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    Referncia Bibliogrfica do texto:

    FIGUEIREDO, A.C. Do atendimento coletivo ao individual: um atravessamento natransferncia, em Cadernos IPUB A Clnica da Recepo nos Dispositivos de Sade

    Mental,vol. VI, n 17, p. 124-130, IPUB/UFRJ, 2000.

    Do atendimento coletivo ao individual: um atravessamento natransferncia

    Ana Cristina Figueiredo*

    O trabalho da recepo o contato inicial da instituio com aquele que a procura. A

    partir da, se desenrola seu percurso e mesmo seu destino seu caminho e sua sorte notratamento. Minha contribuio ser aqui a de situar o conceito de transferncia em suasmodalidades tanto no que diz respeito ao atendimento propriamente dito quanto aotrabalho em equipe.Inicialmente, devemos situar a recepo no conjunto dos atendimentos coletivos quetm como ponto comum o trabalho em equipe multiprofissional, conforme a orientaoatual das polticas em sade mental: os grupos temticos, de medicao, de egressos deinternao, as oficinas teraputicas etc. Psiclogos, psiquiatras, assistentes sociais,terapeutas ocupacionais, enfermeiros e outros profissionais constituem essas equipes edevem ter uma abordagem que contemple os princpios bsicos desses atendimentos:valorizar a fala dos pacientes, acolher com a escuta, suportar e transformar as demandas,

    produzir efeitos teraputicos e, no caso da recepo, fazer o diagnstico da situaonum primeiro momento e, ento, encaminhar para diferentes modalidades detratamento.Os atendimentos coletivos, portanto, dependem fundamentalmente do trabalho emequipe, o que no exclui que os atendimentos individuais, fazendo parte do conjunto deintervenes, tambm dependam do bom funcionamento das equipes de determinadainstituio. Porm, o fato dos primeiros se darem em equipe pode ressaltar tanto as

    possibilidades teraputicas quanto as contradies e dificuldades inerentes aoatendimento em si. A experincia nos recomenda que os atendimentos coletivos,

    particularmente os grupos de recepo, devam ser feitos por, no mnimo, dois

    profissionais em parceria, podendo chegar a trs. Isso permite que mais de um olharsimultneo sobre o caso possa contribuir para sua melhor avaliao e encaminhamento,e que as diferenas na escuta possam ter uma apreenso redimensionada da fala do

    paciente. Mas justamente a onde incidem diferenas que podem ser intransponveiscaso a equipe no tenha clareza de seus propsitos.

    O trabalho em equipe

    Podemos recortar dois tipos extremos de organizao das equipes que se apresentamcom variaes e nuances no cotidiano do trabalho clnico nas instituies. A esses tiposchamaremos: equipe hierrquicae equipe igualitria.

    *Psicanalista. Professora do Programa de Ps-graduao em Psiquiatria e Sade Mental e Coordenadorado Curso de Especializao em Atendimento Psicanaltico em Instituio do IPUB/UFRJ.

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    A equipe hierrquica preserva, como o nome j diz, a hierarquia das profisses numadistribuio mais verticalizada do poder de interveno. Logo, nas instituies mdicas,

    prevalece a autoridade do mdico seguida da do enfermeiro ou do psiclogo, isso varia.O efeito imediato disso que a primeira e a ltima palavra estaro dadas de antemoseja pelo olhar mdico ou pela especialidade que, em determinada situao, se autorize

    exclusivamente. Este o reino natural das especialidades onde a autorizao tende a sermais restrita, numa espcie de manuteno da atribuio de poder onde outras opiniesdevem contar o menos possvel pois, caso contrrio, a hierarquia estaria ameaada emsua base. Ou seja, quanto mais hierrquica for a organizao da equipe, mais hierarquiaela produzir. Esse modelo pode ser mais pregnante nos hospitais gerais ou noshospitais psiquitricos e ambulatrios menos permeveis ao projeto da reforma, mastambm pode se dar de modo mais sutil no interior das equipes atravessadas pelosvalores da reforma. Nesse caso, a questo da autorizao se confunde com a de umaautoridade vertical, inquestionvel. A hierarquia no deve ser atribuio das profisses a

    ponto de enrijecer as especialidades.A equipe igualitria se apresenta no extremo oposto, onde as especialidades sofrem uma

    imploso, devendo todos os participantes ter a palavra seja em que momento for. Ahierarquia d lugar a uma autorizao difusa e sempre questionvel de um profissional

