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CÂMARA DOS DEPUTADOS DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES TEXTO COM REDAÇÃO FINAL COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS EVENTO: Audiência Pública N°: 1449/07 DATA: 5/9/2007 INÍCIO: 14h45min TÉRMINO: 19h15min DURAÇÃO: 4h29min TEMPO DE GRAVAÇÃO: 4h28min PÁGINAS: 85 QUARTOS: 54 DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO MÁRCIA SUZUKI - Coordenadora do Movimento Atini — Voz pela Vida. MAÍRA DE PAULA BARRETO - Doutoranda em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca, com a tese Infanticídio e Direitos Humanos. MÁRCIO AUGUSTO FREITAS MEIRA - Presidente da Fundação Nacional do Índio — FUNAI. VALÉRIA PAYÊ - Representante do Fórum de Defesa dos Direitos Indígenas — FDDI. MÁRCIO AUGUSTO FREITAS MEIRA - Presidente da Fundação Nacional do Índio — FUNAI. EDWARD MANTOANELLI LUZ - Antropólogo. AISANAIN PALTU KAMAIWRÁ - Pai Indígena. RITA LAURA SEGATO - Antropóloga. SUMÁRIO: Debate sobre o infanticídio em áreas indígenas. OBSERVAÇÕES Houve exibição de imagens. Há exposições em língua indígena. Grafia não confirmada - Karô. Há orador não identificado. Houve intervenção fora do microfone. Inaudível.

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CÂMARA DOS DEPUTADOS

DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

TEXTO COM REDAÇÃO FINAL

COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIASEVENTO: Audiência Pública N°: 1449/07 DATA: 5/9/2007INÍCIO: 14h45min TÉRMINO: 19h15min DURAÇÃO: 4h29minTEMPO DE GRAVAÇÃO: 4h28min PÁGINAS: 85 QUARTOS: 54

DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO

MÁRCIA SUZUKI - Coordenadora do Movimento Atini — V oz pela Vida.MAÍRA DE PAULA BARRETO - Doutoranda em Direitos Hum anos pela Universidade deSalamanca, com a tese Infanticídio e Direitos Humanos.MÁRCIO AUGUSTO FREITAS MEIRA - Presidente da Fundaç ão Nacional do Índio — FUNAI.VALÉRIA PAYÊ - Representante do Fórum de Defesa dos Direitos Indígenas — FDDI.MÁRCIO AUGUSTO FREITAS MEIRA - Presidente da Fundaç ão Nacional do Índio — FUNAI.EDWARD MANTOANELLI LUZ - Antropólogo.AISANAIN PALTU KAMAIWRÁ - Pai Indígena.RITA LAURA SEGATO - Antropóloga.

SUMÁRIO: Debate sobre o infanticídio em áreas indíg enas.

OBSERVAÇÕES

Houve exibição de imagens.Há exposições em língua indígena.Grafia não confirmada - Karô.Há orador não identificado.Houve intervenção fora do microfone. Inaudível.

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O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Declaro abertos os trabalhos

da presente audiência pública, que tem como finalidade discutir a prática de

infanticídio nas áreas indígenas.

A referida audiência é fruto de requerimento de autoria do Deputado Henrique

Afonso aprovado no âmbito desta Comissão.

O Decreto Presidencial nº 5.051, de 19 de abril de 2004, promulgou a

Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho — OIT, que em seu art.

8º, § 2, estabelece que os povos indígenas têm o direito de conservar seus

costumes e instituições próprias desde que não sejam incompatíveis com os direitos

fundamentais nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos.

Sempre que for necessário deverão ser estabelecidos procedimentos para

solucionar os conflitos que possam surgir na aplicação desse princípio.

Baseada principalmente nessa normativa é que a Comissão de Direitos

Humanos e Minorias vai abrir este debate com especialistas e lideranças indígenas

a respeito da prática ainda presente em algumas aldeias indígenas de sacrifício de

crianças que nascem com deficiência.

A audiência não pretende levantar juízos, e sim construir pistas de ação e

diálogos para o enfrentamento dessa realidade.

Teremos 2 Mesas.

Convido para compor a primeira Mesa desta audiência a Profa. Márcia

Suzuki, Coordenadora do Movimento Atini — Voz Pela Vida; a Sra. Maíra de Paula

Barreto, doutoranda em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca, com a

tese Infanticídio e Direitos Humanos; o Sr. Márcio Augusto Freitas Meira, Presidente

da Fundação Nacional do Índio — FUNAI; e a Sra. Valéria Payê, representante do

Fórum de Defesa dos Direitos Indígenas — FDDI.

Informo que, pelo fato de termos outra Mesa e para que tenhamos espaço

para intervenções, concederemos até 10 minutos para que cada convidado faça sua

exposição.

Após as exposições, será concedida a palavra aos Deputados presentes,

respeitada a ordem de inscrição. O proponente do requerimento tem precedência

sobre outros Parlamentares.

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Cada Deputado inscrito terá o prazo de 3 minutos para formular suas

considerações ou pedidos de esclarecimento, dispondo os expositores do mesmo

tempo para resposta.

Esclareço que esta reunião está sendo gravada para posterior transcrição.

Por isso, solicito que falem ao microfone.

Concedo a palavra à nossa convidada Profa. Márcia Suzuki, Coordenadora

do Movimento Atini —Voz Pela Vida.

A SRA. MÁRCIA SUZUKI - Boa tarde a todos. Cumprimento todos os

componentes da Mesa e todos os presentes, desejando que tenhamos nesta

reunião um tempo de discussão e um tempo esclarecedor.

Cumprimento os indígenas presentes à Mesa. É muito importante tê-los junto

conosco nesta discussão.

Vou apresentar algumas imagens.

(Segue-se exibição de imagens.)

Represento o Movimento Atini — Voz pela Vida, uma ONG que luta pela

defesa do direito das crianças indígenas.

O nosso objetivo nesta reunião é dar continuidade a uma discussão que

começou nas aldeias indígenas, com o intuito de quebrar o silêncio sobre o

infanticídio, que nas aldeias tem sido sempre um tabu, uma dificuldade muito

grande, e tem gerado muito sofrimento às famílias dos povos indígenas. Uma das

proposta da Atini é quebrar o silêncio sobre esse assunto, que tem sido um tabu

dentro e fora das aldeias.

Minha exposição é orientada por alguns critérios, e um deles é: onde há

sofrimento, há violação de algum direito humano. Percebemos que nas

comunidades indígenas há um grande sofrimento causado pelo infanticídio.

O que tenho a dizer nesta tarde não se baseia em leituras ou teses, embora

tenha feito leituras antropológicas. Vou expor o problema a partir do ponto de vista

humano, por causa da experiência que meu marido, Edson Suzuki, e eu tivemos por

mais de 20 anos vivendo junto a um povo indígena semi-isolado na Amazônia, o

suruwahá. Durante o período de convivência, aprendemos a língua e a cultura

daquele povo, comemos de sua comida, participamos de seus rituais, ouvimos suas

histórias nas noites de fogueira.

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Tenho aqui algumas imagens que dão a noção de como vivem os suruwahás,

que conhecemos e de cujo sofrimento, alegrias e vitórias participamos. Vimos

crianças nascerem, ajudamos a enterrar os mortos e, muitas vezes, choramos com

esse povo nos momentos de luto, especialmente durante o ritual de suicídio, o que é

muito comum entre eles. Algumas pessoas têm conhecimento disso. Na verdade,

eles passaram a fazer parte da nossa família. Portanto, o que falo parte da

perspectiva de quem viveu por muito tempo com esse povo, de quem ouviu muitas

mulheres, muitas histórias, enfim, de quem chorou com eles muitas vezes. Vimos

que o infanticídio entre os índios é muitas vezes pontuado por sentimentos de

sofrimento, vergonha e muita dor.

Vou mostrar algumas imagens. Esse menino que vemos aí, infelizmente e

involuntariamente, causou um sofrimento muito grande para sua família.

Aparentemente nasceu normal, era um bebê lindo, mas seu desenvolvimento foi

afetado por algum problema que os indígenas não sabiam qual era e, apesar de

crescer, não andou, nem falou. O pai e a mãe tiveram mais 3 filhos, saudáveis e

bonitos, que amavam e dos quais cuidavam muito bem. Quando esse menino

apresentou problemas, a tribo, toda a comunidade passou a cobrar o sacrifício da

criança. Eles poderiam ter seguido a tradição e sacrificado o filho, mas tinham uma

ligação muito forte com ele, gostavam muito dele e resistiram por anos e anos.

Quando a criança completou 5 anos, os pais, não suportando mais a pressão, que

era muito grande, suicidaram-se. Logo depois, o menino foi enterrado vivo por um

irmão.

Esse é o irmão, Aruwaji, que, pela pressão da tribo, teve que enterrar vivo o

próprio irmão.

Essa linda menina, por exemplo, chamada Hajiw, também veio de uma família

que passou por grande sofrimento. Sua mãe envenenou um filho de 11 anos porque

ele chorava muito — ela fez com que fosse encontrar-se com pai na terra dos mortos

—, também matou uma filha recém-nascida por acreditar que era portadora de

maldição e quase matou essa outra filha envenenada por timbó. O avô da criança e

eu conseguimos salvar a menina. A mãe também acabou se matando.

Esse rapaz, da tribo Amondawa, no Amazonas, passou por grande

sofrimento. Sua irmã teve 3 gravidezes não permitidas pelos costumes da aldeia. Ao

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nascerem, os bebês foram mortos pela mãe. O quarto bebê que nasceu causou

tanta pena ao rapaz que ele decidiu criá-lo. Levou o bebê para sua casa e lutou por

sua saúde até que completasse 3 anos. No entanto, quando a mãe ficou doente e

faleceu, um dos líderes da aldeia enterrou o menino vivo, junto com a mãe, pois

ninguém assumiu a paternidade da criança e ele não sabia o que fazer.

Vou mostrar imagens de um documentário que está sendo apresentado na

Holanda e em vários outros países da Europa neste momento.

Essa senhora, da tribo Deni, fala, com muita dor, sobre os casos de

infanticídio na tribo. Ela diz assim: “Às vezes fazemos da maneira certa,” — ou seja,

matamos da maneira certa — “às vezes acontece diferente. Então, chutamos a

criança até ela morrer. Uma vez, uma criança grande foi enterrada. Enquanto

pisavam a terra, dava para ouvir a criança gritando. Depois disso, o líder espiritual

da aldeia nos explicou: ‘Muitas crianças são enterradas assim’. Ao nascer, o pajé

avalia se a criança é boa, olha se a criança tem um espírito bom. Percebemos isso

só com o olhar”.

Não quero mostrar apenas imagens de tristeza e desesperança. Tenho

também uma mensagem de esperança. Essa menina é da tribo Suruwahá. Seus

pais sofreram muito por ela não se desenvolver como deveria, e o povo da

comunidade decidiu que ela deveria ser enterrada viva. Os pais não tiveram

coragem de enterrá-la e acabaram se suicidando. Ela foi abandonada por 3 anos e

por isso ficou magrinha assim. Nessa época, ela tinha 5 anos de idade e pesava

apenas 7 quilos, tinha o tamanho de um bebê de 7 meses, mas, apesar disso,

sobreviveu.

Aqui temos uma imagem dela 1 ano depois. O irmão foi quem nos entregou a

criança e pediu que cuidássemos dela. Fomos à cidade, onde foram feitos exames e

detectado e tratado problema de hipotireoidismo. Um ano depois, ela já estava

assim. Nós a levamos de volta à aldeia, e a avó — essa senhora que está com ela

no colo — disse nunca ter imaginado que a neta tivesse alma. Quando viu a menina

andando, falando e cantando, ela disse: “Ela tem alma!” Aceitou a criança e a pegou

no colo. Hoje, ela já está maior. Na verdade, eles pediram que cuidássemos da

criança e acabamos por adotá-la. Hoje, ela é minha filha, Hakani — nome que

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significa sorriso. Ela trouxe às mães suruwahás esperança de que toda criança pode

ter alma e talvez não seja certo enterrá-las vivas.

Numa família suruwahá, nasceu essa criança hermafrodita, com

pseudo-hermafroditismo, e pela tradição da tribo a menina tinha que ser morta

imediatamente, mas por causa da transformação ocorrida com Hakani, negaram-se

a sacrificá-la. Os pais disseram que poderia haver esperança para ela e quiseram

tentar a medicina dos brancos. Vieram para a cidade, e a menina foi operada.

Essa é Iganani, suruwahá, filha de Muwaji e que também deveria ter sido

sacrificada na tribo, mas a mãe resolveu lutar por sua vida. Ela ama a filha e acha

que ela tem direito de viver.

Existem muitos pensamentos — e eu me incluo — que muitas vezes

confundem a nossa ética e a nossa consciência, e ficamos sem saber como agir

diante de situações como essas.

Não vou discutir esses conceitos, porque o Dr. Eduardo, antropólogo, falará

sobre o assunto. Mas existem mesmo muitos pensamentos que nos dificultam

entender tais conhecimentos e decidir como ajudar esses povos.

Quero deixar aqui, de maneira bem clara, uma questão muito simples. Pelo

menos 200 crianças indígenas são mortas no Brasil de hoje — são enterradas vivas,

sufocadas com folhas, abandonadas no mato. Entre os ianomâmis, no mínimo 200

crianças foram mortas nos últimos 5 anos; no Xingu, cerca de 30 são enterradas

vivas por ano. Essas são as 2 áreas de que temos dados, das outras faltam

pesquisas.

Acredito não ser a hora — e é o que diz o convite que nos feito pela

Comissão de Direitos Humanos — de julgarmos ou de procurarmos culpados. Não é

para isso que estamos aqui. Creio que estamos aqui para buscar soluções junto com

os povos indígenas que estão nos procurando e pedindo ajuda e dizendo que

querem mudar esse aspecto da cultura deles. Eles estão buscando soluções, porque

têm sofrido muito com as mortes dessas crianças.

Este é o exemplo dos ikpengs, que nos procuraram no início do ano: uma

família ikpeng veio a Brasília, marcou reunião conosco numa praça. O senhor nos

disse que seu filho havia tido trigêmeos e não queria matá-los. “A tradição de minha

cultura é matar, mas não quero matar. Ajuda a gente.” Estamos ajudando essa

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família. Eles tiveram que sair da aldeia, estão morando em Sinop e recebendo apoio,

para não ter que sacrificar as crianças.

Esses são os trigêmeos. Estão crescendo lindos. Há muitas pessoas

ajudando. Eles não podem voltar para a aldeia neste momento, porque a vergonha e

o sofrimento da família são muito grandes.

Essa é Hakani, como está hoje. Foi uma das tantas crianças que vimos, que

trouxe esperança para essa situação.

Essa é Lulu, menina que também escapou do infanticídio. São crianças que

escaparam do infanticídio. Ela estava sendo enterrada viva, alguém a tirou e

resolveu criá-la. Ela está viva.

O Amalé estará conosco. Filho de Kamiru, foi enterrado vivo, mas uma índia

avisou Kamiru, índia kamayurá. Ela foi à casa, desenterrou o menino e está

cuidando dele.

Essa é sobrevivente. A mãe matou 2 outras crianças, mas ela escapou.

Essa é a menina suruwahá que gerou tanta polêmica. Ela voltou para a

aldeia, foi aceita no meio do povo e está muito feliz com o pai e a mãe.

Esses são os bebês gêmeos kuikuros, que também foram salvos, estão

sendo acompanhados pela Atini.

Aí está a família dos trigêmeos recebendo o apoio da Atini.

Kamiru Kamayurá também recebe apoio da Atini para criar Amalé.

Esses são os gêmeos kuikuros e Kawana. Essa mulher ajudou a salvar 3

crianças que iriam ser enterradas vivas, adotou-as.

Termino dizendo qual é a missão da Atini, nossa organização. Atini significa

voz, porque entendemos que é hora de silenciar nossa voz, nossas ideologias,

nossos pensamentos e ouvir a voz das mulheres indígenas, o que elas têm a dizer.

Às vezes, o que elas dizem não é bem o que queremos ouvir. Começamos a ouvir

que as mulheres estavam sofrendo muito por causa do infanticídio, e elas querem

soluções para essa situação. Então, a Atini se chama Voz Pela Vida.

Nosso objetivo é erradicar o infanticídio nas comunidades indígenas,

promovendo a conscientização, fomentando a educação e dando apoio assistencial

às crianças em situação de risco. Temos que ajudar os pais, que precisam sair por

um momento da aldeia, e depois acompanhar a reinserção dessas crianças na

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comunidade, mas também desenvolver na aldeia programas que ajudem a

população a buscar soluções para esse problema, tão sério. Tudo tem que ser feito

com diálogo e muito respeito. A Atini não está fazendo isso sozinha, há em nosso

Conselho Deliberativo líderes indígenas, que ajudam a pensar. Alguns deles estão

hoje conosco. Agradeço a todos.

Com a última imagem, da Muwaji, concluo dizendo que ela é vulnerável, sim.

Ela é mulher, de uma comunidade indígena, não fala português. A criança é

triplamente vulnerável: é criança, é indígena, é deficiente. Mas Muwaji está tendo

coragem de desafiar sua própria cultura e de enfrentar a burocracia do mundo de

fora porque quer sua filha viva. Ela tem direito de fazer isso, como tantas outras

mulheres indígenas têm o direito de questionar sua própria tradição e propor

mudança.

Muito obrigada.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Obrigado à Profa. Márcia

Suzuki.

Concedo a palavra à Sra. Maíra de Paula Barreto, doutoranda em Direitos

Humanos pela Universidade de Salamanca.

A SRA. MAÍRA DE PAULA BARRETO - Exmo. Sr. Deputado Luiz Couto,

Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos

Deputados, na pessoa de quem agradeço o honroso convite e cumprimento os

demais membros da Mesa e demais Deputados e Deputadas, senhoras e senhores,

inicialmente, destaco que a controvérsia relativismo cultural versus direitos humanos

universais só se dá no âmbito acadêmico, pois legalmente essa controvérsia já foi

resolvida. O Brasil é signatário dos principais tratados de direitos humanos, os quais

afirmam e reafirmam a universalidade e a supremacia dos direitos humanos. E a

cada ano, o Brasil vem consolidando ainda mais essa posição. Além do Decreto

5.051, de 2004, citado, que promulga a Convenção 169 da OIT e deixa clara a

prevalência dos direitos humanos quando há conflito com costumes, há 2 outros

decretos bastante recentes, entre outros, que também deixam clara essa posição.

Um é o Decreto 5.737, de 2006, o qual promulga a Convenção para a Salvaguarda

do Patrimônio Cultural Imaterial, que define que somente será levado em conta o

patrimônio cultural imaterial compatível com os instrumentos internacionais de

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direitos humanos. O outro é o Decreto 6.177, de 1º de agosto de 2007, o qual

promulga a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade e Expressões

Culturais, que define como princípio diretor o respeito aos direitos humanos e

liberdades fundamentais, dizendo que a diversidade cultural somente poderá ser

protegida e promovida se estiverem garantidos os direitos humanos e as liberdades

fundamentais e que ninguém poderá invocar as disposições da convenção para

tentar ou limitar os direitos humanos garantidos pelo Direito Internacional.

Não se pode deixar de mencionar a própria Declaração das Nações Unidas

sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pelo Conselho de Direitos

Humanos da ONU em 2006, a qual afirma que no exercício dos direitos enunciados

na declaração serão respeitados os direitos humanos de todos e que as disposições

da declaração deverão ser interpretadas de acordo com o respeito aos direitos

humanos.

A ONU tem lutado há quase 30 anos pelo fim das chamadas práticas

tradicionais nocivas, com especial ênfase às práticas cometidas contra mulheres e

crianças. Nesse rol foi destacada a mutilação genital feminina e o infanticídio

feminino, pois são 2 práticas que atentam contra os mais fundamentais dos direitos:

à vida e à integridade física.

Assim, no levantamento parcial que fiz a respeito dos documentos

internacionais que tratam do combate a práticas tradicionais nocivas, verifiquei que

existem 3 resoluções da Assembléia Geral da ONU específicas sobre o tema; uma

resolução da mesma Assembléia sobre os direitos da criança em geral, mas que

menciona o tema; um relatório do Secretário-Geral da ONU; 4 documentos da antiga

Comissão de Direitos Humanos da ONU; um documento do Alto Comissariado de

Direitos Humanos da ONU; 4 documentos de Innocent, do UNICEF, entre eles um

específico sobre mutilação genital feminina e outro sobre os direitos das crianças

indígenas; 25 documentos da Subcomissão de Promoção e Proteção dos Direitos

Humanos da ONU, entre eles 9 relatórios da Relatora Especial da ONU sobre

práticas tradicionais que afetam a saúde de mulheres e de crianças; 6 documentos

da Subcomissão para Prevenção de Discriminações e Proteção às Minorias, entre

os quais se encontra um plano de ação para a eliminação das práticas tradicionais

prejudiciais à saúde da mulher e da criança; e a própria Convenção sobre os Direitos

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da Criança, promulgada pelo Brasil, a qual estabelece que os estados-parte deverão

abolir as práticas tradicionais nocivas.

Em todos esses documentos mencionados, que gostaria de entregar à

Comissão, deixarei com o Exmo. Deputado, há recomendações expressas e

chamamentos aos estados para que erradiquem e condenem tais práticas. O Brasil,

obviamente como membro das Nações Unidas, incluiu-se como destinatário desses

chamamentos.

É interessante ressaltar um caso semelhante ao brasileiro, o do Estado de

Benin, na África. Lá, pratica-se o infanticídio quando nascem crianças deficientes,

enfeitiçadas ou amaldiçoadas, quando a mãe morreu no parto ou quando não

nasceu o primeiro dente da criança até os 8 meses. A criança pode ser morta

abandonada ou com a cabeça esmigalhada contra um tronco de árvore.

Como Benin reconheceu perante as Nações Unidas que persiste essa prática

em seu território, a ONU fez recomendações, por meio de seu Comitê de Direitos da

Criança e de seu Comitê de Direitos Humanos, para que Benin adotasse medidas,

inclusive legislativas, a fim de prevenir e acabar com o infanticídio, para proteger as

crianças e garantir seu direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento. Assim,

recomendou também a educação da comunidade em direitos da criança e a

provisão de suporte adequado às ONGs que trabalham nesse campo.

No relatório de segmento da Relatora Especial da ONU sobre práticas

tradicionais que afetam a saúde das mulheres e das crianças, o Brasil, no item 29,

negou que haja práticas tradicionais nocivas em seu território afetando a saúde de

mulheres e crianças. Por isso, a ONU não sabe que aqui existe, sim, a prática

tradicional nociva de infanticídio. Dessa maneira, a ONU não toma providências a

respeito. Se as Nações Unidas e o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos

Humanos tivessem conhecimento do que se passa no Brasil com relação ao

infanticídio, com certeza já teriam se manifestado com recomendações e

advertências, a fim de que o Brasil tome providências para abolir a prática.

De fato, as questões culturais são bastante delicadas e exigem estudos sobre

o tema, para que haja uma atuação estatal não danosa, muito diferente do que o

Brasil vem adotando historicamente. Porém, isso não justifica negar no cenário

internacional a ocorrência de conflitos nessa área em nosso País e, muito menos,

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atuar internamente de maneira permissiva com relação a essas práticas. Há que

dialogar intensamente, para que haja efetiva política estatal de defesa da vida das

crianças e preservação da integridade psíquica de seus pais, que, na maioria dos

casos que chegaram ao meu conhecimento, sofrem profundamente ao serem

compelidos a matar ou deixar matar seus filhos.

