérieure, emque o jovem Jean-Paul conviveu comnomes que seriam igualmente famosos,como os de Raymond Aron, Paul Nizan(que morreu na Segunda Guerra), ofilósofo da ciência Georges Canguilhem e,sobretudo, Simone de Beauvoir.

A partir daí, Bertholet oferece umafresco da vida parisiense da eraexistencialista, com a corte de Sartresendo progressivamente engrossada poruma infinidade de discípulos e (a cadarepresentação de suas peças teatrais...)atrizes que se transformam em amantes –pano de fundo pessoal para suas viagense oscilações políticas, para suas polêmicasamizades (Camus, Merleau-Ponty) epara o retrato íntimo de um homementediado com a política (emboraconvencido de sua responsabilidade cívicae filosófica), generoso, desprendido dodinheiro e das glórias literárias (elerecusou o Nobel em 1964) e cuja vida foi,acima de tudo, conseqüente com suafilosofia e seus livros.

56 Cult - maio/200056

Page 7: Dossiê - FILOSÓFICA BIBLIOTECA · sarcasmos e a ferocidade de ontem. E também, é claro, afogados na multidão, sacudidos, às vezes arrastados pela tor-rente, às vezes empurrados

maio/2000 - Cult 57

exercício da pura liberdade, queprocura constantemente escapar do

desarrazoado da contingência por

meio de cristalizações, instâncias domundo que criam sua própria neces-

sidade – mas que podem freqüente-

mente afogar a consciência na espes-sura do acontecimento, reduzindo-a

um objeto (“o importante não é o que

fazem aos homens, mas o que estesfazem com que quiseram fazer deles”),

ou simplesmente derivar para a má-fé

(que em Sartre nada tem a ver com osentido ético-moral do linguajar cor-

riqueiro, referindo-se antes à atri-

buição, aos fatos, de uma causalidadeque nos desvia de nossa responsabi-

lidade sobre eles), dando início a uma

nova cadeia de cristalizações que reali-zem e constituam, no plano dos seres,

o desígnios desse espírito que se lança

no turbilhão que ele mesmo cria.

A volubilidade amorosa de Sartre

é, assim, o contraponto de seus múl-tiplos engajamentos políticos, aparen-

temente contraditórios – seu antico-

munismo inicial, depois sua adesão aoPC e finalmente sua condenação do

regime soviético e a simultânea defesado marxismo, que encontra no

maoísmo uma última possibilidade,

uma última cristalização. Na políticacomo no amor haverá, porém, um

centro fixo, haverá Castor e essa

intuição fenomenológico-existencialaos quais sempre retornam suas repre-

sentações, seus textos, ensaios filosó-

ficos, romances ou meras correspon-dências – afastando assim de Sartre a

sombra do humanista entronizado

num sistema filosófico e contrapondoa esse clichê a imagem de um Rousseau

do século XX, furioso, engagé e enragé,utopista da transparência que não sedetém diante dos maiores obstáculos,

mas se lança neles sem medo de sujar

as mãos na história e assumindo aresponsabilidade por seus atos e

sobretudo por seus erros.

No livro de Lévy, a obra de Sartre

ganha estatuto literário, criando seu

próprio mundo e as representações

que o habitam. A tal ponto que, ao

comentar a literatura sartreana, Lévy

estabelece um paralelo surpreendente

entre procedimentos estilísticos pre-

sentes em Dos Passos, Joyce e Céline,

mas – o que é ainda surpreenden-

temente! – atribui as ousadias formais

de livros como A náusea e Os caminhosda liberdade à essência de sua filosofia

(e não à emulação desses vanguar-

distas):

