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Psicologia e Educação 15 Vol. IV, nº 1, Jun. 2005 Das Dialécticas do Vazio em Educação: Elementos para uma Justificação do Discurso Educativo. O caso da reorganização curricular do ensino básico* Paulo Nogueira** Resumo: Este artigo tem por finalidade reflectir nos processos de organização e de justificação do discurso educativo, particularmente a partir de uma dupla definição do Projecto: instrumento de gestão da “Crise” da educação escolar, por um lado, e de superação do Vazio em educação, por outro. De acordo com o quadro sócio-politico e educativo em cena nos finais do século passado, suas linguagens e campos estratégico-discursivos, analisa-se o conteúdo do texto politico-oficial que, em 2001, aprova a Reorganização Curricular do Ensino Básico, de modo a compreender-se como é que os processos de definição, de legitimação e de recuperação de uma intencionalidade em educação se relacionam entre si, à luz de um sentido de Vazio. Palavras-chave: discurso; discursos; intencionalidade; crise; escola; projecto; com- petência; vazio. Abstract: This article aims to reflect on organization and legitimacy procedures present on educational speeches. In this paper, the meaning of “crisis” in Education, along with the means by which it’s socially built and theoretically recovered by educational political speeches in the latest 90’s, gives a prime role to a specific Project‘s definition: which is seen either as an instrument of crisis management either as a means of overwhelming the present educational emptiness. Given the present National Curriculum to which schools have to deal with since 2001, we analyse its political meaning so that we may perceive how its definition and legitimation processes make up altogether an educational purpose by the light of a sense of emptiness. Key-words: Speech; speeches; intentionality; crisis; school; project; competency; emptiness. _______________ * Este artigo surge no âmbito da Tese de Mestrado em Ciências da Educação Das Dialécticas do Vazio em Educação: elementos para uma justificação do discurso educativo, apresentada na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, sob a orientação do Professor Doutor Manuel Santos e Matos, em Maio de 2005. ** Universidde do Porto. Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação.

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Das Dialécticas do Vazio em Educação: Elementos para umaJustificação do Discurso Educativo. O caso da reorganizaçãocurricular do ensino básico*Paulo Nogueira**

Resumo: Este artigo tem por finalidade reflectir nos processos de organizaçãoe de justificação do discurso educativo, particularmente a partir de uma dupladefinição do Projecto: instrumento de gestão da “Crise” da educação escolar, porum lado, e de superação do Vazio em educação, por outro. De acordo com o quadrosócio-politico e educativo em cena nos finais do século passado, suas linguagense campos estratégico-discursivos, analisa-se o conteúdo do texto politico-oficialque, em 2001, aprova a Reorganização Curricular do Ensino Básico, de modo acompreender-se como é que os processos de definição, de legitimação e derecuperação de uma intencionalidade em educação se relacionam entre si, à luzde um sentido de Vazio.Palavras-chave: discurso; discursos; intencionalidade; crise; escola; projecto; com-petência; vazio.

Abstract: This article aims to reflect on organization and legitimacy procedurespresent on educational speeches. In this paper, the meaning of “crisis” in Education,along with the means by which it’s socially built and theoretically recovered byeducational political speeches in the latest 90’s, gives a prime role to a specificProject‘s definition: which is seen either as an instrument of crisis managementeither as a means of overwhelming the present educational emptiness.Given the present National Curriculum to which schools have to deal with since2001, we analyse its political meaning so that we may perceive how its definitionand legitimation processes make up altogether an educational purpose by the lightof a sense of emptiness.Key-words: Speech; speeches; intentionality; crisis; school; project; competency;emptiness.

_______________* Este artigo surge no âmbito da Tese de Mestrado em Ciências da Educação Das Dialécticas do Vazio

em Educação: elementos para uma justificação do discurso educativo, apresentada na Faculdade de Psicologiae de Ciências da Educação da Universidade do Porto, sob a orientação do Professor Doutor Manuel Santose Matos, em Maio de 2005.

** Universidde do Porto. Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação.

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1. A reorganização sócio-politica daeducação escolar: Da insuficiência doescolar à centralidade do educativo.Definições e justificações