Obviamente, a questão da inimputabilidade penal do indígena deve ser levada

em conta, conforme já estabelece a legislação penal vigente. Desgraçadamente,

ainda hoje, no Direito Penal, fala-se que o indígena é comparável à pessoa com

desenvolvimento mental incompleto e, por isso, inimputável, dependendo de seu

grau de aculturação. Alguns poucos autores já tratam o tema de maneira mais

adequada, falando em erro de compreensão culturalmente condicionado, que resulta

também em exclusão da culpabilidade. Além disso, cabe salientar que o pai que

esqueceu o filho dentro do carro, o que levou à morte do bebê — fato recente —,

não foi nem será preso, pois se sabe que a dor que aquele pai sentiu com a morte

do filho é mais forte do que qualquer sanção que lhe possa ser aplicada. Os pais

indígenas que, muitas vezes, não querem cometer o ato, mas são pressionados pelo

seu meio, também carregarão consigo a dor da perda de um filho e da impotência

em mudar a situação. Porém, as demais pessoas que vivem ou trabalham nas áreas

indígenas, sabendo da possibilidade de infanticídio, se não agirem, seja

comunicando às autoridades competentes, seja impedindo pessoalmente a morte da

criança, responderão por omissão de socorro. Isso já é lei. Os bens jurídicos

tutelados no tipo penal omissão de socorro, art. 135 do Código Penal, são a vida e a

saúde da pessoa humana, seja ela indígena ou não. É ressaltada a necessidade de

proteção especial às crianças abandonadas ou pessoas em grave e iminente perigo.

Ou seja, as crianças indígenas, como todas as demais crianças em situação de

perigo, são tuteladas por meio desse tipo penal.

Portanto, o Projeto de Lei 1.057/07, proposto pelo ilustre Deputado Henrique

Afonso, o qual prevê a tipificação da omissão de socorro nesses casos de

infanticídio, vem apenas como reforço à legislação já vigente, um reforço muito

válido, por sinal, já que a maioria das pessoas que trabalha ou vive na área pensa,

equivocadamente, que está impedida por lei de atuar, uma lei que não existe,

obviamente, em casos de risco de infanticídio.

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A confusão advém de uma interpretação equivocada do art. 231 da

Constituição. Primeiramente, é necessário deixar muito claro que no Direito não

existe a menor dúvida a respeito da interpretação que se deve fazer da Constituição

Federal. Deve ser sistemática, ou seja, deve ser interpretada como um todo, e não

em artigos isoladamente, como se estivessem fora de todo o ordenamento jurídico

brasileiro. E mais, a Constituição Federal inteira deverá ser interpretada de acordo

com os direitos fundamentais estabelecidos nela própria. E o direito à vida é o direito

tutelado por excelência. Assim sendo, estabelece o art. 231 da Constituição Federal

que são reconhecidos aos indígenas seus usos, costumes, línguas, organização

social, etc. Entretanto, existe um limite a esse reconhecimento, a colisão com

direitos fundamentais. Aqui cabe chamar a atenção para o fato de que somente se

defende a limitação dessas tradições quando há colisão com direitos fundamentais.

Se não houver colisão, jamais se cogita a idéia de limitar tais tradições, pelo

contrário, devem ser fomentadas com veemência.

Portanto, a cultura não é o bem maior a ser tutelado, mas sim o ser humano,

no intuito de lhe propiciar bem-estar e minimizar seu sofrimento. Os direitos

humanos perdem completamente o seu sentido de existir se o ser humano for

retirado do centro do discurso e da práxis. Por conseguinte, a tolerância, no sentido

de aceitação, reconhecimento da legitimidade em relação à diversidade cultural,

deve ser norteada pelo respeito aos direitos humanos. Essa é a visão que propugna

a universalidade dos direitos humanos. Esses valem para todos, independentemente

de sua cultura, etnia, sexo, etc. O Estado brasileiro, como Estado democrático que

é, deve tutelar a vida das crianças que são potenciais vítimas de infanticídio

independentemente de sua etnia, ou melhor, deve dar uma atenção ainda mais

especial a elas por fazerem parte de uma minoria nacional.

Os direitos fundamentais delas são os mesmos que os de qualquer outra

criança brasileira. Além de detentoras de direitos fundamentais gerais, ainda lhes

assiste um rol de direitos fundamentais especiais pela sua condição de fragilidade.

Todas as crianças se encontram sob a proteção da Constituição, que, no seu art.

227, dispõe que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança o

direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à

cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,

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além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,

violência, crueldade e opressão.

Da mesma maneira, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que a

criança e o adolescente têm direito à proteção, à vida e à saúde mediante a

efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o

desenvolvimento sadio e harmonioso em condições dignas de existência.

Também o Código Civil determina em seu art. 1º que toda pessoa, o que

inclui obviamente as crianças, é capaz de direitos e deveres na ordem civil. E o seu

art. 2º dispõe que o começo da personalidade civil se dá com o nascimento com

vida, deixando claro que os neonatos já são titulares de personalidade civil. Também

é de se destacar que há uma preocupação manifesta no Código Civil com os filhos,

havendo um título dedicado à proteção da pessoa dos filhos.

Por último, a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada em 1989 e

promulgada por meio do Decreto 99.710, de 1990, além de reconhecer o direito à

vida como inerente a toda criança, afirma a prevalência do direito à saúde da criança

no conflito com práticas tradicionais nocivas e a obrigação de que os estados-partes

repudiem tais práticas, ao dispor no seu art. 24, 3, o seguinte: “Os estados-partes

tomam todas as medidas eficazes e adequadas com vista a abolir as práticas

tradicionais prejudiciais à saúde das crianças”.

Demonstra-se, portanto, que os diplomas legais acima referidos garantem o

direito à vida como direito por excelência. A título de exemplo da omissão do Brasil

nesse tema, cito trecho de uma entrevista realizada com o Diretor Técnico do Distrito

Sanitário Ianomâmi, que afirma que o trabalho da FUNASA e das instituições

conveniadas não pretende interferir diretamente no infanticídio.

Diz o Diretor em sua entrevista:

“Mas nós já registramos uma demanda para uso de

métodos contraceptivos, e esse assunto está sendo

tratado com as lideranças das comunidades. Vejo como

um programa prioritário, porque é nosso dever oferecer a

elas os métodos de planejamento familiar como todo

brasileiro tem”.

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Aqui, cabe a pergunta: também não é seu dever proteger a vida das crianças

como um direito que todas as crianças brasileiras têm?

Obviamente, as tradições culturais são reconhecidas, mas não estão

legitimadas a justificar eugenias ou qualquer outra forma de violação de direitos

humanos. Acredito que uma alternativa mais imediata para resguardar a vida dessas

crianças seria uma política de incentivo à adoção, por meio do diálogo, quando a

criança não puder, de modo algum, ser reintegrada a sua família ou ao grupo.

Como, todavia, são em grande parte recém-nascidos, sua identidade ainda não se

encontra formada. Logo, se o grupo rejeita um recém-nascido, essa criança não

sofrerá danos em sua identidade, não se sentirá morto para aquele grupo.

Certamente, poderá formar sua identidade em outra sociedade, que o acolha e o

aceite.

Mas, se a família desejar continuar com a criança, o Estado deve dar todo o

suporte para que esta consiga resistir às pressões do grupo. Quando o grupo não

deseja rejeitar a criança, mas sim buscar tratamento, nos casos, por exemplo, de

crianças deficientes, obviamente a atuação do Governo deve guiar-se pelo princípio

fundamental de respeito à vida e à dignidade humana, o qual permeia todo o

ordenamento jurídico.

Agora, se depois de conhecer os meios de evitar prática de infanticídio, um

grupo não demonstrar vontade de tentar salvar as crianças, creio que a alternativa

da adoção seja a mais adequada, pois garante o direito à vida que a criança possui.

É certo que se trata de uma situação imediata e não definitiva, pois a questão

demanda estudos e cuidado no tratamento. Por outro lado, é urgente que se tutele a

vida dessas crianças, que muitas vezes não podem esperar enquanto os estudos

científicos não estejam prontos.

Existe um princípio, tanto no Direito Internacional como no Direito interno, que

se chama Princípio do Melhor Interesse da Criança, que informa não somente o

Direito de Família, mas todo o ordenamento jurídico brasileiro.

Nesta exposição, utilizou-se o termo infanticídio, apesar de juridicamente não

ser esse o termo correto. Trata-se, na verdade, de homicídio de crianças indígenas,

e não infanticídio, pois para o Direito Penal é necessário que a mãe aja no estado

puerperal para que se caracterize o infanticídio.

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No caso dos indígenas, o motivo é cultural, e não biológico, porém, como na

mídia e na sociedade o termo infanticídio se consolidou quando se fala no assunto,

também resolvi utilizar esse termo, apesar da imprecisão jurídica.

Concluindo, é absolutamente inconcebível, portanto, que o Brasil tenha todo

um arcabouço legal, adotando a universalidade dos direitos humanos, e na prática

atue com base no relativismo cultural, ou melhor, se omita com base no relativismo

cultural. Se o Brasil quiser, de fato, ter uma atuação relativista, então, que denuncie

todos os tratados de direitos humanos dos quais é signatário e revogue suas leis e

direitos fundamentais, para que seja coerente. Do contrário, que tenha, então, uma

atuação compatível com sua legislação vigente, a qual propugna o direito à vida, por

excelência, de todas as crianças, inclusive as indígenas.

Muito obrigado.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Obrigado, Sra. Maíra de Paula

Barreto.

Verificamos que as 2 primeiras expositoras excederam o tempo de 10 minutos

concedido, a média foi de 15 minutos. Solicitamos aos próximos expositores que se

limitem ao tempo que lhes for concedido.

Combinamos com o Deputado Henrique que, se houver votação nominal no

plenário, vamos nos revezar para votar. Daremos prosseguimento a esta reunião, a

fim de debatermos mais esse tema, que é importante.

Concedo a palavra ao Sr. Márcio Augusto Freitas Meira, Presidente da

Fundação Nacional do Índio, FUNAI, por 15 minutos, improrrogáveis.

O SR. MÁRCIO AUGUSTO FREITAS MEIRA - Exmo. Deputado Luiz Couto,

Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, prometo que vou falar até

menos do que 10 minutos.

Cumprimento a Sra. Maíra e a Profa. Márcia pelas exposições.

Deputado, em primeiro lugar, destaco o que já foi dito pelas 2 expositoras que

me antecederam: este é um tema extremamente complexo, difícil de ser abordado,

tanto pelo Direito quanto pela Antropologia, pela Sociologia, enfim, por todos os que

se dedicam à causa indígena. Não é tema simples, portanto, exige cuidado, como já

foi dito pela Maíra, delicadeza de tratamento.

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Por ser tema que diz respeito diretamente à vida, ele é complexo.

Referimo-nos aos direitos humanos. Aí, há uma série de situações contraditórias,

porque às vezes os direitos humanos em jogo são contraditórios. A própria

legislação revela isso, não só o Direito Internacional como também o Direito

brasileiro, a nossa Constituição. Ou seja, assim como existe o direito de todos à

vida, existe também o direito à diferença entre culturas, povos, civilizações. O limite

entre esses 2 campos importantes dos direitos humanos persegue a nós, ocidentais,

há mais de 500 anos.

Ao ouvir as exposições e analisar o contexto em que estamos, lembrei-me de

um debate muito famoso ocorrido em 1550 e que para mim não foi concluído até

hoje, pois estamos aqui discutindo o mesmo tema. O debate aconteceu na Espanha,

mais precisamente em Valladolid, num convento dominicano, se não me engano. O

Papa, que, na época, tinha muito mais poder do que os papas de hoje, delegou a

seu representante oficial que fosse o juiz de uma discussão muito séria, que

continua até hoje. Dois opositores, o filósofo chamado Sepúlveda e o dominicano

chamado Bartolomeu de Las Casas debatiam o seguinte tema: os ameríndios são

ou não humanos?

Esse grande debate de 1550 era essencial, porque dele resultaria ou não a

legitimação da conquista espanhola e portuguesa das Américas, inclusive com a

escravidão e a violência. Talvez o maior ato de desrespeito aos direitos humanos da

História, o maior genocídio da História, tenha sido o massacre que os povos

indígenas sofreram nas Américas nos últimos 500 anos.

O referido debate era exatamente sobre esse tema e durou 3 dias. O

interessante é que o representante do Papa decidiu pela causa de Bartolomeu de

Las Casas, dizendo que os índios tinham alma e eram humanos, portanto, não

podiam ser escravizados. No entanto, a escravidão continua até hoje, há muitos

casos de escravidão de indígenas no Brasil e em outros lugares das Américas.

Mas o detalhe é que era preciso encontrar uma solução para a vida prática da

expansão colonial. A solução foi que os negros poderiam ser escravizados, porque

esses não tinham alma, não eram humanos completos.

Deputado, desde que eu assumi a Presidência da FUNAI, há 5 meses, vejo o

quanto essa discussão é atual. Todos os dias deparo-me com esse debate na

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FUNAI. É triste dizer isso, porque esse tema já deveria ter sido superado há tempos.

Talvez isso esteja por trás até do que discutimos aqui hoje, porque tratamos de um

assunto que considero extremamente delicado para ser definido de forma

precipitada.

Minha postura, como representante do Estado brasileiro, que é laico, é que

devemos ter cuidado no tratamento dessa questão, temos que analisar caso a caso.

No Brasil, temos uma situação da qual os povos indígenas aqui representados

falarão melhor do que eu. Aliás, abro parêntese para dizer que estou aqui falando

bobamente, no bom sentido, porque quem tem condições efetivas, éticas e

adequadas de falar sobre esse tema são as mulheres indígenas. Fecho o parêntese,

Deputado, e digo que temos no Brasil 222 povos indígenas, cada um diferente do

outro. Além disso, cada povo tem uma história diferente de relacionamento com o

Ocidente. Há povos que há 300 anos adotaram o catolicismo. Poderemos até dizer

que é um catolicismo híbrido, uma mistura com elementos da religiosidade indígena.

Por conta de toda essa complexidade, que envolve a garantia do que está

previsto na legislação brasileira e na legislação internacional ratificada pelo Brasil,

há uma contradição entre 2 níveis de direitos humanos: o direito à vida, que

precisamos abordar com seriedade, caso a caso, analisando qual seria a melhor

solução para cada caso, e o direito à diferença, que não podemos perder de vista

jamais, porque cada civilização tem sua própria noção do que significam os direitos

humanos. Esses direitos incluem o direito de um povo ter a sua própria concepção a

respeito dos direitos humanos. Mas de onde vem e aonde vão esses limites, nessa

confluência entre civilizações — Ocidente e civilizações indígenas —, é um tema

que realmente requer muito esforço de reflexão, de cuidado, de dedicação, de

aprofundamento.

Acho que, no momento deste debate, é muito precipitado fazer qualquer

prejulgamento de quem quer que seja, seja indígena, seja não-indígena, afeto a

esse tipo de questão.

Há vários servidores da FUNAI aqui. Eles têm uma longa experiência de

contato com povos indígenas e sabem, no dia-a-dia das aldeias, o quanto é

complexo esse tema. Trata-se de servidores públicos sérios, que conduzem essa

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relação com os povos indígenas de forma muito cuidadosa. Portanto, não podem ser

precipitadamente julgados.

Acho que este momento não deve ser, nem é, a repetição daquele momento

de 1550, da disputa entre Bartolomeu de Las Casas e Sepúlveda. Não estamos aqui

julgando se os povos indígenas são ou não humanos, se têm ou não alma. Não

estamos fazendo sequer algum julgamento ainda sobre esse tema.

Era o que eu tinha a dizer.

Deputado, espero ter cumprido os 10 minutos.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Obrigado.

Passo a palavra à Sra. Valéria, representante do Fórum em Defesa dos

Direitos Indígenas.

A SRA. VALÉRIA PAYÊ - (Trecho em língua indígena.)

Boa tarde a todo o mundo. Quero começar minha fala destacando a questão

da diferença a que temos direito em nosso País. Infelizmente, preciso traduzir para

vocês o que quero dizer aqui. Se me fosse permitido, eu poderia começar falando,

na minha própria língua, a respeito dessa diferença que o nosso País precisa

começar a conhecer.

Vou relatar um pouco minha experiência como indígena e como mulher. E

dizer também para as mulheres indígenas, as parentas, sobre o caso relatado aqui.

Acho que a parenta deve estar aí com a criança. Essa temática realmente é

complicada. Nós, povos indígenas, começamos a discutir isso em nossas

comunidades.

Quero contar a história do meu povo, da minha região. Venho do

Tumucumaque, no norte do Pará, onde há 4 povos indígenas — Tiriyó, Katxuyana,

Aparai e Wayana. Há 25 anos, ocorria com o meu povo casos como os que aqui

estamos chamando de infanticídio. Várias outras mulheres estão puxando esse

caso. O meu povo, os meus avós, as minhas tias puxaram essa discussão dentro da

comunidade. Preocupa-me muito tratar isso como se todos os povos indígenas

praticassem esse ato no dia-a-dia. Foi destacada aqui a experiência suruwahá. É um

povo semi-isolado, assim como os ianomâmis.

Quem convive lá dentro, no dia-a-dia? Será que eles também não têm direito

a essa diferença? Não têm direito de conduzir a situação, para não cairmos nesse

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processo de tentar igualar todo mundo e acabar com as diferenças a que temos

direito, como foi bem observado pelo Presidente? Até da própria concepção da

diferença do direito humano. Precisamos analisar esse aspecto. Isso está dito na

Constituição. Precisamos debater o assunto. Será que essa visão que estamos

discutindo aqui é a mais certa? Essa imposição da visão do ocidente é a mais

correta? Pergunto para todos que estão na platéia: é isso mesmo? Queremos

colocar todo mundo no mesmo patamar de igualdade? Será que a concepção mais

certa é a que construímos sob a visão do ocidente? Eu acho que está na hora de

começarmos refletir sobre tudo isso.

Há 30 anos, acontecia isso com o meu povo. Não mais acontece, por força

das nossas mulheres. Resolvemos, internamente. Não houve necessidade de

imposições externas para isso ser feito. Não foi preciso uma lei do Congresso

Nacional do Brasil para o povo Tiriyó, Katxuyana, Aparai e Wayana, até porque

dizemos que a cultura não é parada. Em certos momentos, para os povos indígenas,

na visão externa, ela tem de ser parada, tem de ser mantida daquele jeito, senão

não é mais índio. Por outro lado, quando se quer atropelar o processo, construímos

isso assim do jeito que está. Isso realmente me preocupa um pouco na condição de

mulher.

Parabéns para as mulheres, porque elas estão conseguindo se impor. O

Estado brasileiro tem de respeitar, sim, o nosso direito à diferença e a nossa

legislação. Precisamos começar a discutir a questão do pluralismo jurídico, de

respeito ao que se decide, se encaminha, sem impor, sem atropelar processos.

Nesse sentido, temos de tomar cuidado para não generalizar, é o que todos os

povos fazem.

O trabalho já está sendo feito internamente. Para nós, povos indígenas,

criança vale muito. Nós a preservamos e a queremos muito. Para nós, as crianças

têm todos os direitos. Jamais pensem que uma criança que saiu da aldeia para se

tratar vai ser recusada, que a comunidade vai condená-la. Não existe isso. Ao

contrário, as crianças que são retiradas dali muitas vezes têm dificuldade de se

adaptar à realidade; não é porque o povo não as queira mais, porque o povo as está

excluindo. A partir do momento que elas voltam, não correm perigo. Começo a

perceber os temores de que a criança corre sérios riscos. Conforme as experiências

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que vivemos nas nossas comunidades, isso não é realidade. Quando a criança

volta, ela é amada, é respeitada. Acompanhamos vários povos entre nós. Eu não

estou falando dos outros, estou falando de mim, como índia, do meu povo, da

realidade lá do tumucumaque, de onde vim.

Para começo de discussão, era isso que eu queria passar para vocês.

Parabéns, mulheres, parentas, que estão conduzindo esse processo. O ideal

seria continuarmos provocando, discutindo internamente, porque é assim que

encaminhamos a situação e a resolvemos. Os casos aqui citados como exemplo são

vitórias. De quem? De nós, mulheres indígenas, dentro das aldeias. Quem, dos

nossos parentes, vai tirar isso de nós, se você, como mãe segura, está defendendo?

Você está mudando a história. Como já falei, a cultura é dinâmica, não pode ser só

dos povos indígenas, apesar de os externos sempre quererem que ela seja estática,

parada. Não. Ela passa por um processo a ser construído. Ela não precisa dessa

interferência brutal externa, porque acontece no processo do dia-a-dia.

Obrigada. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Muito obrigado, Sra. Valéria,

que utilizou apenas 7 minutos.

Passaremos agora a palavra aos Parlamentares inscritos que desejarem fazer

indagações, pedidos de esclarecimentos ou mesmo considerações. Peço aos Srs.

Parlamentares que respeitem o tempo regimental de 3 minutos para que possamos

formar a segunda Mesa, quando todos novamente terão oportunidade de se

manifestar. A partir do momento que ouvirmos a outra Mesa, abriremos também

possibilidade de outras intervenções.

Passo a palavra ao Deputado Henrique Afonso, autor do requerimento.

O SR. DEPUTADO HENRIQUE AFONSO - Sr. Presidente, acabaram de me

informar que há algumas crianças sobreviventes do infanticídio. Sei que não faz

parte da tradição da Casa, mas gostaria que rapidamente essas crianças entrassem.

Elas vão apenas entregar uma cartilha para cada um componentes da Mesa.

Gostaria que V.Exa. me concedesse essa gentileza para que esse ato simbólico

ficasse registrado nesta audiência.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Pois não. (Pausa.)

Boa-tarde. Uma salva de palmas para vocês. (Palmas.)

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O SR. DEPUTADO HENRIQUE AFONSO - Criança é criança. Ponto.

Obrigado. Destaco a Muwaji. O projeto de lei que elaboramos na Câmara dos

Deputados a homenageia pela coragem que teve nessa luta em defesa das crianças

indígenas, com a Iganani. Não sei onde está a Kamiru. Aqui está a Hakani, essa

criança que estava falando. O Amalé representa todas as crianças que foram

desenterradas. Essa criança chegou a ser enterrada. Graças a Deus que alguém

avisou a kamiru, essa mulher que desenterrou essa criança, que foi realmente vítima

de todo o código cultural. Agradeço a presença das mães indígenas. Esta é a filha

da Márcia sobre quem ela relatou, a Hakani, que significa sorriso. Muito obrigado.

Agora vocês podem levar as crianças. (Palmas.)

Sr. Presidente, tenho muitas coisas para abordar neste debate. Mas terei a

inteira responsabilidade de destacar alguns pontos porque esta audiência é muito

propícia para este debate.

Em primeira instância, quero agradecer ao Sr. Márcio Meira. A Câmara dos

Deputados se sente muito lisonjeada por sua presença, porque já tivemos

momentos de debates como este e outros de esclarecimento no sentido de a FUNAI

nos ajudar em algumas reflexões, mas sempre o Presidente da Fundação Nacional

do Índio se recusava a comparecer. Parabenizo-o por sua presença porque isso

enriquece o debate. Agradeço também à Maíra, à Márcia, à Valéria e aos demais

que ainda irão participar da segunda rodada que teremos.

O nosso objetivo como Deputado é quebrar o silêncio que paira sobre o

debate do infanticídio.

Gostei muito quando a doutoranda Maíra observou que o debate acerca dos

direitos humanos perde o sentido quando o ser humano não é o centro de

prioridade. Isso de certa maneira contrasta efetivamente com as observações do Dr.