“Só existem ali mônadas que

interferem umas sobre as outras, sem

que qualquer uma delas possa pre-

tender ter um privilégio ontológico”,

escreve Lévy sobre a ausência de ponto

de vista dominante em Os caminhos daliberdade. “E é esse ponto de sua

doutrina filosófica que é fonte de

originalidade técnica e literária; é essa

aposta metafísica que torna possível

não somente a passagem de um

narrador a outro, mas também a

ausência de hierarquia na sucessão de

narrativas; é porque Sartre é filósofo

que Com a morte na alma pode abrir

páginas em que vemos se entrelaçarem

seis perspectivas sobre a mesma situação

(...); é porque ele é esse filósofo,

porque ele produz, filosoficamente,

esse conceito de um mundo estilhaçado

numa infinidade de consciências que

são, cada uma delas, um universo

absoluto; porque ele é, numa palavra,

esse leibniziano sem Deus ou esse

pascaliano sem fé imaginando o

universo como uma totalidade quebrada

cujo centro está em toda parte e a

circunferência em nenhuma – é por

tudo isso que ele é capaz de reinventar,

na esteira dos americanos, e depois de

Proust e Céline, o romance polifônico

à francesa.”

Conferindo valor literário, demiúr-

gico, à filosofia sartreana, Lévy põe um

valor positivo nessa ficção filosófica

(usualmente tida como didática, mera

ilustradora de meditações metafísicas).

Com isso, finalmente, a própria

concepção do literário em Sartre ga-

nha outras cores – e Lévy restitui a

seu devido e merecido lugar um livro

tão erroneamente lido quanto Que é aliteratura? (usualmente tido como um

panfleto conclamando os escritores ao

engajamento partidário):

“O conceito de engajamento não é

um conceito político que insiste sobre

os deveres sociais do escritor; é um um

conceito filosófico que assinala os

poderes metafísicos da linguagem.

Falar de engajamento não significa

‘requisitar’ os homens da pena, mas

significa lembrá-los daquilo que sabem

ou deveriam saber: que cada ato de

nominação ‘se integra no espírito

objetivo’; que, fazendo isso, ele con-

fere à palavra e à coisa uma ‘nova di-

mensão’; que cada palavra pronun-

ciada contribui para ‘desvelar’ o mun-

do e que desvelar é e será sempre

‘mudar’ esse mundo.”

O escritor Louis-Ferdinand Céline

Rep

rodu

ção

Page 8: Dossiê - FILOSÓFICA BIBLIOTECA · sarcasmos e a ferocidade de ontem. E também, é claro, afogados na multidão, sacudidos, às vezes arrastados pela tor-rente, às vezes empurrados

58 Cult - maio/200058

METAFÍSICA EHISTÓRIA

NO ROMANCE DE SARTREFranklin Leopoldo e Silva

58 Cult - maio/200058

Page 9: Dossiê - FILOSÓFICA BIBLIOTECA · sarcasmos e a ferocidade de ontem. E também, é claro, afogados na multidão, sacudidos, às vezes arrastados pela tor-rente, às vezes empurrados

maio/2000 - Cult 59

OS ROMANCES A NÁUSEA E DE OS

CAMINHOS DA LIBERDADE ENCARNAM

LITERARIAMENTE AS DUAS DIMENSÕES DA

LIBERDADE PRESENTES NA OBRA SARTREANA,ENCENANDO A PASSAGEM DE UMA LIBERDADE

ABSOLUTA, QUE CONSTITUI METAFISICAMENTE

O SUJEITO, PARA SUA REALIZAÇÃO NA

EXISTÊNCIA, QUE É SEMPRE HISTÓRICA

Com alguma frequência encontra-

mos, entre os estudiosos de Sartre,

uma interpretação orientada pela

divisão de seu pensamento em duas

fases: na primeira, sob a influência de

Husserl e Heidegger, predominariam

os temas existenciais tratados pelo viés

fenomenológico e que teriam encon-

trado sua expressão definitiva em Oser e o nada, um tratado de ontologia

caracterizado por uma atitude de

decidida inversão na reconstrução e

tratamento de questões tradicionais da

filosofia. Numa segunda fase, a aproxi-

mação do marxismo teria feito com que

Sartre se voltasse inteiramente para a

história, prevalecendo então a busca

das determinações e mediações por via

das quais os grandes temas da cons-

ciência e da liberdade, antes visados

na esfera do absoluto, fossem tratados

como a constituição de processos pelos

quais a singularidade humana se

contrapõe dialeticamente à totalidade

histórica.

