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Ana Rebel Barros De Friedrich a Nosferatu: Aspectos Românticos na Arte Moderna Alemã Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós- Graduação em História Social da Cultura, do Departamento de História da PUC-Rio. Orientador: Prof. Dr. João Masao Kamita Rio de Janeiro, Agosto de 2009

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Ana Rebel Barros

De Friedrich a Nosferatu: Aspectos Românticos na Arte Moderna Alemã

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura, do Departamento de História da PUC-Rio.

Orientador: Prof. Dr. João Masao Kamita

Rio de Janeiro, Agosto de 2009

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Ana Rebel Barros

De Friedrich a Nosferatu: Aspectos Românticos na Arte Moderna Alemã

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profº. João Masao Kamita Orientador

Departamento de História PUC-Rio

Profº. Fabián Rodrigo Magioli Núñez Departamento de Cinema e Vídeo

UFF

Profº. Antônio Edmilson Martins Rodrigues

Departamento de História PUC-Rio

Profº Nizar Messari Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais

PUC-Rio

Rio de Janeiro, 14 de agosto de 2009.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.

Ana Rebel Barros

Graduou-se em Comunicação Social, com habilitação em Cinema, pelo Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense, em 2005.

Ficha Catalográfica CDD: 900

Barros, Ana Rebel De Friedrich a Nosferatu : aspectos românticos na arte moderna alemã / Ana Rebel Barros ; orientador: João Masao Kamita. – 2009. 109 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em História)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Inclui bibliografia 1. História – Teses. 2. História social da cultura. 3. Nosferatu. 4. Romantismo. 5. Expressionismo. 6. História da arte. I. Kamita, João Masao. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História. III. Título.

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Agradecimentos Para a minha família: meus pais, que literalmente viabilizaram a possibilidade de eu cursar o mestrado, atravessar estes dois anos, apesar de todos os pesares – principalmente minha mãe, que soube dosar garra e sutileza no apoio incondicional que me deu no meio de toda turbulência por que passei.

Meus tios, sempre presentes e preocupados, cada um ajudando da maneira que pôde: tia Soninha e tio João, constantemente dispostos a ajudar, dialogar, esclarecer, e o que mais fosse possível.

Tio Robson, que foi uma figura de força quando eu realmente precisei.

Maria Clara e suas pedras energizantes, apesar de todo meu ceticismo.

Silvinha e seu bom-humor a toda hora; e todos os outros primos, tios, que sempre vinham com a pergunta simpática: “está indo bem?”

Para a minha vó, que também foi fundamental nestes dois anos, sempre me incentivando.

Para os meus amigos: os que ajudaram, os que torceram, e os que não estão mais aqui e deixaram saudades.

Não posso deixar de citar o professor Lécio Augusto Ramos, um dos maiores conhecedores de cinema no Brasil, sem dúvida brilhante, extremamente generoso, pronto para compartilhar sua sabedoria e ajudar em tudo que fosse possível.

É também imprescindível mencionar o nome dos professores Elina Pessanha, Cristina e Sergio Câmara que, do início ao fim, foram de uma generosidade e disposição sem tamanho.

A Maria Amélia, Carlos Alberto Medeiros e Roisa Inês de Novais Cordeiro pela extrema solidariedade.

Aos amigos Chico, Marcos, Aline, Claudia, Maria, Otto, Isis e muitos outros, que vibraram comigo.

Ao pessoal do Instituto Cultural Germânico, professores e colegas, que também acompanharam de perto a mui ansiosa jornada.

Para o meu namorado Alexander, claro, que compartilhou comigo os melhores sentimentos e teve paciência para os momentos de estresse agudo.

Gostaria ainda, e bastante, de agradecer ao pessoal da PUC-RJ. Valeu muito a pena cursar o Mestrado em Historia Social da Cultura, eu só tenho a agradecer o empenho, a sabedoria, o interesse e a generosidade dos professores do programa

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com os quais tive contato: Antônio Edmilson, Marcelo Jasmim, Ricardo Benzaquen, Luiz Costa Lima.

Agradecer à Edna e a todo o pessoal da secretaria, além da parte burocrática em geral da universidade, sempre atenciosos e pacientes.

E, claro, ao meu orientador, com todo carinho, apesar do atabalhoamento e da pressa desta orientanda, ele que parece sempre pronto a conversar, acalmar, ensinar. João Masao Kamita, muito obrigada.

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RESUMO

Barros, Ana Rebel; Kamita, João Massao. De Friedrich a Nosferatu: aspectos românticos na arte moderna alemã. Rio de Janeiro, 2009. 109p. Dissertação de Mestrado - Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Este trabalho se propõe a estudar o diálogo entre elementos da cultura

romântica expressos no filme Nosferatu, de Friedrich Wilhelm Murnau – sem

deixar de lado as influências do movimento Expressionista e do contexto sócio-

cultural da Alemanha pós-guerra, partindo da observação do historiador Robert

Gerwarth (2006) acerca da predominância dos estudos culturais e históricos que

ligam os acontecimentos da República de Weimar (1918-1933) ao passado

imediato da Grande Guerra, obliterando influências anteriores a ela, e também

levando em conta a tese de Rosenblum (1975) que aponta a existência de uma

tradição romântica nórdica.

Palavras-chave

Nosferatu, Romantismo, Expressionismo, História da Arte, História.

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Abstract

Barros, Ana Rebel; Kamita, João Massao. From Friedrich to Nosferatu: romantics aspects in the Germany modern art. Rio de Janeiro, 2009. 109p. MSc. Dissertation - Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Considering the ideas of the historian Robert Gerwarth (2006) concerning

the predominance of the cultural and historical studies that bind the events of the

Republic of Weimar (1918-1933) to the immediate past of the Great War,

obliterating previous influences on this period, and also taking in account the

thesis of Rosenblum (1975) that points to the existence of a Romantic northern

tradition, this work intends to study the dialogue between elements of the

Romantic culture expressed in Friedrich Wilhelm Murnau´s Nosferatu film -

without leaving aside the influences of the Expressionist movement and the socio-

cultural context of Germany´s postwar period.

Keywords Nosferatu, Romantism, Expressionism, Art History, History

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Sumário 1. Introdução 11 2.O Romantismo 14

2.1. A tensão “clássico” versus “romântico 18 2.2. A pictórica romântica 23 2.3. O romantismo nórdico 28

3. O expressionismo e seu contexto 38

3.1. A Alemanha e a grande guerra 41 3.2. A República de Weimar 43 3.3. O clima cultural e ideológico do modernismo 49

3.3.1. O caso da Alemanha 57 4. Expressionismo artístico 62

4.1. A questão da natureza 72 5. O cinema alemão dos anos 20 77

5.1. Ficha técnica do filme Nosferatu 81 5.2. Sinopse do filme e primeiras considerações 81 5.3. Nosferatu: o terror e a representação da natureza 93

6. Conclusão 103 7. Referências bibliográficas 105 8. Anexos 109

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Lista de figuras

Figura 1 – Ancient of days (1794) William Blake 26 Figura 2 – Pesadelo (1802) Johann Heinrich Füssli 27 Figura 3 – Monk by the sea (1809) Caspar David Friedrich 28 Figura 4 – Woman in morning light (c. 1809) Caspar David Friedrich 31 Figura 5 – Abbey in the oakwood (1810) Caspar David Friedrich 33 Figura 6 – O Grito (1893) Edvard Munch 36 Figura 7 – The Sower (1888) Van Gogh 36 Figura 8 – Dans la Prairie (1876) Claude Monet 37 Figura 9 – Dançarinas (1909, xilogravura) Ernst Ludwig Kirchner 65 Figura 10 – Blaues Pferd I (1908) Franz Marc 71 Figura 11 – Little Pleasures (1913) Wassily Kandinsky 73 Figura 12 – Plano de “O Gabinete do Dr. Caligari”, de Robert Wiene (1919) 80 Figura 13 – Plano do mesmo filme, demonstrando a forte estilização expressionista do cenário 80 Figura 14 – Plano de “Nosferatu” que apresenta qualidades pitorescas 84 Figura 15 – Plano de “Nosferatu” que retrata a natureza – montanhas e céu tempestuoso 86 Figura 16 – Plano de “Nosferatu” que retrata a natureza - ondas do mar 86 Figura 17 – A sombra do vampiro subindo a escada 88 Figura 18 – Plano de “Nosferatu” em que o vampiro observa Ellen através da janela 89 Figura 19 – “Nosferatu” e os hieróglifos 92 Figura 20 – Plano de “Nosferatu” que evoca a pintura de Caspar David Friedrich 94 Figura 21 – Plano de Nosferatu que evoca a pintura de Friedrich 94 Figura 22 – Plano de “Nosferatu” em que o professor Bulwer analisa elementos da natureza 96 Figura 23 – Plano de “Nosferatu” retratando o pólipo fantasmagórico 97 Figura 24 – Plano de “Nosferatu” que evoca o quadro de Rembrandt 98 Figura 25 – Plano de “Nosferatu” com trucagens que evocam o Sobrenatural 100 Figura 26 – Plano de “Nosferatu” em que o vampiro é atingido pelos raios do sol 102

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“Imagination is the real and eternal world of which this vegetable universe is but a faint shadow.”

William Blake

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1 Introdução

Nosferatu é um filme de 1922, realizado por Friedrich Wilhelm Murnau,

curiosamente não em parceria com a UFA (Universum Film AG), o grande

estúdio mobilizador de uma nascente indústria cinematográfica alemã que

despontava depois da Guerra. A história, primeira adaptação para as telas do

romance “Dracula”, de Bram Stoker, retrata a jornada do jovem Hutter, que é

mandado aos Cárpatos por seu chefe e cai nas garras do vampiro Nosferatu.

Quando este vai para a cidade, traz a peste consigo. Em meio à mortandade geral,

cabe à mulher de Hutter, Ellen, combater o monstro e restabelecer a paz e a

harmonia. É interessante notar que tal adaptação literária acontece num momento

de intenso debate público sobre literatura e cinema, em que a emergência de uma

nova forma de narrar, o filme, provoca uma reflexão até mesmo estrutural da

literatura1.

Aqueles que estudam idéias e manifestações artísticas que perpassaram o

século XIX e, por que não, também o século XX, não se podem furtar à palavra

“Romantismo”. Trata-se tanto de um movimento artístico quanto de um fenômeno

histórico e uma tendência que pode ser verificada em várias formas de arte e

entretenimento mesmo em pleno século XXI. Em suma, pode ser entendido como

um movimento que buscou as esferas mais profundas do ser, provocou e abalou os

cânones ocidentais. Não é exagero afirmar que o Romantismo configurou uma

verdadeira revolução na conceituação e realização das artes, mesmo aquelas que

se lhe opunham, que não exprimiam de imediato a efervescência trazida à tona.

Ademais, é um fato cultural que assinala, inclusive, a relevância da consciência

histórica, em dissonância com o pensamento anterior, próprio do Iluminismo: se

antes a história era filosófica, agora ela se torna factual; o desprezo pelo particular

se transmuta na crença de que cada país e cada povo (Volk) tem um caráter

genuíno2, cabendo à história desvendá-lo. A modernidade exerce sobre os artistas

1 Cf. Anton Kaes and David J. Levin, The Debate about Cinema: Charting a Controversy (1909-1929) in New German Critique, N. 40, Special Issue on Weimar Film Theory (Winter, 1987, p.7-33) 2 GUINSBURG, J. Romantismo, Historicismo e História. In: O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 15

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uma forte atração: não podem deixar de perceber que as modernas técnicas

industriais, apesar de seu vínculo com a ciência, constituem uma grande força

criativa. É necessário, por seu próprio interesse, recusar o que na burguesia há de

estreiteza mental, conformismo, negocismo, e estimular o que nela há de coragem,

genialidade, espírito de aventura. É fácil compreender como, na organização

imposta pelo industrialismo, não era mais possível conceber a técnica como um

bem cultural de toda sociedade: pelo contrário, é a prerrogativa cultural da classe

dirigente. Mais tarde, artistas expressionistas chegariam à concepção da técnica

como comportamento expressivo individual, conforme será mostrado no capítulo

quatro.

A história da arte focada no romantismo nórdico seria uma história

periférica, já que o centro propulsor das artes, até meados do século XX, foi Paris.

O historiador da arte Robert Rosenblum (1975) também se debruçou sobre a

questão, traçando uma espécie de linhagem romântica nórdica que começaria com

o pintor Caspar David Friedrich (1774-1840). O argumento inicial de Rosenblum

(1975) é que a semelhança estrutural entre a obra deste pintor e, por exemplo, a de

um expressionista alemão, não seria fruto de um mero acaso, mas sim a prova da

existência desta linhagem artística, uma tradição que ligaria mais de um século. E

um dos aspectos mais notáveis da obra fílmica de Murnau, como um todo, é

justamente a influência que nela exerce a pintura.

Parece-nos claro que o Romantismo influenciou drasticamente o movimento

Expressionista e, principalmente, o Cinema Expressionista Alemão. Lotte Eisner

questiona-se em seu conhecido estudo “A Tela Demoníaca” se seria presunção

demais “ [...] declarar que o cinema alemão não passa de um prolongamento do

romantismo, e que a técnica moderna quase não faz outra coisa senão emprestar

formas visíveis às imaginações românticas?”3 . Estas são questões que abarcamos

em nosso trabalho.

Esta dissertação tem como recorte temporal o período que abarca desde o

pré-romantismo do Sturm und Drang até o ano de 1922, quando do lançamento de

Nosferatu. Os métodos utilizados foram: pesquisa bibliográfica e documental e

3 EISNER, Lotte H. A Tela Demoníaca – As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 82.

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análise fílmica, compreendendo a confrontação dos aspectos apurados na revisão

de literatura sobre romantismo e expressionismo em relação ao filme Nosferatu.

A ênfase dada ao contexto da Primeira Grande Guerra em estudo

anteriormente realizado4 é aqui diminuída, pois agora tratamos de refletir sobre

possíveis influências de desdobramentos românticos nórdicos no filme de

Murnau, para além do questionamento sobre elementos expressionistas existentes

na película – mas certamente não os deixando de lado.

A dissertação apresenta-se organizada em seis capítulos: o “Romantismo” é

o título e o tema central do próximo capítulo (na seqüência desta Introdução), em

que se apresenta a hipótese de que existiria uma corrente nórdica, de base alemã,

que se refletiria nas artes posteriores. A bibliografia que lhe serve de apoio é

variada, mas destacam-se os seguintes autores: Robert Rosenblum e Giulio Carlo

Argan. O terceiro capítulo, intitulado “O Expressionismo e seu Contexto”, por sua

vez, trata do convulsionado ambiente no qual este movimento encontra-se

inserido. Dois autores centrais para sustentar os argumentos apresentados no

capítulo são Eric Hobsbawm e Peter Gay. “Expressionismo Artístico” é o título

do quarto capítulo, que focaliza seus aspectos estéticos, majoritariamente os

pictóricos. A discussão acerca do filme Nosferatu é apresentada no quinto

capítulo, “O Cinema Alemão dos Anos 20”. A obra de Bouvier e Leutrat (1981)

forneceu ricos elementos, bem como os fotogramas que ilustram aspectos

relevantes para a análise fílmica realizada. Na Conclusão apresenta-se brevemente

um fecho para todas essas idéias. Nela acentua-se que neste filme encontram-se

representados os dilemas impostos pela época, bem como as influências pictóricas

de suma importância para o desenvolvimento nesta etapa da história do cinema

mundial. Buscamos ressaltar que, mais do que a filiação a um ou outro conjunto

de idéias ou teorias, Nosferatu logra apresentar uma nova possibilidade de

reconstrução e regeneração para uma época tão marcada por agudos conflitos.

4BARROS, Ana Rebel. A tela revisitada: Nosferatu, expressionismo e natureza. 2005. Monografia (Graduação em Cinema) – Instituto de Artes e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005

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2 O Romantismo

O movimento romântico floresceu em meados do séc. XIX, século marcado

por mudanças sociais extremas. Vivenciando intensamente os desdobramentos da

Revolução Francesa e da Revolução Industrial, os artistas românticos procuravam

libertar-se de princípios de autoridades apriori em favor da autonomia do ser e da

livre-expressão. É característica a valorização, em geral, dos sentimentos e a

imaginação; o nacionalismo; os princípios da Revolução Francesa – Liberdade,

Igualdade e Fraternidade; e a natureza. Pode-se apontar como expoentes, pela

Europa, o pintor espanhol Francisco Goya, o inglês William Turner, e o francês

Eugene Delacroix. Segundo Argan (1992)

O fim da epopéia napoleônica trouxe profundas conseqüências para a arte. À queda do herói segue-se uma sensação de vazio, o desânimo dos jovens destituídos de seus sonhos de glória O refluxo envolve também as grandes ideologias da revolução. Ao teísmo do Ente Supremo contrapõe-se o cristianismo como religião histórica; ao universalismo do império, a autonomia das nações; à razão igual para todos, o sentimento individual; à história como modelo, a história como experiência vivida; à sociedade como conceito abstrato, a realidade dos povos como entidades geográficas, históricas, religiosas, lingüísticas.

Entretanto, um dos maiores problemas que temos de enfrentar é justamente

a delimitação do movimento. Por um lado, o Romantismo é frequentemente

reduzido a suas manifestações literárias, com limites cronológicos estreitos – o

que acaba por obliterar toda a pluralidade de meios nos quais podemos encontrar

importantes expressões românticas, como a pintura, a música etc. O romantismo

alemão, foco de nosso trabalho, se tomado por este viés, tende a ser diminuído, o

que foi exatamente a atitude de românticos franceses, ao menos até Baudelaire, e a

despeito das escassas revelações do “L´Allemagne” de Mme. de Staël, a ponto de

tomarem o Sturm und Drang, movimento pré-romântico, como autêntico

romantismo alemão.

Por outro lado, há autores que pretendem encontrar traços ou tendências

românticas ao longo de toda a história da civilização. A polaridade clássico-

romântico, à qual nos referiremos mais à frente, constituiria os motivos básicos

que nos permitiriam entender todo o desenvolvimento da cultura. Apesar de ser

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rica e, sobretudo, fecunda, tal acepção dos termos generaliza e descaracteriza o

movimento, por configurar um esquematismo histórico. E o Romantismo é,

fundamentalmente, um movimento cultural, e somente a partir da especificidade

de sua situação histórica ele pode ser compreendido. Este fato, porém, não nos

impede de enxergar influências suas em períodos posteriores, conforme

almejamos demonstrar em nosso trabalho.

Em relação aos aspectos filosóficos do Romantismo, não é nosso intuito um

demorado aprofundamento na questão. Salientamos, porém, que no caso alemão

pode-se destacar o tratamento específico de alguns aspectos, como o “eu”, a

natureza etc – mesmo que também estivessem presentes em outros locais. Há

enormes diferenças, por exemplo, entre o sentido da interioridade em Rousseau e

no “Heinrich Von Ofterdingen” de Novalis. Fica claro que cada movimento

romântico tem seus acentos filosóficos, mas podemos afirmar que o romantismo

alemão é o único que se estrutura como movimento, conscientemente, a partir de

uma posição filosófica. É do caráter do Romantismo se apresentar eivado de

buscas, há uma aspiração metafísica pela totalidade, pelo resgate do

transcendente, distinguindo-se inclusive pela tensão e dinamismo de seu ser,

dionisíaco por natureza, em constante devir, sem nunca ser definitivamente. Por

outro lado, o romantismo promove uma descida na escala metafísica,

aproximando-se, mesmo que idealisticamente, do mundo das realidades no espaço

e no tempo, revestidas de cores locais. Tudo baixa das alturas do Absoluto, exceto

o Ideal, que lá permanece mais como um pólo, meta, uma condição limite do Ser e

do Valor. Isto faz com que a Idéia torne-se alvo de uma procura, uma nostalgia

(Sehnsucht) do embasamento ontológico e de valores morais no Absoluto.

Deixando a Idéia no plano da nostalgia, as vias fenomenológica e histórica vão se

impondo como modo de ser em função do que está em curso no pensamento, na

sociedade, e suas relações. É um deslocamento do centro de gravidade social,

cultural, histórico etc. A luz que emana destas regiões põe em relevo as

contingências do homem e seu habitat. Logo, a história, ainda que bastante

permeada pelo tempo mítico e psicológico, passa a inscrever-se num tempo “real”,

principalmente em comparação ao tempo anterior. O vetor burguês faz com que a

inflexão épica, e aqui citamos os cultos napoleônicos, tome a direção mais

alinhavada ao mundo dos acontecimentos.

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Uma evolução semelhante ocorre na épica ficcional, onde, em meio ao

gótico, fantástico e romântico das narrativas de Scott, Novalis e ETA Hoffmann –

ou, no mundo francês, do histórico-aventuroso e sócio-dramático de Dumas pai e

Victor Hugo – despontam, com os romances de Balzac, Stendhal ou Flaubert, as

grandes componentes da efetiva expressão realista, sem que no entanto percam de

todo a imaginação e paramentação românticas.

Na Alemanha, o movimento romântico foi basicamente precedido pelo

grupo Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), e pelos jovens Goethe e Schiller.

Exaltava-se um anárquico individualismo, numa explosão lírica impetuosa que

recusava o racionalismo iluminista, trazendo o impacto das mitologias e da

religião. Impunha-se a contraposição entre a primitiva inocência e o mundo

civilizado; entre o instinto e o intelecto. O grupo do Sturm und Drang também

exaltava a idéia de um abismo entre aspirações e realidade objetiva, entre

realidade interna e externa, e esta questão ressurgiria com força para a geração dos

artistas Expressionistas.

No campo das artes plásticas, um dos principais artistas do movimento, na

Alemanha, foi o pintor Caspar David Friedrich, sobre o qual se pode dizer:

The german artist Caspar David Friedrich (1774-1840) is usually regarded as belonging to this movement, although there was a fundamental difference between the French Romantics, who tended to regard nature as a substitute of God, and Friedrich, who saw painting as a medium for worshipping God. His preference was for grandeur of lofty and rugged mountains and wild places, invariably painted by moonlight or at dawn or sunset in order to make the most of the special effects of the sun ray (BELTON, 2002, p. 102).

O ponto de partida e a evolução do movimento, na Alemanha, obedecem,

primeiramente, a novas exigências de ordem filosófica, uma das características

distintivas deste Romantismo. Pode-se mesmo dizer que o Romantismo é um

produto nórdico por excelência, que encontrou naquele país moradia privilegiada.

A cultura alemã parece ser basicamente romântica, e isto que chamamos

costumeiramente de período romântico talvez seja a manifestação máxima de

constantes que atravessam, com intensidade maior ou menor, todas as etapas desta

cultura. Deste ponto de vista, o período iluminista, lá denominado Aufklärung, foi

o “menos alemão” dentro da cultura germânica, uma breve tentativa de sair do

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isolamento e se integrar à cultura européia. Depois, temos o já citado movimento

do Sturm und Drang, que pode ser entendido como uma espécie de pré-

romantismo, rebelado ao classicismo francês e desperto aos valores germânicos.

Há também, na historia da cultural alemã do século XIX, um controverso

Classicismo: alheio a exclusivismos exacerbados, tendendo a realizar uma síntese

européia da cultura, que teria sido, inclusive, contemporâneo ao primeiro

Romantismo de Iena5. Depois estabelece-se o Romantismo, ecoando-se aqui a tese

desenvolvida no início do século XX por Willem Worringer, que também parece

nortear o pensamento de vários autores aqui analisados, entre eles, Giulio Carlo

Argan (1992) e o próprio Robert Rosenblum (1975). Worringer pressupunha uma

diferença fundamental entre povos latinos/mediterrâneos e nórdicos, cultural e

geograficamente delimitada: Renascença Italiana versus Reforma Alemã; cisão

entre cultura latina do sul em sua volta à natureza fenomenológica, e cultura

nórdica e seu afastamento da natureza e fixação no sobrenatural, muito por conta

do Protestantismo. Os nórdicos protestantes concentraram-se na fé e vida

religiosa, enquanto católicos do mediterrâneo em geral buscavam inspiração na

Antiguidade. No Renascimento a cultura versa sobre a natureza e o caminho que

conduz a ela é a razão. Apesar de haver pontos de contato entre o nórdico e o

mediterrâneo, eles divergem fundamentalmente em várias questões. Na

Alemanha, a fundação de escolas e o aprimoramento pessoal justificam-se na

Bíblia e na vida religiosa. O homem deveria ser educado a fim de melhor atender

a seu Beruf (que significa tanto profissão como vocação, chamado divino) e

aprender a submeter-se às ordens de Deus6.

Em termos de reação ao século das luzes, é importante citar, não só pela

Alemanha, mas no contexto europeu, as figuras de Rousseau, Hamann e Herder.

Na Inglaterra, o Empirismo inglês é bem oposto ao Racionalismo francês. A

confiança na Razão passa a ser validada pelo constante exercício da crítica:

Rousseau, Hume e Kant a colocam em questão, motivados pela exigência de

novos ideais. O tema da Razão dá lugar a uma nova acepção de natureza. O

5Para uma melhor compreensão da questão, cf. KESTLER, Izabela Maria Furtado. A Autonomia Estética e o Paradigma da Antigüidade Clássica no Classicismo e na Primeira Fase do Romantismo Alemão. 6 Weber também versa sobre este assunto, em seu clássico “A ética protestante e o espírito do capitalismo”. Em suma, o autor diz que o protestante, sobretudo o calvinista, tem o dever de cumprir em vida sua vocação divina, voltada ao trabalho e à vida asséptica, não lhe sendo vedada a usura – ao contrário do catolicismo.