    por outro. Se todos esto de acordo, isto bom sinal. Ao contrrio da anterior, asdiscusses so infindveis e a cada argumento novo, surge uma nova situao ou umanova dvida. Tudo pode ser discutido e pouco ser resolvido, o que prevalece oconfronto de igualdades onde cada diferena pode ser tomada como desavena eameaa ao equilbrio harmonioso do todo no qual se sustenta a equipe. Esse modelo mais freqente nas instituies onde se faz sentir algum tipo de transformao, nasnovas propostas teraputicas etc. Mas tambm pode tomar, de forma mais sutil, asequipes que se rebelam contra o modelo hierrquico como uma espcie de formaoreativa autoridade. O igualitarismo no deve confundir as especificidades do trabalhoclnico com as especialidades profissionais, ainda que, em determinados casos, haja umainevitvel superposio, como no j conhecido exemplo dos mdicos: nicos

    profissionais com autorizao a prescrever medicamentos, mas no necessariamente osnicos a ministr-los, ou a observar seus efeitos benficos ou malficos.Como, ento, resolver o impasse entre esses opostos que trazem a marca de sua prpriafalibilidade? Nem hierarquia como sinnimo de rigidez ou inflexibilidade, nemigualitarismo como sinnimo de indefinio ou confronto de especialidades. Uma

    proposta se esboa ao utilizarmos o prprio conceito de transfernciaa partir do modocomo foi pensado por Lacan para formular seu sistema de trabalho em Cartis, no casovisando a transmisso da psicanlise em sua Escola. Trata-se da transferncia de

    trabalho.A transferncia de trabalho concebida a partir do prprio conceito de transferncia que central no tratamento psicanaltico, mas dessa vez no como um instrumento daclnica e sim como um instrumento do trabalho entre pares. Seria a condio deestabelecimento de um lao produtivo entre pares visando, por um lado, a produo desaber e, por outro, o fazer clnico. Lacan pensava em como fazer trabalhar os

    psicanalistas dentro de uma corporao que no poderia entregar-se nem hierarquiaburocrtica, nem ao ufanismo narcsico. No faremos uma transposio do termo emseu uso tal como proposto por Lacan, pois as finalidades no so exatamente asmesmas, mas podemos aproveitar a proposta guardando as devidas diferenas e

    particularidades de cada caso para estabelecer equivalncias. A transferncia que deve

    operar no trabalho em equipe deve ser norteada pelo fato de que h um objetivo comums diferentes profisses, e esse objetivo converge para a clnica em seu sentido amplo.

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    importante destacar que quando falamos de transferncia de trabalho estamosdeixando de lado toda uma concepo de transferncia que remete resistncia (istoseria realmente o contrrio do que se visa) e aos sentimentos amorosos e/ou hostis toexaltados, numa determinada concepo da psicanlise, como o cerne da transferncia

    propriamente dita. Estamos aqui tomando o conceito em sua outra acepo, presente em

    Freud e reafirmada em Lacan com todas as suas conseqncias, que a de condiopara o trabalho analtico. Em nosso caso, a transferncia seria condio para o trabalhoem equipe. Como seria isso?Lacan fala da importncia da escolha entre pares visando ao trabalho. Se no servio

    pblico muitas vezes no escolhemos nossos pares, no entanto uma escolha deve serfeita pelo trabalho. Isto significa que essa escolha seja pautada na tolerncia dasdiferenas at o limite da incompatibilidade no trabalho e no apenas em gostos ou

    preferncias pessoais. Isso tambm verdadeiro no que diz respeito ao atendimento dospacientes. Um campo comum a se forma cujo referencial, grosso modo, pode subsumirvariaes tericas, diferentes olhares sobre a clnica, mas deve seguir indicaesmnimas que possam sustentar esse campo, a saber:

    a idia de um sujeito por oposio de um objeto de interveno. Seu arbtrio no exatamente livre nas aes ou na vontade (o sujeito est mais submetido ou maisdesorientado) mas deve-se caminhar caso a caso para constru-lo.a idia de tratamento como um conjunto de intervenes que visam levar o sujeito asituar-se frente a seu destino (pessoal, familiar, social) a partir da reconstruo possvelde uma falncia em suportar a vida como marco de seu adoecer.Tendo essas consideraes em perspectiva, a transferncia de trabalho um lao

    produtivo entre pares por oposio ao que Lacan chamou de cola imaginria. Oprimeiro permite que se estabeleam direes para o tratamento e o cuidado pela via doreferencial apontado acima. J a segunda se d pela incluso das semelhanas narcsicase pela conseqente excluso das diferenas presentes em qualquer tipo de relaotomadas como idiossincrasias intransponveis. Ousamos mesmo dizer que a escolha

    pelo trabalho segue na direo da sublimao, no sentido dado por Freud, como apossibilidade da criao e do conhecimento avanarem no campo da arte e da cincia. Otratar pode bem se situar a entre ambos. A cola imaginria retm os componentesnarcsicos que ficam aqum e mesmo vo na direo contrria da sublimao,chegando at a uma cultura da intolerncia e da destrutividade pela via do que Freudchamou de narcisismo das pequenas diferenas. Junte-se a isso a burocratizao dosservios e das especialidades e temos uma qumica explosiva que pode inviabilizar alongo ou a curto prazo qualquer trabalho em equipe.