Essa interpretação se sustenta na

notável diferença existente entre Oser e o nada e os escritos posteriores,

indicando uma inflexão reflexiva que

atingiria seu ponto mais definido na

Crítica da razão dialética e em O idiota

da família. Se simplificássemos drasti-

camente a relação entre esses dois

momentos, poderíamos dizer que a

diferença está sobretudo na passagem

da Metafísica para a História. O pró-

prio Sartre por vezes corroborou essa

visão, ao analisar retrospectivamente

as diversas preocupações presentes ao

longo de seu percurso. Contudo, creio

ser possível ver aí uma continuidade,

marcada por uma diversidade de

ênfase, o que nos permitiria encontrar,

na chamada “segunda fase”, um

aprofundamento histórico dos temas

metafísicos, de cujo tratamento

anterior, aliás, a história não estava

inteiramente ausente. Se admitirmos

essa diferença de ênfase, o enlace

entre os dois momentos seria dado

precisamente pela concepção sartriana

de Metafísica: esta não seria um

conjunto de preocupações marcado

pela distância que se abre entre a

existência humana e a Substância ou

o ser enquanto ser, mas um mergulho

profundo na própria existência, não

com a finalidade de transcendê-la, mas

de superar a obscuridade e a opaci-

dade com que ela a princípio nos apa-

rece, para que possamos então encon-

trar o absoluto, o universal e o trans-

cendente nas imbricações concretas

que fazem do homem uma questão

para si mesmo.

Dada a evidente impossibilidade

de acompanhar exaustivamente as

articulações dessa continuidade na

obra de Sartre enquanto filósofo, es-

critor e crítico, procurarei apenas fazer

algumas breves indicações a respeito,

tomando como fio condutor a relação

de Sartre com a literatura. Como se

sabe, essa relação define uma linha de

reflexão que esteve presente em

Sartre durante toda a sua trajetória,

desde os comentários escritos nos anos

30, que buscam a compreensão de

Faulkner, Dos Passos, Mauriac, Camus,

Giraudox, entre outros, até a inter-

pretação inacabada de Flaubert, pas-

sando pelo ensaio Que é a literatura?,

cujas idéias centrais são retomadas nas

conferências de 1965 sobre a função

do intelectual. Ao mesmo tempo,

deve-se considerar a atividade do

ficcionista, que se inicia com a novela

A náusea e a coletânea de contos

intitulada O muro e se interrompe com

a publicação do terceiro volume de Oscaminhos da liberdade (Com a morte naalma), ao qual deveria seguir-se um

quarto, que permaneceu inacabado. E

Page 10: Dossiê - FILOSÓFICA BIBLIOTECA · sarcasmos e a ferocidade de ontem. E também, é claro, afogados na multidão, sacudidos, às vezes arrastados pela tor-rente, às vezes empurrados

60 Cult - maio/200060

ainda haveria que considerar a obra

teatral, extensa e complexa. Redu-

zindo, portanto, mesmo no interior do

universo literário, as nossas preten-

sões, vamos apenas tomar aqui como

pretexto alguns aspectos, sumaria-

mente referidos, da construção das

personagens principais de A náusea e

de Os caminhos da liberdade.A história contada em A náusea é a

da descoberta da contingência por

Antoine Roquentin, um historiador

que vive em disponibilidade, preen-

chendo a sua vida com o projeto de

biografia de uma personagem secun-

dária da história francesa do século

XVIII, razão pela qual se dirige a uma

pequena cidade do interior da França,

em cuja biblioteca se encontram os

arquivos de que necessita. Esse tra-

balho, de cujo caráter inócuo Ro-

quentin tem uma consciência difusa,

serve entretanto de única referência

para a sua existência. Essa ambi-

güidade nos mostra algo como o signi-

ficado da gratuidade: A personagem

apega-se ao que há de mais contin-

gente como se fosse a razão essencial

da sua vida. Ao mesmo tempo, é

impossível que o trato cotidiano com

o contingente não o faça revelar-se

como tal. O fastio que a gratuidade

do trabalho provoca em Roquentin faz

com que ele o abandone; mas com isso

se vê também abandonado pela única

possibilidade de sentido da sua vida.