Márcio. Se cada povo deve ter seus direitos humanos assegurados pela livre

manifestação de suas diferenças culturais, deixo já uma pergunta para o Dr. Márcio:

como ficam os direitos universais que estão incluídos no direito à vida? Uma das

cláusulas pétreas da Constituição Federal é o direito à vida. Não consigo conceber a

Declaração Universal dos Direitos Humanos sem ter absolutamente a vida como um

direito universal. É um direito que se estende aos ciganos, aos quilombolas, aos

povos indígenas, às culturas orientais e ocidentais. Para mim a vida está acima de

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qualquer coisa. Isso é uma base, um alicerce para quem realmente quer assegurar

os direitos humanos.

Então, se eu entendo que hoje em algumas culturas esse direito está sendo

ameaçado, precisamos observar que ou tem algo errado na Constituição Federal ou

tem algo errado nessa cultura.

Nesse ponto, Valéria, a sua intervenção foi extremamente interessante. Você

observa algumas questões que entram em conflito inclusive com o pensamento

hegemônico do século XXI que está dentro da FUNAI, desculpe, Dr. Márcio, mas é

verdade, e está no Congresso Nacional e no Poder Judiciário, a saber, o relativismo

cultural. Relativismo, hoje, é um pensamento que orienta a prática, a práxis, da vida

das pessoas.

Se nós entendemos a cultura humana como a cultura dialética, que tudo se

relaciona com tudo, onde ela está em constante mudança... Você mesma observou

que a cultura não é imutável, pelo contrário, obedece a todo um processo de

mutabilidade. Esse projeto de lei, ainda que eu tenha recebido uma moção de

repúdio da Marcha das Margaridas — embora considere que aquela moção de

repúdio cometeu um grande equívoco, eu a respeito pois estamos num país

democrático, pluralista —, não criminaliza as mães indígenas. Quem elaborou

aquela moção não leu o meu projeto.

A Dra. Maíra enfatizou a importância de se punir qualquer pessoa que esteja

ali e saiba que uma mãe índia, por efeito ou de um ato religioso ou por um ato

cultural, vai levar uma criança ao sacrifício. Como foi observado, a aldeia jamais vai

impedir que uma criança receba um tratamento, também acredito nisso. Da mesma

forma em que há uma predisposição da FUNAI, da FUNASA e daqueles que são

adeptos do relativismo cultural que querem ver as aldeias indígenas imutáveis,

estáticas e acham que dessa maneira vai se preservar a cultura, não vemos esses

mesmos agentes se preocuparem com a invasão da Internet nas aldeias indígenas.

E aqui fala uma pessoa que mora na densidade da selva amazônica, no Município

de Cruzeiro do Sul. Conheço os katukinas, os poyanawas, de onde retirei uma índia

com quem me casei; conheço os ashaninkas e outras etnias.

Tenho absoluta convicção de que, pelos avanços da interação, do que a Dra.

Keila chama de relação intersubjetiva entre as aldeias, uma foi crescendo com a

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outra. Hoje os índios têm congressos e seminários, jamais entraria na minha cabeça,

pelos avanços que nossos índios têm tido no que eu chamaria de movimento... O

Estado brasileiro sempre cometeu um grande equívoco de entender os índios como

incompetentes e infantis, e não são incompetentes nem infantis.

Aliás, uma das lutas, e concebo isso como importante, é para garantir

autonomia e a preservação das suas tradições e da sua cultura. Penso que o

Presidente Lula foi extremamente inteligente na questão da OIT — Organização

Internacional do Trabalho, quando garantiu, em 2005, no Dia do Índio, que o Brasil

precisa respeitar as tradições e culturas dos nossos índios desde que isso não

venha, absolutamente, ferir os direitos humanos.

Esse nosso projeto não trata apenas do homicídio de crianças, o infanticídio,

trata também dos maus-tratos, das crianças vítimas de todas as formas de violência,

crianças indígenas e não-indígenas.

Ora, sabemos que em algumas aldeias, quando uma criança deficiente nasce

e a mãe se recusa a sacrificá-la, deixá-la na floresta, envenená-la ou enterrá-la,

essa criança vai crescer sendo rejeitada e discriminada, inclusive vítima de

maus-tratos. Quem vai ter coragem de dizer isso? Isso acontece nas aldeias

indígenas ou em algumas aldeias?

Temos tido cuidado, Valéria, ao darmos entrevistas, pois temos para mais de

200 etnias neste País, e me parece que, ainda não temos dados precisos, não

chega nem a 15 as etnias que ainda têm essa prática. Negar nós não podemos. A

ONU precisa saber que existe esse problema para nos ajudar a resolvê-lo.

Para encerrar, Sr. Presidente, não é criminalizando as mães índias, e esse

meu projeto não as criminaliza absolutamente, mas é garantindo efetivamente que o

Estado, por meio de políticas públicas, possa assegurar, acima de tudo, onde houver

uma aldeia com medo da escassez do ecossistema, de que estará ali auxiliando.

Quero citar até, Sr. Presidente, o caso de Ilhéus, penso que a Valéria deve ter

conhecimento, onde foi encaminhada para o Estado a preocupação com 53

pessoas, a maioria crianças, com desnutrição por conta das condições climáticas

daquela aldeia. No prazo de 5 dias, 5 chegaram ao óbito. Estamos falando não só

dos maus-tratos, não só do assassinato de crianças por conta da religiosidade de

determinada aldeia, mas também dos maus-tratos pelas péssimas condições de

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saúde das nossas crianças indígenas, que, muitas delas, ou morrem de subnutrição,

ou crescem sem as mínimas condições. E temos comprovado isso.

Sabemos que estão, de certa maneira, querendo criar um senso comum de

que o Deputado Henrique Afonso, com esse projeto, é um agente que quer colocar

as mulheres indígenas na cadeia. Se isso ocorrer vou ter que colocar a minha

esposa, porque ela é índia e não posso fazer isso. Há 20 anos luto em defesa dos

povos indígenas e tenho dado esse testemunho durante 5 anos.

Essa questão do infanticídio é porque sabemos que, em média, 200 crianças,

quando não são enterradas vivas são, infelizmente, jogadas na floresta. E esse tipo

de prática, assim como não é aceitável pelos não-índios, também não é para os

índios. Consideramos os índios seres humanos e eles podem receber os benefícios

da lei que assegura o direito fundamental.

E não é só isso, sabemos que muitas crianças estão desaparecidas neste

País. E no âmbito desta Comissão tem se tratado disso. Crianças com destino

desconhecido, crianças que são vítimas inclusive do incesto e que, às vezes, uma

pessoa sabe que está acontecendo, que um pai está abusando de uma criança de 9,

8, 6 anos e não tem coragem de denunciar.

É preciso... Seria redundante, porque o Estatuto da Criança e do Adolescente

já reza sobre isso. Graças a Deus temos ordem jurídica, nacional e internacional,

que defende a preservação dos direitos fundamentais dos nossos índios,

principalmente de suas tradições culturais. Se, nesses últimos 3 meses, a ONU ficou

sabendo que no Brasil existe infanticídio, não foi por causa da reportagem da revista

Veja, já que a reportagem feita pela revista depois que entrei com o pedido — o que

fiz em fevereiro — para debater esse tema. Inclusive, o tema já havia sido debatido

no âmbito da Comissão da Amazônia.

Eu só quero sonhar com uma sociedade de índios e de não-índios vivendo

em um lugar que lhes dê o direito fundamental à vida. Para mim, os índios não são

infantis nem incompetentes, são seres humanos dotados de todas as faculdades,

principalmente de sensibilidade. Imaginem uma criança jogada no meio da floresta e

ali permanecer sujeita às formigas, às feras e às cobras até o dia em que perde a

vida?

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Se temos o conhecimento desses fatos no País, temos, efetivamente, que ter

a coragem, do ponto de vista político e antropológico, de mudarmos essa realidade

por meio do diálogo entre culturas. Se a Internet está entrando nas aldeias ao

mesmo tempo em que se corta o cordão umbilical e se mutila o órgão genital

feminino, é possível que a gente possa mudar esse tipo de prática.

Segundo um grande filósofo, cujo nome não me recordo agora, toda cultura

tem manifestação de luz e manifestação de sombra. Manifestação de luz está ligada

à vida, e a vida é indiscutível. Por isso que o direito inalienável á vida é uma cláusula

pétrea da nossa Constituição. Manifestação de sombra está ligada à morte.

Podemos fazer alguma coisa. Ainda que não tenhamos o direito de invadir a

cultura de uma sociedade indígena, queremos ajudar com esse debate. Se

pudermos evitar que uma criança ameaçada de ir para a cova seja soterrada viva,

não custa ao Estado brasileiro criar uma política de incentivo à adoção ou a abrigos.

O projeto quer salvar a vida dessas crianças, respeitando o direito da mãe

índia, que não tem culpa por pensar segundo sua cultura. Não queremos criminalizar

a mãe ou o pajé ou o cacique, queremos salvar a vida das crianças.

Muito obrigado, Sr. Presidente. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Pedimos aos Parlamentares

que sejam cumpridores do tempo regimental de 3 minutos nas suas considerações

ou pedidos de esclarecimentos. Esta Mesa ainda irá responder às respostas e temos

outra Mesa, com 5 expositores, que também precisará de tempo para responder às

indagações.

Com a palavra a Deputada Solange Almeida.

A SRA. DEPUTADA SOLANGE ALMEIDA - Sr. Presidente, Deputado Luiz

Couto, senhores membros da Mesa, Sras. e Srs. Deputados, parabenizo o Deputado

Henrique Afonso, que trouxe à luz esse assunto por meio de projeto de lei; às

mulheres indígenas, que há 30 anos ou mais vêm lutando para acabar com essa

cultura, que não é benéfica para os povos indígenas nem para ninguém; e à Valéria

por suas considerações.

Sua exposição foi muito boa, muito interessante. Gostaríamos muito de não

precisar votar nesta Casa projetos de leis em defesa do direito à vida, à saúde, à

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educação, à habitação, porque tudo isso já está na Constituição, mas, infelizmente,

temos de votar projetos relacionados a esses temas o tempo todo.

Se, no Brasil, nós, mulheres, estamos defendendo que as mulheres de países

africanos que, por uma cultura com a qual não concordamos, não têm direito ao

prazer, temos também que defender o direito dessas crianças à vida. Fiquei muito

sensibilizada, inclusive suas palavras são perfeitas.

Acho que vocês, há 30 anos, reconheceram que essa cultura não podia

continuar, que estava à beira de uma barbárie. Vocês não concordaram, porque

perceberam essa questão da vida, e aquilo é parte de vocês, pela valorização que

vocês dão à criança. Como o Deputado analisou, não podemos dizer que hoje a

cultura do índio está intocada. Ela não está, o índio já mudou muito.

Você expôs perfeitamente que a cultura é uma coisa dinâmica, é uma coisa

de integração, de aproximação, ela vai mudando. Agora, há coisas que não

podemos aceitar. Não podemos aceitar que há 440 anos se discutiu se o índio era

humano ou não. Se ele é humano, ele tem direitos humanos. Brigo até pelos direitos

dos animais, que dirá pelos direitos humanos.

Dr. Márcio, gostei do que o senhor expôs, a defesa do seu pessoal, dos

antropólogos, dos funcionários da FUNAI. Não estamos aqui tirando nenhum direito

desses funcionários. Agora, o senhor dizer que há 440 anos se discute se o índio é

humano ou não, acho que isso foi decidido há 440 anos. Então, brigamos para

defender que as pessoas possam ter suas diferenças, inclusive crianças não

perfeitas. Não queremos um mundo de perfeitos. Temos que defender também a

diferença dessas crianças.

Fico triste de não poder continuar nesta reunião, mas com muitas coisas na

Casa é impossível permanecer. Na Frente Parlamentar de Saúde vamos discutir um

ponto muito importante, que é a Emenda Constitucional nº 29, portanto, preciso me

ausentar.

Parabenizo todos vocês que compareceram, inclusive os representantes da

FUNAI, porque acho que é se fazendo presente que vamos conseguir levar esse

debate. E é por intermédio de pessoas como você, Valéria, de mulheres guerreiras,

que estão reconhecendo seus direitos dentro de seu grupo, que vamos conseguir

levar essa mensagem para as tribos que ainda praticam essa selvageria, essa

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barbárie, a fim de que isso não mais aconteça e vivamos realmente em um País

onde o respeito à vida seja fundamental e seja parte integrante de nossa sociedade,

qualquer que seja a sua diferença.

Parabéns, Deputado Henrique Afonso. Parabéns aos convidados. Acho que

deveríamos fazer uma moção de aplauso, porque foi trazido à tona um tabu, uma

coisa que precisei ser Deputada, com 46 anos de idade, para descobrir que isso

existia em nosso Brasil. Sou do Sudeste, do Rio de Janeiro, e precisei me tornar

Deputada para descobrir na Câmara que acontecia isso, antes da publicidade que o

assunto está dando, mas é impressionante como ficamos distantes neste País tão

grande.

Obrigada.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Com a palavra o Deputado

Joseph Bandeira, PT da Bahia.

O SR. DEPUTADO JOSEPH BANDEIRA - Sr. Presidente, Sras. e Srs.

Parlamentares, senhoras e senhores convidados, estamos todos estarrecidos. O

que me parece que está acontecendo, Deputado Henrique Afonso, é que há um

vazio institucional que tem de ser urgentemente preenchido, para que se possa

compatibilizar as culturas de modo a defendermos a vida. Também sou contra

qualquer tipo de violência contra a vida. Tenho coragem de dizer que sou contra o

aborto em tese e tenho a coragem de dizer que sou contra, e já não mais em tese, a

pena de morte.

Estamos vendo que ainda não conseguimos civilizar parte da população

brasileira, no sentido de que esses valores, afinal, triunfem. Não estou fazendo

nenhum tipo de reparo às tradições antigas, o índio é nosso irmão e ele também

precisa às vezes se proteger.

Todos, que estudamos a colonização feita a ferro e fogo, principalmente nas

Américas, sabemos — há um depoimento histórico que não pode jamais ser calado

dos padres espanhóis que acompanharam a implantação do processo — que

quando os índios, e depois os negros, não mais achavam nenhum caminho que lhes

permitissem a sobrevivência, eles se matavam. Eles se ateavam fogo, às vezes,

com crianças nos braços.

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Quer me parecer que, diante do que está acontecendo, aqui, em uma

avaliação de longe, mas vou procurar me inteirar em profundidade das questões, é

preciso urgentemente que o nosso Governo, no qual tanto acreditamos, o Governo

da esperança, o Governo que defendemos, esteja mais presente, sem embargos —

já está presente, principalmente pelo exemplo que o Dr. Márcio Meira está nos

dando. A tradição nesta Casa é que quando a FUNAI era convocada ela não

comparecia e o senhor comparece, se expõe e discute conosco.

Também recebi, por parte de Amaury Melgaço, representante da comunidade

Tupinambá em Olivença, na Bahia, esse documento, Deputado Henrique Afonso,

dos 53 meninos e meninas que estão morrendo por falta de cuidados. Temos de

analisar todos os aspectos da problemática para viabilizarmos — esta Comissão dá

o exemplo hoje, a requerimento de V.Exa., a quem parabenizo, e vai contar sempre

com o nosso apoio —, uma forma de atender todas essas demandas sociais que, na

verdade, como V.Exa. muito bem disse, e a Deputada que o secundou, são atos de

defesa intransigente da vida contra qualquer tipo de sombra da morte,

principalmente em torno de nossas crianças.

Parabéns a V.Exa. e parabéns a todos.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Obrigado, Deputado Joseph

Bandeira.

Com a palavra o Deputado Eduardo Barbosa, do PSDB de Minas Gerais.

O SR. DEPUTADO EDUARDO BARBOSA - Obrigado, Sr. Presidente.

Em primeiro lugar, cumprimento o Deputado Henrique Afonso pela grandeza

de não só se inteirar do problema, mas de propor à Comissão esta reunião para

aprofundar o exame do assunto e talvez até ser um aliado na condução da

articulação de um diálogo mais estreito com as comunidades indígenas com relação

ao tema, já que de alguma forma toda essa questão incomoda, e todos nós,

enquanto brasileiros, sempre refletimos como devemos nos posicionar diante de tais

fatos.

O Deputado Henrique Afonso fez um desabafo quanto à forma como, às

vezes, são tratadas as questões aqui apresentadas. Precisamos reforçar a idéia de

que todos que aqui estão, todos os convidados, são pessoas dignas, inclusive estão

fazendo defesas dignas. Se temos alguns conflitos conceituais, isso não tira a

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dignidade da preocupação das pessoas em relação a temas como esses. Quem

dera que o Congresso pudesse ter esse tipo de preocupação e discussão. Acho que

nós, inclusive da área de direitos humanos, devemos ensinar mais a todos o respeito

às divergências de idéias, porque as intenções são as mais nobres possíveis. Vejo,

às vezes, que um fala, pensa diferente, e há uma hostilidade à pessoa ou à fala de

alguém, como se fossem inimigos. Ninguém aqui é inimigo dessas idéias, muito pelo

contrário.

Quero cumprimentar todos vocês. Foram brilhantes. Mas quero fazer 2

perguntas que poderiam ser respondidas, uma, pelo Dr. Márcio, e outra, pela

Valéria.

Valéria, entendi a sua clara defesa da determinação do próprio povo indígena,

daquilo que avalia ser importante, que a evolução cultural também se dá em cada

aldeia, mas, ao mesmo tempo, você manifestou que o seu povo inclusive conseguiu

ultrapassar essa prática. Você pertence também a um foro, o foro dos direitos

indígenas. Esse tipo de discussão, como se dá dentro do foro, como vocês

influenciam outros povos em relação a esse debate, a essa discussão? Isso faz

parte de uma temática, de uma programação desse foro nesses avanços, às vezes,

culturais que algumas tribos e alguns povos já conquistaram?

Ao mesmo tempo, dirijo-me ao Dr. Márcio, em relação a esse tipo de

abordagem.

A Márcia, por exemplo, nos apresentou o problema e nós temos também um

relatório no qual consta um apelo da própria índia no sentido de um socorro, de

ajuda, de apoio. Como se dá esse apoio? Como ele transpõe, às vezes, o apoio

individual a essa mulher aflita que não sabe como buscar caminhos? Como isso é

feito pela FUNAI em relação à civilização em que essa índia pertence? Fica apenas

no apoio individualizado ou tem outro tipo de apoio a essa pessoa?

Sabemos que algumas pessoas têm mais coragem de enfrentar situações

cristalizadas na sua cultura, enquanto outras não têm a mesma força. Isso acontece

também na nossa civilização. Há pessoas que aceitam passivamente alguns

processos, porque não têm condições de enfrenta-los. Outras não. Eu acredito que a

mesma coisa aconteça com as pessoas de uma tribo. Algumas precisam de algum

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tipo de sustentação maior. E como isso é feito com o Fórum? Existe uma articulação

para essa abordagem?

Eu gostaria, de forma pragmática, saber como é trabalhada essa questão ou

se ela não é trabalhada, se se omite desse debate.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Com a palavra o Deputado

Adão Pretto, do PT do Rio Grande do Sul.

O SR. DEPUTADO ADÃO PRETTO - Sr. Presidente, prezados membros da

Mesa, peço desculpas por não estar aqui desde o início, pois tinha outro

compromisso, mas ainda hoje, em pronunciamento que fiz, dizia que Pedro Álvares

Cabral não descobriu o Brasil; ele invadiu o Brasil, porque, quando chegou, os índios

já estavam aqui. Então, desde aquela época o Brasil entrou em conflito com os

nossos índios. Este Brasil era todo dos índios. Hoje, eles têm um naquinho de terra

aqui, acolá, e ainda tem gente querendo tomar deles esse restinho de terra.

Existem 8 projetos de decretos legislativos tentando anular decreto

governamental, que demarca terras indígenas e quilombolas.

Nós somos defensores dos índios, de seus costumes, de suas tradições, de

seus direitos. Agora, isso que está sendo debatido aqui, sinceramente, eu não sabia

que ainda existia essa prática.

Nós temos que saber lidar com essa questão tendo em vista que o índio não

age por mal. Faz por tradição, por religiosidade, e nós temos que ter cautela para

lidar com essa prática.

Há pessoas inteligentes, como a Valéria e tantos outros. Ela também admite

que esse costume não é viável, inclusive falou claramente que entre sua gente essa

prática já foi abolida. Então, nós temos que procurar uma maneira de eliminá-la

definitivamente, porque é insuportável até entre os próprios indígenas. Mas, como

eu disse, não podemos tratar de uma prática cultural com violência. Temos que ir

com jeito, com calma, para tentar convencer os indígenas.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Muito obrigado, Deputado Adão

Pretto.

Com a palavra o Deputado Praciano, do PT do Amazonas. S.Exa. dispõe de

até 3 minutos.

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O SR. DEPUTADO PRACIANO - Boa-tarde. Companheiros, eu até me

arrependi de ter-me inscrito. Eu me sinto tão analfabeto, tão ignorante nesse

assunto que, se o companheiro Márcio Meira me permite usar a mesma expressão,

vou falar alguns minutinhos bobamente, mais com o coração, com emoção do que

qualquer outra coisa.

Ser ou não antropólogo, ou sociólogo, pouco me ajudaria. Também não quero

ferir a sensibilidade de ninguém. Por favor, me entendam somente como um grande

ponto de interrogação, que eu consegui ao chegar a esta sala.

A impressão que eu tenho é que a companheira Márcia chegou a uma aldeia.

Não é índia, não nasceu na aldeia. Passou lá 20 anos e levou para aquela aldeia

todos os códigos do branco, da nossa civilização. Levou seus sentimentos; não

eram deles. Essa é a impressão que eu tenho. Levou códigos, levou padrões de

comportamento, influenciou inclusive a cultura dos índios.

A minoria são eles. Nós somos maioria. O direito vem do maior para o menor,

e ela conseguiu, lá dentro, colocar esse direito que é nosso, que é da maioria.

Desculpe-me, mas a ONU não vale para aquela aldeia. A Declaração dos Direitos

Humanos, que não contou com nenhuma representação indígena, em 1945, não

vale para índio. Constituição não vale para índio, na minha opinião.

Há uma colisão e um ponto de interseção. O homem branco vai à aldeia,

invade a aldeia, tira a terra do índio, diminui seus recursos, como aconteceu com os

Krenhakarore do Tocantins. Em 5 anos, demos espelho, facão, cesta básica, demos

para eles gonorréia e um monte de doença e, em 5 anos, 90% estavam mortos, não

por infanticídio, mas por nossa cultura, nossa forma de produzir, nossa forma de

invadir.

Existe um momento em que nós temos um ponto de interseção entre a cultura

do branco e a do índio. Nesse momento, nessa interseção, ainda cabe a

Constituição. No momento em que se desaldeia, em que se torna o cidadão menos

índio, no momento em que existe convivência naquela colisão eu preciso criar

regras. Aí pode caber a ONU.

Possuelo, um indigenista — não sei quem gosta ou não dele, porque eu leio

bastante, mas não sou especialista —, ao sair da FUNAI, disse que o fim do índio é

quando o branco chega e que seria bom que nós não os procurássemos.

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Esse povo sobre o qual a senhora fala, já semicontatado, desculpe-me, eu me

senti agredido em meu coração quando a senhora, ao mesmo tempo em que mostra

o índio lá na aldeia, de repente, passa para um apartamento confortável, com ar

condicionado, bercinho e roupinhas. Eu achei agressivo aquele negócio. Eu não sei

qual é a resposta a ser dada.

De repente, a gente arranja uma solução. Infanticídio entre os índios é um

negócio que me dói, dói a todos nós, é duro. Vamos levar para lá a polícia para

fiscalizar. Não. Não precisa polícia. Psicólogos para a mãe. Não. Não vamos levar

psicólogos não. Vamos levar assistente social. E aí vai o SUS, vai Internet, vai

telefone.