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Classicismo inglês também é escasso, e pode-se dizer que a cultura inglesa abala

os alicerces dele e do Racionalismo.

Rousseau, por sua vez, era protestante, talvez mais “nórdico” que “latino”:

em sua obra, o tema da natureza ocupa lugar central. E se o “subjetivo” é o ponto

de partida tanto do racionalismo cartesiano quanto de Rousseau, aí vemos

definitivamente as diferenças nos sentidos de interioridade. Para o primeiro, a

interioridade esgota-se em uma dimensão racionalista. Já o pensador suíço busca

traduzir a autêntica interioridade do homem, sinônimo de sentimento, considerado

superior à razão. No sentir e no viver o homem é de fato ele mesmo,

espontaneamente. Ainda que as idéias venham de fora, os sentimentos que as

apreciam estão dentro de nós. Temos também a questão da natureza pura;

interiorização, acesso ao absoluto. Sentimento interior é natureza, concepção que

se opõe ao cartesianismo enciclopédico, que via na natureza algo de exterior,

objetivo. Para Rousseau, esta concepção é mecânica e fria, fonte de erros por seu

artificialismo e falta de vitalidade. Ciência é sinônimo de cultura, diferente da

natureza.

Os Sturm und Drang assimilam a oposição rousseauniana entre natureza e

cultura, promovendo rebelião a todos os valores estabelecidos.

2.1 A tensão “clássico” versus “romântico”

Quando se trata da arte desenvolvida nos séculos XIX e XX, é comum

esbarrarmos em ambos os termos, “clássico” e “romântico”, que se referem às

duas grandes fases da história da arte: o “clássico” referente ao racional, à arte

Greco-romana e seu renascimento na cultura humanística dos séculos XV e XVI;

o “romântico” ligado ao sentimental, à arte cristã da Idade Média, mais

precisamente ao Gótico e Românico. Worringer propôs também uma distinção por

áreas geográficas, sendo clássico o mundo mediterrâneo, onde a relação entre

homem e natureza costuma ser clara e positiva; e o mundo nórdico-romantico,

onde a natureza é uma força misteriosa, frequentemente hostil. São, enfim, duas

concepções diferentes do mundo e da vida, associadas a duas mitologias diversas,

que tendem a se opor, mas também a se integrar, na medida em que vem à mente a

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idéia de uma possível unidade cultural européia, talvez também política, por conta

da Revolução Francesa e das conquistas napoleônicas. Neste sentido, é necessário

citar o ponto de vista de Paulo Vizzioli, citando Schelling, acerca da relação entre

ambos os elementos e seu ideal equilíbrio de forças:

Depois de afirmar que a arte é a única mediação possível entre o mundo sensível e a realidade transcendental, entre o particular e o universal, a “forma” e a “idéia”, reconhece o filósofo alemão que seu poder criativo não é arbitrário, mas age através da combinação da atividade consciente, que ele chama de Thätigkeit, com a força inconsciente, ou seja, Kraft. (...) Como se pode ver, a atividade consciente e a força inconsciente devem trabalhar em harmonia. Se a última for eliminada, a obra não terá vida independente; se a primeira inexistir – é também Schelling que o diz - , o artista não logrará transcender o particular, subordinando-se inteiramente à natureza e produzindo somente “máscaras” (VIZZIOLI, p.140)

Ambos os conceitos que ora tratamos foram teorizados entre a metade do

século XVIII e do XIX; o clássico, sobretudo, por Winckelmann e Mengs, o

romântico pelos defensores do renascimento do Gótico e pelos pensadores e

literatos alemães – os dois Schlegel, Wackenroder, Tieck. Para estes, a arte é

revelação do sagrado e tem necessariamente uma essência religiosa. Há um desejo

de revalorizar a tradição cultural germânica, repleta de temas místicos, como

alternativa ao universalismo classicista.

Com o pensamento clássico de uma arte como mimese (que implicava os

dois planos do modelo e da imitação), entra em crise a idéia da arte como

dualismo de teoria e práxis, intelectualismo e tecnicismo: a atividade artística

torna-se uma experiência primária e não mais derivada, sem outros fins além do

seu próprio fazer-se. À estrutura binária da mimesis segue-se a estrutura monista

da poiesis, isto é, do fazer artístico e, portanto, a oposição entre a certeza teórica

do clássico e a intencionalidade romântica (poética).

Exatamente no momento em que se afirma a autonomia da arte, coloca-se,

segundo Argan, o problema de sua articulação com as outras atividades, isto é, de

seu lugar e sua função no quadro cultural e social da época. Afirmando a

autonomia e assumindo a total responsabilidade do seu agir, o artista não se

abstrai da realidade histórica; declara explicitamente, pelo contrário, ser e querer

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ser do seu próprio tempo, e muitas vezes aborda, como artista, temáticas e

problemáticas atuais.

A cultura do Iluminismo estabelece uma ruptura com a tradição. A

natureza não é mais a ordem revelada e imutável da criação, mas o ambiente da

existência humana; não é mais o modelo universal, mas um estímulo a que cada

um reage de modo diferente; não é mais a fonte de todo saber, mas o objeto da

pesquisa cognitiva. O sujeito tende a modificar a realidade objetiva, seja nas

coisas concretas (especialmente na arquitetura, decoração), seja no modo como

passa a ter noção e consciência desta realidade: o que era o valor absoluto e a

priori da natureza, como modelo de toda invenção humana, é, ainda para Argan,

substituído pela ideologia como imagem formada pela mente, como ela gostaria

que fosse a realidade. O fato de o móvel ideológico, que tantas vezes se

transforma em explicitamente político, ocupar o lugar do princípio metafísico da

natureza-revelação, tanto na arte neoclássica como na romântica, mostra que

ambas, apesar da aparente divergência, pertencem ao mesmo ciclo de pensamento.

A diferença consiste sobretudo no tipo de postura (racional ou passional) que o

artista assume em relação à história e à realidade natural e social.

O período que se estende aproximadamente entre as metades do séc. XVIII

e XIX é geralmente subdividido em 1) uma primeira fase pré-romântica, com a

poética inglesa do sublime e do horror e com a paralela poética alemã do Sturm

und Drang; 2) uma fase neoclássica, coincidindo grosso modo com a Revolução

Francesa e o império napoleônico ; 3) uma reação romântica, que coincide com a

intolerância burguesa às restaurações monárquicas, com os movimentos de

independência nacionais, com as primeiras reivindicações operárias entre 1820-

50. Mas esta periodização é problemática, contesta Argan, por vários motivos: já

em meados do séc. XVIII, o termo romântico é empregado no sentido de pitoresco

e referido a jardinagem, ou seja, a uma arte que não imita nem representa, mas,

em consonância com as teses iluminista, opera diretamente sobre a natureza,

modificando-a, corrigindo e adaptando-a aos sentimentos humanos e às

oportunidades de vida social, isto é, colocando-a como ambiente da vida. Há

também a questão das poéticas do “sublime” e do Sturm und Drang, um pouco

posteriores à poética do pitoresco, não se oporem, mas simplesmente refletirem

uma postura diferente do sujeito em relação à realidade: para o pitoresco, a

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natureza é um ambiente variado, acolhedor, propício, que favorece nos indivíduos

o desenvolvimento dos sentimentos sociais; para o sublime, a natureza é um

ambiente incomensurável, misterioso e hostil, que desenvolve na pessoa o sentido

de sua solidão (mas também de sua individualidade) e da desesperada tragicidade

do existir; as poéticas do sublime, que são definidas como proto-românticas,

adotam como modelos as formas clássicas (caso dos pintores Blake e Füssli), e

assim constituem um dos componentes fundamentais do Neoclassicismo; na

medida, porém, em que a arte clássica é dada como o arquétipo da arte, os artistas

não a repetem academicamente, mas aspiram à sua perfeição com uma tensão

nitidamente romântica. Pode-se, pois, afirmar que o Neoclassicismo histórico é

apenas uma fase do processo de formação da concepção romântica: aquela

segundo a qual a arte não nasce da natureza, mas da própria arte, e não somente

implica um pensamento da arte, mas é um pensar por imagens - não menos

legítimo que o pensamento por puros conceitos.

Em suma, não se trata de uma concepção nova e orgânica do mundo que se

segue a uma outra, decaída, mas de um aprofundamento do problema da relação

entre os artistas e a sociedade de seu tempo. Para os neoclássicos, a arte era uma

atividade mental distinta da racional, e provavelmente mais autêntica: agora se

reconhece que o binômio ciência-técnica vem se impondo, desde que, após a ânsia

anti-histórica de restauração das velhas monarquias, a burguesia industrial iniciou

sua rápida ascensão. É justamente em relação a esta burguesia, que afinal pode ser

a única clientela, que os artistas se sentem hostis, em perpétua polêmica.

A arte romântica é aquela que implica uma tomada de posição frente à

história da arte. Até fins do sec. XVII existiu uma tradição clássica muito viva,

cujas forças não se desgastavam, e sim aumentavam, conforme era remodelada em

formas originais por uma imaginação inflamada. Com o anti-historicismo próprio

do Iluminismo, esta tradição se interrompe: as artes grega e romana se identificam

com o próprio conceito de arte, podem ser apreciadas como exemplos supremos

de civilização, mas não prosseguem no presente e não ajudam a resolver seus

problemas. Aquela felicidade criativa perdida pode ser evocada e imitada

(Canova, Thorvaldsen), revivida como em sonhos (Blake) ou reanimada com a

imaginação (Ingres). Pode também ser violentamente recusada (Courbet). Só mais

tarde, com os impressionistas, sairá definitivamente do horizonte da arte.

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O ideal neoclássico não é imóvel. Certamente não se pode dizer, entre o

final do século XVIII e o sec. XIX, que a pintura de Goya seja neoclássica; mas

sua violência anticlássica também nasce da ira de ver o ideal racional contrariado

por uma sociedade retrógrada e carola, e como não pintar monstros se o sono da

razão gera-os e com eles preenche o mundo? Com a cultura francesa da revolução,

o modelo clássico atinge um sentido ético-ideológico, identificando-se com a

solução ideal do conflito entre liberdade e dever; e, colocando-se como valor

absoluto e universal, transcende e anula as tradições e as “escolas” nacionais. Esse

universalismo supra-histórico culmina e se difunde em toda Europa com o

império napoleônico.

A crise ocasionada pelo fim deste universalismo abre uma problemática

nova também para a cultura artística: recusada a restauração monárquica anti-

histórica, as nações precisam encontrar em si mesmas, em sua história e no

sentimento dos povos, as razões de uma autonomia própria e, numa raiz ideal

comum, o cristianismo, o conteúdo para uma coexistência civil. Assim nasce, no

âmbito global do Romantismo, que incluía a ideologia neoclássica decaída, o

Romantismo histórico, que se lhe contrapõe como alternativa dialética opondo à

racionalidade universalizante a profunda e irrenunciável religiosidade intrínseca

da arte.

Entre os motivos daquilo que poderíamos chamar de fim do ciclo clássico

e início do romântico ou moderno, destaca-se a transformação das tecnologias e

da organização da produção econômica, com todas as conseqüências que acarreta

na ordem social e política. Era inevitável que o nascimento da tecnologia

industrial, colocando em crise o artesanato e suas técnicas refinadas e individuais,

provocasse a transformação das estruturas e da finalidade da arte, que constituíra o

ápice e o modelo da produção artesanal. A passagem da tecnologia do artesanato,

que utilizava os materiais e reproduzia os processos da natureza, para a tecnologia

industrial, que se funda na ciência e age sobre a natureza, transformando (e

degradando) o ambiente, é uma das principais causas da crise da arte.

Excluídos do sistema técnico-econômico da produção, em que, no entanto,

haviam sido os protagonistas, os artistas tornam-se intelectuais em estado de

eterna tensão com a mesma classe dirigente a que pertenciam como dissidentes. O

artista boêmio é um burguês que repudia a burguesia, da qual despreza o

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conformismo, o negocismo, a mediocridade cultural. Os rápidos

desenvolvimentos do sistema industrial, tanto no plano tecnológico como no

econômico-social, explicam a mudança contínua e quase ansiosa das tendências

artísticas que não querem ficar pra trás, das poéticas ou correntes que disputam o

sucesso e são permeadas por uma ânsia de reformismo e modernismo.

2.2 A pictórica romântica

A existência moderna, que já não se justifica com uma finalidade no além,

tem de encontrar seu significado no mundo: ou se vive da relação com os outros e

o “eu” se dissolve numa relatividade sem fim, e é a vida, ou o “eu” se absolutiza e

corta qualquer relação com o outro, e é a morte. Na arte moderna, a dialética dos

dois termos mudará constantemente de aspecto, mas permanecerá

fundamentalmente inalterada. Como a sociedade industrial nascente, a arte

moderna também é procura, entre individuo e coletividade, de uma solução que

não anule o uno no múltiplo, nem a liberdade na necessidade.

O “belo romântico” é justamente o belo subjetivo, característico, mutável,

contraposto ao “belo clássico”, universal, imutável. O pensamento do Iluminismo

não considera a natureza como uma forma ou figura criada de modo definitivo e

sempre igual a si mesma, que se pode apenas representar ou imitar. A natureza

que os homens percebem com os sentidos, apreendem com o intelecto, modificam

com o agir é uma realidade interiorizada que tem na mente todos os seus possíveis

desenvolvimentos, mesmo de ordem moral. Distinguindo um belo pitoresco de um

belo sublime, Kant distingue, na verdade, dois juízos que dependem, conforme

Argan, de duas posturas diversas do homem frente à realidade: é sobre elas e sua

inter-relação que, de fato, ele funda sua “crítica do juízo”.

O pitoresco é uma qualidade que repercute na natureza pelo “gosto” dos

pintores, especialmente os do período barroco. Foi um pintor e tratadista,

Alexander Cozens (1717-86), que o teorizou, preocupado em dar à pintura inglesa

do séc. XVIII, predominantemente retratista, uma escola de paisagistas. Seus

fundamentos são: as sensações visuais se apresentam como manchas mais claras,

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mais escuras, variegadamente coloridas, e não num esquema geométrico como o

da perspectiva clássica; o dado sensorial é naturalmente comum a todos, mas o

artista o elabora com sua técnica mental e manual, e assim orienta a experiência

que as pessoas têm do mundo, ensinando a coordenar as sensações e emoções, e

também atendendo com o paisagismo à função educativa que o Iluminismo

setecentista atribuía aos artistas; o ensino não consiste em decifrar nas manchas

imprecisas a noção do objeto a que correspondem, o que destruiria a sensação

primária, mas em esclarecer o significado e o valor da sensação, tal como é, tendo

em vista uma experiência não-nocional ou particularista do real; o valor que os

artistas buscam é a variedade: a variedade das aparências dá sentido à natureza

como a dos casos humanos dá sentido à vida; não se busca mais o universal do

belo, mas o particular do característico; este não pode ser captado com a

contemplação, e sim com a argúcia da mente, que permite associar idéias-

imagens, mesmo muito diversas e distantes. Enfim, o que a mente ativa capta é

um contexto de manchas diferentes, mas relacionadas entre si: a variedade não

impede que os múltiplos componentes da paisagem concorram para transmitir um

sentimento de alegria, calma ou tristeza. A poética do pitoresco medeia a

passagem da sensação ao sentimento: é exatamente neste processo do físico ao

moral que o artista-educador é guia dos contemporâneos.

A tese da subjetividade das sensações e, portanto, da função não mais

condicionante, e sim apenas estimulante, da natureza em relação ao pensamento,

já está presente na filosofia de Berkeley; Goethe, com maior amplitude de análise,

ao enunciar no fim do XVIII sua teoria das cores e ao tomar como objeto de

pesquisa não a luz (como Newton), mas a atividade do olho, lançou uma ponte

entre o cientificismo objetivista e o subjetivismo romântico.

A natureza não é apenas fonte de sentimento; induz também a pensar,

especialmente na insignificante pequenez do ser humano frente à imensidão da

natureza e suas forças. O pitoresco, tanto quanto na pintura, expressava-se na

jardinagem, que era essencialmente um educar a natureza sem destruir a

espontaneidade; mas diante de montanhas geladas e inacessíveis, do mar

borrascoso, o homem não pode experimentar senão sua pequenez. Ou, num acesso

de soberba, imaginar-se um gigante, um deus em revolta que incita forças

obscuras do Universo contra o Deus criador. Não mais agradável variedade, mas

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assustadora fixidez; não mais concórdia de todas as coisas de uma natureza

propícia, mas discórdia de todos os elementos de uma natureza rebelde e

enfurecida; não mais sociabilidade ilimitada, mas angústia da solidão sem

esperança. As características do sublime foram definidas por Burke (Investigação

filosófica sobre a origem das nossas idéias do sublime e do belo, 1757) quase ao

mesmo tempo em que Cozens definia o pitoresco: são estas, portanto, as duas

categorias em que se assenta a concepção da relação humana com a natureza, a

qual se pretende utilizar em seus aspectos domésticos e usufruir como fonte

cósmica de energias sobre-humanas.

Os modos da representação pictórica também são diferentes. O pitoresco se

exprime em tonalidades quentes e luminosas, com toques vivazes que põem em

relevo a irregularidade ou caráter das coisas. O repertório é o mais variado

possível: árvores, troncos caídos, manchas de grama ou poças d´água, nuvens

móveis no céu, choupanas de camponeses, animais no pasto, pequenas figuras. A

execução é rápida, como se não fosse preciso dar muita atenção às coisas. Sempre

exata a referência ao lugar, quase seguindo o gosto pelo turismo, que vinha se

difundindo. Já o sublime é visionário, angustiado: cores às vezes foscas, às vezes

pálidas; desenho de traços fortemente marcados; gestos excessivos, bocas

gritantes, olhos arregalados, mas a figura sempre fechada num invisível esquema

geométrico que a aprisiona e anula seus esforços.

Cada uma destas categorias tem seus precedentes históricos: o belo, já

prestes a desaparecer, vem de Rafael; o “sublime”, de Michelangelo; o

“pitoresco”, dos holandeses. Além dos Cozens, pai e filho, pioneiros do pitoresco,

pertencem também a esta corrente os grandes paisagistas, como R. Wilson e,

principalmente, J. Constable e W. Turner. Mas há também um pitoresco social,

em sintonia com as teses de Rousseau sobre a relação entre sociedade e natureza,

cujo maior representante é T. Gainsborough, intérprete da sociedade e elegante

retratista que influiu sobre Goya. O mundo oficial, por sua vez, teve seu

historiador num grande retratista, J. Reynolds, sutil escritor de arte e teórico do

belo rafaelesco, ainda que nos últimos anos, ante o afirmar-se da poética neo-

clássica do sublime, tenha se convertido, pelo menos em palavras, a

Michelangelo.

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Os dois pilares da poética do sublime foram JH Füssli (1741-1825) e

William Blake (1757-1827). O primeiro era suíço de nascimento e, quando jovem,

foi adepto do extremismo pré-romântico do Sturm und Drang. Morou na Itália,

estudando os desenhos de Michelangelo e dos maneiristas. Foi também escritor, e

teceu juízos opostos aos de Winckelmann sobre a arte antiga, tentando interpretá-

la não como cânone, mas como experiência vivida e por vezes dramática. Sua

idéia do sublime se completa com a exaltação do gênio. O ponto de referência era

Michelangelo, como exemplo supremo de artista inspirado, que capta e transmite

mensagens ultra-terrenas; mas, na verdade, ao gênio demiurgo preferia o gênio

extraordinariamente vital de Shakespeare, capaz de passar do trágico ao grotesco.

E foi o maior ilustrador do bardo. Sua pintura visionária, de uma elegância que

oscila entre a perfeição e a perversidade, contradiz intencionalmente a tese da

racionalidade, no plano intelectual, e da didática, no plano moral. É uma mescla

de rigor no traço e fantasia visionária: evidentemente, em seu romantismo a

fantasia não era arbítrio – tinha suas leis talvez mais rígidas que as da razão.

Figura 1- Ancient of days (1794), William Blake

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Figura 2 – Pesadelo (1802), Johann Heinrich Füssli

Blake, que trabalhou nestes mesmos anos, foi pintor e poeta; ligado à

revelação da Bíblia, a Homero, Dante e Milton, nos quais via os portadores de

mensagens divinas. Quando se ultrapassa o limiar do sublime, as sensações se

desvanecem e entra-se em contato direto não mais com o criado, mas com as

forças sobrenaturais, divinas da criação. As sensações, que a tradição empirista

colocara no princípio do conhecimento, são, pelo contrário, vãs ilusões, que

impedem de captar as verdades supremas, expressas por sinais ou símbolos

arcanos. Renuncia-se ao caráter físico da cor, prefere-se o desenho ao traço – mas

este, ainda que nítido e duro, não define a construção formal das figuras; pelo

contrário, define sua “indefinibilidade”, sua imensidão, sua deslumbrante e imóvel

imanência.

Poética do absoluto, o sublime se contrapõe ao pitoresco, poética do

relativo. A razão é consciente de seus limites terrenos, para além dos quais só

pode existir a transcendência ou o abismo, céu ou inferno. Mas apenas do ponto

de vista da razão pode-se colocar o problema daquilo que a ultrapassa. Assim

como Füssli vive de pesadelos, Blake vive de visões: em ambos é dominante o

pensamento do passado, que é mais mitologia que história. Para Blake, a verdade

está nas coincidências e divergências entre as mitologias, que apenas a arte tem o

poder de evocar (não a ciência).

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2.3 O romantismo nórdico

Conforme a questão levantada na introdução do trabalho, cabe-nos agora a

investigação sobre um possível romantismo de traços genuinamente nórdicos.

Alinhando-nos ao argumento desenvolvido por Robert Rosenblum (1975), vemos

que o pintor Caspar David Friedrich simboliza, para a história da arte, o início da

expressão de um pathos nórdico (BORNHEIM, 1978).

Figura 3 – Monk by the sea (1809), Caspar David Friedrich

A tela inicial aqui analisada é “Monk by the sea”, cujo aparecimento em

Berlim, por volta de 1810, causou certa comoção pública por conta do vazio nela

expresso. Uma área larga de mar, céu e terra tem como espectador um monge

solitário, apequenado frente à grandeza misteriosa daquela paisagem. É difícil

encaixar esta pintura nalgum gênero em voga na época. Sabe-se que o pintor

estava bastante familiarizado com o barroco nórdico, termo usado por Rosenblum,

em que pinturas marinhas são recorrentes; porém, o quadro de Friedrich aparece

como uma nota melancólica diferente, que provocou comentários sobre o vazio do

quadro, como se nada houvesse ali para ser visto, “nem mesmo um monstro

marinho” (ROSENBLUM, 1975).

Vendo alguns exemplos do que se denomina “barroco nórdico”, fica patente

a intenção de esvaziar a tela; afinal, os sentimentos e regras que regiam a pintura

de antes já não mais serviam para o jovem pintor romântico, cujas questões não

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eram satisfatoriamente contempladas ou respondidas por nenhum gênero pictórico

conhecido. Percebe-se ali uma religiosidade que não abarcava temas e formas

tradicionais. Não se trata de pintura religiosa como a conhecíamos, mas de uma

experiência em que o individual é contrastado à imensidão avassaladora e

incompreensível do universo; como se os mistérios religiosos tivessem

abandonado os rituais da igreja e fossem realocados no mundo natural. Vê-se, no

quadro em questão, uma quase confissão pessoal, em que o artista se transfigura

em monge, explorando sua relação com o desconhecido representado na

grandiosidade da natureza.

Fica clara a necessidade, expressa por Friedrich conscientemente ou não,

de uma revitalização da experiência divina num mundo cada vez mais

secularizado, e esta retomada se dá fora da iconografia tradicional cristã

(ROSENBLUM, 1975). A proposta seria traduzir a experiência sagrada para

domínios seculares, e nisso temos os pensamentos convergentes de

Schleiermacher, que buscava também respostas subjetivas ante os mistérios

divinos.

O dilema romântico seria a questão de como expressar experiências

espirituais e transcendentais sem o recurso a iconografias tradicionais como a

adoração, crucificação, ressurreição etc, pois a vitalidade de tais motivos fora

minada pelo Iluminismo. De fato, já no fim do século XVIII, a experiência de

divindade vinha sendo cada vez mais deslocada da representação “igrejeira” e

traduzida em objetos alheios, distantes desta realidade. Esta era uma tendência não

só no mundo nórdico, mas também em todo aquele atingido pelos abalos da

Revolução Francesa, por exemplo, e a ascensão de Napoleão. A figuração de

mártires religiosos, muitas vezes, deu lugar a mártires da revolução; e a figuração

de Deus cedeu espaço à de Napoleão. As traduções de imagens sagradas cristãs

para a linguagem secular, de semi-divindades modernas, os novos heróis e

mártires, podem realmente ser encontradas em toda arte ocidental da era

Romântica. Tanto em países católicos como protestantes, as transvalorações das

experiências cristãs eram baseadas nos motivos corporais herdados de sua

iconografia: visões palpáveis de tragédia terrena ou grandiosidade do céu,

compostas em figurações nobres. Ainda por volta de 1770, quando começaram as

agitações que seguiriam no romantismo, já havia artistas na Irlanda e Suíça

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voltando-se a lugares específicos na natureza selvagem, suscitando curiosidade ou

revelação divina. Mas no norte protestante, mais do que no sul católico, aconteceu

outro tipo de tradução do sagrado ao secular; qual seja lá se podia sentir que os

poderes divinos deixaram de alguma forma, os dramas de “carne-e-osso” da arte

cristã e penetraram no domínio da paisagem.