Durante a década de 90 do séc. XX,particularmente durante a sua segundametade, Portugal concebe e acompanha umconjunto significativo de transformaçõesproduzidas ao nível dos discursos sobrea educação escolar e sobre o papel dasescolas na produção cultural, como quenum ímpeto de contestação dos “modelosantigos”, tradicionais e injustos, de sepensar, conceber e desenvolver os proces-sos de educação no interior do SistemaEducativo. A partir de meados dessadécada, as forças políticas, através daaprovação de medidas legais, da elabora-ção de textos de reflexão, da concepçãode projectos de intervenção, de divulgaçãode trabalhos das escolas e de professores,etc., parecem concentrar toda e qualquerprioridade de investimento e de acção nosaparelhos educativos formais, quer dizer,nas instituições escolares percebidas en-quanto figuras privilegiadas eprotagonizadoras da política educativa doEstado. A “Crise”, dita pelo poder políticoem diversos documentos e desde logodiagnosticada nos números de analfabetose de fugas à escola e no aumento dos níveisde iliteracia das populações, teria sidoprovocada pelo fracasso das estratégiaspolíticas da integração (uniformizadoras)e, também, pela transformação das escolasem centros empresariais, meramente aoserviço das lógicas da economia de mer-cado. Do ponto de vista discursivo, aEscola, para além de continuar a ser vistaenquanto instituição de uma cultura, comoum instrumento de gestão e de preenchi-mento de necessidades sociais em largaescala, teria, a partir de 1996, de produziruma afirmação institucional que passaria

pelo entendimento da sua utilidade públicamais como uma organização autónoma eem constante relação com outros parceirossociais, e não tanto como um organismosubmetido a uma intervenção governamen-tal centralista e excessivamente reguladora.Tal como se pode ler no Relatório doProjecto “Reflexão Participada sobre osCurrículos do Ensino Básico”, lançado peloMinistério da Educação em 1996-1997

“(...) a resolução dos problemasmais prementes a que a escola actualtem de fazer face – tais como adiversidade de situações sociais eculturais dos alunos, a rapidez dadesactualização dos saberes e dainformação, o acesso fácil a umainformação superabundante cominsuficiente domínio de saberesinstrumentais para a seleccionar einterpretar – exige o investimentocrescente em decisões e práticascurriculares colaborativas dos do-centes nas escolas, adequadas aosalunos com que trabalham.”1

_______________1 Ministério da Educação (1997). Relatório do

Projecto “Reflexão Participada sobre os Currículosdo Ensino Básico. Lisboa: ME, pp. 11-12.Implementado pelo Departamento de Educação Básicado Ministério da Educação em 1996-1997, este Pro-jecto enquadrava-se na lógica das políticas curricularesdesenvolvidas pela Secretaria de Estado da Educaçãoe da Inovação, segundo as quais o reforço da auto-nomia das escolas e a flexibilização e adequaçãocurriculares à realidade dos alunos constituíam as suasprincipais linhas de priorização e de acção. No rela-tório do Projecto, um documento de 1997, é possíveller-se o seu principal objectivo: “(...) lançar um pro-cesso de reflexão e debate alargado sobre os currículosdo ensino básico, e sua gestão, em que se mobilizas-sem essencialmente os docentes e as escolas, mastambém a comunidade científica educacional e outrosparceiros sociais envolvidos.” (p. 13). O ideal seria,portanto, que através deste projecto se gerassem nasescolas e com os professores “(...) um processo dereflexão sobre modos de trabalhar conjuntamente comos currículos numa lógica de escola e de tomadas dedecisão contextualizadas.” (p.14).

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Nos finais dos anos 90, a Escola, já refémdos problemas, como neste relatório é dito,causados pela diversidade de públicos quea frequentam e que, à partida, estariamdestituídos de um saber que lhes permi-tisse construir um conhecimento autóno-mo e útil para as suas vidas, precisa deser encarada como decisora das suas opçõeseducativas e, acima de tudo, dos proce-dimentos de gestão das aprendizagens, porprincípio, vicariantes dos postuladoseficientistas e tecnicistas antes politicamen-te difundidos. A dimensão orientada paraa democratização atravessa todo o fundodas propostas emanadas pelos discursoscentrais do poder durante esta altura econstitui, por isso mesmo, uma respostaao carácter inacabado da construção, emPortugal, da escola de massas. Porém, esendo também uma preocupação, o desejode tornar democrática a realidade educa-tiva escolar parece não poder deixar deentrar em linha de conta com uma outradimensão dessa vontade, orientada maispara a modernização que, e de acordo comRui Canário, acentua a subordinação daspolíticas educativas a critérios deracionalidade económica2. De facto, hojeem dia, do ponto de vista da construçãode uma reforma educativa, parece enten-der-se que a prescrição, enquanto condutapolítica, não agrega vantagens significa-tivas se pensarmos em termos de umamudança possível de pressupostos e depráticas. As medidas, isto é, as represen-tações da realidade e da sua mudança, sãoagora apresentadas como destinadas acriarem lógicas de flexibilização curricular,de incentivo ao profissionalismo docente,de reconhecimento da diversidade de alu-nos, de fomento da participação das famí-