Nós temos é um problema muito sério que eu não sei se resolveremos

facilmente. Nós estamos lutando pelo índio talvez para evitar o irreversível, menos

dor, porque os tratores na Amazônia, enquanto nós estamos aqui, já acabaram com

4 milhões de metros quadrados de floresta. São 2 milhões de metros por hora. Neste

tempo em que estamos aqui, nós já perdemos 4 milhões de metros quadrados.

O índio está perdendo espaço, está perdendo recurso, está perdendo a

condição de vida. Ele virá aqui. A nossa grande função, desculpe-me, eu desconfio

que é isso, é mitigar a dor dessa transição. Ou, então, radicalmente, dizermos que

essa solução é mandar a polícia para lá, porque no momento em que se define um

direito, temos que executá-lo. Qual é o direito de não matar o índio? Mandando a

polícia, mandando o juiz. E para aqueles que não foram contatados? Vamos verificar

se lá também não tem, porque é um direito definido pela ONU, pela Constituição.

Vou dar aqui a minha opinião. Temos que mitigar essa dor. Invadir menos.

Adiar essa transição dura e manter o máximo a cultura do índio, embora com esse

link, com esse liame com a sociedade, mas o máximo da cultura, o máximo de suas

histórias, de seus conhecimentos milenares. Nós, brancos, devemos, ao máximo,

começar a brigar para não invadir as suas terras. Vamos definir as terras que estão

por definir, vamos deixa-los, ao máximo, isolados. O minério que está lá é mais

importante do que o índio, que está em cima?

Então, companheiros, o que falta realmente é uma coisa. Dizia um

companheiro que foi muito famoso no Brasil, nessa área indigenista, que é o criador

da UnB, Darcy Ribeiro. Este País foi uma máquina de matar índio, não só por conta

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de criança, mas por um monte de coisa. Acho que devemos nos sensibilizar dessa

forma. Vou dar só um exemplo. A senhora trouxe 3, 4, 5, 10, 30 exemplos de

infanticídio, mas tem hoje etnias, o companheiro Márcio Meira sabe disso, que só

tem 6 elementos, 6 fêmeas, perdemos o macho, perdemos uma etnia. O branco

acabou com a etnia e essa etnia não se pode mais reproduzir, perdemos uma

língua, perdemos uma história, perdemos conhecimentos milenares.

Temos que admitir o índio como o maior patrimônio que temos na Amazônia,

e muito cuidado com essa história de colocar a ONU, na minha opinião, nas aldeias

indígenas.

Muito obrigado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - O Dr. Márcio tem

compromissos. Então, teremos a segunda Mesa. Como as falas dos Parlamentares

se prolongaram por mais tempo e há 2 Deputadas que chegaram após...

Deputada Perpétua Almeida, V.Exa. pode esperar para a segunda Mesa?

(Pausa.)

Com a palavra a Deputada Perpétua Almeida.

A SRA. DEPUTADA PERPÉTUA ALMEIDA - Muito obrigada, Sr. Presidente.

Cumprimento nossa Mesa e agradeço ao Deputado Luiz Couto pela consideração.

Cumprimento o Dr. Márcio pela condução e a preocupação com que a FUNAI

vem tocando, e tentando consertar nossos próprios erros.

Na verdade, fiz uma leitura rápida do projeto e ouvi comentários de um lado e

de outro. O Deputado Henrique Afonso, autor do projeto, é meu colega do Acre, meu

companheiro da Frente Popular, mas tenho todas as reservas da forma como as

coisas estão sendo aqui apresentadas. Temos de ter muito cuidado na vida em

relação a tudo o que vamos abordar, expor, para não deixarmos vir à tona, de forma

mais forte, o nosso lado apaixonante de vermos o mundo, ou as coisas de acordo

com nossa visão, seja ela religiosa ou não. E acho que alguns debates neste País

estão sendo feito de forma um pouco mais com a visão religiosa, de nossa

tendência, do que na verdade com a preocupação com o ser humano ou coisas

assim.

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Assisti ao debate sobre o aborto, quando o Papa esteve no Brasil. Para mim,

foi muito constrangedor ver algumas mulheres que sofreram na vida, viveram a

violência do estupro serem expostas da forma como foi feito naquela época.

Tratar essa questão indígena preocupa-me também quando é tratada dessa

forma. No Acre, vive um cidadão por quem tenho muita consideração, chamado

Antônio Alves, do Partido dos Trabalhadores, a quem chamamos carinhosamente de

Toinho. Não vou conseguir repetir sua frase, mas lembro-me de que em um dos

debates acalorados sobre a questão indígena o Toinho Alves disse o seguinte: Olha,

rapaz, a gente tem que ter coragem, vergonha e a capacidade de reconhecer que se

os povos indígenas precisarem de 100 anos para se adaptarem à realidade da

nossa vida, eles vão ter os 100 anos que eles querem, que eles precisam, que eles

merecem. Ele chamava atenção para a necessidade de nós, não-índios, termos a

paciência necessária de compreender a vivência do que acontece dentro das

comunidades. Acho que qualquer imposição do Estado dentro de uma comunidade

indígena passa a ser repressora também.

Quando dizemos que quem toma conhecimento ou quem sabe de casos de

infanticídio... Acho que quando tratamos dessa forma, também estamos indo lá e

fazendo uma imposição, na minha opinião, desnecessária da lei.

Acho que a maioria das comunidades indígenas hoje no Brasil não vivem

mais esse problema, porque eles conseguiram ultrapassar os anos, o tempo, e

conseguiram ter aquela compreensão que gostaríamos que nesse sentido tivessem,

mas foi o tempo e a vivência deles que disse isso.

Portanto, qualquer intervenção do Estado nas comunidades indígenas com

relação às suas culturas, com relação ao seu modo de viver, na minha opinião, é

uma intervenção desnecessária e desrespeitosa.

Nós já causamos mal demais com relação às terras indígenas. Vemos

comunidades indígenas hoje que parecem mais um acampamento de sem-terra dos

mais desorganizados, porque nós, de forma brutal, intervimos ali. Eu já vi a Igreja

católica pedindo perdão pelo que foi feito com os povos indígenas e eu não gostaria

de ver outras comunidades religiosas terem que fazer a mesma coisa, ou, então, se

tiverem que fazer mais à frente, seja reconhecendo seus erros.

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Precisamos ter o cuidado necessário para não aculturar os índios da forma

como achamos que tem que ser. Deixem que eles decidam. Deixem que o tempo e

a vivência deles respondam por si. Eles já estão dando demonstração disso.

Eu só queria fazer esse apelo aqui sobre a nossa intervenção. O Estado

brasileiro não pode intervir nas comunidades indígenas. E a Constituição, inclusive,

lhes garante isso.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Muito obrigado, Deputada

Perpétua Almeida. V.Exa. citou a questão do perdão. O perdão exige,

primeiramente, o reconhecimento, depois, confissão dos erros e, em seguida,

reparação, que pode ser reparação política, reparação ética. São elementos

importantes na vida que temos de trabalhar.

A SRA. DEPUTADA PERPÉTUA ALMEIDA - Sr. Presidente, eu achei

importante o perdão pedido pela Igreja católica, porque houve o reconhecimento dos

erros cometidos, de maneira que sirva de exemplo para que não cometamos os

mesmos erros.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Claro, claro. E ela não fez

ainda a etapa seguinte. Ainda falta alguma coisa. Foi um meio pedido de perdão.

Deveria se aprofundar mais, porque em todos os momentos temos que pedir perdão

e reconhecer. Foi importante V.Exa. apresentar essa questão do perdão.

Com a palavra o Dr. Márcio Augusto Freitas Meira, para responder às

perguntas e também para fazer sua despedida desta Mesa.

O SR. MÁRCIO AUGUSTO FREITAS MEIRA - Primeiramente, quero pedir

desculpas, porque a agenda do Presidente da FUNAI é bastante intensa e já estou

com um batalhão, digamos assim, à espera na FUNAI.

Quero dizer a todos os Deputados, sobretudo aos membros da Comissão de

Direitos Humanos, que a FUNAI, enquanto eu estiver na sua Presidência, jamais se

negará a vir aqui fazer qualquer debate. Não tenho nenhuma dificuldade em debater,

pois o debate faz parte da nossa conquista árdua, democrática. Quero deixar bem

claro isso e dizer que a minha postura, na Presidência, tem sido inclusive de debater

lá na FUNAI. Tenho recebido amplamente todas as bancadas e posições. Faço isso

tranqüilamente porque tenho posição, e serenidade para defender minhas idéias e

posições. Isso faz parte da nossa prática democrática.

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Inicialmente, quero prestar alguns esclarecimentos quanto ao que eu falei e

em relação ao que foi dito pela Maíra, pela Profa. Márcia e pela Valéria.

No que se refere ao mérito do que está sendo discutido aqui, faço

inteiramente minhas as palavras da Valéria. Eu não vou entrar no mérito, porque o

que a Valéria falou, para mim, está falado. Ela, não só na sua posição de mulher,

mas de indígena, tem melhores condições de falar sobre o tema do que qualquer um

de nós, pelo menos quanto a mim.

Quero ater-me principalmente à forma, ao conteúdo. O Deputado autor da

proposta identificou um contraste entre o que disse a Profa. Maíra e o que eu disse.

De fato, existe um contraste, mas, na minha interpretação, ele é muito mais um

contraste de preocupações e complementaridades do que propriamente um

contraste de oposição. Por quê? Porque eu, como ela, defendi aqui claramente o

direito à vida. Na minha opinião, não está em questão aqui a dúvida sobre o direito à

vida como um dos direitos humanos fundamentais. O que está em questão aqui —

quero esclarecer exatamente esse ponto — é onde está o limite. Poderemos

localizar os limites entre outro direito humano fundamental, que é o direito à

diferença, e esse outro direito fundamental, que é o direito à vida. Esse ponto está

presente neste debate. Foi por isso que me remeti ao debate de 1550.

Quando eu falei do debate de 1550 — é pena que a Deputada Solange não

esteja mais aqui —, eu não me estava referindo à discussão sobre se os índios são

ou não humanos. O que eu disse é que o debate de 1550, entre Bartolomeu de Las

Casas e Sepúlveda, sobre se os índios eram ou não humanos e se tinham almas, na

verdade, era muito mais sobre o direito à diferença. A questão de fundo no debate

de 1550 era se os ameríndios têm direito à diferença. Os ameríndios do México que

eram o ponto central do debate praticavam um sacrifício ritual em que arrancavam o

coração das pessoas naquelas pirâmides maravilhosas construídas no México

indígena. Do ponto de vista da ética e da moral ocidental, isso era um crime

absurdo. No debate, o que Bartolomeu de Las Casas dizia era que os povos

indígenas das Américas são povos que, como todos os outros, são humanos, têm

alma, mas com um elemento central, que é o direito à diferença entre eles e a

sociedade ocidental.

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Quando me referi a esse episódio, eu estava dizendo que o debate de hoje,

nesta Comissão, continua sendo sobre o direito à diferença. Ainda hoje, a fala de

cada um dos Deputados reflete um pouco desse drama humano para entender essa

diferença. Não é fácil, como não é fácil também para os povos indígenas

entenderem a nossa diferença. Eles têm muita dificuldade em entender as nossas

próprias diferenças ocidentais.

Na minha fala, chamei atenção para o fato de que temos de ter muito cuidado

ao abordar esse tema. Precisamos ouvir mais as próprias comunidades indígenas e

saber delas o que elas têm a dizer sobre isso. Talvez, elas tenham algo a nos dizer,

sob o ponto de vista da ética e da moral indígena, sobre as nossas práticas

ocidentais. Há muitas delas que consideramos absolutamente triviais. Do ponto de

vista da ética ou moral caxiuanã, para homenagear Valéria que é caxiuanã, algumas

das nossas práticas são absolutamente contraditórias à compreensão que elas têm

da vida, do mundo. A nossa legislação é muito clara em relação a todos os pontos

que foram levantados aqui e, como representante do Estado brasileiro, tenho de

cumprir absolutamente as regras. Há uma contradição na nossa legislação, que é

fruto da nossa própria contradição, de dificuldade de compreender esse direito à

diferença.

Dito isso, gostaria de responder ao Deputado Eduardo que fez uma pergunta

muito específica sobre como a FUNAI trata essa questão. Estou há 5 meses na

presidência dessa instituição e estou falando na condição de presidente e, portanto,

traduzindo uma opinião mais do ponto de vista institucional, obviamente, do que a

minha opinião pessoal. Obviamente, expresso opinião do ponto de vista institucional

e não pessoal.

A tradição brasileira que vem não só dos 40 anos da FUNAI, mas também

dos 100 anos do SPI, primeiro órgão criado para coordenar a política indígena no

Brasil, pautou-se, primeiramente, por uma visão ainda muito freqüente no Brasil,

inclusive na Lei nº 6.001, de que os índios são incapazes, são crianças e, às vezes,

são até considerados meio estúpidos, sem alma, sem lei, sem rei, como se dizia no

período colonial.

Quando o Marechal Rondon dizia que tínhamos de morrer, se preciso fosse,

mas matar nunca, demonstrava um espírito extremamente generoso, inovador, com

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os índios, mas carregava visão fortemente evolucionista que vinha das teorias de

Charles Darwin aplicadas no entendimento das sociedades humanas.

Na época da Revolução Industrial, considerava-se, dentro da escala de

evolução da humanidade, que a Europa era o ponto mais evoluído, sobretudo a

Inglaterra. Nessa escala, os índios brasileiros, americanos e outros povos africanos

eram vistos como vivendo na aurora da humanidade.

Essa visão evolucionista pautou a política indianista brasileira desde então e

foi rompida — isso é muito importante — pela Constituição brasileira de 1988. Ela

rompeu com essa concepção e estabeleceu que os indígenas são cidadãos

brasileiros que têm alguns direitos a mais, sobretudo os originários, em função de

estarem aqui antes do Estado brasileiro ser criado. Entre esses direitos, está o da

diferença. É aí que está a contradição. Na prática, no dia-a-dia, a FUNAI vive ainda

uma contradição interna, ou seja, ela própria, muitas vezes, vacila entre uma relação

assistencialista, protetora, no sentido de encarar aqueles povos ainda sob a ótica

evolucionista e uma posição contemporânea estabelecida pela Constituição de

1988.

Esse é um momento de transição, em que estamos construindo uma relação

de respeito às diferenças, considerando a diferença como algo que não é sinônimo

de inferioridade.

O SR. DEPUTADO EDUARDO BARBOSA - Dr. Márcio, a minha pergunta é

sobre a mulher que, em sofrimento, pede ajuda. Ela está sofrendo emocionalmente.

Não tem forças para contrapor um princípio de que discorda. É dentro desse

aspecto.

O SR. MÁRCIO AUGUSTO FREITAS MEIRA - Deputado, para responder a

sua pergunta, tive de fazer esse preâmbulo, porque, no momento, em que estamos

num campo, numa aldeia, numa comunidade indígena, esse tratamento tem de

considerar os pressupostos que mencionei antes. Aí é que a situação se complica. É

por isso que chamo a atenção para a complexidade do tema. A questão não pode

ser resolvida assim. É preciso muito tempo para uma reflexão porque cada povo

indígena no Brasil — são 222 povos — tem uma história diferente de relação com o

Ocidente. Temos, hoje, na FUNAI, 65 registros oficiais de povos que ainda não

fizeram contato direto com o Ocidente. Desses, 25 já foram comprovados. Sabemos

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que eles estão na floresta, inclusive, nos Estados do Acre, do Amazonas, do Mato

Grosso e do Pará. A política pública do Estado brasileiro, hoje, visa proteger esses

povos. Antigamente, na época de Rondon, fazia-se a tal atração. Havia frentes para

atrair esses povos. Hoje o Estado tem uma política de frente de proteção

etnoambiental, uma atitude de respeito com aquele povo. Se quiser fazer contato

conosco tudo bem; se não, deixamos ele vivendo em sua aldeia em paz e com

tranqüilidade, de acordo com as possibilidades de garantias desses direitos.

Estou citando esse exemplo porque há esses 25 povos e os pataxós da

Bahia, os funiôs, que há 400 e tantos anos têm contato com o Ocidente. São

situações muito distintas. Cada caso é diferente. Por isso reitero minha

preocupação, não no mérito — a Valéria disse que estou contemplado —, mas na

forma. O nosso Congresso Nacional, especialmente a Comissão de Direitos

Humanos, tem a função tão nobre de defender esses direitos, de tratar esse tema

com muito cuidado e cautela.

Estarei sempre, como Presidente da FUNAI, disposto ao debate franco sobre

esse tema. Sugiro continuarmos essa discussão, que é longa, e convidarmos para

dela participar as entidades indígenas, que certamente têm mais a dizer do que nós.

Mais uma vez peço desculpas aos membros da Mesa porque realmente vou

ter de ausentar-me por causa da minha agenda.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Obrigado, Dr. Márcio.

Lembro aos Srs. Parlamentares que a Ordem do Dia foi iniciada há 18

minutos. Pedimos à assessoria que nos avise quando houver votação nominal.

Concedo a palavra à Sra. Maíra de Paula Barreto para as considerações

finais.

A SRA. MAÍRA DE PAULA BARRETO - Mais uma vez, agradeço ao Sr.

Presidente por esta oportunidade. É um debate fundamental, são 500 anos de

silêncio a respeito desse tema, um tabu.

Como o Dr. Márcio comentou, é muito delicada a questão, precisa de

reflexão.

O arcabouço legal já existe, a proteção à vida da criança já está aí. Trata-se

agora da implementação, como será operacionalizada. Claro que com muito diálogo,

muita conversa, é óbvio. Ninguém aqui deve jamais pensar em interferir com

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violência e por meios escusos, utilizando-se do discurso dos direitos humanos para

realizar interferências violentas. Ficou muito claro que só se fala em interferências

em caso de violação de direitos fundamentais, como a vida e a integridade física.

Quando há colisão entre direitos fundamentais, o que no Direito está muito claro,

prevalece o direito à vida e à integridade física. Juridicamente isso já está resolvido,

está muito claro. Ressalto que esses direitos fundamentais devem prevalecer tanto

no Direito nacional como no internacional.

Como foi dito, há dificuldade de se aceitar resoluções de fora. O ordenamento

jurídico interno já acatou essas resoluções pelo fato de pertencer a organizações

internacionais. O Brasil faz parte do sistema interamericano de direitos humanos e

do sistema da ONU. Faz parte — repito. Não dá para mudar. Se quiser mudar tem

de denunciar os tratados de direitos humanos. A ONU e o sistema interamericano

estão envolvidos, sim, nas nossas questões internas. É uma comunidade global,

universal. Hoje, fala-se nos direitos humanos como preocupação mundial.

Se uma criança morre aqui, o fato vira preocupação de pessoas na

Alemanha, na Itália, na África, assim como nós nos preocupamos com uma mulher

sendo mutilada genitalmente na África. Essas são preocupações globais, universais.

É aí que entra a universalidade dos direitos humanos. Toda criança, ou melhor, todo

ser humano tem direitos fundamentais. Sem dúvida alguma, essa é a lei no Brasil.

Como disse no início da exposição, o relativismo cultural acontece somente

no âmbito acadêmico. No âmbito legal, jurídico, isso já está resolvido. Os direitos

humanos são universais, o que significa que o direito à vida e o direito à integridade

física não dependem da cultura em que a criança nasceu. É assim com relação à

mulher e com os indígenas. Índio não ter direitos humanos porque é índio é um

absurdo em termos jurídicos. Perante a lei, todos têm direitos, que não podem ser

condicionados à etnia.

Nossa Constituição assegura a todos os direitos fundamentais. Se

analisarmos o art. 5º, veremos que ele é fabuloso. E nos países que não têm

constituição? As pessoas que neles nascem não terão seus direitos protegidos?

Ninguém se preocupa com elas? Por isso existem os direitos humanos universais,

tanto no âmbito das Nações Unidas como no interno.

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Por último, a nobre Deputada Perpétua Almeida comentou a respeito da

omissão de socorro de que trata o projeto de lei do Deputado Henrique Afonso. Isso

já é lei no Brasil. O art. 135 do Código Penal não exclui crianças indígenas nem

negros nem asiáticos. Ali, nada diz que, nesses casos, a omissão de socorro não

será cobrada. O termo “omissão de socorro” é válido para todos os casos. A

omissão de socorro configura-se no fato de ninguém cuidar da criança

independentemente de ela ser indígena ou não. Assim é a questão legalmente. Não

há nenhum termo excludente que sirva para eximir a responsabilidade de quem

nega prestar socorro a crianças em perigo, sejam elas indígenas ou não. Portanto,

quero deixar claro que, independente do projeto de lei do Deputado Henrique

Afonso, já existe na legislação essa previsão.

Era o que tinha a dizer e, novamente, agradeço pela oportunidade.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Muito obrigado, Sra. Maíra.

Concedo a palavra a Sra. Márcia Suzuki.

A SRA. MÁRCIA SUZUKI - Gostaria de comentar o que o Exmo. Deputado

mencionou: que ficou preocupado e que o coração doeu muito ao saber que durante

20 anos moramos junto a um povo semi-isolado.

Na verdade, preocupa-me o fato de ele, além do que sentiu, ter dito também

que a Constituição Federal e a ONU não legislam sobre o índio.

O SR. DEPUTADO PRACIANO - Desculpe-me, mas a senhora está

interpretando erroneamente minhas palavras.

A SRA. MÁRCIA SUZUKI - Eu anotei o que V.Exa. disse: a Constituição não

vale para o índio e a ONU.

O SR. DEPUTADO PRACIANO - Se a senhora quiser, eu posso traduzir.

A SRA. MÁRCIA SUZUKI - Desculpe-me se entendi errado, mas foi o

que ouvi e o que me deixou preocupada.

Participam desta reunião, muitos indígenas que, infelizmente, não podem se

manifestar. Eles acreditam que contam com a proteção da lei, sobretudo da

Constituição Federal.

Há uma índia isolada, a Muwaji Suruwahá, que está lutando pela vida da filha

e outros índios aculturados que também estão aqui para lutar pela vida de seus

filhos. Talvez seja interessante os senhores conversarem com eles para saber o que

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mais dói no coração de uma mãe, como a Karô (?), por exemplo, que fala português,

que perdeu o bebê há 1 ano — seu marido Aisanain Paltu Kamaiwrá, um dos

expositores, falará na próxima Mesa. Eles tiveram gêmeos e uma das crianças foi

enterrada viva, contra a vontade deles. Paltu intercedeu junto a seu pai para que

poupasse pelo menos 1 dos bebês. Ele mesmo fala da grande dor no coração por

causa desse fato. Ele procurou a enfermeira antes e lhe disse: “Olha, acho que

minha esposa está grávida de gêmeos”. Ficou muito preocupado porque na cultura

dele os gêmeos não são aceitos. Pediu ajuda à enfermeira que, infelizmente, não o

levou a sério e disse: “Não deve ser gêmeos”. Mandou a mulher de volta para a

casa. O parto aconteceu de madrugada. Os avós, então, por causa da cultura, iam

enterrar os 2 filhos. Ele intercedeu, lutou, conseguiu 1 criança, e está com ela aqui.

Mas afirma que toda vez que pegam o pequeno no colo, lembram do outro que está

morto. Queriam ter os 2 com eles. Quero saber qual o coração que dói mais.

Termino comentando o que a Dra. Maíra muito bem já expôs. Não preciso

acrescentar nada à fala dela. Mas o respeito à diferença é algo muito importante. Eu

e o meu marido podemos falar a respeito disso porque moramos 20 anos no meio de

um povo. Tivemos de aprender uma língua, um código e uma cultura diferentes.

Tivemos de andar como eles, vestir o que eles vestiam, comer o que eles comiam.

Aprendemos muito com eles. Aprendemos padrões de cultura e de conduta muito

superiores aos nossos. O padrão de liderança do povo suruwahá é muito bonito.