Goethe, por exemplo, no Jovem Werther, dá mostras de tais sentimentos em

relação à natureza. O personagem sentiu-se estimulado em relação à abundante

totalidade na percepção da Godhead, e as formas gloriosas do universo infinito

agitaram-se em sua alma. Montanhas estupendas lhe circundam, abismos se

abriam a seus pés etc. Estas palavras e sentimentos, de meados do século XVIII,

seriam intensificados e multiplicados nas décadas seguintes.

Em 1804, o poeta irlandês Thomas Moore fala sintomaticamente do curioso

novo amálgama romântico de Deus com a natureza: “I felt as if approaching the

very residence of the Deity; the tears started into my eyes; and I remained, for

moments after we had lost sight of the scene, in that delicious absorption wich

pious enthusiasm alone can produce”7. Esta relação com a natureza, longe dos

rituais tradicionais da cristandade, podia influenciar muitos românticos pela

grandeza de cataratas e abismos, mas também pelo extremo oposto de um silêncio

e imobilidade incomuns. É como Emerson se colocando romanticamente, num

arroubo de aniquilação e grandeza, diante da paisagem, do espaço infinito, onde

todo mal se esvai, e ele se torna nada, vê tudo, torna-se parte de Deus. Tem-se

unidade na infinitude do universo.

A relação das figuras diante de uma paisagem de proporções ilimitadas

apresenta um teor de privacidade e intensidade que dialogam com os domínios de

uma meditação silenciosa, protestante, acerca dos mistérios do além.

O clima de comunhão intensa com o que há de mais impalpável nos

fenômenos da natureza – luz, cor, atmosfera – torna-se ainda mais explícito em

algumas das primeiras pinturas de Friedrich, em que as figuras (uma mulher ao

amanhecer; dois homens perante ao mar) contemplam os mistérios dos dramas

comuns, diários da natureza, numa rigidez quase religiosa. Nos dois trabalhos, a

presença de figuras estáticas, vistas por trás e postas em simples simetria com a

7 MOORE, T. apud ROSENBLUM p. 19

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composição, permitem ao espectador uma boa dose de empatia, pois é possível

colocar-se facilmente no lugar ou ao lado destes seres sem rosto, absortos no

espetáculo que se desvela à sua frente. Carl Gustav Carus, discípulo de Friedrich,

escreveu “...When man, sensing the immense magnificence of nature, feels his

own insignificance, and, feeling himself to be in God, enters into this infinity and

abandons his individual existence, then his surrender is gain rather than loss. What

otherwise only the mind´s eye sees, here becomes almost literally visible: the

oneness in the infinity of the universe...”. (Carus apud Rosenblum, 1975, p.22)

Contrastados à imensidão do universo, estas figuras solitárias desejam

fundir-se com o mundo fora deles, criado por Deus. Cabe ressaltar, porém, que a

vivência da natureza no romantismo não é uniforme, oscilando entre sentimento

de proximidade, união desejável e prometida, e sentimento de distância,

afastamento irrecuperável ou separação fatalmente consumada.

De fato, a mulher parece estar quase levantando os braços em postura de

oração, numa harmonia íntima com o sol que se levanta, enquanto os dois homens

contemplando o por do sol são tão reduzidos em escala que parecem à margem do

tipo de absorção espiritual descrita por poetas e escritores transcendentais da era

romântica.

Figura 4 – Woman in morning light (c. 1809) Caspar David Friedrich

Se estas figuras estão literal e figurativamente na borda de alguma

experiência na natureza, Friedrich, em muitas outras ocasiões, realmente pintou e

desenhou o severo espetáculo que eles podem estar contemplando. Fascinado

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pelas dunas estéreis do Báltico, várias vezes ele expressava seus contornos

sombrios e lúgubres em composições que nos colocam próximos a um “precipice

of nothingness” (ROSENBLUM, 1975, p.23). Tais paisagens, evocativas da

natureza em algum princípio inabitado, tornam-se mais simbólicas em desenhos

que oferecem imagens mais próximas do Livro do Gênese. Na primeira gravura

de uma série que representa um ciclo de vida, apresenta-se uma visão da

emergência primitiva de ordem em relação ao caos: exatamente no centro, o

círculo do sol, quase indistinguível, deita seus raios “lúcidos” sobre movimentos

caóticos de um mar primitivo. A composição é quase tão elementar quanto o

objeto – é construída em eixos de simetria horizontal e vertical. Uma imagem com

tal claridade e poder elementares não poderia ser confundida com o registro

prosaico de informações da natureza. E é importante frisar, também, que ao

destilar fenômenos naturais numa condição tão primitiva que experiências

místicas podem ser evocadas, Friedrich expressa uma ambição que seria

recorrente, como veremos, através da história da arte moderna.

Para Friedrich, não havia incomunicabilidade entre natural e sobrenatural,

como demonstram outros desenhos das séries da vida - por exemplo, anjos num

cenário “realista”. Turner também recorreu a tal expediente – podia pintar a luz do

sol com uma intensidade fervorosa, quase religiosa. Em uma pintura exibida na

Academia Real, em 1846, vemos que parte do brilho dourado de um sol

congelado na forma sobrenatural de um anjo.

Friedrich tinha uma ambição peculiarmente moderna de alterar a iconografia

de uma arte cristã anterior, na direção do interesse de uma ressurreição da fé no

sobrenatural.

Tais imagens são capazes de promover a aproximação de um espectador

com o cristianismo em cenas de rituais com objetos da arte e arquitetura cristãs

feitos pelo homem, expressando algo como pietismo. Os alemães viam o gótico

com a sensibilidade romântica que penetra os aspectos naturais ou orgânicos desta

arquitetura: um sentimento de que ela representa objetos feitos por Deus, suas

formas quase idênticas ao crescimento de folhas e galhos, as naves, metamorfoses

de uma floresta de árvores.

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Friedrich compartilhava este ponto de vista, e em algumas gravuras do que

sobrou desta arquitetura, estabelece uma apresentação mais “precisa” das ruínas

com plantas. Como as de muitos de seus contemporâneos, tais representações

podem parecer muito casuais e objetivas para carregarem simbolismo. O pintor,

porém, transformava cada vez mais “informação gótica” em imagens carregadas

de significado sobre a relação do natural com o sobrenatural, do aqui e agora com

o além.

Figura 5 - Abbey in the oakwood (1810) Caspar David Friedrich

O desejo de uma arte que não seja apenas religiosa, mas expresse o ethos

religioso do povo e restitua um fundamento ético ao trabalho humano, que a

indústria tende a mecanizar, leva à revalorização da arquitetura gótica, que passa a

ser o modelo, em lugar da clássica. A arquitetura gótica é antes de tudo cristã, sua

tendência para o alto e sua insistência nas verticais manifestam um desejo de

transcendência; é burguesa porque nasce nas cidades com o refinado artesanato

dos séculos XIII e XIV; exprime não só o sentimento popular, como também a

história das comunidades, porque cada catedral é o produto de várias gerações;

demonstra visualmente, com o arrojo e a complexidade de suas estruturas, e

também com a variedade e a riqueza de suas decorações, o alto nível de

experiência técnica e gosto atingido pelos artesãos locais. Na arquitetura gótica a

nova civilização industrial vê não só um antecedente, mas a prova de uma

“espiritualidade” que o tecnicismo moderno, pelo menos em teoria, não deveria

negar, e sim exaltar. A revalorização do gótico se inicia na Inglaterra no começo

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do XVIII; Goethe, que pode ser considerado, ao lado do historiador Herder, uma

das grandes forças de formação do que significaria “ser alemão” quando o

segundo apresenta ao escritor a catedral de Estrasburgo que desemboca em seu

ensaio seminal sobre a catedral e a arquitetura gótica, data de 1772; Hegel, no

início do séc. XIX, inclui o Gótico em seu projeto histórico da arte como

expressão típica do ethos cristão. Essa revalorização, ademais, marca a desforra da

arte nórdica contra o classicismo e o barroco romanos. No princípio do XIX,

Schinkel não só admira a sutil sabedoria construtiva dos arquitetos góticos, como

também não tem dificuldades em admitir que, se a arquitetura do classicismo era

apropriada à expressão do sentido do Estado, a arquitetura gótica, por sua vez,

exprimia a tradição religiosa da comunidade. Portanto, o Gótico reflete a

diversidade de línguas, tradições e costumes de diversos países ou, mais

precisamente – visto que este conceito se torna cada vez mais forte - , das várias

nações européias. Há casos em que se atribuía às catedrais góticas um significado

não só cívico, mas também patriótico; com o acabamento–recomposição da

catedral de Colônia, pretende-se mostrar que este monumento é o baluarte ideal

para a defesa, sobre o Reno, da identidade alemã. Entre os fenômenos observáveis

que o gênio de Friedrich podia “recriar” com significância transcendental estava

este motivo, que se tornou mais e mais importante na arte dos séculos XVIII e

XIX. Em muitos casos, a recordação religiosa destes “sobreviventes

arquitetônicos” em relação a uma era a muito perdida, de fé cristã, só se dá por

dedução (especialmente na Inglaterra). A pintura fornece elementos de fé e

esperança, persistência ressurreição num mundo mais acessível espiritual do que

fisicamente.

O pensamento de Wackenroder e dos Schlegel encontra repercussão

imediata no revivalismo dos Nazarenos, um grupo de pintores que se formou em

torno de F. Overbeck (1789-1869) e F. Pforr em Viena, criou uma confraria, e

depois se estabeleceu em Roma, num convento às margens do Pincio. Tinha o

propósito de recuperar não só a inspiração ascética, como também a honesta

profissão e a expressão pura dos pintores do inicio do Quattrocento italiano. O

resultado foi decepcionante, mas com isso se reafirmava a identidade romântica

entre arte e vida, inspiração e fé religiosa, espiritualidade e beleza.

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Desse grupo de alemães deriva o Purismo italiano (Tenerani, Mussini,

Bianchini, Minardi), com um claro programa de recuperação da simplicidade

estilística e do puro sentimento da natureza, próprios dos artistas anteriores a

Rafael. O próprio Ingres, em Roma, é tocado por este apelo à pureza excessiva. O

movimento na Inglaterra foi mais forte do que em outros lugares: a partir da

metade do século, dirigida por Dante G. Rossetti (filho de um exilado político

italiano), formou-se a Irmandade dos Pré-Rafaelitas, que já no nome mostra seu

desejo de se remeter a uma época em que a arte não tinha qualquer relação com o

orgulho intelectual do conhecimento, sendo, pelo contrário, busca do sagrado na

verdade das coisas, sentimento simultâneo da Natureza e de Deus. Preconiza-se a

técnica pura, sem artifícios nem seduções, como uma prática religiosa e, ao

mesmo tempo, um retorno à condição social, ao ofício humilde, cuidadoso, moral

e religiosamente saudável dos antigos artistas-artesãos. Encontram seu defensor e

teórico no maior crítico inglês do século, John Ruskin; ele próprio, e depois dele,

e com mais vigor, William Morris, no fim do século, revelaram como esta técnica

“religiosa” era a antítese da técnica atéia e materialista da indústria. O artista já

não é apenas um visionário isolado no mundo, mas um homem em polêmica com

a sociedade, a qual gostaria de reconduzir à solidariedade e ao empenho

progressivo coletivo de todos os povos e todos os homens. É a partir desse

momento que o protesto religioso contra o industrialismo e suas técnicas

mecânicas, sua busca exclusiva do lucro, a exploração do homem pelo homem, se

transforma numa postura política mais ou menos declaradamente socialista.

Apesar do enfraquecimento do Romantismo enquanto movimento, ao

longo do século XIX, pode-se falar da forte influência romântica nórdica nos

trabalhos de Edvard Munch e Vincent Van Gogh, já na virada para o século

seguinte, que influiriam decisivamente na pictórica expressionista. O primeiro

buscou expressar tormentos demasiadamente humanos, como podemos ver em

seus quadros “O Grito” e “Puberdade”, por exemplo.

Munch´s work, from the 1880´s on, reveals growing affinities with the great archetypical Romantic images of Friedrich and Runge. Like Van Gogh, Munch changed drastically the surface appearance of his painting by absorbing the newest artistic vocabularies that he could study during his frequent sojourns in France that began in 1885; and like Van Gogh, Munch could almost always mold this foreign vocabulary to his own emotional needs. (ROSENBLUM, 1975, p. 104).

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Este último, por sua vez, imbuía sua arte de uma ética em relação ao

trabalho e à natureza, herdando a convicção cristã do trabalho de Samuel Palmer,

mais persuasiva por evitar um simbolismo tradicionalmente explícito – ao invés

disto, promover uma evocação um tanto mais ambígua da divindade no reino da

vida secular, especialmente o das comunidades rurais. A própria vida de Van

Gogh foi uma experiência religiosa, ele pregava com fervor para trabalhadores, o

que posteriormente foi canalizado para sua arte. Sua busca pelo sobrenatural no

natural, pelo símbolo no fato, significa que ele duplica, quase inconscientemente,

as imagens e a psicologia da arte romântica nórdica.

Figura 6 – O Grito (1893), Edvard Munch

Figura 7 – The Sower (1888) Van Gogh

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Figura 8 - Dans la Prairie (1876) Claude Monet. O contraste entre o tratamento dado à natureza entre nórdicos e latinos pode ser verificado através da comparação desta imagem com a de Van Gogh, por exemplo.

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3 O Expressionismo e seu Contexto

“O Homem:

Esta fila aqui são ventres putrefactos e esta outra são seios putrefactos.

Cama a cama um cheiro nauseabundo. As enfermeiras [mudam de hora em hora.

Anda, ergue sem medo esta coberta.

Olha, este montão de gordura e de pus Significou já algo de sublime para um homem,

já foi embriaguez, terra natal.”

GOTTFRIED BENN, Homem e mulher passeiam pelo pavilhão das cancerosas8.

Em 1914, completava-se um período de quase meio século sem que

houvesse guerras muito significativas. A Europa vivera, desde meados do séc.

XVI e até então, segundo John Maynard Keynes, “um extraordinário [...]

progresso econômico”9. No balanço de tais progressos, o economista listou a

prosperidade para as nações imperialistas, conforto para os indivíduos – além de

um sentimento geral de segurança. O mundo inteiro, àquela altura, fornecia à

Europa os gêneros que seu solo não era capaz de produzir. Em contrapartida, esta

inundava-lhes os mercados com artigos que só a “fábrica européia” poderia

proporcionar. Os mercados estavam abertos, capitais e idéias circulavam

livremente, e a produção e o comércio europeus atingiam níveis até então nunca

alcançados na história da humanidade.

Tal prosperidade descrita por Keynes está, porém, longe de abranger a

totalidade dos povos, e mesmo todo o continente europeu: falava-se basicamente

da Europa ocidental e parte da central, que constituem os principais centros de

civilização. As novas potências – EUA e Japão – querem aquinhoar seu pedaço,

também, neste mundo já demarcado por bandeiras inglesas e francesas,

basicamente.

O triunfo destas nações leva o homem branco europeu a pensar que seu

sistema continha uma solidez a toda prova. Poucos contestavam, naquele

8 Agradeço à profa. Hilda Machado, pela especial indicação deste poema. 9 CROUZET, Michel. História Geral das Civilizações, vol. 15. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996

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momento, os méritos do capitalismo liberal e da democracia parlamentar. O clima

de euforia faz pensar num futuro de bem-estar e progresso.

O futuro mudou, porém, em 1914. Até então, as guerras costumavam ser

medidas em meses, até mesmo semanas. Não havia mobilização popular em

massa, o todo da população não era envolvido nela, como também não sofria

diretamente suas conseqüências. Os alvos eram, mediante acordo, somente

militares; além do que, as disputas geralmente acabavam sendo decididas através

de acordos diplomáticos. Mas o apogeu de uma era de industrialização massiva

traria, também, uma guerra industrial e massificada. O mundo jamais conhecera, e

jamais sonhara em conhecer tamanha capacidade de aniquilação.

“As luzes se apagam em toda Europa”, foi a frase do secretário de

Relações Exteriores da Grã-Bretanha, Edward Grey, na noite em que este país foi

à guerra com a Alemanha. Isso significava, principalmente, que a Era das Luzes,

ou “Iluminismo”, estava terminando, dando início a um período sombrio de

incertezas, conflitos e desmoronamento do grande edifício da civilização, até

então. A Primeira Guerra Mundial é declarada em meados de agosto de 1914, e o

conflito envolve todas as grandes potências e boa parte da Europa, à exceção da

Espanha, Países Baixos, Escandinávia e Suíça. Em alguns lugares, pela primeira

vez tropas ultramarinas foram enviadas para combater, o maior exemplo sendo os

EUA. Estava inaugurada a era das guerras de largas proporções, em que cada vez

mais se mataria com cada vez menos contato pessoal.

Os motivos que levaram o mundo a tal nível de beligerância e destruição

serão abordados brevemente mais adiante, pois envolvem diretamente a Alemanha

e a formação de seu Estado Nacional. Por ora, cabe tentar retratar o horror da

guerra, para tentar talvez dimensionar o impacto desta no imaginário das

populações envolvidas. Podemos dar, como exemplo, a “Frente Ocidental”,

quando alemães combateram franceses, belgas e ingleses durante,

aproximadamente, três anos, numa guerra de trincheiras assassina e exaustiva,

uma máquina de massacre sem precedente na história da guerra. Milhares de

homens ficavam uns diante dos outros, e havia dias de bombardeio intensivo – ao

qual o escritor alemão Ernst Jünger10 chamaria “furacões de aço” – que

10 HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos – O Breve Século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 33.

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preparavam o terreno para que levas de homens avançassem, mesmo sob

metralhadoras, que os ceifavam. A Batalha de Verdun, em 1916, custou a vida de

um milhão de homens. A ofensiva britânica no Somme, destinada a forçar os

alemães a suspender a ofensiva de Verdun, custou à Grã-Bretanha 420 mil mortos

– 60 mil só no primeiro dia.

Não muito mais de um terço dos soldados franceses saiu da guerra

incólume. Os britânicos perderam toda uma geração – meio milhão de homens

com menos de trinta anos. Os alemães, em números absolutos, perderam mais do

que os franceses; percentualmente, menos. Não é de se espantar que, na memória

de muitos, esta tenha sido “a” grande guerra, como testemunham a maior

predominância de monumentos e culto aos mortos erigidos por conta.

A entrada dos EUA, quase no fim da guerra, seria determinante em seu

desfecho. Os Aliados, abastecidos com os recursos quase ilimitados dos

americanos, puderam enfim romper os impasses da Frente Ocidental e avançar. A

partir deste momento, a guerra era apenas uma questão de semanas. E, realmente,

uma Alemanha exausta rendeu-se às forças inimigas, que lhe impuseram um

acordo de paz altamente oneroso aos perdedores e que, em grande parte, viria a

influenciar a situação alemã no pós-guerra.

O mundo, porém, jamais seria o mesmo, tanto nos planos político e

econômico mundiais, como na vida cotidiana das pessoas. Para os que cresceram

antes de 1914, o contraste foi tão impressionante que muitos se recusaram a ver

qualquer continuidade com o passado. Quase todos que serviram na guerra saíram

dela como seus mais ferrenhos inimigos. Contudo, criou-se uma espécie de

ambigüidade, pois, por outro lado, alguns ex-soldados às vezes extraíam da

experiência de conviver com a morte um sentimento de bárbara superioridade –

muitos deles viriam a formar, inclusive, as primeiras fileiras da ultra-direita do

pós-guerra. A ambigüidade se deu no plano político também: se as populações

estavam convictas de que um novo derramamento de sangue seria intolerável, os

governos teriam de levar isso em conta, de alguma maneira. Ainda assim,

certamente a experiência ajudou a brutalizar tanto a guerra como a política: se

uma poderia ser feita à revelia dos custos humanos, por que não a outra?

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A guerra de massa, portanto, além de ter gerado certa impessoalidade no ato

de matar, liberou e legitimou também o potencial latente de crueldade e violência

no ser humano (por que homens que tinham matado e visto matar iriam hesitar em

aniquilar os inimigos de uma “boa causa”?), o que traria conseqüências várias,

inclusive no campo das artes, do qual trataremos posteriormente.

3.1 Alemanha e a grande guerra

Ao longo do século XIX, a Alemanha havia crescido enormemente,

chegando ao fim do período tendo alcançado França e Inglaterra, em termos de

crescimento econômico, por conseqüência do florescimento de sua indústria.

Nesse momento também é possível perceber o enorme crescimento econômico e

industrial dos EUA, que começavam a usar a América Latina para obtenção de

matéria prima e expansão de capitais. A Alemanha, por sua vez, crescia

praticamente sem colônias. A nova burguesia do país, dirigida por setores

militaristas, sentia-se prejudicada pela partilha colonial de África e Ásia e a falta

de “espaço vital”. Havia também atritos pendentes com a França, por conta da

Guerra Prussiana de 1871. Em decorrência desta guerra, surgiu o moderno Estado

alemão unificado, o chamado “Primeiro Reich” – não um fruto de luta liberal e

democrática, mas um processo conduzido militarmente pelo ministro Bismarck11.

A rápida industrialização alemã do século XIX, que gerou um poderoso

fluxo de expansão industrial, teve importantes repercussões para o país, tais como

o aumento da população, de 41 milhões em 1871 a 67 milhões em 1914.

Paralelamente, ocorreu um processo de urbanização de grande envergadura: em

1841, 1/3 dos alemães vivam nas cidades, número que aumentou para 2/3 em

1910 – Berlim, que em 1867 possuía 700 mil habitantes, passou a contar com

quatro milhões em 1913. Essa urbanização correspondeu a um impressionante

aumento numérico da classe operária em relação ao todo da população – em 1907,

contavam-se 44,3% de operários e 68% de assalariados12.

11 MOORE, Barrignton. As origens sociais da ditadura e da democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1983. 12 HOBSBAWM, E. A Era do Capital.

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A classe operária foi, pouco a pouco, conquistando direitos junto às classes

dirigentes, tendo como braço político principal o Partido da Social-Democracia

(SPD). Em contrapartida, reconhecendo o papel de protagonista social exercido

pela classe operária, a elite empenhou-se, desde cedo, em imbuí-la de sentimento

nacionalista, persuadindo-a de que ela era, antes de tudo, parte do Reich. Essa

operação ideológica fincou profundas raízes na massa popular, e conquistou o

coração da liderança social-democrata que, inclusive, apoiou a decisão de entrar

em guerra.

O conflito teve, como pretexto inicial, o assassinato, em junho de 1914, do

Arquiduque austríaco Francisco Ferdinando, candidato ao trono do Império

Austro-Húngaro, por parte de um estudante bósnio, uma das nacionalidades

subjugadas e insatisfeitas. De fato, a eclosão desta guerra parecia que ia acontecer

por conta, basicamente, de dois motivos: a expansão industrial alemã, prejudicada

pelo controle rígido das colônias asiáticas e africanas exercido principalmente por

França e Inglaterra, e o problema das nacionalidades oprimidas pelos impérios,

principalmente na Polônia e região dos Bálcãs. Os países insatisfeitos com este

estado de coisas eram, principalmente, Alemanha, Itália e o Império Austro-

húngaro e, por isto, formaram a Tríplice Aliança.

Com o fim da guerra em 1918, após quatro anos de combates e morticínio

como o mundo jamais havia visto, as Potências Centrais desmoronaram. A

revolução varreu o sudeste e centro europeus, como varrera a Rússia em 1917.

Nenhum dos velhos governos permaneceu de pé, entre as fronteiras da França e o

mar do Japão. No caso alemão, a derrota foi sucedida pelo tratado de Versalhes e

a instauração da República de Weimar.

O acordo de paz, imposto pelas potências vitoriosas sobreviventes, foi

traçado de acordo com cinco considerações fundamentais, a saber: o colapso de

regimes monárquicos na Europa e o surgimento do bolchevismo revolucionário na

Rússia – ímã para forças revolucionárias em todo lugar; a necessidade de

controlar a Alemanha que, sozinha, havia quase derrotado toda a coalizão

oposta13; a necessidade de retraçar o mapa da Europa, por conta dos vazios

deixados pela queda do império habsburgo, otomano e russo. Note-se que, com tal

acordo, a Alemanha continuava sem territórios coloniais, o que será mais tarde 13 Referência à Tríplice Entente formada por Inglaterra, Franca e Império Russo.

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conhecido por “espaço vital”, para obtenção de riquezas que impulsionassem sua

expansão industrial. A quarta consideração dizia respeito a querelas entre as

próprias nações vitoriosas, principalmente os EUA, que se retiraram das

negociações de paz por problemas internos, traçando assim o rumo dos

acontecimentos. A quinta e última consideração era a necessidade de que o mundo

permanecesse em paz pelos próximos anos. Neste caso, as nações fracassaram

fragorosamente, visto que daí a vinte anos o mundo estaria em guerra, novamente.