Percebe então, não apenas em relação

ao seu projeto intelectual, mas tam-

bém no que concerne a toda a sua vida,

um paradoxo insuperável: o essencial

é a contingência; tudo que é

necessário revela-se como gratuito.

Não há um encadeamento objetiva-

mente verificável que dê razão de

qualquer fato da existência, porque

ela mesma é pura factualidade, isto é,

a sequência de acasos que não podem,

de direito, constituir a vida na uni-

dade e coerência com que a deseja-

mos. Existir é um fato bruto, não lapi-

dado por categorias ou razões, sem

fundamento, sem “nada por trás”,

como conclui Roquentin. Não há o

que se possa fazer a esse respeito, mas

o desespero produz uma saída: talvez

se possa fazer algo a partir desse nada;

se a vida não é necessária, talvez se

possa, com ela, construir algo dotado

de necessidade. O seu gosto pela

música, pelos blues que ouve nos cafés,

o alerta para a necessidade construída

na arte. A música é uma totalidade

necessária, ela ocorre sempre da

mesma maneira, na mesma sequência

gravada para sempre no disco. Aquele

que a fez, a cantora que a interpreta,

certamente são seres contingentes, são

vidas gratuitas; mas a canção, isto é, a

obra, escapa de tudo isso. E essas vidas,

se estão de alguma forma vinculadas a

essa permanência, também escapam

indiretamente ao nada, deixam de

estar condenadas ao confinamento no

passado, apavorante para Roquentin.

Aquilo que não pode acontecer numa

existência efetiva acontece, então, com

o que se faz dessa existência, desde

que isso que se faz seja inoculado de

necessidade: uma canção, uma nar-

rativa, um romance, sempre algo que,

brotando de uma existência individual

e contingente, esteja fora dela. Algo

que não exista, porque o que existe é

inevitavelmente contingente, sem

razão. Não estaria aí, portanto, a

salvação? Não demonstra isso que a

nossa existência é contingente justa-

mente por lhe faltar a instância desse

narrador que tudo ordenasse?

Ater-se a esse prodígio que faz

nascer do mais contingente o mais

necessário pode representar, no

entanto, muito mais a ilusão do que a

salvação. Sartre não nos relata o

destino de Roquentin, o que ele fez

depois de ter julgado entrever a saída.

Mas sabemos o que lhe falta, e

podemos avaliar a impossibilidade de

que ela seja preenchida, mesmo que

Roquentin viesse a escrever o romance

que o imortalizaria. A contingência é

como a face exterior e objetiva da

liberdade. Descobrir que se existe

contingentemente é descobrir que se

vive em liberdade. E uma coisa é tão

inelutável quanto a outra. Minha vida

não é um romance de aventuras bem

encadeado e cuidadosamente narrado

porque o que me constitui é a minha

liberdade e não a ordem narrativa da

minha existência. Percebe-se então

Albert Camus

Rep

rodu

ção

Page 11: Dossiê - FILOSÓFICA BIBLIOTECA · sarcasmos e a ferocidade de ontem. E também, é claro, afogados na multidão, sacudidos, às vezes arrastados pela tor-rente, às vezes empurrados

maio/2000 - Cult 61

que o que o herói de A náusea real-

mente deseja é construir fora de si o

sentido que não pode achar em si: um

sentido determinado. E então poderá

agarrar-se a ele e beneficiar-se dele,

como alguém que se serve de um apoio

para não cair no vazio. O horror da

contingência é também a angústia

diante da liberdade. O limiar entre

essas duas coisas, que no entanto são

idênticas, tornou-se o limite que

Antoine Roquentin não transpôs.