Poderia falar a respeito disso. O modelo de liderança suruwahaia é fantástico.

Aprendi muita coisa boa. Sei o que é respeito à diferença porque vivi isso.

Por outro lado, sabemos que existe uma hierarquia natural entre os direitos.

Como falar em defender o direito à diferença cultural ou à educação se nem o direito

à vida, que é primordial, está garantido ainda! Isso é uma hierarquia natural de

direitos. O direito à vida é universal, inviolável, não depende da procedência étnica.

Isso seria um absurdo. Então todo brasileiro tem direito à vida. Respeito

profundamente as culturas indígenas, a luta que os povos indígenas têm travado

pelo respeito à diferença, à diversidade cultural. Enriquece muito o nosso País, a

nossa Nação, quando reconhecemos e aprendemos com os povos indígenas.

Como o pessoal da Valéria já teve a oportunidade de discutir internamente o

infanticídio e conseguiu encontrar solução para garantir o direito à vida das crianças

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da comunidade dela, há outras comunidades mais isoladas ou mais vulneráveis,

onde mulheres tentam garantir seu direito e não conseguem. Como conseqüência

sofrem.

O respeito à diferença não anula nem enfraquece, de jeito algum, o direito à

vida das crianças indígenas. Toda criança tem direito à vida e todo mundo tem

direito à diversidade cultural e o respeito a ela é muito importante.

Agradeço.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Muito obrigado, Profa. Márcia.

O SR. DEPUTADO PRACIANO - Sr. Presidente, pela ordem.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Fará uso da palavra, ainda, a

Sra. Valéria.

O SR. DEPUTADO PRACIANO - Gostaria que V.Exa. me concedesse a

palavra após a fala da Sra. Valéria. Não vou insistir nisso. Quero apenas dar uma

pequena explicação. Pode ser que o tema seja outro, e a fala dela foi em cima da

minha.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Vamos prosseguir. Depois

concederei a palavra a V.Exa.

O SR. DEPUTADO PRACIANO - Sem problema algum, Sr. Presidente.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Com a palavra a Sra. Valéria

Payê para responder a pergunta e fazer sua consideração final.

A SRA. VALÉRIA PAYÊ - Quero destacar, mais uma vez, que estamos em

processo de discussão. Espero que isso não fique apenas aqui, mas que chegue às

comunidades e aldeias. Sou apenas uma parte dos 222 povos existentes no Brasil.

Tenho relatado a experiência que vivi. Afirmei que o meu povo passou, sim, Márcia,

por esse processo. Mas encaminhamos o problema internamente. Não foi preciso

interferência externa para o meu povo enxergar. É preciso dar oportunidade para

cada um respeitar o tempo que os povos indígenas têm. Não atropelar o processo. É

o que desejo reforçar.

Responderei à pergunta do Deputado Eduardo, como representante do FDDI,

Fórum de Defesa dos Direitos Indígenas. Como o Fórum pode influenciar nesse

processo? Sou indígena. Não quero influenciar. Não quero interferir no processo de

discussão dos outros povos indígenas. Do mesmo jeito que os outros povos

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respeitam o meu povo, quero respeitá-los. A filosofia do Fórum de Defesa dos

Direitos Indígenas é não interferir; não influenciar. À proporção que as discussões

vão surgindo, elas precisam ser propostas pelas comunidades indígenas.

(Intervenção em língua indígena.)

Obrigada. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Concedo a palavra ao Sr.

Deputado Praciano para um esclarecimento.

O SR. DEPUTADO PRACIANO - Professora Márcia, há um conflito. Creio

que é um campo difícil de trabalhar. Quero apenas traduzir diferente do que a

senhora deduziu. Lamento que tenhamos de entender que a Declaração dos Direitos

Humanos da ONU seja aplicável a uma aldeia não contatada. Lamento que a

Constituição deste País seja colocada numa aldeia não contatada. Vou dar um

exemplo grosseiro do que quero dizer. Vamos colocar no meio de uma aldeia

indígena uma televisão com todos os canais. Será a destruição: é a propriedade

privada que aparece, a questão da produção, vão exigir creche, polícia, justiça. Será

o fim.

Lamento toda sua boa vontade de morar lá. Mas acho que houve um conflito

entre a sua civilização, que é a minha, e a que a senhora encontrou. A senhora

levou uma carga, um arquivo de códigos, de leis, de regras. No momento em que

chegou lá, sentiu-se altamente agredida, como estou agredido em ver o que a

senhora ponderou nesta reunião. É duro para a nossa civilização ver menino com a

cabeça colocada no toco, criança ser enterrada viva. Isso agride a todos nós. Mas o

que está acontecendo? Um choque de cultura. A senhora trouxe essa cultura para

cá.

A Valéria disse que não querem a Constituição, o homem, o externo lá dentro

e que eles resolvem os problemas deles. Há momentos em que o ponto de

intercessão entre o índio e nós brancos é tão grande que precisamos, de fato, de

uma Constituição e de outras coisas.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Obrigado, Deputado Praciano.

A Presidência agradece a presença à Profa. Márcia Suzuki, à Maíra de Paula

Barreto, ao Márcio Augusto Freitas de Meira e à Valéria Payê.

Dou por encerrada esta Mesa.

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Convido para compor a segunda Mesa o Sr. Aisanain Paltu Kamaiwrá, pai

indígena que teve um filho morto; o Sr. Edward Luz, antropólogo; a Profa. Rita

Segato, antropóloga; o Sr. Wanderley Guenka, Diretor do Departamento de Saúde

Indígena da FUNASA; e a Sra. Jacimar de Almeida Gouveia, da etnia kambeba,

representante das mulheres indígenas no Conselho Nacional dos Direitos das

Mulheres.

Concedo a palavra ao antropólogo Edward Luz, que disporá de até 10

minutos.

O SR. EDWARD MANTOANELLI LUZ - Boa-tarde.

Represento o Sr. Ronaldo Lidório, doutor em Antropologia pela Royal

University of London. Eu não sou doutor em Antropologia e não sei, depois de hoje,

se o serei algum dia. Minha função aqui, provavelmente, é participar de minha

própria pira funerária no universo acadêmico, porque não falo em nome de nenhuma

instituição nem de qualquer ONG. Não sei exatamente em nome de quantos eu falo,

mas com certeza é por uma minoria da comunidade acadêmica dissidente nesse

impasse que estamos tendo com relação à sobreposição dos direitos humanos,

sobretudo do direito à vida e à diferença.

Parece-me que sou um dos poucos antropólogos — não dá para numerar;

não sei se já foi feita essa pesquisa — que acredita que talvez o direito à vida seja

superior ou deve ser levado em consideração em relação à diferença da cultura.

Acho que esse é o motivo pelo qual fui convidado pelo antropólogo Ronaldo Lidório

para ler um texto.

Como temos um tempo exíguo, vou falar pouco.

Sr. Presidente, vou passar à Mesa o texto que Lidório escreveu. Fui

convidado somente para lê-lo.

Não vai dar para ler tudo; vou apenas ressaltar alguns pontos.

Quero dizer, desde já, que quase me arrependi de ter aceitado o convite.

Depois do que disse a Maíra, que esse debate deve acontecer em âmbito

acadêmico, pensei em adiar a minha fala para a próxima ABA ou para a próxima

reunião da Associação Brasileira de Antropologia Norte e Nordeste, ABANNE,

porque acho que lá, sim, é o foro apropriado para fazer esse debate, esse diálogo

tão importante. Aqui, eu fico dividido, sem saber para quem estou falando. Na

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verdade, não sei se falo para os Deputados ou para os antropólogos presentes,

como a minha ex-Profa. Rita Laura Segato, da UnB. Falamos para antropólogos,

Deputados, enfim, para um universo bem variado.

A tentativa de compreensão desse debate passa exatamente pela

diversidade não só dos povos indígenas brasileiros — que são muitos, como foi

enfatizado —, mas também das correntes que existem na própria antropologia.

Começo citando um texto de meu colega Rosinaldo da Silva, também da UnB,

que já terminou o doutorado. O texto se encontra na coletânea de Antropologia e

Direitos Humanos promovida pela Ford Foundation.

Na introdução, há um panorama bem geral.

Diz o autor:

“O tema dos direitos humanos tem sido alvo de

polêmica, seja por autores da antropologia, seja por

pensadores de fora da disciplina. A maneira como

antropólogos têm visto os direitos humanos chega a ser

claramente contraditória”.

Percebam, senhores, que não só os Deputados, mas também os

antropólogos divergem nessa questão.

“Gustavo Esteva afirma, por exemplo, que os

direitos humanos não são senão a outra face do

Estado-Nação e que, na era da globalização, os direitos

humanos universais têm começado a parecer um novo

cavalo de tróia para a recolonização empreendida pelo

Ocidente em relação aos povos que não compartilham de

seus ideais universalistas.

Em suma, Esteva assume que os direitos

humanos, como pretensão universalista, têm-se

constituído simplesmente em um abuso de poder do

Ocidente e mais um modo de este controlar o resto do

mundo.

Por outro lado, Alcida Ramos, também professora

da UnB, indicou que a abrangência da categoria direitos

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humanos foi rapidamente apropriada pelos movimentos

indígenas da América Latina e de outros lugares como

meio de internacionalizar a sua causa, e, com isso, tais

movimentos tornam-se atores políticos visíveis na arena

pública.

Como se pode compreender perspectivas tão

opostas de antropólogos sobre o mesmo tema?”

Só queria delinear que nós, antropólogos, também estamos divididos. E eu

faço parte dos dissidentes.

Vou tentar traçar um paralelo. Não será possível descrever todo o histórico

que fez o Dr. Ronaldo Lidório. Resumidamente, ele afirma:

“O relativismo cultural, inicialmente desenvolvido

por Franz Boas com base no historicismo de Heder,

defende que bem e mal são elementos definidos em cada

cultura e que não há verdades universais, visto que não

há padrões para se pesar o comportamento humano e

compará-lo a outro. Cada cultura pesa a si mesma e julga

a si mesma.

A mutilação feminina, portanto, não poderia ser

avaliada como certa ou errada, mas, sim, como aceita ou

rejeitada socialmente, de acordo com o olhar da cultura

local sobre esse fato social.

Para o relativismo radical, não há valores

universais que orientem a humanidade, mas valores

particulares, que devem ser observados e tolerados.

Assim, em sua compreensão de ética, o bem e o

mal são relativos aos valores de quem observa e

experimenta.

A grande contribuição do relativismo foi abrandar a

arrogância das nações conquistadoras e gerar uma visão

de tolerância cultural especialmente nos encontros

interculturais.

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Boas se contrapunha ao evolucionismo de Tylor,

Frazer e Morgan, 3 antropólogos fundadores da escola

evolucionista inglesa, que viam na civilização ocidental o

estágio máximo da evolução da humanidade, enquanto as

nações e os povos não ocidentais eram considerados

subevoluídos que buscariam no Ocidente o modelo

humano de moral e organização”.

E por aí vai.

Destaco ponto interessante no texto do Ronaldo:

“O relativismo radical, porém, torna as culturas

estáticas e estanques, e as pretere de transformações

autônomas, mesmo as desejadas e necessárias.

Paradoxalmente, ele produz ou potencialmente pode

produzir um forte etnocentrismo, que se contrapõe a todo

e qualquer processo de mudança ou transformação. Para

esses, a moral se enraíza na cultura e não na

humanidade, rompendo, assim, com qualquer

possibilidade de avaliação, reavaliação ou emissão de

juízo sobre as práticas ou os costumes do outro.

O bem é o bem permitido e cultivado pela cultura, e

o mal é o seu oposto. Enquanto o infanticídio é parte do

mal entre os espanhóis, pode ser parte do bem entre os

ianomâmis, por exemplo, desde que seja a ótica de cada

um sobre o fato social.

Esse relativismo praticado de forma radical

incapacita o indivíduo, qualquer indivíduo, de propor

mudanças em sua própria cultura, por entender a cultura

como sistema estático e imutável, um universo à parte,

pressuposto de que as presentes normas culturais são

perfeitas em si”.

O autor segue argumentando nessa linha.

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Este texto estará à disposição dos Deputados. Ressalto, porém, que na pág.

4 ele cita um pequeno resumo do que talvez seja interessante nesse diálogo:

“Para Roberto Cardoso de Oliveira, a mudança é

possível em uma comunidade indígena, em um grupo

isolado, em um grupo étnico se percebida a sua

necessidade, e deve ser processada no interior de uma

comunidade intercultural de argumentação.

Ele se baseia no etnodesenvolvimento e na

Declaração de São José. É o fortalecimento da

capacidade autônoma de decisão de uma sociedade

culturalmente diferenciada, para orientar seu próprio

desenvolvimento e o exercício da autodeterminação.

O valor dessa fundamentação da universalidade

étnica é reconhecer que o homem, mesmo distinto e

disperso, compartilha valores inerentes, pressupõe que

fazemos parte de uma aldeia global, que, portanto, temos

a ganhar no intercâmbio das idéias e dos valores, que

esse intercâmbio, ao contrário de ser nocivo e etnocida, é

construtivo, que todo diálogo pode transmitir

conhecimento aplicável em um contexto paralelo.

É preciso compreender que o diálogo praticado

com base no respeito mútuo é construtivo, irá gerar um

ambiente de avaliação da vida necessário a todo homem,

visto que a cultura não é estática, muito menos a história.

A história não é estática de forma nenhuma, o que

é muito interessante são as interpretações feitas a

respeito da história”.

Quero dar minha parcela de contribuição. O autor não disse isso, mas se ele

tivesse ouvido algo aqui, tenho certeza de que se manifestaria.

É difícil que, há 500 anos, padres e sacerdotes da Igreja Católica estivessem

dialogando a respeito do direito à diferença. É muito complicado que, há 500 anos,

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no seio de uma sociedade católica, cristã, debatessem a respeito do direito à

diferença. Por favor, essa não é a interpretação histórica mais plausível a esse caso.

Desconfio que o que estava acontecendo, conhecendo um pouco da teologia

cristã, é o peso da responsabilidade sobre cada consciência cristã acerca da vida do

outro. Desconfio ainda que a exegese mais apropriada que Bartolomeu de Las

Casas fazia tinha a ver com a responsabilidade de suas ações, do Ocidente, de uma

Espanha, de um Portugal, enfim, uma Europa cristã, com a vida desses indígenas,

crendo ele que seres humanos não são merecedores do trato que os escravos eram.

Ele se sentia responsável pela guarda, ou pelo menos pela defesa desses povos

indígenas.

Tenho certeza de que não era a questão ali do direito à diferença, mas do

direito da defesa de responsabilidade em nossas atitudes.

Esse momento é bem interessante, porque representa a diversidade do

Brasil, um país democrático, que ao mesmo tempo quer ser guiado por uma lógica

laica, mas que é uma Nação cristã, que tem uma consciência cristã profundamente

arraigada nessa mentalidade, não sei precisar quantos, mas que se sente

responsável direta ou indiretamente pela vida do outro, quem é o outro, é preciso

fazer algo com relação ao outro.

É necessário cautela, cuidado, nesse debate. É interessante não deixarmos

de lado a cautela e, realmente, abrirmos mão de qualquer postura que possa

parecer ou, de fato, seja arrogante. Contudo, não sou pai de nenhuma criança que

está para morrer ao ser jogada numa cova. Também não sou nenhuma dessas

crianças que talvez já esteja morrendo hoje.

Pergunto: quantas crianças vão ter de morrer até que façamos algo?

Não deveria citar isso neste momento, mas é para legitimar minha postura.

Também sou antropólogo, trabalho como consultor para o PPTAL FUNAI, na

identificação e delimitação das terras indígenas do Baixo Rio Negro, um grupo

indígena ressurgente, o baré, que demanda agora suas terras e o reconhecimento

de seus direitos.

Entendo que o direito à vida merece uma atitude nossa, que não seja violenta

nem arrogante.

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Esse é outro problema que não quero discutir, mas não vou me furtar da

oportunidade de deixar claro meu posicionamento. Vou levar o debate ao âmbito

acadêmico, à ABA, mas desejo ressaltar esses pontos.

Se houver perguntas, responderei depois.

Não tenho nada mais a acrescentar.

Agradeço a V.Exa. pela oportunidade.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Obrigado Sr. Edward Luz.

Concedo a palavra a Aisanain Paltu kamaiwrá, pai indígena.

O SR. AISANAIN PALTU KAMAIWRÁ - (Intervenção em língua indígena.)

Boa-tarde a todas as autoridades presentes. Vou falar do meu povo

kamaiwrá, do Alto Xingu, Mato Grosso.

Vou dividir o meu tempo com meu colega. O acadêmico Mateus vai terminar

minha fala.

Então, vou falar sobre o meu povo kamaiwrá, do Parque Indígena do Xingu,

Mato Grosso. No Xingu existem 15 etnias, cada um fala sua língua e tem a cultura

diferente do outro. Na minha comunidade, já existia, no mito, gêmeos. O sol e a lua

para nós são gêmeos. Isso no mito. A comunidade kamaiwrá, quando nascem

gêmeos, para nós é coisa ruim, sagrada.

Como sou estudante, já venho conhecendo o costume de outras etnias.

Sempre converso com minha comunidade, no Xingu, na aldeia, no centro da aldeia,

na maloca, sobre a diminuição de qualidade de meu povo. Antigamente, os

kamaiwrás eram muitos. Em pouco tempo, quase acabou, porque chegou a

epidemia de sarampo na área. Desde o momento em que chegou a doença,

pensamos muito. Hoje, estamos querendo aumentar a população kamaiwrá, porque

quase acabou o pessoal do Alto Xingu, porque na época não tínhamos remédios.

Por isso a doença chegou lá e pegou muito forte. Morriam 20, 30, 40 pessoas por

dia. Hoje, estamos querendo aumentar o povo. De 1989 para cá, pensamos muito.

Por isso, hoje estamos criando as crianças gêmeas. A criança que não tem pai

também, porque, de vez em quando, o índio e a índia namoram outra etnia.

Antigamente, quando o pai não queria assumir a criança, ela era enterrada. Hoje

não. Estamos conversando com a nossa indiazinha sobre isso.

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O que estamos querendo? Hoje existe a FUNASA, que cuida da saúde

indígena. Na área onde moro, convivo com meu pai. Eles não estão trabalhando

direito. Já sofri muito nas mãos dos funcionários contratados. Acho que não é da

FUNASA, são contratados como enfermeiras. Por essas pessoas que meu filho foi

enterrado. Tinha 2 filhos. O pessoal da FUNASA não acompanhou a gestação de

minha esposa. Eu mesmo que fui descobrindo quando estranhei a barriga da minha

esposa. Eu mesmo peguei, senti e falei que eram gêmeos. Procurei o pessoal da

FUNASA que trabalhava conosco. Acho que essa mulher que acompanhou a

gestação da minha esposa não está mais lá conosco. Ela falou para mim que ela

estava normal. Procurei outra pessoa, que disse a mesma coisa. Na hora em que a

criança nasceu, eu levei um choque, fiquei com vergonha de minha comunidade. O

que meu pai fez? Ele me acalmou. Não foi só comigo que aconteceu isso. No Xingu

já aconteceu com várias etnias — no Alto, no Médio e no Baixo Xingu. Meu pai

disse: “Esse é o normal. Seus 2 filhos não vão ser enterrados. Vou lá, vou conversar

com a mãe, o pai. Eles vão segurar”. Mas outros já haviam sido enterrados, porque

isso faz parte da cultura. Mas hoje estão mudando, porque, como disse, há poucas

pessoas. Por isso, hoje estão criando essas crianças.

O que estamos querendo agora é uma ajuda. Gostaria que vocês ajudassem

uma ONG que se chama Atini, uma organização nova. Hoje ela está mostrando o

resultado do trabalho para as aldeias, não é só para o pessoal da Amazônia, mas

também para o pessoal do Xingu, como o caso de meu sobrinho que está aqui,

Amalé. Para ele morar no Xingu, fazer tratamento, é muito difícil. Ele tem que ficar

aqui para fazer o tratamento. Só depois que acabar a doença que ele vai retornar à

aldeia.

Era isso que queria dizer aos senhores.

Vou passar a palavra ao meu colega, acadêmico Mateus.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Depois concederemos a

palavra a ele. Agora a palavra está com a Mesa. No momento das indagações, ele

poderá falar. Há uma lista de inscritos: 5 pessoas. Depois, abriremos a palavra às

pessoas que estão no plenário.

Concedo a palavra à Profa. Rita Segato, antropóloga.

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A SRA. RITA LAURA SEGATO - Boa-tarde. Trouxe um texto para ler, mas,

agora, ao calor do que acabo de escutar, vou prefaciar esse texto, acrescentar um

comentário ao que ouvi.

Admiro este País, no qual vivo há 25 anos, por uma qualidade, acima de

todas as outras: a riqueza em diferenças que perdeu. São diferenças em soluções

para a vida.

As questões sobre violência, sobretudo contra crianças indefesas, não podem

ser faladas ao calor das emoções e de nossas simpatias ou antipatias imediatas. É

necessário o distanciamento, pensar tranqüila e metodicamente, não perder a

sensibilidade. Nenhum de nós gosta de ver uma criança sendo morta. Todos

ficamos felizes ao ver a quantidade de crianças sadias que entrou neste plenário.

Ninguém duvida disso. No entanto, a questão da lei e do problema da violência

devem ser pensados com distanciamento desses sentimentos.

Quero fazer um comentário como professora, com minhas obrigações

professorais. Achei absolutamente estranho a senhora doutoranda pela

Universidade de Salamanca dizer que há algo tranqüilo na lei, que a lei é quieta e

decidida.

Se há campo de batalha, de disputa nesse universo, é o texto da lei. Cada

vírgula, cada palavra pode ser submetida a uma nova interpretação, a um novo

pensamento, a uma nova reflexão, e isso pode acontecer constantemente. A letra da

lei não é morta, não é decidida. Ela é viva e está em disputa com o seu significado.

Então, como professora, tenho obrigação de corrigir esse erro fundamental. Já disse

isso à doutoranda e voltarei a conversar sobre essa questão quando ela quiser.

É necessário dizer que o centro desse debate não é o direito à vida, mas a

posição, a responsabilidade do Estado perante os outros povos. Não se trata de

uma discussão moral ou ética, mas sobre a lei, sobre o campo do Direito. Enfim, é

uma discussão jurídica. Portanto, nenhum de nós vai discutir se a vida é linda, é

boa, é um dom de Deus, porque acreditamos no nosso foro íntimo. Estamos

discutindo o papel do Estado frente a outros povos, tema completamente diferente.

É a esse tema que vou me dirigir, inclusive porque a ONG Atini, que

evidentemente É boa, nobre, caridosa, generosa, está aí porque o Estado não age

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da forma como deveria. Ela está ocupando, preenchendo o vazio do Estado. Vou

tentar defender o papel do Estado perante as sociedades indígenas.

Pela mão de duas cenas, manifesto o contraste que inicio essa exposição.

Duas cenas compõem uma vinheta desta Nação e revela o papel do Estado e o

significado das leis.

A primeira cena poderia ser retirada do jornal que qualquer um lê diariamente

no Brasil. Como leio o Correio Braziliense todos os dias, retirei dele essa primeira

cena.

A manchete do dia 28 de agosto de 2007 diz: “Em 5 dias, 11 bebês morreram

em maternidade pública, em Sergipe”.

O jornal de hoje diz, no caderno Cidades:

“Vera Lúcia dos Santos teve 2 filhos assassinados,

ainda chorava a morte de Franklin, de 17 anos, quando o

caçula, Wellington, de 16, foi executado com 2 tiros na

nuca. Nenhuma pessoa foi presa”.