    Do atendimento coletivo ao individualTendo situado o trabalho em equipe e a transferncia que lhe correlata, convm agoralocalizar algumas coordenadas sobre a clnica nessa passagem do coletivo ao individual.

    Novamente, a transferncia a mola mestra. Desta vez como lao dissimtricoproduzido pela demanda do paciente endereada ao profissional. Sabemos que atransferncia se d em qualquer tipo de tratamento e toma caractersticas mais

    pulverizadas no atendimento em instituio onde um paciente recebido por diferentesprofissionais com funes diversificadas. Sendo assim, a questo mais pertinente a doendereamentopois a que se encontra o primeiro momento da transferncia em suasvariaes.

    O endereamento a ao ou movimento prprio do sujeito (paciente, usurio). Nosomos ns que escolhemos, antes somos escolhidos, colhidos por esse movimento e

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    podemos ou no ser ativos em provoc-lo atravs de nosso interesse maior ou menorpor cada caso, mas isso secundrio. Portanto no o profissional que transfere parao paciente. Se nos aproximamos mais de um do que de outro devido a certas

    preferncias ou contingncias isso inevitvel e at certo ponto desejvel, pois nosomos todos iguais no entanto o endereamento no nossa funo. Isto diferente de

    fazer uma oferta, que est sempre presente no prprio trabalho clnico, mas o momentoda deciso vem do sujeito. A oferta cabe a ns sustentar, no tanto por abnegao maspelo desejo de promover alguma mudana subjetiva, seja junto ao paciente rebelde,improdutivo, transgressor, ou ao bom paciente que coopera etc. Algumasobservaes se fazem aqui necessrias:o endereamento um momento singular e privilegiado no processo.o endereamento algo diferente da convivncia, ainda que possa se dar a partir dela. Aconvivncia pode tender tambm cola imaginria, onde certas fronteiras soatravessadas, ora porque isto se faz pertinente, ora porque se perdeu uma certaseparao entre quem trata e quem se trata. preciso estar atento a essa diferena.o endereamento deve ser localizado: como feito, a quem feito, qual o pedido. Ele

    pode ser ou no explcito; pode ser repetitivo ou automatizado; pode ser construdo aolongo da convivncia; pode ser anterior a ela; pode advir de uma indicao; pode serespontneo mas no to explcito. O que interessa do lado do sujeito que esseendereamento se converta em questo para o trabalho de elaborao a ser feito. Dolado do profissional, o acolhimento e/ou o agenciamento de uma busca no sujeitoquebrando o automatismo e sustentando a questo que advm.

    A passagem do atendimento coletivo para o individual pode acontecer ou no, emambos os casos a questo do endereamento central e remete transferncia. Cabe ao

    profissional o seu manejo de acordo com os objetivos mais especficos de cada modo deinterveno. Na recepo, o atendimento sendo inicialmente coletivo, a passagem para oindividual pode se dar pela via de uma emergncia qualquer, um mal-estar insuportvelque deve ser apaziguado imediatamente; pode ser contingente e provisria como numatendimento de avaliao que retorna para o grupo de novo visando um outroencaminhamento; pode ser em momentos especficos em que uma queixa, um pedido detratamento, de alvio para o sofrimento se atrele a uma questo qualquer do sujeito

    provocada por sua prpria fala e marcada por quem o escuta. A partir da uma oferta feita no ponto em que a demanda dirigida ao profissional tomando a feio de umendereamento singular. Vale aqui nos determos sobre o que vem a ser o singular.A primeira acepo do termo, mais corrente, a de nico, peculiar e exclusivo.Podemos pens-lo tambm como um conjunto de fatores num arranjonico, isto , o

    que d a singularidade no a unidade e sim um composto de fatores estruturais eacidentais que constituem um momento e mesmo uma trajetria do sujeito. O singularpode ainda remeter-se situao mais do que ao sujeito. As situaes que se apresentamso singulares porque, sendo ou no previsveis, lanam todos e cada um ao trabalho dedar um novo sentido, modificar ou simplesmente suportar seus efeitos. Oendereamento como singular refere-se mais s duas ltimas acepes do termo.O atendimento individual traz como caracterstica bsica a intensificao e aespecificao do procedimento clnico seja ele qual for. Como, quando e porqueatender, e quem atende, so questes preliminares e muitas vezes essa definio vem aolongo do atendimento coletivo e no antes. H a a deciso a ser tomada em cada caso.A clnica opera para alm do planejamento. A oferta, por se antecipar demanda, nem

    por isso se realiza, um primeiro passo. A oferta no deve ser burocratizada no sentidode se informar o paciente sobre um tratamento que lhe oferecido e esperar que ele