Impôs-se à Alemanha uma paz punitiva, com o argumento de que aquele

Estado era o único responsável pela guerra e todas as suas conseqüências.

Pretendia-se, como já foi esboçado, manter a Alemanha enfraquecida, o que foi

conseguido através da exigência de perdas territoriais, privação de marinha e força

aérea efetivas, redução do exército a meros cem mil homens, desmilitarização do

lado esquerdo do Reno e, por fim, mas não menos importante, o pagamento das

“reparações de guerra”, teoricamente infinitas.

As chances de haver paz posteriormente, que já eram pequenas, tornaram-

se praticamente nulas, por causa da recusa das potências vitoriosas em

reintegrarem as vencidas. Tal fato marcaria um período de instabilidade geral nos

anos 20. As pesadas exigências feitas à Alemanha não levavam em conta que o

continente, de certa forma, precisava dela para re-erguer-se. A Alemanha

ocuparia, também, um lugar central no entre-guerras, pois, do ponto de vista do

movimento operário, todas as atenções voltavam-se ao desenvolvimento deste

país. O peso da classe operária, com suas organizações sindicais de tradição

marxista, era basicamente a causa desta atenção dedicada.

3.2 A República de Weimar

O descontentamento diante da lentidão das negociações do fim da guerra

levou a uma grande greve, à qual um milhão de trabalhadores aderiu. Mas a

repressão brutal do Exército e a pressão de sindicalistas do SPD14 puseram fim a

14 Os principais partidos políticos que constituíam o início da República de Weimar eram o SPD (Partido Social Democrata), USPD (Partido Social Democrata Independente, ao qual se juntou a

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tal greve. Em fins de setembro, porém, os generais Ludendorff e Hindemburg

tiveram de informar que o exército alemão não tinha mais condições de garantir as

fronteiras do país. Segundo Peter Gay (1978, p.165) “O país estava exaurido,

esgotado até a morte pela aventura que havia abraçado em agosto de 1914 [...]. A

Alemanha tinha 1,8 milhões de mortos, e mais de 4 milhões de feridos; o custo em

material, talentos desperdiçados, mentes mutiladas, desespero total, era

incalculável”.

O ministro fantoche Hertling foi substituído pelo príncipe Max de Bade,

que foi orientado a se aliar aos partidos que já queriam a paz desde um ano antes.

Dois membros do SPD foram incluídos no governo, e foi nomeada uma comissão

para negociar a paz, mas em 28 de outubro chegavam notícias da sublevação de

equipagens da frota marítima alemã, dando início à Revolução de 1918.

Entre o primeiro dia de sublevação e a queda do regime imperial, com a

proclamação da República, passou-se pouco tempo. Foi um movimento que

começou nas cidades costeiras e se espalhou através dos operários, generalizando-

se com uma força espontânea e irresistível. Dentro do USPD, alguns defendiam a

palavra de ordem de greve geral e insurreição, enquanto outros dirigentes mais

moderados, como Haase, tentavam resistir. Mas o elan das massas era forte o

suficiente para que os membros do SPD entendessem que seria inútil opor-se a

ele, tentando então contorná-lo e integrá-lo num modelo de Estado interessante

para a burguesia.

Em 9 de novembro, a situação era insustentável. O SPD tomou a si a

iniciativa de chamar o USPD para a formação de um novo governo, lançando

palavra de ordem de greve e insurreição pela queda da monarquia. Max de Bade

anunciou a abdicação do imperador e demitiu-se, fazendo seu sucessor o líder

social-democrata Friedrich Ebert. No meio da confusão, a República era

simultaneamente proclamada por Scheidemann e Liebknecht. No dia seguinte,

estava já formado o governo dos “Seis Comissários do Povo”, constituído por três

membros do SPD e três do USPD. Nesta época, A Terceira Internacional apontava

a Alemanha como o próximo Estado onde a revolução socialista seria possível, até

mesmo inevitável. Apesar de divergências, chegaram logo a um acordo, e assim

liga Spartakus de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht), Partido Central Católico, e os direitistas Partido Democrata e Partido Nacional do Povo e Partido do Povo.

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se iniciava um período curto, revolucionário, que logo chegaria à fase de

“normalização”. Dias mais tarde, outro acontecimento esfriaria o ímpeto

revolucionário: em 15 de novembro os sindicatos, liderados pelo SPD, e os

representantes patronais, firmaram um acordo. Assim, os patrões aceitavam velhas

reivindicações, como a jornada de trabalho de oito horas diárias, sem diminuição

de salários, além das convenções coletivas, dos comitês de fábrica e delegados

sindicais.

O SPD focou sua propaganda no lema da Assembléia Constituinte, a

“democracia de todo povo, evitando a ditadura de uma só classe”. Em dezembro,

houve votação entre eles e os que defendiam uma Assembléia dos Conselhos.

Ganharam expressivamente, o que demonstra a imensa força do SPD no

movimento operário. Sob influência do SPD, o Congresso marcou a eleição da

Assembléia Constituinte para 19 de janeiro.

Os chamados Freikorps, ou Corpos Francos, já vinham sendo formados

desde meados da Guerra Mundial, e eram constituídos, basicamente, de oficiais

contra-revolucionários e civis desempregados. Às vésperas do Natal de 1918,

guarnições de marinheiros estacionadas em Berlim se rebelaram. O governo de

Ebert, permitindo que duas divisões dos Corpos Francos entrassem em Berlim

para intimidá-los, acabou alimentando a mão da extrema direita que, a partir de

então, só viria a crescer em suas ações, chegando inclusive a serem os

responsáveis pelo assassinato de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, em 9 de

janeiro de 1919. Além disso, o próprio Ebert e Noske, ministro social-democrata

do Exército, passaram em revista outras tropas – sendo já cerca de oitenta mil

voluntários – nas imediações de Berlim. Assim, o SPD tornou-se cúmplice do

ataque da contra-revolução.Sob pressão de seu partido, os três Comissários do

Povo do USPD se demitiram, sendo substituídos por membros do próprio SPD.

Apesar de insurreições e manifestações de insatisfação, que deixavam um

clima inseguro e oscilante por toda a Alemanha, as eleições de 19 de janeiro, na

qual disputavam-se 421 cadeiras, se realizaram. A Assembléia Constituinte

demonstrou a superioridade eleitoral da social-democracia, pois esta obteve,

sozinha, 11,5 milhões de votos (163 cadeiras), sendo seguida pelo Partido Central

Católico, com menos de 6 milhões de votos e 89 cadeiras. O SPD formou o

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primeiro governo da República de Weimar, chamando os partidos da coalizão de

paz para apoiá-lo. O USPD negou-se a participar.

A Assembléia Constituinte abre seus trabalhos em 9 de fevereiro de 1919.

Ebert foi eleito presidente em 11 de fevereiro, pedindo logo para que

Scheidemann formasse um gabinete. Em julho deste mesmo ano, fornece à

Alemanha uma Constituição. Este foi, inclusive, o mesmo mês da assinatura do

Tratado de Versalhes. A grande diferença em relação ao reino dos Hohenzollern

era que agora o primeiro ministro dirigia-se ao Reichstag, não mais ao Rei.

Por esta época mesmo, demite-se o Primeiro Ministro Scheidemann,

constituindo assim um primeiro abalo para a social-democracia. Ele se havia

oposto à assinatura do Diktat. A demissão mais significativa, porém, foi a do

ministro das finanças, Wissel, um claro partidário de reformas socialistas e da

dissolução dos Corpos Francos, além da união com o USPD – sem dúvida,

fazendo eco a grande parte dos anseios da própria massa.

O lugar de Scheidemann foi ocupado por Bauer, e assim se abria a era do

declínio da social-democracia. Já no fim de 1919 a liderança real do governo

passaria ao ministro Erzberger, do centro católico. Esta fase assistiria a passagem

das camadas médias da população, açoitada pela crise econômica, para o terreno

da direita, muito em função, também, do desmoronamento do SPD. A paz e a

ordem, pela qual muitos ansiavam, não existiam.

Tais condições propiciaram, em março de 1920, uma tentativa de militares

e da extrema direita de depor o governo, através de um golpe de Estado – o

conhecido Putsch de Kapp. Este civil, membro do Partido Nacional Alemão, uniu-

se ao general von Lütwitz e algumas divisões de Corpos Francos, invadindo

Berlim. Noske, ministro do Exército, constatou que não tinha tropas para defender

a capital – ele e Ebert fugiram imediatamente. Kapp instalou-se no Palácio do

Governo, e tudo correria bem, se os golpistas realmente possuíssem estrutura

militar e política para tal tento. O país, dividido, hesitava. Os operários, porém,

uniram-se numa imensa greve geral, que acabou fazendo com que Kapp abdicasse

do poder, deixando-o vago.

Como ocupá-lo? Os grevistas faziam exigências aos membros do SPD, tais

como um governo sem alianças que englobasse militares reacionários – queriam,

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mesmo, uma coalizão operária, formada basicamente pelo SPD e USPD. O KPD

também estava perplexo, mas tendia a aceitar o “governo operário”. H. Müller foi

o homem que chefiou brevemente o novo governo, até as eleições de junho de

1920, as quais selaram o fim da liderança social-democrática. Os partidos de

centro-direita, mais votados, formaram o novo governo, que pela primeira vez

contou com o Partido Popular Alemão; marcando, assim, a entrada da força do

grande capital.

O Exército, durante os anos 1920 e 1921, cresceu consideravelmente,

tornando-se mais e mais independente dos políticos. Nem seu balanço financeiro

passava pelo parlamento. Como o Tratado de Versalhes exigia o número limite de

cem mil membros do Exército, basicamente foram aproveitadas partes

ideologicamente ligadas a antigos ideais imperialistas, tornando-se assim uma

poderosa força antidemocrática e anti-republicana, fora das camadas populares.

Por outro lado, o resto dos contingentes que havia formado os Corpos Francos não

aceitou a desmobilização forçada. Começaram, então, a formar associações

paramilitares clandestinas, financiadas por grandes indústrias, dando vazão a uma

nova corrente política, também presente em tradicionais partidos de direita: o

nacionalismo. Seu ódio concentrava-se em republicanos, judeus, comunistas.

Quando começaram uma campanha de atentados e assassinatos políticos,

contaram com certa conivência do Exército, que via neles possíveis aliados em

objetivos e interesses. A justiça não muito fazia, geralmente absolvendo-os.

Foram mortos, então, Erzberger, em agosto de 1921, e o ministro judeu

Rathenau, em junho de 1922. As atividades de terrorismo de direita concentraram-

se em Munique, e foi lá, inclusive, que em 1920 Hitler fundou o Partido Operário

Nacional-Socialista Alemão (NSDAP).

Outro grave problema que atingiu na época a Alemanha foi a inflação: em

1919 o marco em papel-moeda valia ¼ do marco-ouro; em 1920, 1/13; em 1921,

1/21; em janeiro de 22, 1/50; em outubro de 1922, 1/1000; em janeiro de 1923,

1/40000. A classe média e os assalariados foram, claramente, os maiores

prejudicados com tal situação. Já os proprietários rurais e industriais nutriram-se

da inflação.

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No mês de março houve dois acontecimentos de peso sócio-político: o

primeiro foi a fracassada “ação de março” dos comunistas, quando, na região

mineira de Mansfeld, o governo determinou uma ação da polícia, coincidindo com

uma decisão do Comitê Central o KPD de “forjar o destino do partido e da

revolução”. Assim, o KPD conclamou à greve geral e resistência armada, mas a

adesão a este movimento foi praticamente nula.

O segundo acontecimento relevante foi à exigência, por parte dos Aliados,

do pagamento de maiores reparações de Guerra – uma dívida monstruosa que

deveria ser paga em dinheiro, e que o governo alemão recusou. Em represália, as

cidades de Düsseldorf e Duisburg foram ocupadas. Em maio, novas exigências

foram feitas, sob pena de ocupação do Vale do Ruhr e, diante disso, Fehrenbach

demitiu-se, assim como o Partido Popular Alemão retirou-se do governo. O novo

primeiro ministro, Wirth, também do centro católico, deu a iniciativa para que o

parlamento aprovasse as condições impostas pelos Aliados – talvez esperando que

estes voltassem atrás em suas exigências, que eram praticamente impossíveis de

serem cumpridas.

Este reconhecimento por parte dos vencedores, no entanto, não ocorreu.

As condições de vida dos setores populares foram piorando cada vez mais. Mais

tarde, em novembro de 1922, o governo de Wirth não podia mais enfrentar a

inflação e o problema das reparações de guerra. O Primeiro Ministro queria

chamar ao governo, novamente, o Partido Popular Alemão, mas a recusa por parte

dos social-democratas provocou a queda do governo. O novo governo,

encabeçado pelo empresário de centro-direita Cuno, era composto pelo SPD,

pelos democratas e pelo Partido Popular Alemão. Neste momento, a clientela

camponesa do centro católico (que dera forte guinada à direita) pendia cada vez

menos à república democrática, assim como sindicatos operários católicos, que se

voltavam para opções de governo mais conservadoras e autoritárias.

As condições históricas, isto é, o nacionalismo e um movimento socialista

claudicante, formam a conjuntura ideal para a ascensão do Partido Nacional-

Socialista. Essas condições favoreceram o fim da República de Weimar e a

ascensão avassaladora da direita representada pelo partido nazista.

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3.3 O clima cultural e ideológico do modernismo

Um dos mais famosos imperativos da cultura moderna é o “tornar novo”,

que significa mais do que ser simplesmente original e singular. A expressão

contém em si uma idéia que influencia e deixa marcas nos artistas da modernidade

– a idéia de que as artes modernas têm o dever de serem vanguardistas, de estar à

frente de sua época, transformando-a, ao mesmo tempo em que transformam a

natureza das artes. Trata-se da propagação da “tradição do novo”; das artes

rompendo suas ligações com o passado, pensando o presente e o futuro, numa

tarefa simultânea de criação e destruição. A personagem Zarathustra, de

Nietzsche, dá a entender que “todo aquele que quiser ser criativo no bem e no mal

deverá antes ser um aniquilador de valores”15.

Ocorria, então, a transição entre duas eras. Uma gigantesca onda de

invenções e experiências na ciência e tecnologia, filosofia e psicologia, percorria

as sociedades européias entre 1875 e 1914. Também o crescimento acelerado das

cidades, a difusão dos processos industriais, o advento de novos meios de

comunicação, as defasagens políticas que agora se iam formando em sociedades

ocidentais – tudo isso contribuiu para a formação de uma atmosfera de ruptura. Na

Europa e nos EUA, processos científicos e tecnológicos inovadores geravam uma

consciência de aceleração histórica, que se foi intensificando à medida em que o

fim do século chegava. O mais conhecido profeta literário do novo é o dramaturgo

Henrik Ibsen, que teria afirmado, à semelhança de Zarathustra: “A grande tarefa

de nossa época é fazer explodir todas as instituições existentes – destruir”. Como

ressalta Fritz Sternn (2004, p. 247),

Desde os seus primórdios, o modernismo, em todas as suas variadas formas, esforçou-se para exprimir a intuição de que as aparências burguesas eram apenas máscaras para uma realidade feia e opaca, e que o mundo era muito mais caótico, muito mais desordenado e desfigurado do que supunham as convenções.

15 BRADBURY, Malcolm. O Mundo Moderno – Dez grandes escritores. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p 19.

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“Tornar novo” implica em seguir em frente, buscando novos caminhos na

experiência da modernidade – tarefa de descobrimento e dissidência; uma

aventura além dos limites da imaginação e, também, um ato de

liberação/libertação das estruturas petrificadas do passado. Vários elementos

provenientes da cultura precisavam mudar: a filosofia que sustentava as artes, a

visão básica que exprimiam, relações entre forma e conteúdo, artista e platéia,

indivíduo criador e sociedade. Ezra Pound, o poeta, achava que a tarefa do artista

era atuar como aguilhão de sua época, gerando cultura ao se revoltar contra a

cultura16.

Na verdade, desde a segunda metade do séc. XIX, em ondas cada vez mais

aceleradas, um espírito inovador atravessa as artes e idéias da Europa, à medida

em que as convicções e esperanças fundamentais do século começaram a ser

modificadas por profundas mudanças sociais, técnicas e políticas, surgidas das

revoluções e do romantismo dos quais este mesmo século nascera. Em seu livro A

Década de 1810, Holbrook Jackson observa que na última década do séc. XIX, as

palavras “moderno” e “novo” estavam sendo bastante empregadas. Encontram-se

várias referências ao “novo estilo”, “novo teatro”, “novo sindicalismo”, “nova

mulher”, entre outros. O mundo do contrato social de Rousseau, do otimismo

liberal e burguês, fora transformado por um século de desenvolvimento.

É importante destacar que a visão romântica de uma natureza benevolente

fora subvertida pelo crescimento das principais cidades e pela massificação das

populações. As velhas certezas cristãs foram minadas pelo espírito das novas

idéias17. Em todos os campos – social, moral, religioso, científico – ocorreram

transformações fundamentais. No ano de 1848, por exemplo, Marx e Engels

lançam o Manifesto Comunista que, além de tudo, buscava afirmar uma visão

revolucionária, secular e materialista da História e das expectativas humanas. Em

1859, Darwin lança A Origem das Espécies, no qual propõe uma teoria da

evolução, questionando a concepção cristã da criação em seu âmago, e certamente

contribuindo para esta crescente desmistificação da natureza.

16 Uma excelente discussão sobre as artes no período compreendido entre 1875 e a Primeira Grande Guerra está em HOBSBAWM, E. As Artes Transformadas, in A Era dos Impérios (1875-1914), RJ: Paz e Terra, 2008, p. 307-37. 17 Sobre a crise das certezas, ver HOBSBAWM, E. A Era dos Impérios, op. cit. , capítulo 10, Certezas solapadas: as ciências, especialmente p. 341.

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As mudanças do mundo exterior correspondiam à consciência de que o

mundo interior se modificara. Na medida em que a sociologia e a política alteram

a visão que se tinha do mundo social, e a ciência modifica a concepção do mundo

físico, surgiam novas idéias a respeito do que constituía a natureza da percepção,

da intuição e da consciência. As grandes narrativas do séc. XIX eram baseadas,

principalmente, em conflitos religiosos e morais. Já as artes dirigem sua atenção

para outras direções, para os novos tumultos da consciência, para a natureza das

impressões e percepções. O mundo que jaz oculto por trás da mente consciente

veio a ser denominado “inconsciente”. Os artistas e pensadores enfatizam a

complexa existência interior de um mundo imaterial dirigido por frágeis sensações

e percepções. Walter Pater, porta-voz das sensações novas e modernas, fala da

consciência acelerada e multiplicada dos novos tempos. Em 1890, William James

publica seu Princípios da Psicologia, no qual enfatiza que a realidade não é um

dado objetivo, mas algo percebido subjetivamente, através da consciência. Em

1900, Freud publica A Interpretação dos Sonhos, uma das obras mais influentes

do novo século.

Talvez nada ilustre melhor a crise de identidade por que passa a sociedade

burguesa nesse período que a história das artes dos anos 1870 a 1914. Nesta

época, as artes ganham, elas próprias, uma nova importância, enquanto a

sociedade européia experimenta, de uma forma geral, uma grande perda de

parâmetros e tradições anteriores nas quais se apoiar. Os artistas são estimulados

pela aspiração de independência estética e liberdade que se desenvolve na segunda

metade do séc. XIX, não seriam mais simples moralistas burgueses, na medida em

que a imaginação se foi rebelando cada vez mais contra o mundo social e

científico, material e burguês. Eles almejam ser um instrumento independente, de

descoberta, agentes de evolução criadora. O idioma de um realismo seco e direto

não mais exprime, de modo satisfatório, a realidade de um complexo mundo de

mutação, movimento, aceleração. Como as grandes experiências no mundo da

pintura demonstram, a questão da arte não é mais simplesmente a de retratar fatos

sociais de um mundo exterior consensual, mas tornar-se símbolo afirmativo de sua

própria existência, símbolo que foi se tornando cada vez mais enigmático e

labiríntico. Yeats dizia que os sonhos do poeta haviam de ter capacidade de

derrotar o real em qualquer nível. Nietzsche argumenta que o mundo que

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sobrevivera à morte de Deus precisa de uma nova arquitetura mental, um ato

renovador de energia e vontade.

Um fim de século contém, muitas vezes, uma vivificação revolucionária

do pensamento. À supremacia da vida burguesa, ao aumento da competição

imperial e comercial entre as potências européias e ao florescimento da belle

époque, as artes contrapõem imagens que não disfarçam a presença de um mal-

estar perturbador. Os artistas se denominavam “decadentes”, e o termo designava

não apenas a boemia e o estilo dândi, mas também a consciência de se estar

vivendo uma transição e uma atitude de desânimo e enfado em relação aos valores

burgueses que prometiam o mundo do bem-estar e progresso. A decadência e a

boemia não eram novidades, remontavam à Paris de 1830. Também não era nova

a campanha da “arte pela arte”, que vigorara durante a época vitoriana. Há tempos

vinham surgindo “movimentos” pela arte, porém, a vivificação da década de 1890

concentrou tudo isso, sendo também, sob vários aspectos, a primeira década

moderna – em parte por encarar a si própria como um momento de transição, fim

de um tempo antigo, início de um tempo novo. Tal experiência de transitoriedade

foi uma das razões pelas quais tal década enfatizava a importância das

experiências e sensações imediatas, o valor de um desfile extravagante de estilos

novos, ainda que efêmeros. Com o fim da década de 1890, houve a impressão de

que este sentimento de efemeridade se havia arrefecido, mas foi um ledo engano.

“Tudo” estava começando. As novas concepções do moderno se espalham

pela Europa. A Guerra de 1914 traz à tona a instabilidade subjacente da ordem

sócio-política e destrói boa parte do que restava da cultura tradicional. A essa

altura, já é certo que esse movimento tinha várias ramificações, de Moscou a

Chicago, da Escandinávia de Ibsen e Munch à Itália de D´Annunzio, Marinetti e

Pirandello. Há muitos centros, mas o mais evidente é Paris, onde surge toda uma

série de movimentos em várias artes – em particular o Cubismo, uma nova forma

de abstracionismo cujo início é marcado em 1907, ano em que Picasso concluiu

Les demoiselles d´Avignon. A Alemanha e a Escandinávia são centros também

importantes, e o legado teatral de Ibsen e Strindberg concentra-se, por volta de

1910, no movimento denominado Expressionismo, que começou na pintura, no

teatro e na poesia, e chegou até o cinema – como veremos mais tarde.

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Tanto na Rússia como na Itália, a tendência é o futurismo; mas quando

Marinetti lança o manifesto futurista, glorificando a velocidade e a energia

mecânica dos tempos modernos, o faz em Paris. Agora, esses movimentos

exprimiam menos o espírito de decadência do que o deslumbramento com o novo,

a estranheza cintilante da metrópole moderna, a maravilha da máquina, as novas

relações psíquicas e sexuais da época.

Dentre as várias fases do Modernismo, não há dúvida de que a eclosão da

Grande Guerra ocupa um lugar fundamental e, de modo paradoxal, representa

uma manifestação, ou uma estranha concretização tanto dos presságios quanto das

expectativas inquietas do modernismo, e de sua obsessão como o espírito do novo.

Numa carta famosa, escrita em 1914, pouco antes de morrer, Henry James

manifestou o horror que sentia ao ver “o mergulho da civilização neste abismo de

sangue e trevas”18 “De tal modo é traída toda a longa época durante a qual

imaginamos que o mundo, ainda que em declínio, estava gradualmente

melhorando, que ter de apreender agora o rumo verdadeiro que ele estava todo

esse tempo tomando, seu verdadeiro significado, é trágico demais para se exprimir

em palavras”19. Sem dúvida, o período anterior à guerra fora traiçoeiro, mas,

vistas em retrospecto, as profundas convulsões das décadas anteriores – na

tecnologia, ciência, política, arte – pareciam prefigurar a crise. Os artistas eram

soldados da vanguarda do início do século - “vórtice”, “explosão”, “energia” e

“destruir o museu morto da civilização”, os lemas importantes dos movimentos de

vanguarda do início do século. E foi a velha poesia romântica sentimental, da

natureza benévola e do patriotismo que morreu nos campos de batalha, enquanto

as novas artes da energia e ambigüidade, da angústia e crise, subitamente

assumem uma realidade maior e mais nova.

Acima de tudo, a guerra deu um novo sentido à idéia de grande ruptura

que atinge as artes modernas. DH Lawrence elegeu o ano de 1915 como marca do

fim do velho mundo, escolhendo como momento crucial um em que toda uma

tradição cultural parecia terminar na guerra. O moderno não era mais uma

experiência ousada da consciência e de novas formas de expressão, e sim uma

situação nova e sinistra que vem desorientar a vida por todo o resto do século. A

18 Apud BRADBURY, Malcom. Op. Cit. p 38 19 Idem, Ibdem p. 39

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anarquia que se oculta imediatamente abaixo de uma fina camada de civilização

pode ser percebida na ficção de Dostoievski, Conrad e Mann, a consciência de que

“as coisas se desintegram, e o centro não se sustenta” está presente na poesia de

Yeats e Rilke. Agora, tudo isso adquire um novo sentido, vincula-se a uma crise

que se tornava evidente em todo o mundo. Os futuristas celebram a guerra e a

violência; os vorticistas, com suas explosões; os expressionistas e sua revolta da

energia contra uma civilização apodrecida – todos parecem exprimir, de modo

explícito, a natureza do novo mundo que surgira. Para alguns, a guerra seria a

purgação do passado da qual o mundo tanto precisava. Em novembro de 1914,

Thomas Mann escreveu que “em Kant e Nietzsche temos os moralistas do

militarismo alemão” e propunha que talvez a guerra fosse “purificação, libertação,

uma esperança imensa”20.