Segundo levantamento do Correio, nenhum dos 41 assassinatos de

adolescentes de 13 a 18 anos ocorridos neste ano foi solucionado.

Essa é a cena do Estado, onde estamos agora.

A segunda cena — descrição da história de um povo indígena — foi retirada

do livro, que recomendo, O Massacre dos Inocentes — a criança sem infância no

Brasil. O organizador da obra, José de Souza Martins, resume com as seguintes

palavras emocionadas o primeiro capítulo do volume, Os índios parkatejês 30 anos

depois. A autora é Iara Ferraz.

Essa pequena história é muito bonita.

Diz:

“Foi a sociedade branca que, na sua expansão

voraz e cruel levou a destruição e a morte aos índios

parkatejê, do sul do Pará.

Não só eliminou fisicamente um grande número de

pessoas, mas semeou no interior da tribo a desagregação

social, a desmoralização, a doença, a fome, a exploração

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— condições de rendição incondicional do índio à

sociedade civilizada.

O branco levou à tribo o desequilíbrio demográfico,

o comprometimento das linhagens e da organização

social. Os parkatejê assumiram heroicamente a rendição,

entregaram suas crianças órfãs aos brancos, para que ao

menos sobrevivessem ainda que como filhos adotivos.

Mais tarde, quando conseguiram organizar a sua

resistência contra o branco e conseguiram reorganizar a

sua sociedade, saíram em busca das crianças dispersas,

agora já adultas, disseminadas até por regiões

longínquas, para que voltassem a sua tribo, para que

compartilhassem a saga do povo parkatejê.

Até mesmo pessoas que nem ao menos sabiam de

sua origem indígena, porque os brancos lhes negaram

essa informação, foram surpreendidas no meio de um dia,

na casa adotiva, pela visita do velho chefe indígena, que

lhes anunciava ter vindo buscá-las para que retornassem

a sua aldeia e ao seu povo, que as esperava”.

Pergunto-me e pergunto a vocês: que Estado é esse que, hoje, dadas as 2

vinhetas, dado esse contraste entre um Estado que mata ou permite matar aqui

mesmo no nosso entorno e uma aldeia que recupera suas crianças 30 anos depois?

Que Estado é esse que hoje pretende ensinar a esses povos a preservar suas

crianças? Que Estado é esse que hoje pretende legislar sobre o cuidado das

crianças entre os povos indígenas? Para mim, é uma idéia absurda.

Que autoridade esse Estado tem? Que legitimidade e que prerrogativa? Que

credibilidade esse Estado tem ao criminalizar os povos que aqui teciam os fios da

sua história quando foram interrompidos pela violência e a cobiça dos cristãos?

Em face das evidencias que cada dia se avultam e multiplicam sobre o

absoluto fracasso desse Estado no cumprimento das suas obrigações e até na

realização do seu próprio projeto de nação, vejo-me obrigada a concluir que a única

prerrogativa com que esse Estado conta é a de ser o depositário do espólio da

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conquista, o herdeiro direto do conquistador. Só por isso podemos legislar sobre

infanticídio. Nós temos que reconhecer, o Estado tem de reconhecer que só pode

legislar sobre as práticas nos povos indígenas porque ele é herdeiro dos

conquistadores que massacraram esses povos e os deixaram em uma situação de

pobreza demográfica da qual eles, agora, por suas próprias estratégias e por seu

próprio esforço estão recuperando.

Antes de legislar deveríamos, portanto, criminalizar esse mesmo Estado que

hoje pretende legislar e levá-lo até o banco dos réus por inadimplência, por omissão,

por infração e por homicídio. Ao comparar a gravidade dos delitos, não teremos

alternativa para inocentar os povos que hoje tentam enquadrar-se na lei e devolver a

mira do Direito, o foco do Direito a quem tenta culpá-los — uma elite que constata

hoje sua incapacidade para administrar a Nação e vê desmontada em público sua

pretensão de superioridade moral, instrumento central em todos os

empreendimentos de dominação.

Essa presunção de superioridade moral de muitos legisladores que estão aqui

poderíamos examiná-la e dizer se tem razão de ser.

A força dessa vinheta inicial fala por si só e bem poderia eu encerrar minha

exposição aqui mesmo. Contudo, há muito mais a dizer sobre o projeto de lei cuja

discussão hoje nos reúne. Pela quantidade e diversidade desses argumentos, optei

por enunciá-los brevemente sobre a forma de um listado, inclusive deixei o que mais

seria da minha incumbência, a adição dos antropólogos, para o final e não vou falar

disso aqui, vou falar do Estado.

Em primeiro lugar, o Estado castigador. Vários são os autores, sociólogos da

violência e do Direito, juristas e cientistas políticos que têm notado a progressiva

evolução do Estado na direção de castigador, criminalizador, que concentra

progressivamente suas tarefas e responsabilidades em atos punitivos, relegando

sine die suas outras e mais prioritárias obrigações. Ou seja, não é um Estado

cuidador, não é um Estado previdente. É um Estado castigador, só entende de

legislar para punir.

Essa lei enquadra-se nessa linha, nesse perfil, condenado e lamentado por

todos os estudiosos, de um Estado punitivo, que reduz sua atuação aos atos de

força sobre e contra, como neste caso, os povos que deveria proteger.

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No seu último livro, o grande jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, hoje

Ministro da Corte Suprema da Argentina e autor de vários manuais e textos nos

quais gerações de estudantes brasileiros estudaram, examina a contradição entre os

princípios da democracia e o estado castigador. Nessa obra, que tem por título O

Inimigo no Direito Penal, El Enemigo en el Derecho Penal, Zaffaroni examina o telos,

a razão de ser, as conseqüências, o subtexto, o discurso profundo do estado

castigador ao longo da história e, especialmente, no contexto contemporâneo e

descobre que ele desenha e se vale da idéia do inimigo. Ou seja, no centro do

estado democrático, há produção constante pelo Direito Penal da idéia de um

inimigo.

Enquanto a democracia é para todos, supostamente a legislação penal fala

sempre, de forma às vezes encoberta e às vezes mais explícita, da figura e da

existência de um inimigo dentro da nação, o qual se desenha para se construir em

oposição a ela. O estado seria então o vigilante que, diante da imagem do inimigo,

coloca-se na posição legisladora. Então, propõe o jurista, o estado é de todos,

porém, desenha, para se constituir, por meio do Direito Penal, a figura de um

inimigo.

No caso da lei que nos traz hoje a debater nesta audiência pública, o inimigo

do Direito Penal é cada povo indígena, na radicalidade da sua diferença e no direito

de construir sua própria história. Isso está claro e ficaria evidente para qualquer

habitante de Marte, para qualquer marciano que, por algum acidente cósmico,

aterrizasse hoje entre nós e lesse o texto do projeto de lei: ele criminaliza a aldeia,

quer castigar o outro por ser outro, não suporta a idéia da existência de uma

coletividade que escolhe não ser parte do nós.

Por isso, essa lei é, acima de tudo, anti-histórica, inclusive no projeto

universal das nações hoje em dia, já que a tendência da humanidade hoje é

valorizar e preservar a diferença, a reprodução de um mundo no plural, e também

pensar em termos de sujeitos coletivos. Então, cada vez que se falou aqui do direito

à vida, falou-se do direito à vida de sujeitos individuais, mas nunca se pensou

também que existe um direito à vida de sujeitos coletivos, nem se cogitou, nenhuma

informação parece ter chegado a esta Casa.

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No entanto, no Direito, a pauta no dia de hoje é a discussão sobre a

existência de sujeitos coletivos, até porque não somente esses povos têm

sobrevivido, apesar das nossas agressões constantes ao longo de 500 anos,

mediante suas próprias estratégias e lógicas internas, o que é um milagre, um

verdadeiro milagre, mas também não é impossível imaginar que eles irão além de

nós nessa capacidade de sobrevivência, já que muitos deles, refugiados em

espaços inalcançáveis pelo que presunçosamente consideramos ser a civilização e

sendo livres da cobiça por concentração e acumulação, quer dizer, livres da pesada

bagagem que nós carregamos, terão, quem sabe, uma chance que nós não

teremos, num mundo que se interna cada dia no que muitos dizem ser sua fase

terminal. Então, esses povos possivelmente sobreviverão, porque os que estão mais

longe de nós é possível que tenham essa chance.

Na minha lista, ponto dois. O significado das leis. Julita Lemgruber, no seu

brilhante texto Verdades e mentiras sobre o Sistema de Justiça Criminal, publicado

na Revista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, revela

a baixíssima eficácia da lei não somente entre nós, no Brasil e nos países

periféricos, mas inclusive nos países centrais. Ela mostra claramente com dados que

a lei é absolutamente ineficaz.

Valendo-se de pesquisas quantitativas sobre segurança pública em países

onde elas são realizadas com regularidade, Julita diz que na Inglaterra somente 45%

dos casos de delitos são comunicados à polícia; 24 foram registrados no ano da

pesquisa; 5,5 esclarecidos e 2,2 resultaram em condenação. Somente 0,3

resultaram em pena de prisão. Essa situação não é muito diferente nos Estados

Unidos, e entre nós, nas pesquisas de monitoramento do uso da lei, a melhor que

existe, a do Rio de Janeiro, mostra haver dissidência entre alguns autores. Luiz

Eduardo Soares diz que 8% dos crimes são punidos e Alba Zaluar diz que 1% dos

crimes chega a uma condenação. Por que estou dizendo isso? Porque estou agora

colocando em foco o que seja a lei. Queremos legislar de novo, mas para fazer isso

temos de nos perguntar também como a lei opera, qual é a sua eficácia.

Esses dados colocam interrogações, as motivações possíveis para legislar

mais, criminalizar mais, punir mais, gerar mais direitos criminalizantes.

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Qual seria a razão dos legisladores para insistir numa lei que criminaliza

povos indígenas e torna mais distante seu acesso ao direito próprio e à sua própria

jurisdição para solução de conflitos?

Isso é o que está previsto na Convenção 169, vigente no Brasil. Essa lei torna

mais distante o cumprimento dessa convenção já vigente. Então, por que a

insistência nessa lei? O que significa essa insistência quando se sabe que essa lei

não terá eficácia real e verdadeira, como as próprias leis sobre os brancos, que não

têm eficácia real porque não fazem chegar à condenação na maior parte dos casos?

Se a lei não constrói realidade entre nós, como poderia construir realidade

entre outros povos? E se a lei não faz acontecer, qual seria o significado da

insistência dessa nova lei quando, de fato, ela não somente infringe o princípio do

direito à diferença, mas também corre o risco de vir a avultar de forma redundante e

desnecessária a já bastante inócua legislação penal? Somente consigo achar uma

resposta para essa pergunta. O que essa lei de fato faz, e faz eficientemente, é

afirmar, tornar público, tornar patente perante a Nação quem escreve a lei; quem é o

povo que escreve a lei; quais são os setores da sociedade nacional que têm acesso

aos recintos onde essa tarefa se realiza.

Na verdade, não devemos esquecer que a lei fala, em primeiro lugar, sobre a

figura dos seus autores. Ela contém, sem dúvida, uma assinatura. Então, essa lei é

uma forma de alguém colocar sua assinatura no discurso jurídico aqui, mediante o

acesso a esta Câmara. Até porque, e esta é a parte mais forte, quem sabe, do que

tenho a dizer, neste Congresso Nacional não há cotas para indígenas, nem qualquer

tipo de reserva de vagas que garanta a participação dos diversos povos na redação

dessas leis, numa grande nação que eles também compõem. Então, com que

legitimidade este Congresso vai legislar para eles se não for a legitimidade do

espólio da conquista se neste Congresso não há um grupo suficientemente

representativo de legisladores indígenas para escrever essa lei?

Terceiro e último ponto. O futuro do estado. Qual poderia ser o trabalho do

estado para deixar para trás uma conjuntura tão desalentadora como a que acabo

de esboçar? Acredito e sustento que dever ser um estado devolvedor e garantidor.

Com isso, quero dizer que, em face da desordem que as elites das metrópoles

européias e cristãs instalaram no continente com a conquista e a colonização —

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desordem logo agravada e aprofundada pelas elites nacionais quando herdaram o

controle do território —, hoje temos uma oportunidade de permitir restaurar a ordem

por parte daqueles que, até agora, não tiveram chance. Quem sabe assim seja

possível refazer o que foi desfeito na ordem cultural, na ordem política, na ordem

material, na ordem econômica e na ordem ambiental.

Portanto, não se trata, como muitos juristas parecem ter entendido — e esta é

a interpretação mais habitual até hoje, mas acho que deve mudar muito rapidamente

— de opor o relativismo das culturas ao universalismo dos direitos humanos ou à

vigência universal da Constituição dentro da nação, os mínimos jurídicos, que são os

mínimos ou dos direitos humanos ou, como na Colômbia, constitucionais. Não se

trata de opor o relativismo ao universalismo das leis. É outra coisa.

O que o projeto de um estado pluralista e a plataforma do pluralismo jurídico

propõem, ao desenhar a idéia de uma nação como uma aliança ou coalizão de

povos — e já não uma nação impositiva, castigadora, como vimos tendo até aqui,

mas uma nação com coalizão de povos —, é permitir a cada um deles resolver seus

conflitos e elaborar o dissenso interno das suas comunidades por um caminho

próprio. Em último caso, supervisar, mediar, interceder, para garantir que esse

processo possa ocorrer livremente, sem abusos por parte de poderes que possam

até se constituir no interior do grupo de forma autoritária, muitas vezes pela pressão

da frente externa.

Esses povos vivem hoje em estado de desordem, às vezes com formas de

autoritarismo interno que, em muitas ocasiões, senão em todas, são conseqüências

da pressão do branco sobre eles. Então, o estado não pode desaparecer, não pode

se ausentar completamente, porque ele introduziu essa desordem. Assim, deve

estar presente para supervisar, para garantir que o debate interno e a deliberação

interna dos grupos aconteçam. Mas é o estado que deve estar presente. Ele deve

ser devolvedor do ambiente, do território, do direito a construir a própria história, e

garantidor de que a deliberação ocorra livremente no interior dos povos.

De certo, as sociedades que praticam o infanticídio contêm dissidências no

seu interior. É evidente. Toda sociedade, até a menor dela, conhece o dissenso. Não

existe sociedade monolítica de consenso absoluto. Nem uma aldeia de 25 pessoas

tem consenso. Sempre há dissenso. Não se trata disso.

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Quando pensamos o princípio do pluralismo, idéias de cultura como conjunto

de costumes cristalizados e históricas devem ser abandonadas e substituídas pela

idéia de uma história em plural. Todo povo habita, no fluir dos tempos históricos, em

muito entrelaçamento e todo povo tem dissenso no seu interior, de forma que

costumes são constantemente mudados na curso da deliberação, como

conseqüência da deliberação interna dos povos.

Mas isso fala precisamente contra o que aqui se está tentando fazer, contra a

necessidade de legislar, justamente como dizia a companheira Valéria: porque

existe esse dissenso, essa deliberação, essa construção da história pelo próprio

povo, o estado deve garanti-la. Ou seja, deve ser um estado que preserve a

possibilidade do curso histórico livre e diferenciado, feito pela própria comunidade.

Porque o fato de que a sociedade se transforme, abandone costumes e instale

outros é precisamente um argumento contra essa lei e não a favor.

Ao se dizer que as sociedades mudam, estamos afirmando que o estado não

é agência para produzir, mediante ameaça ou coação, a história própria dos outros

povos. Seu papel é o de proteger seu curso idiossincrático e particular. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Muito obrigado, Profa. Rita

Segato.

Concedo a palavra ao Sr. Wanderley Guenka, Diretor do Departamento de

Saúde Indígena da FUNASA e que disporá do tempo regimental.

O SR. WANDERLEY GUENKA - Exmo. Deputado Luiz Couto, Presidente da

Comissão de Direitos Humanos e Minorias, na pessoa de quem cumprimento todos

os presentes à Mesa; Deputado Henrique Afonso, autor do requerimento desta

audiência pública; todos os outros Deputados; demais presentes, boa tarde.

Represento aqui o Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, e o Presidente

da FUNASA, Dr. Danilo Bastos Fortes.

Assumi há 2 meses a gestão do Departamento de Saúde Indígena da

FUNASA, depois de 8 meses sem diretor. Venho de um Estado que tem a segunda

população indígena do País, Mato Grosso do Sul. São 60 mil indígenas com muitos

problemas sociais, principalmente os kaiwás-guaranis e nhandéwas.

Nesse período de gestão, a primeira providência foi tentar reorganizar o

órgão. Pela ausência de titular durante certo tempo, o Departamento

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desorganizou-se, e a nossa principal meta é organizá-lo e buscar parcerias

interinstitucionais. Dentro do próprio Ministério da Saúde, ao qual pertence a

Fundação Nacional de Saúde, com as várias Secretarias, como a de Atenção à

Saúde e a de Vigilância em Saúde; com outros Ministérios, como o de

Desenvolvimento Social e Combate à Fome e o de Desenvolvimento Agrário; e,

principalmente, com a Fundação Nacional do Índio.

FUNAI e FUNASA são órgãos federais que, historicamente, até há pouco

tempo se digladiavam em torno da questão indígena. Com o novo Presidente da

FUNAI, Dr. Márcio Augusto Meira, temos buscado parceria no sentido de, além de

não brigarmos nas ações nas aldeias, um órgão ajudar o outro, porque há

dificuldades de atuação tanto da FUNAI como da FUNASA. Assim, precisamos de

imediato otimizar o pouco que temos. Isso tem dado certo, e estamos avançando

bastante com o trabalho em parceria.

Temos buscado parcerias também dentro do próprio Ministério da Saúde.

Este Ministério repassa 152 milhões de reais fundo a fundo para os trezentos e

poucos Municípios brasileiros com população indígena. Isso vem desde 1999, com a

Portaria 1.163, que nunca foi regulamentada. Nossa luta, chegando ao

Departamento de Saúde Indígena, buscando parceria com o Ministério da Saúde, é

para regulamentar essa portaria. Isso vai otimizar os recursos que vão para os

municípios prestarem assistência à população indígena.

Mais do que criar critérios de distribuição dos recursos, essa portaria cria

mecanismos de controle social. Os conselhos de saúde indígena local e distrital vão

participar da pactuação e decidirão onde e de que forma serão aplicados os

recursos que vão para os municípios.

Buscamos também parcerias com os Estados. Hoje, temos no Brasil 475 mil

indígenas e 15.500 pessoas trabalhando na atenção à saúde indígena. É um grande

volume de profissionais, mas precisamos otimizar a atuação desse grupo enorme de

pessoas que atua na assistência à saúde dessas populações.

Temos capilaridade. Desses 15 mil funcionários, grande parte é constituída de

agentes indígenas de saúde da própria comunidade, que moram no próprio local de

trabalho. Esse é o nosso principal elo de ligação com a equipe de saúde.

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Quanto à questão que se discute aqui, a violência contra crianças indígenas,

o Deputado Luiz Couto esteve recentemente em Mato Grosso do Sul participando de

audiência pública que discutiu a desnutrição e a violência que atingem a população

indígena kaiwá-guarani em Dourados e municípios próximos.

Trabalhei desde 1993 com essa população. Organizamos os serviços e

tivemos muitas dificuldades nesta questão de morte de crianças por desnutrição e

violência. Esta audiência para discutir violência contra crianças e mulheres

indígenas vem em boa hora.

Na reserva de Dourados, há 12 mil indígenas vivendo num território de 3.600

hectares. (O território do Vale do Javari, onde vivem os marubos, korubos e matis,

por exemplo, tem 5 milhões de hectares.) Não é possível que, num território tão

pequeno, uma população tão grande consiga viver em paz. Então, há mortes de

crianças indígenas, sim. Morte por violência.

Naquela área não entra policiamento. Não entra a Polícia Federal, não entra a

Polícia Militar, não entra a Polícia Civil, não entram os bombeiros, mas entra a

FUNASA.

Há mortes violentas. Existem casos de violência contra criança, de estupro. O

Conselho Tutelar da Criança não está preparado para receber a criança indígena.

Como não sabe lidar com essa questão, acaba devolvendo essa criança para a sua

família.

Nós, que trabalhamos com saúde, vivenciamos toda essa situação. Sofremos

com a violência e muitas vezes não sabemos o que fazer. A população não-indígena

também não sabe lidar com esse problema.

Acho que o momento é oportuno, com a vinda do novo Presidente da FUNAI,

aberto ao diálogo, do novo Ministro da Saúde, do novo Presidente da FUNASA e do

novo Diretor do Departamento de Saúde Indígena, buscando parceria com o

CONASS, o CONASEMS, o Conselho Intergestores da Saúde, a Comissão

Intersetorial de Saúde Indígena, a Comissão Nacional de Política Indigenista e

organizações não-governamentais.

Temos que discutir esse problema. O momento é propício a essa discussão.

A FUNASA, sozinha, não vai resolver a questão de saúde indígena. A FUNAI,

sozinha, também não vai. O município e o Estado também não vão.

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Portanto, precisamos que desta audiência saia alguma coisa concreta. Não

vamos procurar culpados — a FUNAI, a FUNASA, o Estado, o município, quem quer

que seja. Precisamos unir esforços, porque a situação do povo indígena no Brasil é

crítica. Se não nos unirmos, ficaremos sempre procurando o culpado, e isso vai

perpetuar-se, como já está acontecendo há vários anos. (Palmas.)

Temos dificuldades tremendas para prestar assistência à saúde. Alguns

oradores citaram a FUNASA. Não posso responder pelo serviço de saúde prestado

pela FUNASA anteriormente. Se estou chegando agora, é porque queremos

melhorar. Temos enormes dificuldades e precisamos melhorar.

O Ministro tem boa vontade e quer resolver a questão da saúde indígena. Um

exemplo é a mudança da portaria que normatiza o repasse de recursos para os

municípios e os Estados. O Conselho vai ter o direito de acompanhar e monitorar

esse repasse. A Fundação Nacional de Saúde também quer acompanhar, monitorar

e auditar os recursos que vão para as organizações conveniadas e para aplicação

direta.

O momento é favorável. Quero demonstrar a boa vontade de discutir essas

questões e atender a todos os convites. Esta é a terceira vez que venho a uma

audiência pública da Câmara dos Deputados, para colaborar e buscar parcerias.

Agradeço o convite, Sr. Presidente. A Fundação Nacional de Saúde está de

portas abertas para ouvir as reclamações, buscar parcerias e tentar levar atenção à

saúde dos povos indígenas.

Muito obrigado.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Obrigado, Wanderley.

Passo a palavra à última expositora, Sra. Jacimar de Almeida Gouveia, da

etnia kambeba, representante das mulheres indígenas no Conselho Nacional dos

Direitos das Mulheres.

A SRA. JACIMAR DE ALMEIDA GOUVEIA - (Trecho em língua indígena.)

Boa tarde aos brancos também. Cumprimento os membros da Mesa na

pessoa do Exmo. Sr. Deputado Luiz Couto. Cumprimento também os parentes

indígenas presentes.

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Gostaria de comentar as falas dos companheiros, mas vou ater-me ao tema.

Não sou especialista, mas acompanho o assunto em nível nacional. Já fiz um

panorama, com conhecimento real, profundo e consistente, dessa questão.

É uma discussão que não pode ser imposta. Ela precisa ser feita in loco.

Sugiro que, juntamente com o CNPI, a COIABI, a FUNAI, o Ministério da Justiça, a

FUNASA, as comunidades indígenas e as lideranças, façamos um projeto amplo

para alocar recursos a fim de que essa discussão seja feita in loco, com

acompanhamento e de forma consistente.

Foi dito que determinado povo, devido ao baixo número populacional, está

abolindo o infanticídio. Mas em outras áreas, como a dos suruwahás, por exemplo,

que fica no meu Estado, isso não está sendo feito. Acompanhei de perto o caso da

Tituí, que está por aqui. Há também casos nos povos ianomâmis e maiurás.

