desertificacao e abandono das zonas rurais

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Pedro Hespanha O ABANDONO RURAL E A DESERTIFICAÇÃO Habituamo-nos a pensar os territórios como espaços de povoamento bem consolidados, com populações profundamente enraizadas e um fortíssimo sentido de pertença aos locais de origem. E essa noção parecia estar certa. Para gerações e gerações de estudiosos, de literatos e de políticos que a utilizaram até á exaustão nas suas descrições do país, este era feito de um bom número de regiões cada um com as suas características próprias marcadas por uma forma particular de ajustamento do homem ao seu meio. A mobilidade espacial, sempre vista à escala dos indivíduos, não era de molde a alterar este quadro e, portanto, não constituia uma ameaça à estabilidade dos povoamentos, antes funcionava como um processo de restabelecer os equilíbrios regionais. A sociedade rural, em particular, correspondia a esta ideia de autarcia e funcionava de uma forma relativamente estabilizada. Ela caracterizou-se, até muito recentemente, por uma economia pouco mercantilizada baseada na exploração da terra e no trabalho, por uma estratificação social muito polarizada, contrapondo uma ampla camada de camponeses sem terra a uma reduzida camada de grandes proprietários e por uma estrutura clientelar de relações sociais unindo estas camadas entre si. A inexistência de um estrato social intermédio capaz de romper com o circulo fechado da bipolarização social manteve-se até à emergência do fenómeno emigratório na década de sessenta. O modo de vida predominante da população rural expressava-se, então, numa economia de pura subsistência, numa sobrecarga, até ao limite, do trabalho familiar e numa rigorosa contenção dos consumos para o grosso da população rural. A pobreza generalizada dos produtores, mal compensada pela generosidade dos patrões, pela entreajuda grupal e pela assistência pública, alimentava uma atitude cautelar de minimização do risco que era pouco favorável a empreendimentos inovadores. Associados a ela, encontravam- se frequentemente o pessimismo e o fatalismo, mas também o individualismo e o sentido de autonomia que ainda hoje persistem As últimas décadas, porém, vieram mostrar como os territórios se podem transformar rapidamente sob o efeito de dinâmicas de mobilidade humana dominadas por um quadro de oportunidades distinto do que até então prevalecera. Desde os anos 60 do séc. XX muitas regiões do país deixaram de ser capazes de assegurar a reprodução económica das suas

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Professor Doutor Pedro Hespanha Sociologo do Centro de Estudos Sociais

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Pedro Hespanha

O ABANDONO RURAL E A DESERTIFICAÇÃO

Habituamo-nos a pensar os territórios como espaços de povoamento bem consolidados, com

populações profundamente enraizadas e um fortíssimo sentido de pertença aos locais de

origem. E essa noção parecia estar certa. Para gerações e gerações de estudiosos, de literatos e

de políticos que a utilizaram até á exaustão nas suas descrições do país, este era feito de um

bom número de regiões cada um com as suas características próprias marcadas por uma forma

particular de ajustamento do homem ao seu meio. A mobilidade espacial, sempre vista à escala

dos indivíduos, não era de molde a alterar este quadro e, portanto, não constituia uma ameaça à

estabilidade dos povoamentos, antes funcionava como um processo de restabelecer os

equilíbrios regionais.

A sociedade rural, em particular, correspondia a esta ideia de autarcia e funcionava de uma forma relativamente estabilizada. Ela caracterizou-se, até muito recentemente, por uma economia pouco mercantilizada baseada na exploração da terra e no trabalho, por uma estratificação social muito polarizada, contrapondo uma ampla camada de camponeses sem terra a uma reduzida camada de grandes proprietários e por uma estrutura clientelar de relações sociais unindo estas camadas entre si. A inexistência de um estrato social intermédio capaz de romper com o circulo fechado da bipolarização social manteve-se até à emergência do fenómeno emigratório na década de sessenta. O modo de vida predominante da população rural expressava-se, então, numa economia de pura subsistência, numa sobrecarga, até ao limite, do trabalho familiar e numa rigorosa contenção dos consumos para o grosso da população rural.

A pobreza generalizada dos produtores, mal compensada pela generosidade dos patrões, pela

entreajuda grupal e pela assistência pública, alimentava uma atitude cautelar de minimização do

risco que era pouco favorável a empreendimentos inovadores. Associados a ela, encontravam-

se frequentemente o pessimismo e o fatalismo, mas também o individualismo e o sentido de

autonomia que ainda hoje persistem

As últimas décadas, porém, vieram mostrar como os territórios se podem transformar

rapidamente sob o efeito de dinâmicas de mobilidade humana dominadas por um quadro de

oportunidades distinto do que até então prevalecera. Desde os anos 60 do séc. XX muitas

regiões do país deixaram de ser capazes de assegurar a reprodução económica das suas

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populações e assistiram a um fluxo de abandono sem precedentes em direcção a outras regiões

mais ricas ou dotadas de maior capacidade de emprego do país ou do estrangeiro. Os dados dos

Censos confirmam esse fenómeno: o declínio demográfico tocou, nos últimos quarenta anos, a

grande maioria dos concelhos situados a norte do Tejo, deixando de fora apenas uma pequena

faixa litoral representando cerca de % do território.