Essa esperança morreu depressa. “Onde estamos? Para onde nos arrastou o

sonho? Penumbra, chuva, imundície”, Thomas Mann escreveu em A Montanha

Mágica. A maioria dos livros escritos na época da guerra também exprime a

transformação de valores que o conflito provocou. São, por assim dizer,

compostos de forças diferentes – um certo otimismo simbolista que surgira no

modernismo de antes da guerra, a partir do espírito dos anos 1890, e a sensação de

vazio e fragilidade expressos pela guerra, que caracteriza o período que se segue a

ela. Ironicamente, o espírito modernista nas artes tornou-se relevante e autêntico

no pós-guerra, o que não ocorrera nos anos anteriores ao conflito. Os romances de

Dostoievski, Conrad e Kafka, que exprimem não apenas a desordem política, mas

também uma terrível angústia interior, ganham relevância nova. Muitos escritores

dos anos 20 encaram sua época tragicamente e utilizam formas modernistas para

exprimir a desordem fragmentada de uma era em que os substantivos abstratos

tornavam-se irrelevantes, a natureza parecia uma agressão ao indivíduo e a

subjetividade só conseguia encontrar deformação, desespero e derrota.

A consciência de declínio histórico e fragilidade humana intensifica-se no

período do pós-guerra. Ao mesmo tempo, porém, intensifica-se o projeto

modernista, com a destruição final do projeto oitocentista pela guerra; e agora,

“tornar novo” parece ser a melhor maneira de avançar. Foi uma época de grandes

lançamentos de obras modernistas, e apenas nos primeiros anos da década de

20 BRADBURY, Malcom. Op. cit. p. 41

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1920 publica-se toda uma série de grandes livros – em 22, A Terra Estéril, de TS

Eliot e Ulisses, de Joyce, além de Michael Robartes and the dancer, melhor livro

de poesia de W B Yeats. Foram lançados, também, no mesmo ano, mais um

volume de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust; Virginia Woolf lança seu

terceiro romance, O Quarto de Jacob; surgem duas peças importantes, Henrique

IV, de Pirandello, e Anna Christie, de Eugene O´Neill21.

Durante toda a década de 20, foram surgindo obras importantes. Esses

livros deixavam bem claro que uma nova e importante tendência já se estabelecia

na literatura, caracterizando-se por ambições literárias imensas e um angustiado

desespero moderno. Essas novas artes têm certas características em comum. São

muitas vezes duras, irônicas, fragmentárias. As personagens centrais são mais

comumente vítimas do que agentes, e a natureza da existência é apresentada como

algo fraco e frágil. Mas o que antes aparecia como experimentação estratosférica e

chocante, agora surge como um meio necessário de apreender o espírito febril e

acelerado do mundo do pós-guerra.

Este período marcou uma crise na história do humanismo ocidental e uma

tentativa séria de compreender e apreender a natureza da existência moderna. Suas

conseqüências tiveram um tom abismal, às vezes intencional, inclusive no campo

da política. Geraram-se obras perturbadoras e geniais, e algumas das

manifestações mais dolorosas de autoconsciência e ansiedades modernas.

Tal crise fez parte da transição sofrida pelo mundo ocidental, ao passar do

Romantismo - onde a linguagem se destaca da trama classificatória própria à

época clássica, havendo re-significação: a linguagem dos sentimentos e das coisas

excede a linguagem das palavras - para a arte moderna, do final do séc. XIX e

início do séc. XX. Ainda que o início desta crise se afaste de nós por mais de

século, ele ainda é capaz de nos perturbar, pois ela – a crise – reconstruiu

inteiramente nossa tradição artística, concepções de forma e linguagem, valores,

cultura e estilo. Legou-nos algumas de nossas melhores criações, e alguns dos

piores pesadelos.

21 Para uma análise das obras de M. Proust e F. Kafka no contexto da ascensão da burguesia industrial e financeira na França do fim do XIX e da alienação das pessoas, especialmente dos trabalhadores, na fase do capitalismo monopolista de Estado, respectivamente, ver COUTINHO, Carlos Nelson. Lukács, Proust e Kafka.Literatura e Sociedade3 no século XX. RJ: Civilização Brasileira, 2005.

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Inclusive, outro importante pressuposto do movimento modernista é a

idéia de que a “arte séria” é literalmente uma vanguarda, à frente de sua época. O

termo vanguarda significa que a nova arte é uma operação política ou militar,

além de ser uma tentativa histórica de deixar de lado os tais “cabeças-duras”22 da

maioria, que preferiam uma cultura mais convencional e tranqüilizadora. Os

modernistas supõem, no futuro, uma platéia que os compreenda.

O vanguardista é, em certa medida, um revoltado contra sua época. Ele

recusa e repele de si o estado corrompido da cultura burguesa sua contemporânea,

os valores complacentes de uma sociedade mercantilista, materialista,

imperialista; a tradição da mediocridade tranqüilizante de sua arte. Ao mesmo

tempo, o vanguardista é a manifestação mais integral da própria modernidade,

uma vez que revela suas formas e princípios fundamentais, destilando seu espírito

e suas contradições – ou seja, o próprio fato de ir contra si é condição desta

mesma época.

Em suma, a arte de tornar novo é também uma arte de crise. As novas

formas fragmentárias, as estruturas estranhas, muitas vezes parodísticas; a

atmosfera geral de ambigüidade e ironia trágica – tudo expressa tal crise.

Nietzsche afirmou que os homens modernos eram “filhos de uma época

fragmentada, pluralista, doente e estranha”, o que pode ser medido a partir de uma

certa literatura decadente de fins do séc. XIX. Os poetas, que já vinham falando da

crise da palavra, falavam agora na crise do mundo. Em Hugh Selwyn Mauberley23,

poema de 1919, o poeta Ezra Pound utiliza a fragmentação formal para expressar

sua reação raivosa à guerra e explora o espetáculo de uma cultura artística, que já

fora magnífica, agora destruída pelo mercantilismo e nacionalismo, gerando uma

civilização exaurida; em suas palavras, “velha cadela desdentada”. A grande obra

de sua vida, Os Cantos, é a anti-epopéia da era de desunião e integridade perdida.

Como muitas das obras importantes do modernismo, é uma tentativa de garimpar

a tradição literária e encontrar, em meio a suas ruínas, fragmentos utilizáveis.

Com base nelas, o poeta pretende elaborar a nova paideuma moderna, um estado

de cultura novo e completo, com renovados valores morais, comerciais e

lingüísticos.

23 Apud BRADBURY, Malcom. Op. cit.

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De forma geral, ocorre o colapso da cultura tradicional, o que traz a

necessidade da construção de uma nova arte, com base nos fragmentos e

sensações do presente. Ibsen, através de uma de suas peças, declara que nenhuma

idéia, naquele momento, duraria mais do que vinte anos. A tradição e o talento

individual se haviam separado, e só seria possível recuperar o que havia de melhor

no passado por meio de muito esforço.

Ocorre uma dissociação fundamental da sensibilidade, uma crise da

expressão cultural. A palavra está desarraigada, a imagem perde a coerência, o

pensamento e o sentimento estão separados, o símbolo perde sua transcendência.

As novas formas e expressões, para vários dos artistas e pensadores do momento,

vinham da desagregação do passado utilizável, da crise da certeza, do desenraizar

da palavra e da imagem. Não são frutos da cultura de uma nação, mas das grandes

sínteses de formas, linguagens e novas técnicas que se estão desenvolvendo nas

capitais culturais da Europa.

3.3.1 O Caso da Alemanha

A República de Weimar, apesar de sua curta e atormentada vida, marcou

intensamente a cultura do modernismo.

A década de 1920, na Alemanha, legou-nos a lenda dos “anos dourados”,

mas não lhe explicitar os defeitos significa trivializar as relações da Renascença

de Weimar24 e menosprezar o preço que se pagou por elas. A grandeza

característica da cultura deste período desenvolve-se, de certa forma, a partir de

sua criatividade e experimentação, mas muito dela configura-se como ansiedade,

medo, e uma crescente sensação de condenação. É, também, criação de

forasteiros, que a história impeliu para a Alemanha num momento curto e frágil.

A escolha de Weimar como centro político da nova fase, do novo Reich,

simbolizou uma esperança para um novo começo; o que foi um reconhecimento

implícito da acusação amplamente divulgada nos países Aliados durante a Guerra,

24 GAY, Peter. Op. cit, p. 12.

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de que na verdade existiam duas Alemanhas: uma orgulhosamente militar,

submissa à autoridade, obsessivamente preocupada com a forma, outra, da poesia

lírica, da filosofia humanística e do cosmopolitismo pacífico. Tentara-se o

caminho de Bismarck, e agora cabia a procura pelo caminho de Goethe. O ideal

desta República era ao mesmo tempo antigo e novo. Sua mistura de cinismo e

confiança, a busca ao mesmo tempo por novidades e por raízes, eram frutos de

guerra, revolução e democracia. Os elementos que lhe deram corpo, todavia,

vieram tanto do passado recente quanto de um mais distante, recordados ou

vividos pela nova geração. Na arte alemã, a transição da arte burguesa para a

popular, ou seja, do Impressionismo para o Expressionismo, precedeu de muito a

revolução25.

Existia, decididamente, hostilidade na Alemanha imperial para com o

modernismo. O imperador gostava de desfiles vistosos, medalhas brilhantes,

retratos sentimentais, heróicos. As universidades eram centros de resistência à

nova arte; judeus, democratas e socialistas não participavam dos “sagrados

recintos de cultura”26. O modernismo tornou o círculo dominante da sociedade de

então nauseado, e como prova disso temos o relato do estadista bávaro, príncipe

Chlodwig zu Hohenlohe Schwilligsfurst, que em 1893 foi assistir a uma peça de

Gerard Hauptmann, Hanne des Himmel fahrt. “Um trabalho monstruoso e infame,

de um realismo social-democrático e ao mesmo tempo cheio de misticismo

doentio e sentimental desorientador, de um modo geral abominável. Depois fomos

ao Bochard, para tentar readquirir uma mentalidade humana, com champagne e

caviar”27.

Ainda que opressiva, a Alemanha de Guilherme não era uma ditadura e,

assim sendo, o movimento modernista se alimentava da oposição. O

Expressionismo, que dominaria a cultura de Weimar durante os anos de formação,

amadureceu plenamente no Império.

O movimento moderno, contudo, está maduro o suficiente, no decorrer

destes anos. A Psicanálise fora introduzida no país em 1910, com a instalação em

Berlim de um ramo da Associação Internacional Psicanalítica. Max Reinhardt, o

25 Sobre as simpatias socialistas dos artistas desta época, como E. Munch, Oscar Wilde e, na Alemanha, Kathe Kolwitz, ver HOBSBAWM, E. op. cit, p. 319. 26 GAY, Peter. Op. Cit, p.12 27 ibid, p. 17

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grande nome do teatro de Weimar, já havia praticamente “esgotado seus truques”

em 1914. Não parecem, então, restar dúvidas de que o “estilo” da República

precedeu sua própria criação, que mais liberou o que já existia do que criou.

Tal estilo era também mais vasto que a Alemanha. Já no Império, pintores

alemães, teatrólogos, poetas, psicólogos etc comprometiam-se com um livre

comércio internacional de idéias; parte de uma comunidade ocidental,

alimentavam e eram alimentados por ela. O pintor Wassily Kandinsky é um bom

exemplo deste cosmopolitismo: nasce na Rússia, aprende muito com os fauvistas

franceses e descobre seu estilo pessoal em Munique. Esta cidade, aliás, é a capital

dos pintores do Império, e montava influentes exposições de neo-impressionistas

franceses. Os pintores Franz Marc e Paul Klee vão a Paris para aprimorar seus

desenvolvimentos artísticos. Dada, a rebelião dos artistas contra a arte, nasce em

Zurique durante a Guerra, floresce em Paris depois desta e faz de Berlim seu

centro, durante os primeiros anos de Weimar. O irracionalismo filosófico de Henri

Bergson e o mórbido e poético irracionalismo de Dostoievski tocam os espíritos

sensíveis tanto da esquerda, como da direita. Estes são alguns exemplos das trocas

intelectuais e simbólicas entre as culturas, por volta desta época.

As perguntas mais insistentes giram em torno da necessidade de renovação

do homem, o que se torna urgente diante do desaparecimento de Deus, como

profetiza Nietzsche, além da ameaça da máquina e a estupidez incurável das

classes superiores. É justamente a banalidade da qualidade do cosmopolitismo no

Império que, mais tarde, dá ao estilo Weimar a resistência de sua fibra; no seu

internacionalismo inconsciente de si mesmo, ela compartilha da vitalidade de

outros movimentos culturais.

O resultado da Guerra foi a destruição dos laços da cultura alemã, tanto

para o passado utilizável como para o ambiente estrangeiro – exceto em relação

aos mais resolutos cosmopolitas. Muito poucos mantiveram o intercâmbio aberto.

A tarefa cultural da República de Weimar era capitalizar os nobres sentimentos e

restaurar laços partidos.

No início, a Revolução tinha amplo apoio. Walter Gropius, o famoso

arquiteto, disse que a consciência de sua responsabilidade social foi oriunda da

Primeira Guerra. Em 1918, em licença na Alemanha, resolve ir até Berlim,

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quando estoura a Revolução. Ao testemunhar os ataques do povo aos oficiais, foi

dominado pelo pensamento de que aquela situação representava mais do que a

perda de uma guerra; todo um mundo chegara ao fim, e agora ter-se-ia de buscar

soluções radicais para os problemas que se impunham.

Inúmeros representantes da cultura de Weimar tiveram uma carreira

semelhante à de Gropius: idéias desenvolvidas no Império, diretrizes políticas

ditadas pela Guerra, encontro da livre expressão na Revolução. Esta era, inclusive,

vista por soldados e suas famílias, democratas, socialistas, pacifistas e utopistas

como a promessa de uma nova vida.

A boa vontade acumulada nos dias de colapso e esperança, porém, foi

bastante dissipada pelos acontecimentos do inverno de 1918-19, e os tumultos dos

anos de derrota. Por inúmeros motivos, o curso e as conseqüências da Revolução

desapontaram a muitos: os novos conservadores desprezavam as inovações; os

radicais eram contra os remanescentes deixados pelo Império. De forma quase

irônica, a República de Weimar era demasiado bem sucedida para satisfazer seus

críticos, e não tão bem sucedida a ponto de satisfazer seus simpatizantes. O poeta

Rilke, já em 1918, havia perdido toda a esperança: “Sob a aparência de uma

grande revolta, persistia a antiga falta de caráter”28. Inúmeros jovens admiradores,

entre eles Brecht, voltaram as costas à política tão rapidamente quanto a haviam

adotado. Logo tornou-se comum manifestar o desdém numa única frase: 1918 foi

a “assim chamada” Revolução.

As causas para este desencanto são inúmeras – existiam fantasmas antigos

na Assembléia Weimar, além do que os quatro primeiros anos da República foram

de crise quase ininterrupta, cujos detalhes foram abordados nos capítulos

anteriores. Além disso, havia outro estímulo mais sutil ao cinismo e à desunião.

Em agosto de 1914 o mundo ocidental experimentava um sentimento de que a

guerra aliviava o tédio, era um convite ao heroísmo, um remédio contra a

decadência. Na Alemanha, porém, esta psicose29 atingiu o auge do absurdo.

Homens de todas as idades e tipos sociais tornavam-se voluntários com alegria, e

iam para o norte convictos de sua missão. Para eles, a guerra significava

“purificação, liberação e uma enorme esperança”; “inflamava o coração dos

28Idem, Ibid. p. 33 29 Idem. Ibid. p.44

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poetas” com uma sensação de alívio que “o mundo de paz havia feito

desmoronar”, um mundo do qual “estava-se cansado, tão tremendamente

cansado”. Os alemães finalmente se haviam reunido como um Volk, ou “povo”,

numa terra de heróis para os quais só a vitória daria sentido à vida, e que

enfrentavam inimigos “cheios de covardia, baixeza e falsidade”30 – estas são

expressões do escritor Thomas Mann e do historiador literário Friedrich Gundolf,

mas havia várias outras que soavam da mesma forma.

Apesar de muitos terem permanecido politicamente prontos a apoiar outras

aventuras de igual ou maior porte, pode-se dizer que a euforia da maioria

transformou-se em depressão, muitas vezes em colapso mental, sentindo-se a

vergonha e a sensação de culpa pertinentes a quem apóia um desastre de tais

proporções.

Peter Gay (1978, p. ) ressalta, porém, que:

À luz dos acontecimentos, a revolução e suas conseqüências obtiveram muitas realizações. Foi varrida pra sempre a casa governante prussiana e outras monarquias germânicas, poderosas ou pequenas. Estabeleceu um estado democrático. Deu novas oportunidades a talentos inaceitáveis para promoção na época do império, abriu centros de prestígio e poder para professores progressistas, teatrólogos modernos e pensadores políticos democráticos.

A República de Weimar, portanto, expressa, sobretudo no campo da cultura,

uma ambigüidade radical. O pessimismo e a angústia provocados pela enorme

derrota de 1918, e suas conseqüências ligadas ao Tratado de Versalhes,

contrastavam flagrantemente com o florescimento cultural – expresso na

literatura, artes plásticas, teatro e cinema – tão típico da época de Weimar. Sem

dúvida, esse florescimento cultural não foi capaz de impedir o avanço das forças

conservadoras, de que o núcleo militar é a maior expressão, que avançam nos

anos 1920 e chegam ao poder em 1933 com o golpe expresso na queima do

Reichstag alemão em Berlim, e a conseqüente tomada de poder por Adolf Hitler.

O pessimismo e o avanço das forças conservadoras aparecem no cinema

expressionista alemão dos anos 20, do qual Nosferatu de Murnau, objeto de

análise no capítulo cinco, é epítome.

30 Apud GAY, Peter. Ibid.

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4 O expressionismo artístico

Dentre a vasta gama de “ismos” do início do século XX, o Expressionismo

certamente é um dos mais elusivos e difíceis de definir. Atualmente, basta que um

artista distorça exageradamente a forma e aplique a tinta de forma espontânea,

subjetiva e intuitiva, para que seja considerado “expressionista”31.

O termo “Expressionismo” foi primeiramente utilizado em 1911, em

relação à arte francesa, e só depois para referir-se a pintores alemães

(principalmente o grupo Die Brücke, que logo à frente será melhor abordado) –

mas, assim como o Cubismo ou o Fauvismo, o rótulo não foi atribuído pelos

próprios artistas. Surgiu, mais propriamente, na literatura promocional e nas

resenhas críticas das exposições de então.

Pode ser um movimento definido, de forma geral, por um grupo de

artistas que primam por uma ruptura dinâmica em áreas inexploradas da

experiência, assim como desejam uma revolução visionária contra tradições

sociais corruptas e valores falsos – apesar de que o Expressionismo não constitui

exatamente um movimento coerente; afinal, artistas e grupos encontram-se

dispersos e possuem background e formação diferentes. Acreditam que estava

chegando a hora do renascimento espiritual do homem, com o fim da velha

sociedade autoritária e a destruição da influência corruptora da indústria, pois

ambos restringem e aleijam o espírito do homem comum. Quando libertos, os

homens irão experimentar um contato intenso, espiritual, alcançando um estado

místico e iluminado de alma, “explosões de intensidade”.

O Expressionismo promove uma tentativa de modernizar a cultura

germânica com uma estética vitalista, e antes de 1914 precisou de respaldos para

se tornar um termo de uso corrente. A expressão-coringa Expressionismus é

utilizada numa exposição ocorrida no Palácio das Artes de Colônia, sendo

aplicada a uma ampla gama de artes provenientes da França, Alemanha, Áustria-

Hungria Suíça, Holanda, Noruega e Rússia. Neste mesmo momento, o grupo Die

Brücke é contratado para decorar uma capela construída especificamente para a

ocasião. Também se há de ressaltar a importância atribuída aos trabalhos de Van 31 BEHR, Sulamith. Expressionismo. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2000.

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Gogh, e uma retrospectiva do artista norueguês Edvard Munch, o que indica já a

tentativa de firmar uma linhagem específica norte-européia para o movimento, em

oposição à França. A arte alemã do início do séc. XX é a comumente chamada

Expressionista, mas este na verdade é um movimento europeu com dois centros

distintos: o dos fauves (feras), francês, e o alemão da Die Brücke. Ambos se

formaram em 1905 e desembocam respectivamente no cubismo, na França, e na

corrente Der Blaue Reiter (1911), na Alemanha. A origem comum é a tendência

antiimpressionista gerada no cerne do próprio impressionismo (Gauguin,

Toulouse-Lautrec, Van Gogh, Munch, Ensor), como consciência e superação de

seu caráter essencialmente sensorial.

Na definição de G. C. Argan, expressão significa, literalmente, o contrário

de impressão. Este é um movimento do exterior para interior, da realidade para

consciência. A expressão é o inverso: é o sujeito que, por si, imprime o objeto. É a

posição oposta de Cezanne, assumida por Van Gogh. Diante da realidade, o

expressionismo é “volitivo”, o impressionismo é sensitivo.

O Expressionismo se põe como antítese do impressionismo, mas o

pressupõe: ambos são movimentos realistas, que exigem a dedicação total do

artista à realidade, mesmo que o primeiro a resolva no plano do conhecimento, e o

segundo no plano da ação. Porém, a hipótese simbolista de uma realidade para

além dos limites da experiência humana, transcendente, é descartada em ambos. A

partir daí, esboça-se a oposição entre uma arte engajada, que tende a incidir

profundamente sobre a situação histórica, e uma arte de evasão, que se considera

superior à história. A tendência expressionista coloca o problema da relação

concreta com a sociedade, a questão da comunicação.

O movimento nasce não em oposição às correntes modernistas, mas no

interior delas, como superação de seu ecletismo, discriminação entre impulsos

autenticamente progressistas, por vezes subversivos, e a retórica progressista,

enfim, como concentração da pesquisa sobre o problema específico da razão de

ser e da função da arte. Do cosmopolitismo do art nouveau, pretende-se passar a

um internacionalismo mais concreto – não mais fundado na utopia do progresso

universal (negada pelo socialismo “científico”), e sim na superação dialética das

contradições históricas, começando naturalmente pelas tradições nacionais. A

obra de Cézanne, segundo Argan, coloca uma questão interessante: se o horizonte

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da arte coincide com o da consciência, não podem mais existir perspectivas

históricas unívocas. Mas Van Gogh, que também começava a ser conhecido,

identificava a arte com a unidade e totalidade da existência, sem distinção possível

entre sentido e intelecto, matéria e espírito. A solução vem com Nietzsche: para

ele, a consciência é a existência, mas esta é entendida como vontade de existir em

luta contra a rigidez dos esquemas lógicos, a inércia do passado que oprime o

presente, a negatividade total da história.

Ainda que ligados às tradições nacionais, não são movimentos

intencionalmente nacionalistas: toma-se consciência das tradições com o desejo

de superá-las, para dar origem a uma arte historicamente européia. A corrente

Brücke não teria nascido se a cultura alemã, no decorrer do sec. XIX, não tivesse

elaborado uma teoria da arte na qual o Impressionismo se enquadrava pelo que

realmente era: não um naturalismo banal, mas rigorosa pesquisa sobre o valor da

experiência visual como momento primeiro e essencial da relação entre sujeito e

objeto – fundamento fenomênico, não mais metafísico, da consciência.

A exigência fundamental é a solução dialética e conclusiva da contradição

histórica entre clássico e romântico, o primeiro visto como constante duma cultura

latino-mediterrânea; o segundo de uma cultura germano-nórdica. Decerto, o meio

cultural estético de muitos destes artistas encontrava-se impregnado das tradições

nórdicas, de tal forma que podemos citá-los como herdeiros de tais questões, com

as quais iriam dialogar. Para os artistas da Brücke, a solução é um romantismo

entendido como condição profunda, existencial do ser humano: a ânsia de possuir

a realidade, mas a angústia de ser arrastado e possuído pela realidade que se

aborda. Cada uma das correntes tende a carregar em si e resolver as exigências da

outra; superar os conteúdos históricos, contudo, não significa colocar-se fora e

acima da história, e sim sentir que uma história moderna não mais pode ou deve

ser uma história de nações. Então, excluída a referência à herança do passado, a

não ser para superá-la, a razão histórica comum dos dois movimentos paralelos é

o compromisso de enfrentar resolutamente, com plena consciência, a situação

histórica presente. Mas aqui que se abre a discrepância em relação a uma

sociedade que preferia, em geral, não a conciliação, mas o recrudescimento da

divergência entre cultura latina e germânica, inclusive para justificar por motivos

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ideológicos a disputa pela hegemonia econômica e política na Europa, que logo

conduziria à Guerra.