Já Mathieu, o herói de Os caminhosda liberdade, vive, à sua maneira, a

liberdade. Essa maneira pode ser

definida como a preservação da liber-

dade. Para ele, a liberdade se opõe ao

compromisso. Não é inteiramente o

amante; nem o amigo; não assume

objetivamente qualquer posição

política; recusa a moralidade burguesa

do irmão, mas não a afronta; não

reprime seus desejos mas também não

os realiza; sua liberdade, da qual ele

tem consciência, o coloca no entanto

numa disponibilidade muito próxima

à de Roquentin. A diferença é que não

quer saltar sobre a liberdade para

salvar-se; prefere esperar indefinida-

mente que ela se realize, mas recusa

assumir concretamente qualquer

opção. Por isso se pergunta, nos

momentos de aprofundamento da

lucidez, para que serve essa liberdade.

Outra diferença, e esta mais signifi-

cativa, entre as duas personagens, é

que Mathieu se vê obrigado a

confrontar-se com a história. A guerra

o colhe no torvelinho do absurdo e,

pela primeira vez, ele se encontra

numa situação de compromisso, mes-

mo que não a tenha buscado ou

escolhido. Eis a oportunidade. Ele está

inevitavelmente posto diante da

instância objetiva na qual poderá pro-

var a sua subjetividade, experimen-

tando-a no limite, vivendo a comunhão

conflituosa entre as consciências, na

vertigem do acontecimento. Mas para

isso haveria que assumir-se como

sujeito histórico, não basta ter sido

surpreendido pela história. Teria que

interiorizar moralmente as circuns-

tâncias e exteriorizá-las em ação,

deixar-se contaminar pela dinâmica

inerente à dor dos processos humanos,

de que a guerra é tão eloquente

testemunha. Não o faz, não pode fazê-

lo por não se sentir responsável pela

guerra, pela dor, nem merecedor da

eventual purgação que tudo isso

poderia proporcionar. Mesmo quando

suas ações se mostram corajosas e

heróicas, são ainda as reações pessoais

que predominam: a frustração, a raiva,

a vingança vividas na particularidade

de uma consciência que ao cabo se dá

conta de que não quis e não soube

correr verdadeiramente os riscos. Não

aproveita o Sursis que a história lhe

oferece.

Diante disso já podemos ensaiar

algumas conclusões. Há duas dimen-

sões da liberdade: uma que constitui

existencial e metafisicamente o

sujeito. É aquela na qual “o homem

está condenado a ser livre” porque a

sua consciência se identifica com a

liberdade, e esse é o único absoluto

real. Outra, em que essa dimensão

absoluta tem que se concretizar para

realizar-se de fato na existência que é

sempre histórica. É o plano em que a

liberdade significa libertação, o esforço

que cada um faz para tornar-se livre. A

relação entre as duas dimensões é

evidente. Só pode aspirar à liberdade

aquele que já a traz dentro de si, ainda

que vivendo-a como impossibilidade.

O escravo luta pela liberdade porque,

nele, o homem é livre. Ao mesmo

tempo, essa liberdade permaneceria

abstrata se fosse apenas atributo desse

homem universal e indeterminado.

Assim, muito embora o ser da

consciência se defina como liberdade,

isto é, a pluralidade indefinida das

possibilidades de existir, a liberdade

somente se realiza quando o sujeito

assume, no redemoinho das vicissitu-

des históricas, a tarefa de tornar-se

aquilo que já é. Esse paradoxo –

tornar-se aquilo que já é – deriva da

contradição fundamental entre a

espontaneidade da consciência e as

determinações históricas, contradição

aprofundada na vigência da sociedade

capitalista, na qual a liberdade está

submersa na opressão, da destituição

da liberdade histórica do outro. É essa

irracionalidade fundamental que

William Faulkner

Rep

rodu

ção

Page 12: Dossiê - FILOSÓFICA BIBLIOTECA · sarcasmos e a ferocidade de ontem. E também, é claro, afogados na multidão, sacudidos, às vezes arrastados pela tor-rente, às vezes empurrados

62 Cult - maio/200062

impõe a conquista da liberdade por

meio do conflito, já que a ausência do

conflito seria a anulação da possibi-

lidade da liberdade.