As marcas do abandono são inúmeras e muito diversas. O envelhecimento da população é

talvez a mais visível, de tal modo ela fica estampada no rosto dos residentes do Portugal

interior. Mas o envelhecimento não é só das pessoas. Estende-se também às coisas produzidas

pela acção humana: as casas, os caminhos, as levadas, as alfaias, o vestuário e até as próprias

festas. E a natureza também ela não fica imune. As terras, deixadas de cuidar e entregues a si

próprias, ficam de velho e recuperam o seu estado de natureza, que se alastra rapidamente as

terras vizinhas, enquanto os matos, as silvas, as ervas daninhas envolvem as árvores, os muros

e os espaços outrora trabalhados, definhando e destruindo a paisagem humanizada. Como um

processo interactivo, a degradação da paisagem contribui, por sua vez, para intensificar a

expulsão da população e amplificar o êxodo rural

O esforço para preservar uma paisagem que foi sendo construída por gerações e gerações de

camponeses parece inglório, sobretudo para as pessoas que ainda vivem nas aldeias em declínio

e que se vêm impotentes para contrariar o definhamento da comunidade e do seu território.

Faltam as forças, faltam os meios, falta a confiança. Uma atitude de resignação e apatia emerge

desta impotência e vai alimentar-se do fatalismo quase religioso que estropiou a imaginação e a

arte do nosso povo.

É certo que gerações de jovens emigrados tentam combater à distância os males que atingem os

seus patrícios, mas os meios que estão disponíveis para eles utlilizarem são pouco eficazes,

quando não, contraproducentes. Eles constróem casas, asfaltam estradas, voltam pela festa do

ano, trazem conforto e dinheiro... porém, estão ausentes e este facto é decisivo para a sorte das

populações. No dia a dia, não há quem ajude, quem mobilize, quem anime, quem transmita

confiança, quem olhe para o futuro. Por isso, as pequenas comunidades de aldeia vivem de

recordações, não entendendo nada do presente nem nutrindo quaisquer expectativas quanto ao

futuro. O drama da desertificação é o da transposição dos limiares críticos da iniciativa pessoal

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e da acção colectiva, ou seja, a desvitalização irreversível das comunidades.

A experiência mostra que abaixo de um determinado limiar mínimo demográfico e social as

comunidades se reduzem rapidamente até à sua extinção. Para isso contribui também, a lógica

de gestão das ajudas pelo próprio Estado de Bem-estar dominada pela necessidade de

seleccionar e restringir os investimentos sociais por forma a garantir a sua solvabilidade

económica. Em regiões em declínio demográfico ou de concentração de populações

envelhecidas, a gestão racional dos recursos está a conduzir a um desinvestimento demográfico

(redução da oferta de serviços) ou a uma residualização demográfica (degradação da qualidade

dos mesmos). Num caso e noutro, custos sociais elevadíssimos estão a ser suportados pelas

populações e a contribuir não só para a perpetuação da velha pobreza rural como para uma

amplificação das dinâmicas de repulsão demográfica.

Neste quadro, a revitalização das comunidades do interior do país é um objectivo desejável mas

muito difícil de levar a cabo dada a incapacidade que elas mostram de reter ou de atrair a

população mais jovem e activa e isto apesar da crescente afectação de meios e recursos que tem

sido feita através de políticas públicas e incentivos directa ou indirectamente orientadas para

essa finalidade.

Estudos realizados em França nos anos 60 mostraram que a atracção da cidade e as

representações negativas sobre o viver no campo são determinantes nas decisões dos jovens

rurais sobre ficar ou partir, mesmo quando as condições de vida nas zonas rurais tenham

melhorado bastante e as das zonas urbanas piorado. No caso português, é visível a melhoria da

vida nas localidades do interior – designadamente nos centros urbanos - em resultado de uma

política de redução das disparidades territoriais e, relativamente aos jovens, assistiu-se a um

forte investimento na descentralização de infraestruturas e na disseminação de programas

dedicadas a esse grupo da população. No domínio do emprego, persistindo enormes carências,

os jovens beneficiam hoje de um conjunto de incentivos sem precedente para se envolverem em

actividades produtivas. Por seu turno, o insucesso escolar, o abandono precoce e os níveis de

escolaridade e de qualificação muito baixos que têm particular expressão nas regiões do

interior, são hoje objecto de políticas de correcção que mobilizam importantes recursos

humanos e financeiros. Como estão jovens a responder a todas estas mudanças ? Não existe

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uma avaliação definitiva sobre o assunto. Em qualquer caso, cremos que os resultados

demorarão algum tempo a serem visíveis e que há que vencer as resistências quase epidérmicas

dos jovens a permanecer na sua terra. E cremos sobretudo que o investimento que está a ser

feito só pode ter êxito se os programas se adequarem ao perfil, às expectativas e às aspirações

dos jovens e se estes virem as suas ideias e propostas suficientemente ouvidas e seriamente

tidas em conta no desenho dos programas.

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