Die Brücke é uma formação compacta, verdadeira comunidade de artistas

com programa escrito, que não diferia muito do da Werkbund. Principais

expoentes são: Kirchner, Heckel, Nolde, Schmidt-Rottluff, Müller, e o escultor

Barlach. Propõe a união dos “elementos revolucionários em efervescência” num

embate anti-impressionista (combate-se mais o reflexo pálido que este movimento

obteve na Alemanha do que a vertente francesa). “Ao realismo que capta,

contrapõe-se um realismo que cria a realidade. Para ser criação do real, a arte deve

se despojar de tudo que existe anteriormente à ação do artista, que precisa

recomeçar a partir do nada. E sua experiência de mundo não difere, na origem, da

de qualquer outra pessoa: os temas expressionistas costumam estar ligados à vida

cotidiana – mas em suas obras pode-se perceber incômodo, certa rudeza, como se

o artista nunca tivesse pintado antes em sua vida. Há uma recusa da linguagem já

constituída, a expressão se dá de modo penoso, sem nuances” (ARGAN, 1992,

p.). Argan justifica tais fatos dizendo que na origem da linguagem, há apenas sons

que assumem um significado. O Expressionismo alemão pretende ser

precisamente uma pesquisa sobre a gênese do ato artístico: no artista que o

executa e, logo, na sociedade a que ele se dirige.

Figura 9 – Dançarinas (1909, xilogravura) Ernst Ludwig Kirchner

O objetivo final dos expressionistas era a chamada Neue Mensch,

aparentemente um ideal inalcançável, mas nem por isso menos discutido pela

literatura do período. Não faltam também temas ameaçadores à humanidade, com

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aspectos que atribuem sensibilidade a objetos inanimados, que adquiriam vida por

conta própria. O mais importante traço do Expressionismo, porém, era a premissa

de que a experiência da realidade é de natureza subjetiva. Em vez de imitar a

realidade externa, sobressaía a expressão da verdade latente das coisas, através da

distorção das formas externas. Em linhas distorcidas e cores não-naturalistas; as

imagens expressionistas primavam pela eclosão de realidades interiores

transformadas em fatos públicos.

Apesar de seu complexo programa estético, os expressionistas não possuíam

plataforma política coesa e bem-fundamentada. Os adeptos do movimento não

tinham um programa objetivo para salvar o mundo – apenas uma vaga esperança

em sua cura.

Se não se parte da representação no sentido clássico da mímeses, mas da

ação, a questão da técnica torna-se primordial. Para os artistas impressionistas, a

técnica era o meio com que se representa uma imagem. Mas se a ação deve ser

criativa, a imagem não pode preexistir à ação: ela se faz, e ao se fazer tem-se uma

técnica. Este é um ponto fundamental, pois explica a orientação ideológica

populista do movimento. A técnica não é pessoal ou inventada, é trabalho, e por

isto se liga mais às classes trabalhadoras e sua cultura prático-operacional do que

à cultura especulativa, intelectual, das classes dirigentes.

Assim, se o trabalho industrial obedece a leis racionais, o trabalho do artista

como momento supremo da cultura do povo é necessariamente não-racional.

Nasce da experiência de uma longa práxis, que acabou por se traduzir em atitude

moral. Desta forma, explica-se a importância dada às artes gráficas, à xilogravura:

não se compreende a estrutura da imagem pictórica dos expressionistas alemães

sem se procurar suas raízes nas gravuras em madeira. A técnica da xilogravura é

arcaica, artesanal, popular, profundamente arraigada na tradição ilustrativa alemã

– é um modo habitual de expressar e comunicar por meio da imagem. E a

identidade entre expressão e comunicação é importante, pois aquela não é

misteriosa mensagem que o artista anuncia profeticamente ao mundo, mas

comunicação de um homem ao outro. Na xilogravura, a imagem é produzida

escavando-se matéria sólida, resistente; depois se espalha tinta sobre o relevo da

figura e, finalmente, imprime-se em papel. A imagem conserva os traços destas

operações manuais (atos de violência contra a matéria) na escassez parcimoniosa

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do signo, na rigidez e angulosidade das linhas. A cor na pintura, o bloco na

escultura, não constituem um meio para manifestar as imagens, mas uma matéria

que, sob a rude ação da técnica, torna-se imagem.

Se a obra materializa a imagem, não é necessário que o pintor escolha as

cores segundo um critério de verossimilhança. É um processo de atribuição de

significado através da cor, análogo àquele pelo qual, na imagerie popular, o diabo

é vermelho ou verde, ou o anjo é azul. Esta atribuição implica um juízo, uma

postura moral ou afetiva em relação ao objeto a que se aplica; como o juízo se

apresenta à percepção juntamente com o objeto, ele se manifesta como

deformação do objeto. Daqui concluímos que a deformação expressionista, que

chega a ser virulenta, não é deformação ótica, mas sim determinada por fatores

subjetivos (a intencionalidade com que se aborda a realidade presente) e objetivos

(identificação da imagem com uma matéria resistente). Os artistas adotam como

ponto de referência a arte dos primitivos, mas não vêem nos fetiches negros, por

exemplo, símbolos de mitos remotos de civilizações mais autênticas, nem muito

menos a liberação do signo das regras de representação como no cubismo, mas o

trabalho humano em seu estado puro ou de plena criatividade: o escultor talha um

tronco de árvore, impondo-lhe um significado, um deus em pessoa, não sua

imagem. Trata-se da identificação da totalidade do sagrado com um fragmento da

realidade.

É um processo ambíguo, como toda a poética expressionista, até porque a

própria condição existencial do homem é considerada ambígua. A deformação

expressionista não é, como bem esclarece Argan, caricatura da realidade; antes, é

a beleza que, passando da dimensão do ideal para o real, inverte seu próprio

significado, torna-se fealdade, mas sempre conservando seu cunho de eleição.

Devido a esta beleza quase demoníaca da cor, que quase sempre vem

acompanhada de figuras “feias” (segundo os cânones acadêmicos), a imagem

adquire força decisiva, como se realmente já não pudesse existir pensamento para

além dela.

A poética expressionista, sempre idealista, é a primeira poética do feio,

tomado como o belo decaído, degradado. A condição humana, para os

expressionistas, é a do anjo decaído. Há algo de demoníaco, sobrenatural.

Portanto, há um duplo movimento: queda e degradação do princípio espiritual

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que, ao se tornar fenômeno, une-se ao princípio material; ascensão e sublimação

do princípio material para unir-se ao espiritual. Tal conflito, tipicamente

romântico, diga-se, determina o dinamismo, a essência dionisíaca, orgiástica e

trágica, da imagem e seu duplo significado de sagrado e demoníaco (ARGAN,

1992, p. )

A polêmica social deste movimento não se limita à renuncia do artista de

sua condição de intelectual burguês em favor da condição de trabalhador, homem

do povo. A burguesia é denunciada como responsável pela inautenticidade da vida

social, pelo fracasso das iniciativas humanas (negatividade nietzscheana da

história). Se para existir é preciso vontade, lutar para isto é sinal de que há no

mundo forças negativas que se opõem à existência. O mecanismo do trabalho

industrial é anti-criativo, portanto destrutivo, pois a existência é auto-criação. Tal

mecanismo destrói a sociedade, dilacerando-a em classes exploradoras e

exploradas; destrói o sentido do trabalho humano, separando concepção e

execução; acabará por destruir, com a guerra, toda a humanidade.

Por isto, é necessário começar de novo, e esta orientação nos mostra o

porquê da recorrência do tema do sexo. A relação homem-mulher funda a

sociedade, mas esta a deforma e torna perverso, negativo, alienante. A sociedade

industrial se debate sem saída na alternativa entre a vontade de poder e o

complexo de frustração: apenas com a condenação total do trabalho não-criativo

imposto à humanidade é possível brotar uma nova civilização. Somente a arte,

como trabalho criativo, poderá realizar o milagre de converter em belo o que a

sociedade perverteu em feio. Daí o tema ético fundamental da poética

expressionista: a arte não é apenas desavença da ordem social constituída, mas

também vontade e empenho de transformá-la. É, portanto, um dever social, uma

tarefa a cumprir.

O grupo Die Brücke dissolveu-se em 1913, quando o novo grupo Der blaue

Reiter já havia iniciado a pesquisa em sentido não-figurativo. Quase se opondo a

esta orientação menos engajada na problemática social, agudizada pela derrota na

guerra, forma-se a corrente – ainda tipicamente expressionista – da Nova

Objetividade, que quer apresentar uma imagem atrozmente verdadeira da

sociedade alemã do pós-guerra, sem os véus idealizadores da “boa pintura” ou

literatura. Seus maiores expoentes são Max Beckmann, Otto Dix e Georg Grosz.

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Dix foi para a pintura o que Remarque, com seu “Nada de novo no front”, foi para

a literatura: um expositor lúcido e quase fotográfico das misérias, infâmias, da

enorme estupidez da guerra.

As conotações mais notadamente germânicas do movimento foram

percebidas e registradas em meados de 1914, ano em que o crítico Paul Fechter,

em seu livro Der Expressionismus, empregou o termo ao trabalho dos artistas do

Brücke e ao grupo responsável pela revista Der Blaue Reiter.

Esse termo continuaria a ser usado para definir o trabalho de artistas como o

austríaco Oskar Kokoschka, e o pintor alemão Max Beckmann, que traduz suas

experiências traumáticas durante a Primeira Guerra em auto-retratos distorcidos e

cenas, como a angustiante visão de tortura e assassinato em seu quadro “A Noite”

(1918-19). Mais tarde, suas pinturas versaram sobre performáticos de circo, com

ele mesmo representado como um palhaço ou rei, refletindo a ansiedade causada

pelos eventos sociais do contexto sócio-político de então. Fechter desprezava

associações cosmopolitas e estetizantes para o termo “expressionismo”,

investindo-o de significados anti-intelectuais, emocionais e espirituais – suprindo

uma assim chamada necessidade metafísica do povo germânico. Seu livro se valia

bastante da tese acadêmica de Wilhelm Worringer, intitulada Formprobleme der

Gotik (1911), que construía uma história da identidade artística alemã baseada nos

traços anti-clássicos do passado gótico germânico. A própria capa do livro contém

uma ilustração de um santo, feita por Max Pechstein, de modo que a figura

adequava-se à tentativa de associar o Expressionismo às estilizações distorcidas

desta tradição.

Durante a Primeira Guerra, o movimento ganha maior consistência

conceitual, o que se percebe com o lançamento do livro também intitulado

Expressionismus, do crítico e dramaturgo austríaco Hermann Bahr, no qual se

reafirma a oposição entre Impressionismo e Expressionismo, dizendo ter este um

antídoto necessário à ordem e complacência burguesas. Citando Worringer, Bahr

via a produção artística contemporânea como um reflexo do desespero da época.

“As misérias clamam, o homem grita por sua alma, o tempo é um só grito de

agonia” (BEHR, 2000, p. ).

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Depois da perda da Guerra e da proclamação da República, em 1919, o

crítico de arte Herbert Kuhn, reafirmando a poética da integração entre arte e vida,

declara que tanto o Expressionismo quanto o Socialismo representam um só grito

contra o materialismo, o não-espiritual, a máquina, situando-os a favor de Deus,

da humanidade e do homem. Como ressalta Roger Cardinal, “Nesse sentido, o

significado da guerra para o movimento expressionista foi o fato de ter forçado o

artista a passar de um modelo do sujeito como único sofredor para um em que o

sujeito sofre em uníssono com os outros. Dessa forma, a inquietação egoísta e

metafísica começa a modular-se numa preocupação raivosa em relação às outras

pessoas” (CARDINAL,1984, p. 47). À medida, porém, em que as tendências

contra-revolucionárias começaram a tomar conta de Weimar, o expressionismo se

mostrou incapaz de fornecer uma plataforma política efetiva, a desilusão se

instalou no cerne do movimento.

Agora, falando mais especificamente e definindo os grupos influentes

dentro do movimento expressionista, pode-se dizer que, em 1905, um grupo de

pintores estabelecidos em Dresden, auto-intitulado Die Brücke, sentiu o desejo de

injetar vigor jovem e energia na prática da pintura, de forma similar aos Fauvistas

na França. O grupo admira Van Gogh, o norueguês Edvard Munch (1863-1944),

bem como a arte de culturas não-ocidentais, particularmente a África. O contato

com a arte tribal deste continente, além da proveniente da Oceania, provoca

significativas mudanças na prática do grupo. Para o Brücke, tais manifestações

atingiram uma espécie de expressividade desimpedida, e eles mesmos, na

privacidade de seus ateliês, podiam resistir aos impedimentos de ordem moral da

sociedade do período, evocando nestes locais a união primitiva dos sexos na

natureza. A presumida inocência da criança e sua espontânea linguagem corporal

também são importantes para estes pintores, desejosos de livrarem-se das

convenções artificiais. Artistas como Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938) e Karl

Schmidt-Rottluff (1884-1976) pintam retratos e paisagens em cores brilhantes,

com formas largas e simplificadas, nus em cenários ao ar livre, sugerindo um

retorno à natureza e às origens básicas. Emil Nolde (1867 – 1956), associado ao

grupo por alguns meses, usa formas distorcidas e combinações furiosas de cores

para explorar suas próprias crenças religiosas. Em 1913, o grupo separa-se.

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A pintura como um meio de comunicar experiências e emoções pessoais –

uma questão central aos expressionistas – manifesta-se de forma mais sutil e

controlada no trabalho de um grupo localizado em Munique, chamado Der Blaue

Reiter. Em um almanaque (BEHR, 2000) publicado em 1912, os artistas,

incluindo Franz Marc (1880-1916), Wassily Kandinsky (1866-1944) e Paul Klee

(1879-1940), mostram sua visão de novos caminhos para a auto-expressão,

incluindo aí arte, design, poesia e música.

Figura 10 - Blaues Pferd I (1908) Franz Marc

A pintura de Kandinsky, inspirada pelo Fauvismo, começa a focalizar mais

a força lírica da cor e suas pinceladas, procurando comunicar-se ao espectador de

forma direta e espontânea, da mesma maneira que a música. Seus trabalhos de

1910 a 1914, como a Improvisação n° 23, são consideradas as primeiras pinturas

abstratas do século XX (BEHR, 2000):.

In one of the most ambitious of these apocalyptic fantasies, Little Pleasures (1913), Kandinsky, […] was directly inspired by the theosophist Rudolpf Steiner´s new interpretations of the Book of Revelation, wich, like Marc´s paintings of universal catastrophes, presented such destruction as a purifying Wagnerian immolation, from wich a more enlightened state of experience would emerge.

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Klee, por sua vez, explora o sentido evocativo da cor, o que é reforçado

em uma viagem à Tunísia em 1914. Neste período, predominam telas em pequena

escala de paisagens exóticas, naturezas-mortas e figuras, tudo pintado de forma

esquematicamente mágica e infantil, um estilo que ele descreveu como “taking a

line for a walk” (BELTON, 2002, p. 19).

4.1 A QUESTÃO DA NATUREZA

Na virada do século XIX para o XX, grandes parcelas da população alemã,

inspiradas por questões místicas e novos cultos, procuram celebrar o retorno à

natureza como uma espécie de religião, pois os poderes de cura daquela tomaram

um novo significado. O trabalho exaustivo nas fábricas e a frustração da vida nas

cidades poderiam ser remediados através do contato com o mundo natural.

Para vários artistas do Brücke, como Max Pechstein, Kirchner, Schmidt-

Rottluff e alguns outros, a paisagem e o modelo nu em ambientes abertos

resumiam este interesse e celebração. Durante os verões, eles viajavam através da

Alemanha, freqüentando praias do Mar Báltico e lagos perto de Dresden, entre

outros locais. Eles procuram mostrar figuras humanas imersas em ambientes

naturais, paisagens pacíficas, cenas habitadas por ciganos, ou panoramas idílicos

repletos de homens e mulheres nus, cabriolando entre árvores, rios e córregos.

Em contraste com pesadas composições acadêmicas, estes artistas

desenham e pintam vigorosamente, capturando as imagens com cores intensas e

pinceladas espessas em composições que subvertem idéias tradicionais da

moralidade burguesa e desafiam convenções sociais. As figuras passeiam,

bronzeiam-se entre dunas, nadam e brincam. Parecem estar em seu habitat natural.

Cores e formas são fundidas da mesma maneira que o homem parece fazer parte

da natureza.

Já para Kandinsky e os artistas do Blaue Reiter, paisagens não eram

representações literais da natureza, transformando-se em elementos cósmicos, nas

quais as cenas estão repletas de alusões de objetos familiares, como montanhas,

torres, igrejas, cavalos etc. Dizia Kandinsky que aqueles artistas partiam

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[...] from the belief that the artist, apart from the impressions he receives from the external world, nature, continually collects experiences within an inner world. We search for artistic forms that reveal the penetration of these collected experiences, for forms that must be freed from all irrelevance, in order to forcefully express that which is essencial, in short, for artistic synthesis32

Retirando-se para Murnau, uma cidade no sul da Alemanha, em 1908, o

estilo de Kandinsky imediatamente começa a mudar. Da paisagem da cidade, o

artista retira as formas essenciais que usara na planificação de suas composições,

exagerando os ritmos que dançam por toda tela, usando linhas poderosas e

pintando com cores fortes; assim, seus trabalhos repercutem tensão espiritual, suas

paisagens contêm uma força capaz de libertar o familiar de seu contexto

reconhecível.

Figura 11 – Little Pleasures (1913) Wassily Kandinsky

Franz Marc, por sua vez, vê a natureza de forma filosófica, sempre

atentando para “[...] intensify my feeling for the organic rhythm off all things; I

seek pantheist sympathy with the vibration and flow of the blood of nature – in

the trees, in the animals, in the air” (BARRON; WOLF-DIETER, 1997).

Marc anseia expressar sua verdade interior, porém percebe que desenhar

diretamente da natureza não o permitia efetuá-lo. Por isso, ele confia à sua 32 Apud BARRON, Stephanie, WOLF-DIETER, Dube. German Expressionism: Art and Society. New York: Ed. Rizzoli, 1997.

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imaginação a construção de imagens puras, como formas animais que lhe parecem

paralelas às da natureza. Num esforço de comunicar o simbolismo e mistério do

mundo natural, o artista simplifica as formas de suas composições. Ele submete

estes elementos a tal conversão formal que parecem funcionar de forma

puramente pictórica. Animais e nus não estão mais em casa na natureza, mas são

inventadas sobre ela – aqui, mais uma vez, fica clara a proposta expressionista de

não copiar ou, simplesmente, retratar a natureza, mas sim recriá-la, de acordo com

a imaginação e o mundo interior do artista.

Pode-se traçar uma linha entre Românticos e Expressionistas no que diz

respeito ao tema da representação da Natureza como um todo orgânico. Uma vez

que se assume possível o contato espiritual do artista Expressionista com um

fenômeno da natureza, é de se esperar que ele busque a forma que melhor lhe

caiba para exprimir este sentimento “transbordante e irreprimível” (CARDINAL,

1984, p.73). Ele pode, então, contar com um modelo neo-romântico da criação

orgânica, ou partir para a abstração – o que, no fundo, não deixa de ser uma etapa

posterior da mesma coisa.

O modelo de criação orgânica, segundo Roger Cardinal (1984, p.73),

[...] origina-se no período romântico e, em particular, dos ensinamentos da filosofia da natureza e das teorias científicas de Goethe. As idéias deste último em relação à morfologia do mundo físico representaram um impulso fundamental para a visão romântica de organicidade. Goethe vê a natureza como uma profusão de formas aparentemente incontáveis, porém afirma que essa prolixidade pode ser reduzida a um pequeno número de padrões arquetípicos.

A questão é que, mesmo existindo milhares de espécies de plantas no

mundo, por exemplo, existe um princípio morfológico fundamental que rege a

todas. Haveria, então, uma Urpflanze, ou a planta que geraria a noção para todas

as outras33. A partir daí, desenvolve-se uma forma de percepção criativa, na qual o

sujeito busca, no objeto particular, a forma ou configuração elementar que

exacerba sua origem arquetípica. Cada paisagem pode, então, ser um emblema de

todas as paisagens. Indo mais a fundo nesta analogia, os artistas românticos

33 Aqui, fica claro o idealismo presente no pensamento romântico; idealismo este que se refletiria nas proposições expressionistas. Adentrar a discussão sobre uma melhor definição deste idealismo, porém, foge à alçada deste trabalho.

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afirmam que cada fenômeno isolado seria um repositório microcósmico de uma

rede de uma trama de relações que governa a natureza. O artista deixa vir à tona,

por conseguinte, energias elementares, que se traduzem na tela sob pinceladas

sincronizadas às pulsações naturais. É nessa sincronia sinestésica que o artista

acredita poder se resintonizar com a unidade perdida. O processo, por

conseqüência, passa a ser mediado principalmente pelo instinto e intuição, em

detrimento do intelecto.

Encontramos ressonância deste ideal romântico na obra de vários artistas

Expressionistas, como Wols ou Alfred Kubin, e suas intenções de trabalhar em

uníssono com as leis da natureza só reforçam tal ideal, o que nos chama a atenção

para o fato de que suas pinturas não remetem diretamente ao mundo

fenomenológico. Ainda que mesmo no período Romântico a estilização não

estivesse descartada, e um bom exemplo disto é o próprio Friedrich, que pintava

paisagens que sintetizavam percepções coletadas ao longo do tempo, as pinturas

remetiam a paisagens reais, diferentemente de imagens de Wols ou Kubin, por

exemplo. Em que medida se pode dizer, então, que os pintores expressionistas são

fiéis às noções românticas de organicidade, já que assumem o não-figurativismo?

A resposta pode estar no contexto vivido pelos novos artistas, bastante

diferente daquele que influenciara a criação dos ideais Românticos. A Física, por

exemplo, havia mudado bastante, através da elaboração de um conjunto de

princípios diferentes para a compreensão das formas e dos fenômenos materiais.

As teorias correntes nas primeiras décadas do séc. XX apoiavam-se na proposição

fundamental de que a massa é uma forma de energia; todos os objetos são

formados por pulsações atômicas, ou seja, impulso e vibração. Os movimentos da

arte moderna, por seu turno, estavam liberando o signo plástico da morfologia da

natureza, tornando-os puros elementos formais. O expressionista, agora, pode ser

impelido a pensar que a sintonia com o processo natural significa cultivar uma

relação espiritual com as forças invisíveis que regulam o mundo – o que acarreta

numa mudança, um ajuste da linguagem, do signo pintado, que desemboca na

abstração.

O próximo capítulo procurará discutir as ilações entre esses princípios

estéticos, característicos do Expressionismo, especialmente no que tange à sua

visão de natureza, e o cinema alemão dos anos 20, através da análise do filme

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Nosferatu de F. Murnau. Em outras palavras, a análise irá considerar os elementos

da visão romântica e da visão expressionista presentes neste filme.

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5 O cinema alemão dos anos 20

“C´était pendant l´hiver de l´année de guerre 1916, en Serbie. J´avais été affecté avec quatre autres compagnons de malheur à un ‘commando d´épouillage’ (que mês belles lectrices me

pardonnent!). Nous devions, si j´ose dire, couper l´herbe sous les pieds d´un début d´épidémie de typhus exanthématique. C´était tout simple, au fond. Armés de tondeuses gros calibre, nous

tombions à bras raccourcis sur les longues tignasses des habitants, ce qui n´allait généralement pas sans bagarre. Mais là n´est pas l´important.

La flamme vacillante d´une lampe qui brûlait lentement jetait dês ombres fantomatiques dans les profondeurs de la pièce qui nous servait de cantonnement. Or donc, nous étions assis tous lês cinq autour d´um gigantesque foyer entouré d´une maçonnerie, et nous fumions notre tabac de

feuilles de hêtre en méprisant la mort et en regardant fixement devant nous d´um air mélancolique. Tout à coup, un de mes camarades – l´esprit encore impressionné par notre

besogne de la journée – lança dans la pénombre une question lourde de sens. ‘Savez-vous que nous sommes tous plus ou moins tourmentés par des vampires?’”34

Albin Grau

A historiografia do cinema alemão nos permite dizer que, desde cedo,

realizadores como Oskar Messter, que fez mais de cem filmes, ou Max e Emil

Skladanowsky, que promoveram uma demonstração pública de imagens em

movimento, ainda em novembro de 1895, em Berlim, já sabiam das possibilidades

artísticas e comerciais da nova mídia. Não estavam aptos, porém, a levantar uma

indústria, com suas próprias forças, pois nos primórdios do cinema, o mercado

alemão encontrava-se dominado por filmes franceses, italianos, holandeses. Os

primeiros filmes de tema fantástico, como O Estudante de Praga (1913), de Paul

Wegener, ou Eine venezianische Nacht (1914), de Max Reinhardt, não tiveram

sucesso logo de início.

O filme alemão experimentou um incremento econômico por causa do

isolamento causado pela Primeira Guerra Mundial, quando o cinema foi

encorajado a fazer sua contribuição patriótica aos esforços de guerra. Os homens

que estavam então no poder, como o general Ludendorff, rapidamente

reconheceram o potencial do cinema para a propaganda, e houve um esforço

efetivo de concentração econômica para o surgimento de uma indústria.