Podemos avaliar agora aquilo que

Roquentin e Mathieu não conseguem

perceber. A contingência não é supe-

rável porque o estar-no-mundo é, fun-

damental e originariamente, factuali-

dade contingente. Nada do que o

homem faça permitirá que escape

dessa questão sempre aberta: ele é o

ser para quem o seu próprio ser estará

constantemente em questão. A liber-

dade implica que o homem será sem-

pre incompleto e que sua existência

nunca se fechará num conjunto de

possibilidades realizadas. Por outro

lado, a liberdade não é um estado de

espírito, sereno ou inquieto. O estóico

Epiteto não é livre, apesar de assim o

pensar na serenidade isolada do seu

espírito. Tampouco Mathieu, que

experimenta as inquietações de sua

relação com o tumulto histórico. Pois

nenhum homem existe antes e à parte

de sua existência histórica. E no

entanto o homem é livre. Ele como que

desfruta de uma liberdade que ainda

está por se realizar, que ele deve

realizar. Trata-se, diz Sartre, de um

paradoxo da vida histórica. De um

lado, a consciência identificada à

liberdade; de outro a liberdade

definida pela sua realização histórica.

Essas duas dimensões da existência

não se opõem para um pensamento

que recusa a lógica da identidade abso-

luta, a unidade plenamente positiva

e a ausência total de fissuras no tecido

da realidade humana. Mas, por isso

mesmo, as ciências que se servem do

aparato analítico para constituir um

saber acerca do homem inevitavel-

mente deixam escapar as articulações

contidas nesse paradoxo constitutivo.

Pois se de um lado vigora a exigência

de universalidade, totalidade e

necessidade, características de todo

saber, de outro lado nos é dada a sin-

gularidade como valor absoluto

encarnado na individualidade livre.

Não se trata de escolher entre um sabere um não-saber, ou entre a racionali-

dade formal e a irracionalidade vivida.

Trata-se de compreender como, num

movimento de interiorização das

determinações que representam o

universal, o sujeito as acolhe e se faz

mediador de um outro movimento,

que é a exteriorização dessas mesmas

determinações, agora transfiguradas

pela singularidade subjetiva que as

incorporou e viveu. O movimento

dialético que assim se constitui destrói

os mitos da exterioridade objetiva

neutra e da interioridade subjetiva

irredutível ao seu contexto de reali-

dade.

Ora, se a ciência não pode dar

conta desse movimento, a literatura o

faz, quando nos mostra que o sentido

de uma vida depende da forma como

a totalidade está presente na particu-

laridade, como o indivíduo refigura as

determinações que o produzem, num

trabalho da consciência que nunca

termina, porque se trata de um tipo

de saber que consiste na elaboração

permanente da questão. Só a literatura

– e mais especificamente o romance –

pode representar o homem, na sua

individualidade histórica, como o

singular universal, colocando em ten-

são criadora a particularidade dos fatos

da vida e as estruturas universais que

eles ao mesmo tempo limitam e mani-

festam. Isso significa que o trabalho

do escritor tem como resultado a

produção de um universal. A especi-

ficidade da literatura está no modo de

produção desse universal. Do ponto

de vista objetivo e conceitual, o escri-

Sartre e Simone de Beauvoirdesembarcam no Brasil em 1960

Rep

rodu

ção

Page 13: Dossiê - FILOSÓFICA BIBLIOTECA · sarcasmos e a ferocidade de ontem. E também, é claro, afogados na multidão, sacudidos, às vezes arrastados pela tor-rente, às vezes empurrados