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    coopere ou apenas aceite como um fato consumado, caso contrrio seria problema dele.A oferta algo que se sustenta aguardando, acolhendo uma resposta no prevista oumanejando a resistncia seja em que nvel for: da medicao psicoterapia, da oferta detrabalho de lazer assistidos.

    Na recepo a oferta variada e o tempo para da se obter uma demanda como o

    endereamento de uma questo no previsvel. Nesse sentido a clnica se faz do queemerge, a clnica de certo modo est sempre lidando com uma emergncia que serenova. A est a dificuldade principal ao mesmo tempo em que a que algo se torna

    possvel na construo de um tratamento. isso que no podemos perder de vista.Retomando a transferncia, a que se estabelece na recepo contingente, provocada

    pela situao da fala como um endereamento inicial. A partir da, entram em jogo omodo como o sujeito escutado, as intervenes que so feitas at que, como efeito,aparea um a maiscomo dado novo para definir o encaminhamento. Esse momento uma deciso de quem escuta, sabendo suportar um tempo de espera, para que a prpriafala traga algo mais do que j foi dito. Na maioria das vezes esse encaminhamento

    para um atendimento individual ou para mais de uma atividade que inclui esse

    atendimento. No caso de outras modalidades como atendimento familiar, uma oficinaou um espao de convivncia, a transferncia pode tomar outros rumos. Restrinjo-meaqui aos dois tipos mais comuns de atendimento individual: medicao e psicoterapia.Seja para consultas que visem estritamente medicar ou para psicoterapia, a transfernciase pe em marcha. No primeiro caso, o mdico responde a um endereamento que visaa expelir o sofrimento e restaurar a ordem perdida pela via da medicao; no segundo,o terapeuta ou o psicanalista pode estar diante do mesmo pedido tendo que faz-lo sedeslocar dessa posio, mas seria interessante que este ponto j tivesse sido ultrapassado

    pelo prprio trabalho da recepo. Tanto para medicar quanto para escutar, trabalha-secom um sujeito, os efeitos que so diferentes. Atenho-me ao segundo caso.A transferncia que pode fazer funcionar um trabalho analtico deve remeter-se dedeterminado modo ao saber: passa pelo simples buscar o saber do profissional, vai um

    pouco mais alm at um querer saber sobre o que faz o prprio sujeito sofrer,chegando a um saber que j sabe de alguma coisa que difcil deixar aparecer porquetambm lhe estranha mas est ali, clamando, como diz Freud, por elaborao. Isto ,clamando pelo trabalho analtico. Este ponto de chegada da transferncia seria o pontode partida de uma anlise. Nem todos chegam ou devem chegar l, podem ficar nos dois

    primeiros pontos. Mas os que chegam tm que encontrar quem escute o que dizem paraalm do que queriam dizer e possa faz-los trabalhar.

    Bibliografia

    FIGUEIREDO, A.C. Vastas Confuses e Atendimentos Imperfeitos: a clnicapsicanaltica no ambulatrio pblico, Rio de Janeiro, Relume Dumar, 1997.

    ___________ O psicanalista e a equipe multiprofissional na assistncia em sademental em Sade, Sexo e Educao, Instituto Brasileiro de Medicina deReabilitao IBMR, Rio de Janeiro, no prelo.

    FREUD, S. Standard Edition of the Complete Psychological Works, Londres,Hogarth Press, 1978:

    (1912) The Dynamics of Transference, vol.XII

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    (1914) Remembering, Repeating and Working-Through, vol.XII

    (1914b) Observations on Transference-Love, vol.XII

    LACAN, J. (1964) Ata de Fundao da Escola Freudiana de Paris, em Psicanlise eTransmisso, Rio de Janeiro, publicao n 0, Letra Freudiana, 1983.

    ___________ (1967) A proposio de 9 de outubro de 1967, em Psicanlise eTransmisso, Rio de Janeiro, publicao n 0, Letra Freudiana, 1983.