lias no processo educativo dos filhos, dereforço, por fim, da autonomia das ins-tituições escolares. No entanto, as lógicasda subordinação funcional do político aoeconómico, inflamadas pela generalização,mais ou menos objectiva, de uma suposta“era de conhecimento” que torna obsoletatoda e qualquer “competência” necessáriaà gestão “responsável” dos saberes, dainformação e da tecnologia, significa quepersiste, ainda, a tendência para se per-ceber a realidade dos sistemas educativoscomo que sendo estruturada em termos demercado. Neste contexto, a justificação queenforma a necessidade das mudanças (nãoda compreensão interna do seu sentido) eda adaptação aos novos desafios sociais,com os quais a escola tem de estar as-sociada, emerge a partir da construção deum vocabulário específico e subjectivo quese hegemoniza e se segura nadescaracterização e apagamento de outrosvocabulários, locais por excelência, semcapacidade suficiente para se visibilizareme viabilizarem3. Por outras palavras, osdesafios da mudança social e da políticaeducativa aparecem, ao nível da formaçãode uma consciência colectiva sobre o papelda Escola (vista enquanto primeira pontepara a inovação) como que numa impo-sição de pensamento, por um lado, e comoque numa naturalização, porque impossí-

_______________2 Canário, Rui (2000a). “Territórios Educativos

de Intervenção Prioritária: a escola face à exclusão”,in Revista de Educação, 1, vol. 9. Lisboa: FCUL

_______________3 A propósito, Rui Canário, noutro artigo, refere

que algumas palavras, como por exemplomundialização, flexibilidade, empregabilidade, novaeconomia, exclusão e inclusão social, entre outras,têm vindo a dominar os discursos políticos sobreeducação nos anos 90 do século transacto como quenum registo de autoridade (e autorização) simbólica,fundamentalmente porque se afirmam enquanto basesexplicativas dos fenómenos educativos sem que sobreeles se exerça qualquer explicação ou sem que elespróprios se tornem os objectos de uma explicação.(Canário, Rui (2000b). “A ‘aprendizagem ao longoda vida’. Análise crítica de um conceito e de umapolítica”, in Psicologia da Educação, 10/11. S. Paulo).

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vel de questionamento, por outro,tendencialmente indutores de lógicas deconformidade social “(...) relativamente a umpresente que é o resultado do fatalismo e aum futuro que se antecipa como inexorável.”4.De qualquer modo, entre 1973 e meadosdos anos 90, as “décadas da crise”, comoassim lhes chama Eric Hobsbawm5, ahistória social e económica resvala, emgrande medida, para a instabilidade edesilusão, se se tomar, pelo menos, emconsideração, ou por termo de comparação,os anos antecedentes, entusiasticamenteolhados como dourados. Durante este pe-ríodo, tal como é possível de ser documen-tado, o sistema de produção é gradualmen-te substituído pela revolução tecnológica,transnacionalizado e globalizado a uma largaextensão e, quando combinado com ocrescente fenómeno do desemprego – es-trutural – daí subsequente, originou fortestensões às quais as políticas não permane-ceram impermeáveis. No começo dos anos90, como o próprio Hobsbawm o diz

“(...) um clima de insegurança e deressentimento começa a espalhar-seaté mesmo por muitos dos paísesricos. (...) Entre 1990 e 1993 pou-cas tentativas se fizeram para negarque mesmo o mundo capitalistadesenvolvido estava em depressão.Ninguém afirmava honestamentesaber o que fazer a esse respeito,além de esperar que ela passasse.(...) o facto fundamental das déca-das da crise não é que o capitalis-mo já não funcionava tão bem comona era do ouro, mas que as suasoperações se haviam tornado

incontroláveis. Ninguém sabia o quefazer em relação aos caprichos daeconomia mundial, nem possuía ins-trumentos para a administrar. Ogrande instrumento para o fazer naera do ouro, a política de governo,coordenada nacional ou internaci-onalmente, já não funcionava. Asdécadas da crise foram a era em queos estados nacionais perderam osseus poderes económicos.”6

Ora, face à problemática da universalida-de de direitos, e num contexto de decep-ção quanto à ideia da possibilidade de sereorganizar a Crise, os anos 90, particu-larmente no que toca o discurso políticosobre a educação escolar, reflectem atendência para fazer da ideologia da“utilidade da educação” o baluarte decombate ao desemprego e de incentivo aomundo empresarial sempre competitivo,mas já no interior de modelos deflexibilização do sistema e em favor,sobretudo, dos interesses individuaismodernizados e consensualmente interpre-tados. Com efeito, esta ideologia, que JoséAlberto Correia diz ser a semântica dautilidade económica, e já numa altura emque, como se viu, os estados nacionaisperderem os seus poderes económicos,“(...) está intimamente associada à reabi-litação de uma sociedade civil que seconfunde com um mundo empresarial quetende a ser culturalizado...” e, na verdade,não parece “(...) ter sido arredada do campoeducativo português (...), ela hoje articula-se com uma semântica da utilidade socialonde se realça fundamentalmente o con-tributo da educação para a gestão da crisesocial, nomeadamente a sua contribuiçãono combate à exclusão social.”7. É neste