Recentemente, houve outro caso no povo marubo.

Então, precisamos discutir de uma forma consistente, para que mais tarde

não venhamos atender um povo enquanto outros argumentam: “Não, não queremos

essa discussão, não é dessa forma”. Porque também existe punição cultural.

O art. 4º repete a pena fixada no art. 135 do Código Penal, que dispõe sobre

o crime de omissão de socorro, punível com pena de detenção de 1 a 6 meses ou

multa.

Cito um exemplo prático. Não podemos interferir na casa de alguém. Ele tem

autonomia na sua moradia e decide a hora em que fecha a porta, a hora em que é

servido o jantar. Não podemos dar ordem quanto ao que ele deve comer e à hora

em que deve dormir.

Na recente conferência das mulheres indígenas, houve uma moção de

repúdio ao projeto de lei, referente a essa questão. As 32 mulheres presentes na

conferência não concordaram com a forma como está sendo implantada a lei. Muitas

mulheres indígenas têm suas práticas culturais, inclusive o controle de natalidade

para que essas crianças não nasçam e venham a morrer. O colega antropólogo

disse que são sacrificadas, de forma violenta e arrogante. Eu não concordo. Os

povos indígenas não pensam dessa forma. Eles não vêem crueldade na morte da

criança. Eles encaram de uma forma cultural. A mãe ianomâmi, por exemplo,

quando vê que a criança é deficiente, não a pega nos seus braços, não a amamenta

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e não lhe dá nome. Então, para eles tem um significado: ainda não é gente naquele

momento.

Discordo de algumas coisas que foram ditas na primeira mesa sobre os

suruwahás. Por quê? Em 1981, eles eram 123. Hoje, são 140.

Na década de 80, o povo deni não tinha tanta doença. Eles mesmos

realizavam cirurgias. Em 83, a FUNAI fez um primeiro contato oficial, inclusive

abrindo varadouro. Foi aí que apareceu a JOCUM. Após esse contato, ficaram

convivendo. A partir desse momento, no meu entendimento e no de várias mulheres,

foi imposta uma religião, uma mudança de cultura que não teve resultado, porque

em 1981 eram 123 suruwahás e hoje, em 2007, há cerca de 140. Fizeram até

exorcismo sobre o timbó. Eles já plantam em suas casas justamente para essas

questões. Na hora em que querem ir para outro mundo, eles vão, naturalmente. Não

foi relatado aqui que, quando foi impedido o sacrifício dessas crianças, alguns pais e

alguns avós morreram. Então, houve uma revolta na comunidade porque a criança

não foi sacrificada. Uma criança viva deficiente resultou na morte de 2, 3, 4 pessoas.

Como fica? O que vale mais: uma criança deficiente sobreviver enquanto 3 ou 4

vidas vão embora?

Então, acho que essa questão tem de ser discutida de forma ampla,

participativa. O que cada povo realmente quer? Quer abolir? Quer inserir

programas?

Por exemplo, no Canadá existe um programa de governo, não é ONG que

cuida de criança deficiente, porque tirar indígena deficiente da aldeia e levá-lo à

cidade não vai melhorar a situação, não vai a lugar nenhum. Hoje melhorou,

parabenizo as crianças que estão felizes, mas não é a solução. É preciso programas

de governo que dão assistência adequada, respeitando a especificidade cultural de

cada comunidade. É aí que chamo a atenção dos nossos Parlamentares: como

vamos ajudar nessa questão? Discutindo programas?

Chorei quando levei uma criança madihá ao médico. Pediram-me que eu não

chorasse, porque a criança só estava viva porque era aposentada.

Crianças indígenas também são cuidadas através de programas. Mas será

que esses programas dão direito a acompanhamento, a uma vida digna? Hoje, o

salário mínimo não resolve o problema de uma criança deficiente, porque ela precisa

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de medicação, de ir de vez em quanto ao médico, de traslado. Então, tem de haver

programas de forma acompanhada, participativa, para resolver essa questão.

Um colega mencionou aqui a questão da FUNASA. Sexta-feira, estive na

FUNASA. O pessoal do DESAI esteve lá para cortar recursos, demitir AISs e

técnicos. Não é isso que vai melhorar.

Então, a questão ética, cultural, a palavra-chave está no que devemos fazer.

Devemos pensar como vamos dar continuidade a esse debate. Não vai ficar

só por aqui e a lei ser votada. Não.

Os Parlamentares, nossos representantes aqui em Brasília, também deveriam

preocupar-se com a demarcação de terras. Em 2002, havia 735 mil índios. Hoje,

eles estão indo para a cidade, principalmente em Mato Grosso do Sul, por falta de

terra.

Essa questão do infanticídio vem de uma forma que não sentimos. A questão

da desnutrição, ainda mais grave, é também um infanticídio. E de quem é a culpa?

Devemos abrir esse leque, essa discussão.

Quem ganhou na Guerra do Paraguai com o Brasil foram os fazendeiros. Eles

sacrificaram muitas famílias terenas e guaranis e ainda hoje dominam as terras.

O programa do etanol é bom, tem sustentabilidade, mas nós, povos

indígenas, não temos acompanhamento, apoio. Somos entregues nas lavouras,

sendo viciados em bebidas alcoólicas.

Por que não alocar mais recursos para que o DESAI vá em cada DSEI?

Cortam recursos e não acompanham a saúde. É preciso alocar recursos para o

Ministério da Justiça, para que a FUNAI também tenha recursos para trabalhar nas

aldeias, na demarcação de terra, com programas de acompanhamento. Tudo isso

para nós é uma dificuldade muito grande, que se liga ao infanticídio.

A criança indígena de certas aldeias que nasce desnutrida, raquítica, é morta.

Aí tem um porém: será que a mãe está sendo bem alimentada? Não está. Por quê?

Porque às vezes não tem nem terra para plantar. Hoje somos proibidos de caçar, de

comer nosso próprio alimento natural, a caça. Somos taxados até de preguiçosos.

Não. Nós não desmatamos, nós preservamos. Mas os fazendeiros e os grandes

madeireiros desmatam. O resultado disso é o fim da caça. E os nossos rios são

invadidos pelos grandes pescadores.

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Por que hoje nasce criança desnutrida? Porque não houve preservação do

nosso meio ambiente para termos uma vida digna em nosso hábitat.

O infanticídio é uma conseqüência. É precisa pensar o que leva a isso.

Tenho uma irmã que teve 2 filhos deficientes devido a um problema congênito. Ela

está em Belém, fazendo tratamento. Ela saiu do emprego e ficou deprimida, porque

passou por um processo de violência psicológica, violência social, que nos afeta

também, e discriminação. O médico atestou que as crianças foram afetadas pelas

conseqüências psicológicas. Devemos analisar tudo isso.

Hoje até mudaria o tema, de “discutir a prática do infanticídio nas áreas

indígenas” para “como discutir, e com quem, a forma do infanticídio nas áreas

indígenas”, “como, com quem e de que forma discutir e buscar subsídio para essa

lei”, que tem vários pontos.

Não vou alongar-me muito sobre as proposições legislativas. Conforme o

Deputado do Amazonas falou, em 1945 não existia índio na representação da ONU.

E não é a ONU que vai impor essas questões, porque a legislação brasileira tem de

se adequar à nossa realidade. Eu não gostaria que fosse imposto algo que não

estivesse de acordo.

Também não gostaria que se visse isso como crueldade dos povos indígenas,

como se fossem assassinos cruéis. Em nenhum momento, tive conhecimento de

índios serem colocados em forquilha, de terem a cabeça esmagada. Não. É com

uma forma do timbó que eles matam e enterram quando consideram que a criança

ainda não é gente.

Gostaria que as pessoas que estão aqui não vissem isso como crueldade,

porque somos politeístas, acreditamos em vários deuses. Se eles acham, naquela

nação, naquele povo, que não existe alma, fazem isso com naturalidade, não

sofrem. Eles sofrem mais ainda quando alguém é arrancado de lá, vem para a

cidade e não sabem como está vivendo. De repente, estão criando ONGs, buscando

recursos, pegando as crianças. E aí? Eles sofrem mais ainda quando um pedaço

deles sai e ficam sem saber o que está acontecendo aqui fora.

Há também outra questão. No Brasil, existe expressiva diversidade de povos

indígenas, há cerca de 240 grupos étnicos. Segundo o IBGE, em 2002, havia 735

mil índios. E agora, por que diminuiu? Êxodo rural, falta de programas sustentáveis e

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de cobrança também. Porque não adianta fazer programa sem ter

acompanhamento. Temos de acompanhar e monitorar de forma muito respeitosa a

cultura dos povos indígenas.

Preparei um trabalho, mas não vai dar para ler porque o tempo está muito

curto. Gostaria que esta discussão não parasse por aqui.

Outra coisa: gostaria de dizer aos nossos Deputados — que pena que não

estão mais aqui, mas o Deputado fica encarregado de transmitir isto — que

entreguei à Ministra pedido de um seminário nacional de mulheres, a fim de que

possamos discutir com amplitude essa questão. Um seminário nacional de mulheres

indígenas, discutindo de forma concreta, participativa, em âmbito nacional, o tema.

Tratando também da questão da violência, incluindo a Lei Maria da Penha.

Quanto à violência contra as mulheres indígenas, a Lei Maria da Penha não

nos contempla, porque existem punições culturais, mas está havendo violência, sim,

contra as mulheres indígenas.

Gostaria que, quando a nossa emenda provisória chegasse ao Congresso,

vocês olhassem com carinho para ela. Precisamos que vocês apoiem essa emenda

para realizarmos o nosso seminário de mulheres indígenas, a fim de que possamos

contribuir para este projeto de lei.

São essas as minhas palavras, é a minha contribuição. Peço a vocês que

respeitem a cultura de cada povo, tratem a questão com carinho e não de forma a

nos ver como assassinos. Quero muito pedir-lhes que não olhem com esses olhos.

(Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Na fala do Paltu, o Mateus tem

a palavra.

O SR. MATEUS - Boa tarde a todos os presentes, Deputados, representantes

de organizações não-governamentais, professores antropólogos das universidades e

meus parentes indígenas.

Agradeço a divisão do tempo que o Paltu está passando para falar a respeito

do assunto. Tenho certeza de que, no presente momento, está comprovado que a

comunidade indígena de modo geral — foi debatido durante muitos anos — tem

alma: sentimos, conhecemos, avaliamos, participamos também de discussões.

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Quanto ao tema, quero reforçar a idéia de algumas pessoas que comentaram

sobre o assunto: é muito complexo. Sim, a comunidade indígena pode contribuir,

mas com a participação das principais comunidades que têm essa prática.

Atualmente, temos várias leis brasileiras que são apenas colocadas

teoricamente, não são praticadas. Dizem o direito dos povos indígenas, mas esses

direitos não estão sendo trabalhados.

Acredito principalmente na contribuição das populações indígenas. Acredito

também no trabalho de alguns legisladores, mas o principal trabalho que podemos

fazer é através do diálogo, da participação de todos, dos índios que têm essa

situação. A questão do direito à vida, que foi comentada, e a questão da cultura são

complexas. E a comunidade indígena está aí para contribuir através do diálogo.

Agradeço ao Paltu pela palavra.

Obrigado.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Muito obrigado, Mateus.

A Dra. Maíra pediu a palavra. Ela não está? Já saiu.

Então, vamos passar a palavra agora aos Parlamentares. Primeiro Joseph

Bandeira e depois o nosso companheiro Henrique Afonso.

O SR. DEPUTADO JOSEPH BANDEIRA - Sr. Presidente, Sras. e Srs.

Deputados, convidadas e convidados à mesa e no plenário, já vou ter de me retirar

para cumprir outro compromisso, mas antes quero homenagear a Comissão na

pessoa do Deputado Luiz Couto, como também o Deputado Henrique Afonso, que é

o autor do projeto de lei que acabou sendo este pólo de convergências e

divergências, tudo feito democraticamente.

Quero dizer ao Deputado Henrique Afonso que conta com meu apoio — estou

reiterando, porque já disse isso antes —, mas não como uma afirmação cultural de

um suposto nível mais alto de civilidade com interferência direta e sem consultas na

cultura indígena, que está sendo objeto deste debate. Não é, portanto, uma

afirmação de arrogância, de prepotência, mas uma tentativa de compreensão, que

contempla a fala dos antropólogos, que avaliam a relação indivíduo/comunidade a

partir da visão do próprio indivíduo, e também a dos sociólogos, que avaliam a visão

da comunidade sobre si mesma e sobre cada indivíduo que a integra. Nem também

uma visão filosófica, que perquire, ao longo das experiências humanas, onde deve

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estar o certo e o errado, o que é treva e o que é luz, o que seria, afinal, o bem e o

mal. Não é isso.

Nós não podemos também esquecer que no limite das ações individuais e

coletivas encontra-se o estado. E mesmo que não deva ser o estado castigador —

não concordo com esse estado —, ele não pode fechar os olhos. Se passo numa

rua deserta, em qualquer lugar do Brasil ou do exterior, e vejo um adulto

espancando uma criança, eu vou ter que interferir, porque há uma medida do que é

possível e do que não se aceita. Aí, estamos no campo do Direito.

Eu não sei se posso fazer esta afirmação com segurança, mas é preciso que

não fechemos os olhos. Que bonito foi o espetáculo daquelas crianças que estavam

aqui ainda há pouco. Todas foram salvas. E as que não foram salvas?

Respeito a autoridade intelectual de todos os palestrantes e me louvo na

palavra do Dr. Wanderley Guenka, aplaudido pelo Plenário quando estabeleceu aqui

que temos que ter um pacto nesta e em outras reuniões: não procurar culpados.

Mas também não podemos fazer o papel de inocentes. Não podemos olhar e fazer

que não estamos vendo, ouvir e fazer que não estamos ouvindo. Foi nesse sentido

que a Dra. Valéria fez a sua exposição. É que a omissão de socorro já é um crime

no Código Penal.

Foi essa a visão, parece-me, do Deputado Henrique Afonso. S.Exa. não quer

punir ninguém, muito menos as mulheres. Nós queremos apresentar a elas a nossa

solidariedade, como estamos querendo também fazer neste momento a

apresentação da nossa solidariedade a todos os povos, não só as 222 nações

indígenas e os 450 mil índios que fazem parte dela.

Nós somos a favor da vida. Somos contra a morte. Tenho certeza de que um

debate desses, de tão alto nível, ao final vai nos trazer a forma de resolver o

problema.

Por fim, D. Jacimar e Sr. Aisanain, acredito que os senhores, as senhoras, os

intelectuais, os Parlamentares, a sociedade brasileira hão de encontrar nesta Casa

apoio e solidariedade para encontrarmos a melhor solução não para um grupo, não

para uma pessoa, mas para todos nós.

Muito obrigado. (Palmas.)

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O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Muito obrigado, Deputado

Joseph Bandeira, do PT da Bahia.

Concedo a palavra ao Deputado Henrique Afonso.

O SR. DEPUTADO HENRIQUE AFONSO - Sr. Presidente, em primeiro lugar,

quero parabenizar todos os debatedores. Realmente, o debate aqui foi além da

nossa expectativa. Isso me traz tranqüilidade. Há uma tentativa no Congresso

Nacional, quando se vai discutir assunto relativo à vida como este — como a

questão do aborto e a da eutanásia —, de transparecer para a sociedade que aqui

há uns que lutam a favor da fé e outros que lutam a favor da ciência. E terminam os

chavões, os estereótipos andando no meio jornalístico e no nosso meio também.

Somos às vezes considerados fundamentalistas no nosso debate, dizem que há

fundamentalismo religioso, que as nossas prerrogativas e argumentações têm como

bases essenciais questões meramente religiosas.

Este debate, dentro da sua pluralidade intelectual, em termos teóricos,

demonstra, abarca várias nuanças importantes para entender a prática do

infanticídio no Brasil. Conseguimos transparecer aqui nossas divergências

antropológicas. Conseguimos ver as nossas divergências jurídicas. E pouco se falou

em Teologia, muito pouco. Acho que temos que começar a amadurecer nisso.

Porque é protestante ou porque é católico vai ficar fora do debate? Acho isso, por si

só, extremamente discriminador. E temos sofrido isso.

Dra. Rita, com todo o respeito, acho que sua intervenção do ponto de vista

teórico e acadêmico foi brilhante, embora eu tenha divergências profundas, mas não

podemos tirar o coração desse debate. Eu não consigo. Fui professor de Filosofia da

Educação na universidade por 7 anos. Estudei muito Filosofia, desde os

pré-socráticos até os neomarxistas. Entrei nesse debate da Antropologia por conta

de muitas situações que foram postas na minha vida. Tive que estudar muito. E tive

que estudar muito bem o relativismo cultural e uma corrente dentro da Antropologia

que me desse base naquilo que acredito, inclusive a universalidade dos direitos.

Fico preocupado com esse mundo onde não se consegue mais ver um direito dentro

do seu caráter de universalidade. Fico muito preocupado: para onde está indo esse

mundo senão para a barbárie? Se como seres humanos não conseguimos definir

alguns direitos, inclusive à vida, estamos criando problema.

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Então, não consigo retirar de mim meu coração, nem no debate sobre o

aborto. As pessoas têm medo porque talvez vão se desmoralizar no meio

acadêmico. Isso para mim não é bom. Sem o coração num debate como este, meu

discurso é plenamente individualista, porque vou pensar nos meus paradigmas, nas

minhas pesquisas, nas minhas conclusões. Muitas das vezes, quando também

colocamos o coração, alguns dos nossos paradigmas são quebrados.

Não é para dramatizar nem para trazer sensacionalismo para este debate,

mas uma coisa é real além do que ocorre nos debates acadêmicos e políticos:

crianças estão sendo enterradas vivas — acho que aqui ninguém mais tem dúvida

disso — e pais estão se suicidando porque não querem isso.

Outra coisa é que este projeto não é, absolutamente, etnocêntrico. Não é.

Pelo contrário, ele reafirma alto e bom som o respeito às diferenças, o respeito às

tradições culturais. Tanto que no trato da possibilidade de uma criança vir a ser

sacrificada se estabelece como ponto central que aquela aldeia, através do diálogo,

do convencimento... E aí um agente da FUNASA ou da FUNAI podem cumprir isso.

Ou um antropólogo que está dentro da aldeia. Ou um missionário. Assim como uma

missionária foi aqui acusada de levar um arquivo cultural com ela, um antropólogo

também leva. Vou acusar e dizer que os antropólogos não podem entrar numa

aldeia e ter um relacionamento, desde que não seja com má intenção de

biopirataria? Ter uma relação com os povos indígenas para compreender seus

conhecimentos?

Dra. Rita, fui o principal articulador da Universidade da Floresta (a UnB nos

ajudou), que conjuga o conhecimento das populações tradicionais, essencialmente

dos povos indígenas, com o conhecimento acadêmico, com a valorização desse

conhecimento. E o respeito a eles é fundamental.

Agora, precisamos analisar que este projeto não é impositivo. Aliás, quando

se chega ao ponto de o estado ter condições de criar políticas de incentivo para dar

abrigo a uma criança que vai ser sacrificada, é a última instância, porque se vai

buscar na mãe, na aldeia, que absorva aquela criança. E isso é possível. Aqui não

se está colocando que se vai usar polícia, isso ou aquilo, uma atitude arbitrária,

autoritária, para que aqueles indígenas que daqui para a frente não se adequarem à

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cultura ocidental, ao modo ético de as pessoas verem as coisas, sejam presos. Isso

não existe. Sabemos que isso é com o tempo, com campanhas, diálogos.

Se formos generalizar isso, como vamos pensar em educação para os povos

indígenas? Com que tipo de visão? Temos 223 etnias no Brasil. A educação, a

saúde e outros aspectos devem ser pensados respeitando as diferenças, mas

algumas questões para nós são universais, como a do direito à vida.

Quero concluir dizendo, Jacimar, que você está corretíssima. O Congresso

Nacional tem que debater isso. O Estatuto do Índio está há 15 anos adormecido

aqui. Não pela nossa vontade. Por nós, esse estatuto já estaria em debate. E esta

Comissão faz este debate. O Estatuto do Índio vai entrar em diversos interesses dos

povos indígenas, com certeza incluindo a garantia da sua autodeterminação.

Sabemos que o Congresso, a Câmara, a Comissão de Direitos Humanos precisam

realmente trazer isso.

Nesse debate sobre o infanticídio, essa proposta está com 3 meses aqui na

Comissão de Direitos Humanos. A Deputada Janete Pietá é a Relatora. O foco aqui

não era debater a lei. A idéia era que a Deputada Janete Pietá, ao apresentar o seu

relatório — concordo plenamente com isso —, pudesse ir aos Estados, aos foros

representativos dos povos indígenas no Brasil, para debater isso com a maior

seriedade e o maior respeito.

Se o Congresso Nacional referendar que o infanticídio precisa ser legitimado

por conta de que precisamos respeitar as particularidades do desenvolvimento da

cultura de cada um, o que vamos fazer? Mas vamos continuar lutando pela vida e

tentando convencer as lideranças indígenas de que é possível mudar. Essa prática

já mudou em muitas aldeias. Queremos estabelecer um debate democrático.

Inclusive, estamos abertos, como autores, para qualquer foro. Se você quiser ir à

Ministra Marina, se precisar de articularmos para que esse encontro trate, além do

infanticídio, de outros interesses das mulheres indígenas, estaremos à disposição.

Não podemos ficar à margem, porque nós é que vamos votar. Ou não.

Ninguém sabe qual vai ser o parecer aqui na Comissão de Direitos Humanos, na

CCJ e para onde este projeto vai. Mas o mais importante é que este projeto trouxe a

realidade do infanticídio, motivado por um grande movimento que tem como marcos,

como expoentes, o Edson Suzuki e a Márcia Suzuki, a Dra. Damaris e outras

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pessoas que têm lutado para que essa prática possa ser rompida no Brasil, mas

com o devido respeito de que quem vai decidir isso são as mulheres indígenas, os

homens indígenas, as comunidades indígenas. E a Câmara não vai se recusar. Já

começou a abrir esse debate. Acho que isso demonstra nosso desprendimento. Mas

o nosso sonho é que um dia nenhuma aldeia indígena tenha que soterrar ou

envenenar uma criança porque ela nasceu deficiente.

Presidente, se queremos o respeito às diferenças, tudo o que queremos é

que, quando a criança nascer com síndrome de Down numa aldeia indígena, quando

uma criança nascer diferente numa aldeia, ela seja também respeitada na sua

individualidade para viver e garantir sua integridade física.

Muito obrigado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Obrigado.

A Sra. Maíra pediu a palavra.

A SRA. MAÍRA DE PAULA BARRETO - Sim, bem rapidinho. A ilustre

professora comentou acerca das minhas afirmações sobre a lei ter ou não

interpretações. É claro que o ordenamento jurídico inteiro está submetido a

interpretações. No entanto, o que eu trouxe aqui foi bem específico sobre as práticas

tradicionais nocivas, tanto no âmbito da ONU quanto no âmbito do Direito nacional.

Deixei aqui um calhamaço de documentos, aproximadamente 500 páginas de

documentos, tanto da ONU como de leis internas do Brasil, falando a respeito das

práticas tradicionais nocivas. Quase todos eles contêm frases como esta: todos os

estados estão comprometidos a erradicar as práticas tradicionais nocivas contra a

integridade física das crianças e das mulheres.

Quanto a isso, professora, considero que está pacificado. Todos esses

documentos trazem claramente essa afirmação. Assim, eu não consigo, e creio que

nem o sistema internacional e nacional conseguem, ver realmente dúvidas de que

há um combate internacional e nacional contra as práticas tradicionais nocivas,

sempre, claro, por meio do diálogo.