maio/2000 - Cult 63

tor nada tem a dizer. Sartre alerta para

o perigo de se transformar a literatura

numa sociologia ou numa psicologia

amadorísticas. A representação lite-

rária, a partir da qual se pode conside-

rar o romance como um “espelho

crítico” do indivíduo e da sociedade,

passa pela concepção da transitividade

essencial da palavra no âmbito da

narrativa. Esse aspecto é acentuado por

Sartre em “Que é a Literatura”. A

posição do objeto imaginário – a

criação literária – é possível graças à

liberdade que o artista tem de negar

o mundo existente. A recíproca dessa

negação é a construção de um outro

mundo que, como espelho crítico,

reflete o mundo real mas de modo a

que o leitor seja remetido não às

determinações que comumente o

alienam, mas à liberdade necessária

para julgar a si mesmo e ao mundo,

recompondo-os num esforço estético

de compreensão. Para que isso

aconteça, a palavra, no caso do

romance, deve ser, nos diz Sartre,

“sacrificada”: ela deve morrer em

benefício da vida do significado, pois

somente este cumprirá a função de

conduzir o leitor à liberdade pela qual

ele irá compactuar com o escritor, e

dessa reunião de liberdades nascerá o

sentido da obra. Os sentidos podem

ser múltiplos, mas a referência única

será a liberdade. Daí a necessidade de

que essa transitividade da palavra

permita que o leitor encontre a uni-

versalidade do humano numa cum-

plicidade histórica com o escritor. E

este convida à cumplicidade, falando

aos homens do seu tempo sobre

questões do seu tempo, convocando-

os para o exercício da liberdade de

leitura, contraparte da liberdade da

escrita. Sartre esperava que ambas

constituíssem os prolegômenos da

liberdade de ação.

A literatura tem, pois, a função de

despertar a consciência dos vínculos

entre o indivíduo e a comunidade

humana, mas jamais a cumprirá através

da subordinação a um partido ou a uma

doutrina. Sua tarefa é dramatizar a

condição metafísica da existência,

mostrando como o homem constrói o

Homem nos embates incertos e cruéis

que fazem nascer a singularidade indi-

vidual diante da história. É o que Sartre

nos mostra, na representação da liber-

dade falhada de seus anti-heróis.

Frankl in Leopoldo e Si lvaFrankl in Leopoldo e Si lvaFrankl in Leopoldo e Si lvaFrankl in Leopoldo e Si lvaFrankl in Leopoldo e Si lvaprofessor do Departamento de Filosofia na USP

BIBLIOGRAFIA

Obras de Sartre publicadas no Brasil (datasdas edições originais na França):

1936 A imaginação (ensaio), editora BertrandBrasil

1938 A náusea (romance), editora NovaFronteira

1939 O muro (contos), editora Nova Fronteira

1940 O imaginário (ensaio), editora Ática

1943 O ser e o nada (ensaio filosófico), editoraVozes

1945 A idade da razão (primeira parte doromance inacabado Os caminhos daliberdade), editora Nova Fronteira; Sursis(segunda parte do romance inacabado Oscaminhos da liberdade), editora NovaFronteira

1949 Com a morte na alma (terceira partedo romance inacabado Os caminhos daliberdade), editora Nova Fronteira

1952 Saint Genet, ator e mártir, editora NovaFronteira

1963 Que é a literatura? (ensaio), editora Ática

1964 As palavras (autobiografia), editoraNova Fronteira

1965 Em defesa dos intelectuais(conferência), editora Ática

Principais obras de Sartre na França(não mencionamos os títulos jápublicados no Brasil)

1943 Les mouches (teatro), editora Gallimard

1945 Huis clos (teatro), editora Gallimard

1946 L’existencialisme est un humanisme(ensaio), editora Nagel; Morts sans sépulturee La putain respectuese (teatro), editoraGallimard

1947 Baudelaire (ensaio), editora Gallimard

1948 Les mains sales (teatro), editoraGallimard

1951 Le diable et le bon dieu (teatro), editoraGallimard

1960 Critique de la raison dialectique (ensaiofilosófico), editora Gallimard

1971 L’idiot de la famille – tomos I e II (ensaiosobre Flaubert), editora Gallimard

1973 L’idiot de la famille – tomo III (ensaiosobre Flaubert), editora Gallimard

maio/2000 - Cult 63