A fundação da Universum Film AG (UFA), em 1917 – ou seja, ainda

durante a guerra -, que contou com a colaboração do Deutsches Bank, foi um dos

mais importantes passos na história da indústria do cinema alemão. Em

retrospecto, pode até parecer, a alguns, paradoxal: uma indústria que devia sua

34 GRAU, A. Vampires. Texto publicado em Bühne und Film, 1921, nº 21. In BOUVIER

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existência aos propagandistas comprometidos com esforços de guerra produziria,

por outro lado, um dos maiores momentos artístico, talvez único, na história do

cinema alemão. Com efeito, o surgimento do cinema historicamente consagrado

como expressionista e suas obras mais importantes estão particularmente ligadas à

UFA, que se coadunava às idéias do cineasta Ernst Lubitsch: quanto maior e mais

custosa fosse uma produção, melhor. Só assim, talvez, a Alemanha pudesse

empreender um esforço para competir com a incipiente indústria americana.

Alguns dos trabalhos mais importantes desse cineasta são: “Os Olhos da

Múmia” 1918, “Madame Du Barry” 1919, e Anna Boleyn (1920), e ele se

transformou em um dos grandes cineastas consagrados pela historiografia do

cinema alemão, alternando comédias de ficção e grandes produções de dramas

históricos; conseguiu grande sucesso internacional em ambos os gêneros. Em

1923, como mais tarde aconteceria com Murnau, Ernst Lubitsch foi contratado

por Hollywood.

A crise que atravessa o domínio do positivismo em relação à paisagem

natural e a autoridade política da burguesia marca fortemente esta geração de

cineastas e seus filmes, expressando uma busca da “realidade”, e o desejo de

encontrar um real intensificado. O povo, de forma geral, compartilha miseria

física e espiritual; o sentimento de depressão se faz cada vez mais notório ante a

derrota militar. Por isto a arte, e especificamente o cinema, refletem este ethos,

com uma estética que se manifesta em termos de obscuridade, loucura e morte.

Neste caso, torna-se imperativo falar daquele que é hoje o filme-emblema do

expressionismo no cinema, “O gabinete do Dr. Caligari” de Robert Wiene,

(1919). Alguns dos precursores do cinema expressionista são “O Estudante de

Praga” e “O Golem”, de Paul Wegener. Mas é o filme de Wiene que se

fundamentam as bases do que, inclusive, se convencionou chamar “caligarismo”,

uma forma de nomear a estética expressionista no cinema. Aqui, podemos

encontrar cenários pintados à mão, decorados de forma a identificar o estado de

ânimo dos personagens através de suas diferentes formas. A influência de seus

decoradores e figurinistas Reinman, Röhrig, Hermann e Warm, marcam uma

audacia plástica indiscutível em termos de cinema. As sombras formam parte de

uma iluminação fantasmagórica, plena de claro-escuros, que demandavan

personagnes exageradamente maquiados, característica que também tinha como

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intenção reforçar sua expressão e qualidades. Por outro lado, o figurino bastante

extravagante também contribui a esta tarefa.

Um aspecto positivo da forma de dirigir de Wiene é o controle sobre o

raccord e a continuidade da ação, e a coragem de articular uma estrutura

dramática complexa. Por esta intenção e por seus recursos estéticos, podemos

supor que este filme compreende uma evolução na linguagem cinematográfica, já

que se tratava de um momento de transição entre um modelo de narração e

filmagem primitiva, próprio dos primórdios do cinema, e uma nova linguagem

cinematográfica mais desenvolvida, cujo principal iniciador fora o americano DW

Griffith.

O argumento de que seria uma premonição do que estaria por vir na

Alemanha é inverossímil, mas certamente o filme está impregnado pelo contexto

de desconfiança política e das autoridades: não é demais lembrar que o argumento

apresenta a história de um doutor que hipnotizava seus pacientes para cometer

todo tipo de crimes.

A experiência apocalíptica da Primeira Guerra tiveram efetiva influência em

uma nova geração de artistas. Os anos que se seguem ao conflito são de

reorganização, depois da queda do sonho imperialista; a inquietação própria dos

alemães atinge proporções enormes. Este povo parece nutrir certa afeição a forças

obscuras, misticismo e magia, sentimento que recrudesceu após a derrota de 1918,

e todas as mortes nos campos de batalha. Os meandros e as intenções do

movimento Expressionista já foram abordados no capítulo anterior, basta ressaltar

o fato de que a miséria e a preocupação constante com o dia seguinte colaboraram

para que os artistas alemães se atirassem neste movimento que, a partir de 1910,

fazia tabula rasa de princípios que configuravam como base para a arte.

O primeiro grande filme expressionista, para a quase totalidade dos críticos

e estudiosos contemporâneos do meio cinematográfico, é O Gabinete do Dr.

Caligari, dirigido por Robert Wiene e lançado em 1919. O enredo do filme

baseia-se na história de um homem, cujo amigo é morto por um sonâmbulo que

obedece aos comandos do Dr. Caligari. Posteriormente, descobre-se que o tal

assassino é também o diretor de um hospício. No fim do filme, porém,

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descobrimos que tudo não passa de delírios, e que o narrador é, na verdade,

interno em um manicômio.

Figura 12 - Plano de “O Gabinete do Dr. Caligari”, de Robert Wiene (1919)

Figura 13 – Plano do mesmo filme, demonstrando a forte estilização expressionista do cenário

Os anos 1920 foram extremamente proveitosos para a arte alemã, e com o

cinema não foi diferente. Max Reinhardt, que em 1903 havia se tornado o diretor

do Deutsches Theater em Berlim, teve enorme responsabilidade neste

desenvolvimento artístico, pois uma geração inteira de diretores cinematográficos

e atores começou suas carreiras no palco de Reinhardt, inclusive Murnau. A

aproximação do dramaturgo com a direção, sua forte estilização, seu uso da luz no

palco, sua composição de cena com grande número de atores teve influência

decisiva não só no teatro, mas também no cinema alemão.

O tema da morte, uma constante temática expressionista, era quase

onipresente nos filmes deste período.

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5.1 Ficha técnica do filme Título Original: Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens

Gênero: Terror

Tempo de Duração: 80 minutos

Ano de Lançamento (Alemanha): 1922

Estúdio: Prana-Film

Distribuição: Film Arts Guild

Direção: F.W. Murnau

Roteiro: Henrik Galeen, baseado em livro de Bram Stoker

Produção: Enrico Dieckmann e Albin Grau

Direção de Fotografia: Günther Krampf e Fritz Arno Wagner

Desenho de Produção: Albin Grau

Elenco: Max Schreck, Gustav von Wangenheim, Greta Schröder, Alexander

Granach, Georg Heinrich Schnell, Ruth Landshoff, John Gottowt, Gustav Botz,

Max Nemetz, Wolfgang Heinz, Albert Venohr, Guido Herzfeld, Hardy von

François

5.2 Sinopse do filme e primeiras considerações

Na primeira metade do século XIX, Hutter, um empregado da agência

estatal, é mandado por seu chefe, Knock, numa viagem para a Transilvânia, com o

intuito de vender uma casa em sua cidade natal ao Conde Orlock. Durante a

jornada, há sinais de um desastre iminente. No castelo do Conde, Hutter descobre

que este é o vampiro Nosferatu, e o faz através de um velho livro. A noiva do

rapaz, Ellen, de alguma forma parece protegê-lo à distância das garras do

vampiro, que acaba descobrindo uma foto da bela jovem. Nosferatu e Hutter

empreendem viagens separadas, mas simultâneas, para a cidade de Wisborg (ou

Bremen, dependendo da versão do filme), e o vampiro traz consigo a peste. Ellen

sacrifica sua vida para salvar o lugar e as pessoas que ali vivem.

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Nosferatu, filmado pelo diretor Friedrich Wilhelm Murnau, nascido

Friedrich Wilhelm Plumpe, marca o início de uma longa série de produções que

têm como tema a famosa personagem do livro Drácula, de 1897, cuja autoria é do

irlandês Bram Stoker. O livro narra a história de um conde/vampiro dos Cárpatos

que deseja adquirir uma casa em Londres, e tem como mote central a caça ao

monstro, perpetrada por um grupo de amigos. Procedente da era vitoriana, trata-se

de um dos mais famosos exemplares da literatura gótica, ao lado do romance

“Frankenstein”, de Mary Shelley.

O filme foi produzido pela companhia berlinense Prana GmbH, que não

possuía os direitos sobre o livro. A estética do gótico se traduz para o cinema, e

em boa medida podemos vê-lo em Nosferatu, particularmente, em sua forma

fílmica e temática. Caracteriza-se por recriar espaços funestos e escassos, onde

arquitetura e paisagens estão “colmados de formas con bordes difuminados y una

iluminación difusa (...) que proyecta sombras aterradoras y crean una impresión

de irrealidad.”35

A temática gótica identifica-se com motivos específicos, como sonhos

perturbadores, amores desesperados e a romantização melancólica da morte. Tais

elementos, conforme apuramos, estão realmente presentes na narrativa do filme

ora analisado

A grande historiadora do cinema alemão, Lotte Eisner (1985), ressalta em

seu livro a questão do encantamento alemão por tais lendas de terror, também

chamadas Märchen, que remontam a períodos pré-românticos inclusive, como

mostra um romance de Karl Phillip Moritz, do séc. XVIII, no qual um garotinho

brinca de representar a degradação do corpo que a morte trará. E.T.A. Hoffmann,

em seu conto Sandmann, apresenta um rapazinho que também se compraz em

ouvir histórias de um homem que arranca os olhos de crianças que não dormiram,

para dar de comer a seus filhos.

Esta poderia, certamente, configurar como uma boa razão para a escolha de

uma história como a de Bram Stoker em uma adaptação cinematográfica, pois

representa simultaneamente um aspecto tradicional da cultura alemã, que remonta

a séculos anteriores – como o período Romântico; ao mesmo tempo em que

35 BARRETO, Raquel, 2006, p.17

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mostra o cosmopolitismo presente no momento, já mencionado em capítulos

anteriores – pois temos, aqui, uma obra irlandesa recebendo um tratamento

tipicamente alemão.

Os autores românticos têm a tendência de situar criaturas irreais em escalões

de uma hierarquia complicada. Assim, misturam à ordem burguesa solidamente

estabelecida elementos aparentados ao fantástico, deixando no ar a dúvida sobre

uma possível vida “dupla” desses senhores que exercem profissões bem definidas

e possuem títulos oficiais, pomposos, caros aos pequenos Estados secundários da

Alemanha.

Um secretário ou um arquivista municipal, um bibliotecário titular, um conselheiro secreto, um Obergerichtsrat, não escondem, sob a aparência de funcionários mais ou menos importantes, algum vestígio de bruxaria que a todo instante ameaça vir à tona? (EISNER, 1985, p. 78-79)

Lotte Eisner (1975, p.79) diz que um traço reconhecível desse

“Doppelgänger”, termo que pode ser traduzido como “o duplo” ou

“desdobramento demoníaco”, em Nosferatu, é a relação entre o vampiro e o

corretor de imóveis Knock: “Nosferatu, o vampiro, dono de um castelo feudal,

quer comprar uma casa de um corretor de imóveis, este também imbuído de

diabolismo”36.

Há de se discordar da constatação da autora, uma vez que sabemos estar

Nosferatu disfarçado sobre a forma de “Conde Orlock”. Talvez seria mais

plausível dizer que ambas as personagens, Knock e Nosferatu, apresentam os seus

Doppelgänger; no caso do corretor de imóveis, a ambigüidade fica por conta de

sua faceta pública, que já é estranhada por muitos, como nos mostra o intertítulo

que diz “There was also the real state agent Knock. Many rumours were circulated

about him. Only one thing was certain, he paid his people well”37, e o lado

demoníaco, no qual é apresentado como uma espécie de servo do vampiro. Este,

por sua vez, apresenta-se publicamente como Orlock, um conde que mora nos

Cárpatos e que quer comprar uma casa na cidade, e Nosferatu, o vampiro que

transmite a peste e aterroriza os incautos.

36 Idem, Ibdem, pág. 79-80 37 A tradução do texto em inglês.

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Figura 14 – Plano de “Nosferatu” que apresenta qualidades pitorescas

O primeiro passo para a identificação de obras de arte ou autores que

poderiam influir na estética de Murnau é tentar averiguar com quais ele teve

contato, direto ou indireto. Onde viveu, por onde viajou, que museus existiam por

donde passou. Existe, porém, um problema que dificulta esta questão: as fontes

sobre sua vida são bastante escassas. Logo, afirmar peremptoriamente a influência

consciente de um ou outro artista sobre sua obra torna-se quase impossível. Por

isso, o que nos interessa é partir de sua obra e tentar ver, nela mesma, os diálogos

possivelmente estabelecidos.

Sabemos, entretanto, que Murnau, desde quando se tem notícia, era sensível

às questões artísticas e leitor voraz, tendo lido já cedo autores como Ibsen e

Nietzsche. Sua paixão pelo teatro também vem desde cedo, e seus estudos

abarcam Filologia, em Berlim, e Literatura e História da Arte, em Heidelberg.

Durante este tempo, realiza numerosas excursões e visita museus assiduamente.

Sobre seus estudos artísticos, podemos supor, pela época, que haveria uma

tendência em relação aos grandes mestres, sobretudo os de âmbito germânico – e,

mais importante ainda para nosso trabalho: seus anos de estudo correspondem

exatamente à redescoberta e revalorização da obra dos pintores românticos

alemães, especialmente de Caspar David Friedrich e seu círculo. Assim, criou-se

um clima neo-romântico que sem dúvida deve ter atraído Murnau.

Tendendo já a ser um amante de arte, que coleciona algumas poucas obras –

as quais devia esconder do pai até seu estabelecimento como ator de teatro, por

questões financeiras – o futuro diretor já entrava em importantes círculos de

vanguarda de sua época. Em 1910, conhecia o grupo da poetisa Else Lasker–

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Schüler, casada com Herwarth Walden, fundador da revista Der Sturm e da

galeria homônima, onde se agrupariam as figuras mais importantes do

expressionismo da época, como Franz Marc, Alfred Kubin e Kandinsky, que

Murnau conheceu pessoalmente. Por outro lado, a experiência deste junto a Max

Reinhardt lhe permitiu conhecer Emil Nolde e até mesmo Munch.

Era comum, na época do cinema mudo, a utilização de obras de arte como

base para o mise en scène. Ainda antes, constituía uma prática comum no teatro,

principalmente em duas vertentes: uma, similar ao que se ainda faz, hoje, com o

uso de uma obra pictórica como fonte para cenários, figurinos, direção de arte etc.

Por outro lado, quadros famosos eram literalmente copiados, ao estilo de tableaux

vivants, para serem reconhecidos pelo público. Na companhia teatral de Max

Reinhardt, onde Murnau trabalhou, as duas práticas eram constantes.

Em relação à cinematografia, mais especificamente, não é por acaso que no

período do cinema mudo este era muitas vezes considerado “teatro filmado”, pois

as maneiras como se dispunha da câmera, fixa; as tomadas eram invariavelmente

planos gerais, os atores entravam e saíam pelos lados etc. Portanto, a influência

pictórica chegou ao cinema por intermédio do teatro.

Murnau, porém, é extremamente importante no desenvolvimento da

linguagem cinematográfica, no sentido de assimilar as influências pictóricas

dentro de uma linguagem própria, tanto em termos da mise en scène quanto na

tentativa de criar uma atmosfera que evocasse, de forma não óbvia, imagens ou

ideais próprios de uma pintura, ou de um movimento. E é precisamente Murnau

um dos investigadores mais racionais e sistemáticos na criação desta nova

linguagem, antes da chegada do cinema sonoro. Dado que não se dispunha da

palavra enunciada mediante a voz, era necessário desenvolver uma linguagem

visual autônoma. O cineasta David Wark Griffith é uma peça-chave neste sentido,

principalmente naquilo que concerne o desenvolvimento da ação. Murnau, por sua

vez, estava consciente das realizações do cineasta americano, e por sua vez

tematiza o enquadramento, a composição plástica do plano: o cenário, o

movimento dos atores, tudo se articula em função de um quadro “pictórico”, mas

em movimento.

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É curioso notar que a maioria das cenas facilmente identificáveis com

influências da pintura são imagens descritivas, panorâmicas ou planos fixos em

que o movimento, o tempo, são estáticos: as ondas do mar, os animais no campo,

etc. Murnau parte de concepções radicalmente novas para seu cinema, as quais

podemos apreciar em Nosferatu. Em primeiro lugar, a busca do realismo, que no

filme em questão o faz buscar exteriores naturais e uma série de soluções

cinematográficas que se distanciam do teatro filmado. Podemos pensar que esta

não foi sua primeira intenção, pois de alguns de seus primeiros filmes, como Der

Gang in die Nacht, extraímos algumas conclusões que nos fazem pensar que esta

tendência ao realismo foi progressiva, assim como sua utilização de recursos

(natureza, tormentas), que, tomados do imaginário romântico, favoreceram a

evolução de seus sistemas de representação cinematográfica.

Figura 15 – Plano de “Nosferatu” que retrata a natureza – montanhas e céu tempestuoso

Figura 16 – Plano de “Nosferatu” que retrata a natureza – ondas do mar

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Murnau, em Nosferatu, caracteriza um tema do passado, baseando-se, tanto

no tema e no estilo pictórico, em obras de arte eleitas – inclusive, outra questão

que chama a atenção de estudiosos é a forma como Murnau toma algumas

pinturas como fonte literal, ou seja, copiando-as da forma mais exata possível,

como ocorre em relação à Georg Friedrich Kersting, romântico alemão do círculo

de Friedrich. Certamente não se tratava de querer impressionar o público, pois

eram, em sua maioria, obras recém-descobertas, ainda desconhecidas em geral. O

mais certo é que escolhesse as que melhor expressassem uma idéia ou sentimento,

mas também não se pode descartar a hipótese de que quisesse imprimir a imagem

de um connoiseur, antevendo pinturas que mais tarde poderiam vir a ser mais

reconhecidas e valorizadas esteticamente. O que conseguiu, com efeito, foi

demonstrar a validade de modelos para mais de um uso e uma época.

Sobre a questão em relação a se Nosferatu é um filme expressionista,

podemos dizer que ainda que os sentimentos de terror, inquietude e obscuridade

representados no filme dêem mostras de contato com certas concepções acerca do

expressionismo estético especificamente fílmico, a questão é mais complexa.

Efetivamente, uma das premissas básicas de Nosferatu o afasta de Caligari: sua

intencionalidade realista. Mas em relação ao movimento pictórico em si, quais

seriam os pontos de contato com a arte de sua época, enquadrando o filme

formalmente neste expressionismo alemão que com tanta força se desenvolvia

naqueles anos?

Recordamos el expresionismo de estos años como un movimiento artístico que buscaba, mediante la subjetividad, dar una salida sincera a los sentimientos del autor, más que lograr representaciones realistas u objetivas. Todavía dentro de la figuración, se busca en estas obras la implicación emocional tanto del autor como del espectador. Los medios para ello se basan en la deformación, exageración y distorsión de las formas: tanto del espacio, como de los colores o las morfologías. Con ello, la realidad representada se torna terrible, onírica38

Acerca do expressionismo que encontramos em Murnau, vale lembrar que

“una imagen que expresa un sentimiento se concibe sin relación con el realismo

fotográfico”39. Neste filme, a imagem e o que ela contém de ação não se

38 GOMEZ, Salvador Rubio. Nosferatu y Murnau: Las influências pictóricas p. 303 39 BERRIÁTUA, apud GOMEZ, idem.

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configuram como uma deformação da realidade para a transmissão de uma

mensagem: trata-se de um quadro realista que, por sua configuração visual e de

ação, pretende transmitir a emoção. Não encontramos, portanto, cenas

abertamente expressionistas ao modo das pinturas, mas em determinados

momentos as imagens recebem este tratamento simbólico. Nos momentos de

maior tensão, ou quando prevalece o poder do Conde/Nosferatu, a força maligna,

os elementos em cena contribuem, mediante o tratamento da câmera, para

deformar as cenas. E para além do deslocamento do espaço diagonal, como ocorre

em “O Gabinete do Dr. Caligari”, Murnau prefere muitas vezes eliminar espaço

atrás das figuras, mediante fundos planos e de tonalidades contrastadas. Por

exemplo, na célebre cena do vampiro subindo a escada para possuir Ellen, só

podemos ver sua sombra, o que acentua o caráter monstruoso do vampiro.

Figura 17 – A sombra do vampiro subindo a escada

Desta forma, contrapondo o espaço “realista” tridimensional de cenas no

interior da casa de Hutter, ou da pousada nos Cárpatos, o castelo do Conde

apresenta os personagens recortados contra paredes brancas, rústicas, desprovidas

de elementos decorativos que aliviem a tensão. Cortadas por fortes contrastes

sombrios, criam áreas planas sobre as quais as personagens se recortam de

maneira irreal, não existindo ponto de distração, ao estilo, por exemplo, de

Munch.

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O mesmo acontece nas cenas de Knock em sua cela; nas tomadas em que o

vampiro sorrateiramente se aproxima para atacar o capitão do navio que o

transporta; e quando Nosferatu observa Ellen através de uma janela com réguas.

Figura 18 – Plano de “Nosferatu” em que o vampiro observa Ellen através da janela

Por outro lado, nos anos em que o filme é realizado, o expressionismo é a

estética que se “respira”, mais uma maneira de olhar e tratar a forma do que uma

coleção de imagens icônicas, ao contrário do Romantismo. Por isto, talvez, seja

mais complexo encontrar referências concretas a quadros do período neste filme.

Albin Grau, pintor, director artístico de Nosferatu e produtor, foi quem

pediu a Murnau para realizar este filme, quem fundou a Prana Films e quem

chama o roteirista de Der Golem, Henrik Galeen, para que trabalhe em Nosferatu.

Grau é, dentro dos poucos dados que dispomos sobre ele, um personagem cuja

influência é mais do que significativa, a tal ponto que não seria absurdo pensar

que Nosferatu, desde sua concepção, passando por suas implicações filosóficas,

“pertence” mais a Grau do que a Murnau.

Logo, tendo em vista que as cenas preparadas pelo diretor de arte são

majoritariamente partes da estética expressionista do filme, a maior parte das

tomadas concernentes ao vampiro em interiores foi planejada por ele. São planos

muito parecidos com suas ilustrações sobre Nosferatu, ricas em deformações,

claro-escuros, etc. E são precisamente os planos influidos pelo romantismo

alemão os mais ligados ao aporte de Murnau.

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Vemos, então, que o expresionismo aplicado a Murnau se manifesta muitas

vezes em cenas concretas, e é relativamente pouco presente na película. Portanto,

não seria de forma alguma coerente buscar a influência visual do filme

unicamente neste movimento. Esperamos de Murnau, dadas sua cultura e estudos

de História da Arte, um exaustivo conhecimento dos recursos estéticos

proporcionados pela pintura – e esperamos também seu conhecimento da arte

alemã anterior, especialmente o Romantismo, além de mestres como Vermeer,

Rembrandt etc.

Da mesma forma que com as cenas “expressionistas”, aquelas influenciadas

pelo romantismo têm um caráter próprio. São imagens mais pictóricas e

fisicamente parecidas com os quadros que lhes inspiram. Nelas, geralmente não

há ação, mas tem um sentido enunciativo marcante, simbólico, anunciando-nos

um mau presságio, a chegada de um personagem etc. A imagem simbólica, assim,

contrasta com o resto da película, mais narrativa e descritiva no sentido realista,

conseguindo com que marquemos em nossa memória tais momentos pictóricos.

Descobriremos que estas sequências do filme estão baseadas em imagens da

natureza. Precisamente, trata-se de outro dos aportes de Murnau para a história do

cinema: para facilitar a sensação de realismo e credibilidade, não recorre aos

cenários pintados, pois sempre prefere filmar em locações reais. Para os

espectadores da época, a visão do castelo de Orlok, a casa que se aluga ao Conde,

as ruas da cidade ou o barco; tudo devia ser espantosamente real, mais próximo de

seu mundo. Isto contribuiria, sem dúvida, para aumentar seu terror.

Em uma das primeras películas de Murnau, a primeira conservada, Der

Gang in die Nach, ja encontramos uma representação da natureza baseada em

pinturas, e com um significado similar ao que obtém em Nosferatu. Em uma das

seqüências daquele filme, temos um plano espetacular, em que se vê somente um

céu tormentoso, cheio de nuvens, e parte da copa de uma árvore, violentamente

movida pela tempestade incipiente. Já é um plano que poderia estar baseado em

Dahl, numa obra chamada Wolkenstudie. Como em Nosferatu, a natureza se

converte em sinal do que está por vir, tanto em termos da narrativa, como de

impacto emocional para os espectadores - pois a visão de uma tormenta chegando

está intimamente ligada à chegada de preocupações. Como nos céus tormentosos

de Van Gogh, o cineasta imanta a natureza de sentimento.