Em todos os documentos que eu trouxe aqui é reafirmada a educação em

direitos humanos, o diálogo com as comunidades, tudo isso. Jamais por forma

impositiva. Ninguém aqui é louco de imaginar fazer alguma coisa de forma

impositiva a outros povos. Tem de ser pelo diálogo.

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No entanto, não se pode ignorar que existe lei a respeito. É isso que não se

pode ignorar. Existe lei claramente falando a respeito de práticas tradicionais

nocivas. É nesse âmbito que temos que discutir. Se se quer mudar isso, que se faça,

nesta Casa, reforma dessas leis que já falam das práticas tradicionais nocivas. Do

contrario, temos que discutir o assunto de acordo com o arcabouço legal existente.

Quanto ao projeto de lei, concordo com os Deputados que se manifestaram: a

intenção nunca foi criminalizar o indígena. Jamais. Isso não passou pela cabeça do

Deputado Henrique Afonso e de nenhum colaborador deste projeto.

É bom deixar bem clara a questão da imputabilidade penal do indígena, isto é,

se ele pode ser condenado ou não pelo nosso estado. Isso está muito claro. De

acordo com laudos antropológicos, isso vai ser examinado conforme o entendimento

que o indígena tem da questão. Isso já é muito claro. E está em legislação

infraconstitucional, já regulado. Não foi colocado no projeto de lei porque a

imputabilidade penal do indígena está claramente estabelecida. Ele não deve ser

condenado pela prática porque tem uma compreensão cultural diferente.

O que se pretende é criminalizar justamente as pessoas que sabem que

aquele ato é criminoso. Morte de criança é crime, pelo Direito Penal existente hoje.

O alvo são as pessoas que estão em volta e sabem que vai acontecer e não tomam

atitude. Como eu disse antes, se fosse uma criança branca, negra, asiática, de

qualquer etnia, ela também teria que ser salva se estivesse num momento de perigo

iminente, como já está na legislação. O Código Penal, no artigo da omissão de

socorro, prevê isso.

Muito obrigada.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Nós nunca tivemos uma

audiência tão longa. As posições são expostas com transparência e respeito.

Vamos passar a palavra agora aos membros da Mesa, para que possam

fazer algum comentário ou esclarecimento.

Iniciaremos com a Profa. Rita Segato.

O SR. DEPUTADO HENRIQUE AFONSO - Sr. Presidente, peço-lhe 15

segundos para prestar um esclarecimento, que é para o bem do meu mandato.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Eu espero que sejam 15

segundos. Estou começando a contar.

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O SR. DEPUTADO HENRIQUE AFONSO - Durante as minhas 2

intervenções, não imputei a nenhuma etnia do meu Estado, o Acre, a existência de

infanticídio, primeiro porque eu desconheço. Não conheço prática de infanticídio em

meu Estado.

Muito obrigado.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Certo.

Com a palavra a Profa. Rita.

A SRA. RITA SEGATO - Pela maneira como concluiu sua fala o Deputado

Henrique, entendo que estamos totalmente de acordo. Não sei se fui

suficientemente clara. Vamos devolver essa discussão aos povos. Não vamos fazer

uma lei sem uma discussão aprofundada pelo próprio povo, no seio da comunidade.

Entendi que você falou isso e concordo plenamente, ou seja, o mérito desta

discussão foi justamente o de promover a discussão do tema lá e não aqui. Não vejo

legitimidade da Casa para tratar esse assunto, realmente não há legisladores

indígenas, ou são pouquíssimos e não são representativos. Na minha percepção do

que é a legitimidade de um legislador, aquele para quem se legisla deve estar

presente na discussão. Se essa discussão é feita in loco, como disse a colega, se é

levada à comunidade e de lá surge uma proposta, para mim há sentido. Como idéia

impositiva do estado, faz o gênero do estado castigador, punitivo, que somente

pensa em gerar novas formas de criminalização.

Também já foi dito aqui que essa lei é redundante, diz o que está dito, não

acrescenta ao que o Direito já diz. Então, para que essa lei? A única boa razão que

vejo nela é promover a discussão e a deliberação entre as pessoas que adotam a

prática, o estado garantir a deliberação, e eles transformarem a prática no tempo,

como disse a Valéria. No tempo da comunidade. Que não é o nosso tempo. Ora, nós

matamos muito mais. Então, por que esse escândalo? Há muito mais letalidade na

consciência desse estado que está legislando do que nessas mortes que hoje

queremos criminalizar. Não há proporção entre a gravidade desse fenômeno e a

gravidade da responsabilidade do estado por omissão, inadimplência e até homicídio

praticado por seus agentes policiais e outros. Portanto, não vejo urgência nessa lei,

e se vejo mérito é de promover a discussão onde ela deve ser feita.

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Conforme mencionei, ainda que essa lei seja votada, vai falar unicamente

sobre quem legislou. Acredito nisso e assino embaixo. O que essa lei vai dizer é que

houve aqui uma bancada poderosa que foi capaz de acrescer uma lei ao conjunto já

enorme e pesado da legislação existente. Não há nisso mérito nem valor. A lei será

inócua porque, se quando legislamos para o entorno de Brasília, a Capital Federal, a

lei não se cumpre, como se vai cumprir uma lei na floresta? É uma lei que tem outra

razão de ser, a razão de ser dessa lei não é fazer acontecer, porque ela não o fará,

ela será inócua, assim como o são as leis que legislam para nós.

Meu palanque é a sala de aula, e sou muito feliz em poder expandi-lo para cá

e debater questões importantíssimas para a nossa convivência, para a felicidade da

Nação e de todos os seus povos. Vocês poderão votar essa lei, mas ela será

apenas uma assinatura no conjunto das leis, não fará jamais acontecer dentro da lei

indígena. Temos que pensar na lei com essa complexidade. O que é a lei? Qual sua

eficácia simbólica, real e material? Ela terá eficácia simbólica, mas não chegará a ter

eficácia material.

Além disso, ela poderá causar exatamente aquilo que se tenta barrar. Há

exemplos no mundo inteiro desse gol contra, digamos assim. Por exemplo, a Lei de

Prevenção do Sati, na Índia. Trata-se da prática antiga de incinerar viúvas. É

costume em regiões da Índia, quando morre o cônjuge, a viúva incinerar-se saltando

na pira incinerária do marido morto. Quando veio a lei, primeiro uma lei colonial e

depois várias medidas legislativas, barrando essa prática, ela aumentou. Ao fazer

uma lei, pode-se promover nos povos, como um signo da sua identidade, da sua

diferença, o implemento da prática. Esse é um perigo real que deve ser considerado.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Agradeço à Profa. Rita Segato

a participação e concedo a palavra ao antropólogo Edward Luz para as

considerações finais.

O SR. EDWARD MONTOANELLI LUZ - Lamento não ter estendido meu

pronunciamento, pois percebi que os 10 minutos que me foram concedidos não

foram cumpridos pelos demais debatedores. Mas tudo bem. Também aprendi

bastante com a Profa. Rita e realmente gostei do debate. Quero chamar a atenção

para algumas questões pontuais e depois fazer pequenos acréscimos.

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Com relação à palavra da Jacimar, não me recordo de em nenhum momento

ter assumido uma postura arrogante e violenta em relação aos grupos indígenas. Se

você entendeu dessa forma, peço desculpas, pois não era essa a intenção de fato.

Inclusive fiz questão de mostrar exatamente o que foi dito pela Profa. Rita,

concordando com o Deputado: é preciso, sim, direcionar o debate para a

comunidade.

Também concordo com a Profa. Rita que essa lei fala muito a nosso respeito,

a respeito dessa sociedade que agora se inclina sobre este debate. Ela fala muito

sobre essa consciência cristã que ainda que... Talvez ilusória ainda, que representa

uma parcela pequena da sociedade brasileira... Ainda incomoda uma parcela, ainda

acomoda consciências cristãs que vêm... Eu me senti profundamente incomodado

ao ver as notícias trazidas pela senhora de pessoas morrendo ao nosso lado e ao

saber que a banalização da vida é tão comum em nossa Nação. Contudo, trazer

esses dados a respeito do que está acontecendo no entorno de Brasília não nos tira

a responsabilidade de pensar o que acontece em outros lugares, na selva, o que

acontece com o ser humano. É a questão que mencionei na primeira fala a respeito

de Bartolomeu de Las Casas, a responsabilidade de nossos atos para com os

outros. Nós também temos responsabilidade sobre nossas ações para com os

outros.

A sua fala revela muito a respeito da comunidade antropológica brasileira, é

bem significativa. Mais uma vez: na verdade, não conheço completamente o texto da

lei, não estou aqui para defendê-la, mas para representar uma parcela da

comunidade antropológica — talvez nem exista essa parcela, talvez sejamos apenas

eu e o Ronaldo — que acredita que o direito à vida é maior do que o direito à

preservação da diferença cultural. É só isso. E farei isso nos fóruns acadêmicos

apropriados.

É muito revelador a senhora dizer, por exemplo, que o estado nacional deve

devolver ao indígena a oportunidade de restaurar a ordem cultural e política. É muito

impressionante que essas utopias ainda perpassem a mentalidade antropológica. É

fantástico perceber que a senhora, como doutora da UnB, sustente essa utopia

impossível.

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A cada vez que acesso o site do Instituto Ambiental, fico impressionado com a

forma como os povos indígenas estão tendo acesso a computadores, à Internet, a

câmaras digitais, a MP3. É impressionante como eles têm contato com tudo isso,

com a nossa sociedade, e ainda assim ouvimos falar em restaurar a ordem cultural.

Só a nossa presença física na comunidade já pode ser um instrumento de

questionamento da cosmovisão deles, de aspectos culturais. Enfim, o que me

tranqüiliza nesse debate é saber que, mais cedo ou mais tarde, essa questão será

resolvida. Parece-me que nós estamos brigando muito por uma questão de tempo.

Parece-me que a questão aqui se resume a isso. O Deputado, representando uma

parcela significativa da nossa população, tem pressa para que isso aconteça e tem

pressa porque sabe que isso custa vidas. Mas me parece que isso não é muito

importante para a senhora, porque disse: “Afinal de contas, aqui no Brasil, do nosso

lado, estão morrendo pessoas também”. E a nossa amiga Jacimar também fez

questão de frisar: “Contanto que seja com o uso do timbó, uma prática tradicional,

tudo bem. O que não pode é massacrar a cabeça do indígena”.

No final, pareceu-me que ela fez um questionamento, se vale a pena ou não

salvar a vida de uma pessoa. Não sei se alguém entendeu assim como eu. Eu

entendi que ela estava questionando se vale a pena salvar uma pessoa deficiente.

Estou aqui não muito bem preparado — este texto não é meu — para afirmar

exatamente que existe uma parcela da população que acredita ser necessário,

possível e exeqüível salvar a vida dessas crianças. Ainda não sabemos como; ainda

não está claro como isso vai acontecer na prática, mas acreditamos que sim, que é

possível salvar e que vale a pena salvar, independentemente da cultura, dos valores

culturais.

É interessante o fato de que são aprovadas políticas públicas para alguns

valores culturais profundamente arraigados na Nação brasileira, como o racismo,

que dá margem a vários tipos de discriminação, e também o jeitinho brasileiro e

algumas outras práticas. Se existem políticas públicas para coibir essas atividades,

por que não pensar em políticas públicas para livrar da morte crianças indígenas,

claramente — sejamos conscientes de nossas atitudes — condenadas à morte?

Essa é a questão. Eram essas as minhas palavras.

Obrigado. (Palmas.)

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O SR. PRESIDENTE (Deputado Henrique Afonso) - Agradeço ao Dr. Edward

e passo a palavra à Sra. Jacimar, porque tenho informação de que o transporte já

está vindo buscá-la.

Peço aos debatedores que vão fazer as considerações finais que sejam

objetivos porque realmente o tempo já foi extrapolado. Nós estamos numa correria

daqui para o plenário; não está fácil. Hoje vamos emagrecer bastante.

A SRA. JACIMAR DE ALMEIDA GOUVEIA - Vou ser bem rápida.

Realmente, é isso mesmo. Uma criança deficiente foi salva, mas, no lugar

dela, faleceram os pais, o avô; eles se mataram porque não queriam... Eu

acompanhei esse caso de perto, juntamente com a FUNASA, lá em Manaus,

participei de reuniões, e vi que a criança foi salva, mas hoje ela nem pode voltar

para a comunidade, inclusive porque tenho certeza de que vai ser discriminada,

porque aquele povo tem uma cultura muito forte ainda.

Aí, os 2 se mataram, tomaram timbó; o avô também deu uma flechada depois

e se matou. Então, salvaram uma criança, que hoje está fora do seu habitat, da sua

cultura, e outras vidas se foram.

É por isso que peço ao Exmo. Deputado que façamos essa discussão

realmente, com cada povo, com cada comunidade.

Outra questão que o Sr. Edward mencionou eu anotei aqui: que não podemos

permitir que crianças morram dessa forma violenta, de uma forma arrogante. No

meu entendimento, aconteceu que essas crianças, na visão deles, foram mortas de

uma forma cruel. Na verdade, para os indígenas, não é de uma forma cruel. Eles

matam porque é a cultura deles. Eu tenho um levantamento aqui, mas não vai dar

para eu ler, sobre o porquê de eles matarem essas crianças. Eles não vêem de uma

forma cruel, como se fossem assassinos.

Eu anotei a sua fala aqui. E foi isso que percebi.

Quero agradecer a todos pela participação, pelo empenho, pelo diálogo.

Espero que isso perdure, de uma forma muito mais avançada. Nessa questão, as

palavras-chaves são bioética, infanticídio, cultura, pluralismo e diálogo. Juntando

essas palavras, nós vamos realmente ver essa questão da lei de forma bastante

participativa.

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Agradeço a todos os integrantes da Mesa e peço ao companheiro da

FUNASA que não deixe o Ministério da Saúde cortar os recursos de uma forma

planejada. Está vindo aí o plano distrital de 2008. E, quando vem com a demanda de

cada comunidade, de cada povo, o Ministério da Saúde diz “não”, que vai ser

cortado. Quando chega lá embaixo, fica impossível realizar as ações de uma forma

boa, eficiente, diminuindo as dificuldades nas bases. Converse com o Ministro, com

o Sr. Danilo, para que não cortem a planilha que está vindo aí para 2008.

Obrigada. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Henrique Afonso) - Agradeço pela presença

à Sra. Jacimar.

A Dra. Rita tem um esclarecimento a fazer.

Pedimos brevidade, Dra. Rita, porque estamos sendo muito pressionados

para nos dirigirmos ao plenário.

A SRA. RITA LAURA SEGATO - Eu compreendo que o que eu disse pode

ser um pouco novo. Eu tentei tirar essa discussão da oposição

relativismo/universalismo. Eu não sou relativista; pessoalmente não sou. Para

estudar, para compreender, como disse a colega, sou relativista; para entender o

outro. Mas, nas minhas posições, não.

Quando falei em restaurar a ordem, falei em devolver o direito de fazer a

própria história. E a história não é uma cultura cristalizada. Eu não acredito na

cultura quieta que se repete em si mesma e que repete os costumes. Os índios,

como nós, estão construindo a sua própria história. O Estado não pode usurpar

deles o direito de deliberar e mudar, ou seja, de construir a sua própria história, na

interioridade do povo. É isso o que vale.

Você me entendeu mal.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Henrique Afonso) - Passaremos agora a

palavra ao Dr. Wanderley, da FUNASA, que também disporá de breve tempo para

as suas considerações finais.

O SR. WANDERLEY GUENKA - Falando aqui da população indígena

brasileira, Jacimar citou 735 mil indígenas; falaram em 475 mil; na verdade, são 375

mil indígenas, pela Fundação Nacional de Saúde.

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No IBGE, a forma de coletar os dados foi diferente da usada por nós. Por

isso, há essa diferença populacional.

Leio o seguinte texto: “Enquanto faltam dados confiáveis, muitas das mortes

por infanticídio são mascaradas nos dados estatísticos como mortes por desnutrição

ou causas inespecíficas”.

Nós estamos envolvidos na questão da informação, em melhorar as

informações do nosso sistema de saúde em relação à população indígena. Quando

falamos aqui em desnutrição, enfrentamos isso em Mato Grosso do Sul. Lutávamos

para diminuir a taxa de mortalidade infantil; distribuímos quase 500 toneladas de

alimentos por mês. Ainda assim, morriam crianças por desnutrição.

Há, inclusive, uma CPI instalada sobre o assunto em Mato Grosso do Sul e no

Maranhão. Sobre Mato Grosso do Sul, a questão chegou a ser tratada pela Revista

CLAUDIA de julho de 2007: “As índias se alimentam, dão comida para as crianças

saudáveis e deixam que a natureza se encarregue daquelas que não têm chances

de vingar”, disse a Dra. Dinaci Ranzi, do Hospital de Dourados.

É também uma forma de infanticídio a falta de cuidado por parte da família. A

FUNAI, a FUNASA, essas instituições têm obrigação, mas há também o lado,

principalmente no caso de Dourados, do dever da família.

Nós montamos um “centrinho” em Mato Grosso do Sul para os casos mais

graves; ele comporta 40 a 50 crianças. Mas há mais de 180 crianças com

desnutrição ou risco nutricional.

Então, é preciso que a família cuide delas também. No nosso caso, não

tínhamos condições de cuidar de todas essas pessoas. Repito: há também o lado

familiar.

Nós estávamos participando do Quarup, no Xingu, e encontramos uma

liderança, o Tabata KuiKuro. O parto foi em Canarana, e eles tiveram resistência

para voltar porque ele é uma liderança da etnia deles; e pensavam em deixar até na

CASAI, em um outro local; a mãe não teve coragem, retornou, ficou um tempo em

Canarana e, nesse Quarup de agosto, verificamos essa criança já com quase 1 ano

e meio. Parece-me que ele perdeu um certo poder de liderança, mas, por outro lado,

criou uma discussão no Alto Xingu. Inclusive, uma das lideranças, quando

acompanhou esse caso, disse: “Puxa vida, se não tivesse acontecido com as

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minhas filhas, elas hoje seriam mocinhas”. Então, eu acho que essas coisas já estão

mudando.

No livro de Aires Câmara Cunha, de 1934, é contada a história de que ele se

casou, em 1940, com a índia jacuí. Naquela época não podia. Isso movimentou a

mídia nacional, em 1934 e 1935. Dizia-se que era necessária a autorização da

instituição. Ele, como funcionário de uma instituição pública, conseguiu a

autorização e se casou com a índia calapalo, na Cinelândia, com mais de 10 mil

pessoas assistindo. No parto, essa índia acabou falecendo. Eu acho que há um filme

sobre essa história.

Então, eu achei interessante, durante o Quarup, que desde 1934 a questão

cultural da dança, do festejo, do culto aos mortos se preserva. É lógico que têm

caminhão, carro, barco a motor, mas grande parte daquela cultura deles ainda é

preservada.

E o avanço dessa questão do Tabata, que superou isso e, por ser uma

liderança, as outras pessoas já têm olhado diferentemente o sacrifício dos gêmeos.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Henrique Afonso) - Quero agradecer, em

nome da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, ao Dr. Wanderley Guenka, da

FUNASA, e passo a palavra agora a Aisanain Paltu Kamaiwrá, para fazer suas

considerações. Peço brevidade nas suas considerações.

O SR. AISANAIN PALTU KAMAIWRÁ - Voltando um pouco, sobre o que eu

disse antes, os outros falaram também sobre os gêmeos.

Hoje o ponto de vista das gerações já é outro. Antigamente, era outro

pensamento. O pensamento deles era da cultura mesmo. Hoje não. Como é o meu

caso, eu já enxergo outro caminho. Não é mais aquela visão antiga. Só a parte disso

aqui que nós estamos mudando. Lá na comunidade a gente vive como tradicional

mesmo. A gente come a nossa comida, a nossa alimentação; a gente dorme na

nossa rede, acende o fogo. Só quando a gente sai na cidade... pouca gente que sai

para a cidade para fazer o tratamento. Agora, a gente vive lá normalmente, como

índio.

No meu caso, como eu sou estudante, saio da minha comunidade, venho

buscar alguma coisa de conhecimento fora para levar para a minha comunidade.

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Não para mudar a cultura, porque hoje a cultura não pára, ela é dinâmica. Não é só

na comunidade que está mudando também. No Brasil, em geral, está mudando.

Antigamente se andava a cavalo. Hoje não; hoje todo mundo está andando de

moto, de carro. Lá está acontecendo isso. Para nós está assim.

Eu acho que era só isso que eu queria dizer a vocês. Então, boa-noite a

todos. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Henrique Afonso) - Eu quero agradecer a

Aisanain Paltu Kamaiwrá pela participação e apresentar aqui os agradecimentos

finais. Na qualidade de autor do requerimento de realização desta reunião. É

fantástico saber que a Comissão de Direitos Humanos e Minorias teve uma das

audiências públicas mais compridas já feitas nesta Casa.

Quero agradecer à Dra. Márcia Suzuki; ao Sr. Edson Suzuki; à Dra. Maíra de

Paula Barreto; ao Dr. Márcio Augusto, Presidente da FUNAI; à Dra. Valéria Payê,

representante do Fórum de Defesa dos Direitos Indígenas; a Aisanain Paltu

Kamaiwrá; ao Sr. Edward Luz, antropólogo; à Profa. Rita Segato; ao Dr. Wanderley

Guenka, da FUNASA, a quem quero apresentar um agradecimento muito especial.

Começamos a ver que a FUNAI e a FUNASA estão mudando, com a prática

de V.Sa., aqui registrada pelo Dr. Márcio. E isso levanta a nossa expectativa, a

nossa esperança em relação às políticas públicas voltadas para os povos indígenas.

Estou muito esperançoso pelo que já estamos vendo. Para nós, é um motivo de

muita gratidão e alegria.

(Intervenção fora do microfone. Inaudível.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Henrique Fontana) - É um minuto?

Peço que se identifique porque está sendo tudo registrado.

(Não identificado) - Bom, eu gostaria de parabenizar a Comissão pelo

evento e registrar a presença de representante da Coordenadoria Nacional para a

Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, porque foi citada a deficiência o

tempo todo. Ela pertence à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da

Presidência da República, mas não foi convidada oficialmente. Descobrimos agora

no final da tarde.

Nós queremos nos colocar à disposição do Deputado e anunciar que existe

uma Convenção da ONU, aprovada em dezembro, a Convenção Sobre os Direitos

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das Pessoas com Deficiência, em cujo preâmbulo é defendido o direito da população

indígena no sentido de que o Estado deve dar-lhe todas as condições. Eu não vou

entrar no mérito das discussões, mas apresento a Coordenadoria Nacional para a

Integração da Pessoa com Deficiência à disposição, para futuras discussões.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Henrique Afonso) - Estamos muito contentes

com a presença de V.Sas. e já recomendo à Dra. Damaris que, depois desta

audiência, pegue a sua referência para que não só o nosso gabinete, mas também

esta Comissão de Direitos Humanos e Minorias, que está pautando esse tema, entre

em contato com a Coordenadoria que representa.

Estamos muito agradecidos a todas as entidades, a todas as pessoas, a

todas as lideranças indígenas, aos antropólogos, aos políticos, às pessoas

interessadas, que vieram de longe e que estão nessa luta.

Para terminar, como não poderia deixar de fazer, quero agradecer a alguém

muito especial para mim, Jesus, que disse: “Eu vim para que todos tenham vida, e

tenham em abundância”.

Que Deus abençoe todos. Estou muito feliz.

Agradeço ao Deputado Luiz Couto, aos funcionários desta Comissão e a toda

a minha Assessoria. (Palmas.)

Está encerrada a reunião.