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Murnau também vai à natureza para filmar, e a retrata de uma maneira

particular: como a vê, em boa parte, o Romantismo alemão. Encontramos, assim,

a trilha de um movimento que também se caracterizou, como o Expressionismo,

por eleger a subjetividade como meio para transmitir as emoções do artista,

rechaçando as formas de arte anteriores. São precisamente os anos em que, como

mencionamos, à luz da nova concepção das artes, redescobre-se a obra do mais

importante pintor romântico: Caspar David Friedrich, junto a seus discípulos e

outros pintores aos quais influi: Georg Friedrich Kersting, Carl Gustav Carus,

Ernst Ferdinand Oehme, etc.

Em seu livro Nosferatu, Bouvier e Leutrat (1981) nos reportam que em

Berlim, por volta de 1920, falava-se muito das catástrofes que engoliram o mundo

e fizeram nascer outro. Um horror cinzento estava instalado. Quem conheceu a

guerra, seu flagelo que “se abateu sobre a terra como uma vampiro cósmico para

beber o sangue de milhões e milhões de homens”, não pode reencontrar sua voz.

Aquela que o narrador adota, quando infla a melancolia e que anima as sombras

nas soirées românticas, se deixa entender na fala de Grau, diretor de arte do filme

Nosferatu: o tom é condenado, censurado, parece, a riscar a paródia, o que não

justifica a vocação publicitária do texto.

Bouvier e Leutrat (1981) assinalam que frequentemente descreve-se a

mitologia do inquietante, e as rupturas da legalidade conhecida conhecem também

o curioso destino de roçar o escárnio. A aventura fantástica, segundo os autores,

parece frequentemente terminar em polaridades. Deste jeito, tem-se a dupla série

de figurações que organizam o espaço como a tipologia de Nosferatu. De um lado,

uma vila portuária com suas ruas, jardins, casas bem apresentadas e do outro um

castelo isolado sobre um precipício, cercado de florestas e terras desoladas. Nas

margens deste “ninho de águia gótico” uma sociedade de estrutura medieval e

agrária dobra-se sobre si mesma; correspondentemente, temos uma sociedade

mercantil e burguesa, aparentemente fundada nos valores de expansão e

acumulação de riquezas. Na vila, um universo íntimo, naturalmente heimlich,

ligações próximas (o salão, o quarto de Hutter), uma vida social, com amigos e

encontros, um mundo de objetos familiares e de ocupações pacíficas. No castelo

do conde Orlok, uma grande sala deserta, as aberturas que se dobram sobre o

abismo, um espaço confuso de escadas e pavimentos, objetos insólitos (como o

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relógio-caveira), maneiras de agir inquietantes, a solidão. Os porões, as abóbadas,

as verticais contrastando com horizontais, as fachadas enfileiradas da pequena

vila.

O físico do Conde tem algo de animal, de monstro mitológico. Uma

magreza de gárgula acentuada pelos hábitos que aprisionam seu corpo, os gestos

“puxados”, de arranco, uma contenção fria, doentia. Os olhares furtivos, quase às

ocultas sob as grossas sobrancelhas. Ele usa signos cabalísticos, hieróglifos de um

passado imemorial, e tem qualquer coisa de démodé em suas roupas, uma

sobrecasaca simples e um chapéu estranho que ele abandona quando deixa de ser

o conde.

Figura 19 – “Nosferatu” e os hieróglifos

Ele é um ser composto, feito da justaposição de duas naturezas: de um lado,

o conde, rico aristocrata, e do outro Nosferatu, figura sobrenatural. O ator Max

Schreck, anguloso e teso, contrabalança todos os outros atores. Há um propósito

neste contraste ter sido frisado. Murnau escolheu para companheira de Harding,

Ruth Landchoff, porque ela evoca um personagem dum quadro de Kaulbach,

pintor acadêmico. A juventude de Hutter, Ellen e seus amigos; suas vestimentas

são amplas, seus gestos flexíveis. Se seu mundo é, por excelência, Biedermeier40,

Orlok-Nosferatu revela uma estética ao extremo do grotesco: qualquer coisa de

inquietante, estranho e inumano.

40 Há vários filmes alemães com este costume...

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O uso do figurino nos mostra Hutter como, aparentemente, um burguês. Os

tons claros de suas vestimentas contrastam com as de Ellen, inicialmente. O efeito

plástico obtido da cena em que Hutter lhe dá a notícia de que irá viajar é notável,

pois vemos a mulher ao lado de uma janela, por onde entra bastante luminosidade

(que, inclusive, ressalta a palidez quase mórbida de seu rosto), trajando preto.

Hutter, por sua vez, de frente para ela, usa roupas brancas, posta-se contra um

fundo negro. Já Nosferatu veste algo mais estilizado, uma roupa alongada que

encomprida sua silhueta. “Em bom número de filmes alemães circulam

personagens vestidas com roupas Biedermeier, que datam da época conformista

na Alemanha, que começa depois da queda de Napoleão e vai até o famoso ano de

1848. É esta época hoffmaniana que filmes como O Estudante de Praga ou

Nosferatu, cuja ação se passa em 1838, tentam fazer reviver”41.

5. 3 Nosferatu: o terror e a representação da natureza

Apesar de vermos a iluminação do sol no primeiro plano do filme, logo

depois dos primeiros intertítulos, a natureza aparece de fato no quinto plano,

quando Hutter colhe flores num jardim cujas folhas tremem. Logo após, por volta

do décimo segundo plano, Hutter entrega um buquê a Ellen, que não parece nem

um pouco satisfeita com isso. Ela, com expressão séria e até triste, lhe pergunta:

“Por que matou estas lindas flores?”.

Conforme nos diz Hans Gunther Pflaum, “with this curious remark, death

is introduced at least subliminally to the film right from the very start”42. O

sentimento de desassossego é intensificado quando Hutter é avisado, na rua, pelo

Prof. Bulwer: “Devagar, jovem. Não se pode fugir ao destino”.

Lotte Eisner diz que a visão cinematográfica de Murnau jamais se resume à

tentativa de estilização do cenário, jamais reproduz quadros em seus filmes; antes,

por meio de uma “elaboração interior”43, recria-os à sua maneira, transformando

as imagens em visões pessoais – uma característica certamente tributária do

41 EISNER, Lotte. Op. Cit, pág 81 42 PFLAUM, Hans G. Ibdem, p. 43 EISNER, Lotte H. Ibdem, p. 72

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Expressionismo. A influência plástica do Romantismo em seu trabalho pode ser

conferida no plano em que Ellen, sentada na praia, está de costas para a câmera, e

de frente para o mar. Em seu entorno, várias cruzes negras estão fincadas na areia.

Venta. A posição da mulher, o ambiente, tudo remete ao universo de Caspar

David Friedrich.

Figura 20 – Plano de “Nosferatu” que evoca a pintura de Caspar David Friedrich

Figura 21 – Plano de “Nosferatu” que evoca a pintura de Friedrich

O diretor nasceu numa região de pastagens, chamada Vestefália, onde

camponeses robustos criavam cavalos de grossa ossatura. Foi também um dos

raros diretores alemães a ter pela paisagem um amor inato, fator mais

característico dos suecos.

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Vários planos do filme Nosferatu foram filmados ao ar livre, o que destoa

da maioria dos filmes alemães da época44. Diretores como Fritz Lang e Ernst

Lubitsch mandavam construir vastas florestas e até cidades em estúdio, por causa

de preceitos expressionistas, que os desviavam do real, e também porque as

fronteiras estavam fechadas e o ódio dos povos vizinhos vigorava.

Mas Murnau, apesar dos poucos meios disponíveis, soube aproveitar e

retirar da própria natureza imagens até mesmo singelas, como uma suave nuvem

branca que adeja sobre dunas, ou o viço de uma campina onde cavalos galopam

livremente.

A natureza participa do drama: por uma montagem sensível, o ímpeto das ondas faz prever a aproximação do vampiro, a iminência da desgraça que fulminará a cidade. Sobre todas as paisagens – colinas sombrias, florestas espessas, céus de nuvens recortadas anunciando tempestade – paira [...] a grande sombra do sobrenatural.45

Pflaum, por sua vez, também ressalta que

... even nature herself seems to be marked by the presence of evil. The camera swings over a mountainscape with trees that look though they have been blighted by polution; and by night the horses are sized by great agitation. Murnau slips in an in-between shot of a hyena for good measure: the horror of Nosferatu lies far more in the viewer´s feelings and associations than in what is actually shown.46

Já em 1923, o autor húngaro Béla Balázs escreveu sobre Nosferatu, dizendo

que

the greatest presentiment of the supernatural is to be found in nature.[...] A fluttering curtain, a door opening by itself, startle us more than a visible ghost. Because it is all a matter of surmise. What is new, hitherto unknown in this film is that it avails itself of the latent poetry of nature.47

44 Idem. Ibdem, p. 74 45 EISNER, Lotte H. Op. Cit, pág. 74 46 PFLAUM, Hans Günther. Op. Cit, p. 66 47 PFLAUM, Hans Günther. Op. Cit, p. 68

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A afirmação de Balázs a respeito da poesia latente pode ser estendida a

uma espécie de maldade também latente na natureza. A própria personagem de

Nosferatu apresenta feições de um rato, com suas orelhas pontiagudas, seu rosto

muito branco, os dois dentes frontais aguçados – ao invés dos caninos, como

costuma ser normal às representações conhecidas de vampiros. A presença e a

importância dos animais ao longo do filme podem ter sido propositais, pois a

película chegou a estrear, em março de 1922, no zoológico da cidade de Berlim48.

Próximo ao final do filme, vemos o professor Bulwer demonstrando uma

planta carnívora – “o vampiro da natureza”, segundo ele mesmo diz – a seus

alunos. Logo, vemos uma aranha em uma teia, na cela de Knock. Os paralelos ao

vampirismo de Nosferatu são manifestos, pois o Conde, que traz a praga à cidade,

age como um assassino em massa sem, no entanto, um senso de compreensão

aparente, movendo-se como um morto-vivo, para além das categorias de culpa ou

remorso49.

Figura 22 – Plano de “Nosferatu” em que o professor Bulwer analisa elementos da natureza

48 Texto em castelhano. 49 É importante ressaltar que para os europeus em geral, incluindo os alemães, na época da expansão imperialista, entre 1875 e 1914, podendo-se estender o período até a conjuntura de Weimar, o perigo vinha sempre da periferia. Assim, as regiões distantes dos continentes colonizados pelos europeus – África, Ásia, América Latina – apresentavam perigos potenciais, como se pode constatar na obra de Conan Doyle em que Sherlock Holmes é o personagem principal. Também a Transilvânia, região do Leste europeu de onde vinha o vampiro, como se verifica na obra de Bram Stoker que inspirou Murnau, era perigosa e obscura . Sobre a Natureza como fonte de perigo para os europeus, veja-se a obra de H. G. Wells, particularmente um conto fantástico, A misteriosa Orquídea, em que Natureza e Cultura se opõem, assim como Inglaterra/Civilização e Orquídea/Natureza exótica Trata-se, justamente, de uma planta carnívora que já havia “assassinado” alguns personagens do conto. A análise do conto de H. G. Wells está em CARDOSO, Ciro Flamarion. Narrativa, Sentido, História, SP, Papirus, 1997, p.175-83..

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Figura 23 – Plano de “Nosferatu” retratando o pólipo fantasmagórico

O poder que ele exerce sobre elementos naturais, tais como conduzir o

navio através das ondas, as pesadas nuvens crepusculares que nos são mostradas

um pouco antes da chegada de Hutter ao castelo, ou os ratos que parecem sempre

acompanhar o vampiro; enfim, tudo isso corrobora a tese de que Nosferatu e a

natureza estão unidos, um deriva do outro, são indissociáveis.

Um dos principais aspectos do filme é a questão da luz, pois sua presença ou

ausência são determinantes para o desenrolar dos fatos. Com efeito, os momentos

mais singelos e tranqüilos do filme são feitos sob uma luz mais diáfana, terna,

geralmente durante o dia. É o exemplo da luz pacificadora que vemos no castelo,

depois da primeira noite apavorante de Hutter ali. À noite, porém, é a hora em que

os contrastes mais violentos entre luz e sombra se dão; a iminência do perigo e a

escuridão sobressaem-se, criando a atmosfera mais adequada para o ambiente de

terror que o filme efetivamente proporciona. O clima de terror fantástico também

é sublinhado em alguns momentos em que a luz adquire um aspecto irreal, como

por exemplo, nas cenas em que vemos sombras de janelas, tortas, não condizentes

com o objeto sobre o qual a luz é projetada. Podemos observar tal fato nos planos

do agente Knock na cadeia, se compararmos a janela que vemos, com a sua

sombra projetada na parede.

Voltando à questão plástica, não se pode deixar de notar algumas

semelhanças de cenas com quadros de Rembrandt. O forte contraste do

chiaroscuro e a luminosidade que destaca algo no plano não criam, no filme,

exatamente o efeito de terror, mas pode-se dizer que deixam subentendido um

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forte senso de tragédia. Destaco, aqui, dois planos em especial: Hutter, acordando

na sala do castelo, com os cabelos desarrumados, depois de sofrer um primeiro

ataque de Nosferatu (quando este queria agarrar sua mão para lamber o sangue de

seus dedos), e a reunião dos homens que acham o corpo do capitão no navio-

fantasma que acaba de aportar na cidade. Neste último exemplo, inclusive, é

difícil não notar a semelhança com o quadro “Aula de Anatomia”, de Rembrandt.

Figura 24 – Plano de “Nosferatu” que evoca o quadro de Rembrandt

No primeiro caso, a luz destaca Hutter, pernas e braços mal dispostos sobre

a cadeira, torto; até poderíamos pensar que ele está morto. A luz é diáfana, mas

não deixa de ressaltar o aspecto dramático da cena. Já no plano do capitão morto,

a imagem funciona na medida em que, nela, vemos ressaltados, pela luz, o

cadáver e os rostos preocupados dos senhores ali presentes. Quase imediatamente,

eles constatam que o navio provavelmente trouxe a peste para a cidade, e a

tragédia, aqui, está certamente consumada.

O simétrico inverso da luz, a sombra é, igualmente, algo primordial no

filme, pois se trata da real “essência” de Nosferatu. Vemos isto na famosa cena

em que sua sombra sobe as escadas da casa de Ellen, e sua mão passeia sobre o

corpo da jovem, chegando até seu coração e provocando-lhe conturbados efeitos

físicos – não existe consenso sobre se as reações espasmódicas da jovem, unidas a

suas expressões de aparente dor, representam prazer, sofrimento, ou uma mais

provável mistura de ambos. Por fim, a luz está presente na morte do vampiro;

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aliás, é essencial para esta; seu instrumento. A luminosidade que entra pela janela

o envolve e o dissolve, o que não poderia ser mais adequado; afinal, onde há a

incidência direta de luz, não pode haver sombra.

A relação especial de Nosferatu com a natureza e as leis da física é também

explicitada através da montagem e trucagens. Carruagens velozes, sumiços no ar,

força descomunal – tudo isso, que o filme nos mostra, ajuda a compor a

personagem de Nosferatu, diz-nos quem ele é, a qualidade especial de sua terrível

natureza.

Comparando o modo como a velocidade da carruagem dos camponeses é

apresentada, com a carruagem do disfarçado Nosferatu (planos cujos efeitos foram

conseguidos através do giro da manivela), vemos que há uma diferença

fundamental, pois uma aparentemente consegue andar muito mais rápido que a

outra – sentido reforçado pelo plano em que Hutter, olhando pela janela da

carruagem do conde, segura o chapéu que parece lhe fugir da cabeça, com a boca

aberta, numa expressão claramente assustada. O processo de “giro de manivela”

também foi usado na cena em que os caixões são empilhados velozmente, no pátio

do castelo, o que ratifica a grande força física do vampiro.

A manipulação temporal que o conde é capaz de exercer também fica clara

quando da chegada de Hutter ao castelo. A carruagem parte, retomando o caminho

por onde veio, mas quando o jovem burguês adentra o castelo, reencontra o conde

(que estava disfarçado de chofer).

As trucagens, por sua vez, através da técnica de inserção de negativos, criam

um efeito fantástico de terror durante a viagem de Hutter ao castelo do Conde.

Num dado momento, a paisagem adquire tonalidades sepulcrais, os valores se

invertem, as árvores ficam fantasmagoricamente brancas, “carcaças de animais

antediluvianos”50 que se erguem contra um fundo negro. Este efeito foi

conseguido através da inserção de alguns metros de negativo no filme.

Certamente, trata-se de um prenúncio dos dissabores pelos quais o jovem irá

passar nas mãos do vampiro maligno.

50 EISNER, Lotte. Op. Cit., pág. 77

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Figura 25 – Plano de “Nosferatu” com trucagens que evocam o sobrenatural

A confusão espacial fica por conta das desaparições de Nosferatu. O desafio

às leis da física também está na forma como ele se levanta do caixão, e suas

ligações telepáticas com Ellen e Knock – aqui, destacamos a importância da

montagem, especialmente na cena em que o vampiro está prestes a atacar Hutter,

mas Ellen intervém. Quando já está com suas garras levantadas, e Hutter rendido

na cama, Ellen acorda, num sobressalto, a quilômetros de distância dali. Olhando

para a parte direita/superior da tela, com expressão desesperada, ela grita por

Hutter. Imediatamente, no plano seguinte, Nosferatu olha para a parte

esquerda/inferior da tela, depois vira-se e vai embora. Isto mostra que Murnau,

então, já compreendia o poder da montagem no específico fílmico51.

Estes planos, em conjunto com vários outros que poderiam aqui ser

mencionados, nos mostram, conforme ressalta Lotte Eisner, o fato de cada

unidade ter uma função precisa na narrativa do filme, por conta de sua

participação na ação. Um detalhe em primeiro plano das velas infladas do navio,

por exemplo, é tão importante quanto a tomada anterior, em plongée, de ondas

rápidas que conduzem o amaldiçoado navio. A câmera também ajuda na evocação

do terror, através do movimento dos atores em direção a ela. Num dado momento,

vemos o vampiro longe, ao fundo da sala, para de repente, através de uma fusão,

vermos seu rosto bastante de perto, e então distinguimos melhor suas feições

inumanas, seu rosto gélido. Depois, sobrenaturalmente, o vampiro chega à porta

51 Sobre a origem da montagem, ver o já citado capítulo As Artes Transformadas da obra de Eric Hobsbawm, A Era dos Impérios.

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do quarto de seu hóspede, e a porta se abre sobrenaturalmente. Murnau, em vez de

apresentar gradualmente todo o trajeto, “quebra” a aproximação através da porta

que se fecha bruscamente – e a tomada desta porta, atrás da qual sabemos o que

espreita, é de “tirar o fôlego”.

O diretor também aproveita o poder da representação de um movimento

transversal, como a silhueta do vampiro filmada em contra-plongée, atravessando

o navio para atingir a proa. O ângulo lhe confere, além de proporções exageradas,

uma espécie de inclinação que o projeta pra fora da tela, transformando-o numa

ameaça quase palpável.

A arquitetura representada no filme, composta em sua maioria de fachadas

de tijolos com empenas truncadas, é tipicamente nórdica, adaptando-se

perfeitamente à ação insólita. O diretor não precisa necessariamente, portanto,

buscar um falseamento na iluminação para exacerbar a estranheza e o mistério das

ruelas e praças. A câmera de Fritz Arno Wagner é bem capaz de, por si só, evocar

o extravagante, através do uso de ângulos imprevistos – por exemplo, quando o

vampiro prepara sua estranha partida no pátio do castelo, dando à cena um aspecto

sinistro.

Que há de mais expressivo que a rua comprida e estreita, espremida entre as fachadas de tijolos dispostos numa monotonia atroz, filmada em plongée de uma janela cujo parapeito atravessa a imagem?52

Há de se ressaltar, também, a questão das torres que aparecem ao longo do

filme. Existem três planos, no início, no meio e no final do filme, que apresentam

torres, e que marcam bem as passagens da narrativa. O primeiro plano nos

apresenta, logo no início do filme, uma torre ensolarada. Ao fundo, vemos a

cidade onde se desenrola o início da história, e todo clima é pacato, tranqüilo. O

segundo plano que apresenta uma torre ocorre na chegada de Hutter ao castelo, e

neste momento já se pressente o terror que assolará a vida do jovem rapaz. A

torre, aqui, é mais tosca, antiga, possui janelas que parecem talhadas na pedra, um

teto decadente, e bichos voando ao seu redor. O terceiro e último plano nos

mostra, depois da morte de Nosferatu, suas antigas torres do castelo destruídas.

Vemos suas ruínas em sombras, contra a luz, num final glorioso que simboliza,

52 Idem, Ibdem, pág. 75-76

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mesmo que parcialmente, pois a mocinha Ellen também morre, a vitória da luz

sobre as trevas.

Figura 26 – Plano de “Nosferatu” em que o vampiro é atingido pelos raios do sol

Neste trecho de seu livro, Lotte Eisner relaciona a arquitetura da cidade de

Hutter ao expressionismo:

No calçamento grosseiro, gatos-pingados de cartola e sobrecasaca justa avançam lentamente, negros e rígidos, conduzindo aos pares o caixão estreito de um pestífero. Nunca mais um expressionismo tão perfeito será atingido, e sua estilização foi obtida sem que se recorresse ao menor artifício.53

Outra marca do Expressionismo, que pode ser encontrada no filme, é a

representação de objetos animados, verdadeiros toques sutis em momentos

fúnebres. Vemos isto na cena em que a rede do marujo morto continua a balançar,

sozinha, ou quando o lampião suspenso na cabine do veleiro oscila,

monotonamente, depois de que todos naquele navio já foram mortos pelo

vampiro.

53 Idem, Ibdem, pág. 76

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6 Conclusão

As películas de Friedrich Wilhelm Murnau representam não somente a visão

poética de um indivíduo, mas também as ansiedades de uma das culturas mais

turbulentas da história moderna. Em nosso trabalho, procuramos mostrar como

isto se deu no caso do filme Nosferatu, levando em conta outro período de

agitação social e espiritual: a época do Romantismo.

Procuramos deixar claro que as inquietações espirituais que animaram a

imagética romântica influenciaram artistas alemães no início do século XX, e não

foi diferente com o cineasta Friedrich Wilhelm Murnau. Nosferatu é um filme que

mostra-se eivado de imagens e questões facilmente atribuídas a Caspar David

Friedrich, ao questionamento da fé – principalmente na figura de Ellen – e à

imantação de sentidos à natureza, que realmente torna-se uma personagem do

filme.

Em relação a Ellen, cremos ser esta uma personagem crucial na leitura que

fazemos, ao fim e ao cabo, da mensagem do filme em relação às nossas

interpretações acerca das questões românticas e expressionistas, do contexto do

pós-guerra alemão e da confusa cultura política de Weimar. Se Hutter, seu marido,

é a própria personificação do burguês moderno, ambicioso, que desdenha das

crendices populares, cabe à mulher o papel de tomar a si a responsabilidade pelo

mal que assoma a sociedade, que, no filme, é metaforizado pela figura de

Nosferatu, uma força arcaica que vem disseminar a praga na cidade mercantil.

E contra esta força, de nada valem os esforços ou conhecimentos das

autoridades historicamente dotadas de poder, como o professor e o médico,

representando o saber científico e acadêmico. Pelo contrário, no caso de Bulwer,

como demonstramos, o mesmo parece se render ao fascínio dos mistérios da

natureza, vampíricos e fantasmagóricos. A trajetória do personagem Knock e os

planos que o mostram de forma quase grotesca, no hospício, também contribuem

para uma certa desmoralização das autoridades burguesas

Desta forma, cremos ser possível interpretar o encontro de Ellen e Nosferatu

como um embate de forças significativo para o momento mesmo em que Murnau

e a sociedade alemã se encontravam: para além do bem versus mal, duas forças da

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natureza que se imiscuem (lembremos que Nosferatu bebe o sangue da moça) e se

neutralizam, aniquilando-se, espécie de apocalipse a fim de que uma nova

sociedade possa tomar forma – não mais eivada de fé e submissão aos chamados

da natureza, não mais personificação do que temos de mais obscuro em nossa

natureza interior, mas uma ainda por construir. A cena final, em que um dos

personagens mira significativamente a câmera, e por conseguinte o espectador,

parece-nos significativamente o olhar de repreensão a uma sociedade,

comunicando a constatação de perdas: de Ellen, que jaz em cima da cama, mas

também da paz e da harmonia comunais. E que as lições funestas do passado

sirvam para a construção de uma comunidade outra, superando tanto o misticismo

romântico quanto a incomunicabilidade extremamente subjetiva característica ao

expressionista.

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ANEXO

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ANEXO A – Filmografia de F. Murnau 1919 Der Knabe in Blau

1920 Satanas

1920 Der Bucklige und die Tänzerin

1920 Der Januskopf

1920 Abend - Nacht - Morgen

1921 Der Gang in die Nacht

1921 Sehnsucht

1921 Schloß Vogeloed

1922 Marizza

1922 Nosferatu, eine Symphonie des Grauens

1922 Phantom

1922 Der Brennende Acker

1923 Die Austreibung

1924 Der Letzte Mann

1924 Die Finanzen des Großherzogs

1926 Herr Tartüff

1926 Faust

1927 Sunrise: A Song of Two Humans

1928 4 Devils

1930 City Girl

1931 Tabu

Fonte: www.leninimports.com/murnau_ acesso em jul 2009

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