_______________4 Canário, Rui, 2000b, op. cit., p. 415 Hobsbawm, Eric (2002). A Era dos Extremos.

História Breve do Século XX. Lisboa: Ed. Presença

_______________6 Hobsbawm, Eric, 2002, op. cit., p. 399-4007 Correia, José Alberto (1999). “As ideologias

educativas em Portugal nos últimos 25 anos”, in RevistaPortuguesa de Educação, 12. IEP: UM, p. 99

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contexto que as lógicas da Autonomia,tributárias, em princípio, da democratiza-ção, encontram forte expressão política, nãosó enquanto estratégias de reorganização daideia de uma “comunidade de inclusão”, mastambém enquanto dispositivos de acção,centrais e locais, particularmente afectos àsdialécticas do poder (e seu exercício), daregulação e de protagonismos vários. Aspolíticas neo-liberais que, a partir dos finaisdos anos 80 do século passado, começama expressar um desenvolvimento significa-tivo iniciam todo um processo de leituradas realidades educativas de acordo commatizes de eficácia e de mercado, segundoas quais o mercado é percebido como sendodescentralizado, concorrencial e autónomoe a administração (da escola) como cen-tralizada, planificada e hierarquizada. Naintrodução ao diploma português que apro-va a medida da autonomia das escolas diz-se que

“(...) a escola, enquanto centro daspolíticas educativas, tem, assim, deconstruir a sua autonomia a partirda comunidade em que se insere,dos seus problemas e potencialida-des, contando com uma nova ati-tude da administração central, re-gional e local, que possibilite umamelhor resposta aos desafios damudança. (...) A autonomia nãoconstitui, pois, um fim em simesmo, mas uma forma de asescolas desempenharem melhor oserviço público de educação, comvista a assegurar uma efectiva igual-dade de oportunidades e a correc-ção das desigualdades existentes.”8

Sendo concebida como o «centro» dapolítica educativa do estado, à escola cabe-

lhe a oportunidade de, por si, isto é, deacordo com recursos possíveis, construire definir a sua autonomia de acordo comum grau de legitimação que é a sua res-ponsabilidade nessa definição e um espí-rito colaborativo, aí necessário, e de igualmodo daí resultante como espírito culturale ético. A democratização e a autonomiada educação escolar são, deste modo, asfiguras que configuram a superação da“Crise”, aparentemente génese de todo oVazio. Um vazio em educação acusa,portanto, a ausência de colaboração, oindividualismo, a irresponsabilidade, adispersão, a competitividade, o desapegocomunitário, a mera tecnicidade dos pro-cessos de acção social e a perda do sen-tido comum partilhado. Mas um vazio emeducação, sendo produto da “crise dosistema”, enuncia, simultaneamente, todasaquelas propriedades numa lógica denecessária superação, dentro da qual, e numregisto de eficácia, o desempenho, aaptidão, a competência e o projecto sãoa espécie de dados adquiridos, elementos-chave, autonomamente capazes de reali-zarem qualquer preenchimento. E se, naverdade, a educação escolar não se pre-enche, o Vazio é problema a resolver-seem situação, inventando-se as estratégiasde gestão da complexidade mais favorá-veis às condições de vida das instituições,esperando-se, em troca, a liberdade e orespeito por todos. O esforço pelaconsensualização da crise, dado que ésabida, durante este período, a inexistênciade eventuais melhorias de qualidade daescola pública se os processos de autono-mia continuarem a ser vistos enquantoformas de se comercializarem resultadoseducativos, é expresso num documento,emitido pelo Ministério da Educação em1998, que teve como objectivo divulgaras políticas educativas para o ensino básicoe aproximar as escolas e os professores

_______________8 Decreto-Lei n.º 115-A/98 de 4 de Maio

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à discussão e às decisões em curso, o“Documento Orientador das Políticas parao Ensino Básico”. Educar, integrar e formarpara a cidadania constituem os três prin-cipais objectivos da escola básica públicaque, posteriormente, aquando da aprova-ção da reorganização curricular do ensinobásico em 2001, vêm a ser inscritos nasmedidas de reforma e de mudança, querda gestão, quer da planificação, pelasescolas, dos processos de ensino-aprendi-zagem que o Estado se propõe realizar9.A política educativa que dá forma aosideais da democratização, da autonomia eda territorialização crê, através destedocumento que se referiu,

“(...) que a sociedade portuguesaverá melhorar tanto mais o seusistema educativo quanto maisdecididamente procurar proporcio-nar a cada nova geração melhorescondições de frequência da escolae quanto maior for a pressão socialpara que todos – crianças, jovens,pais, professores e autoridadespolíticas – se envolvamempenhadamente na vida das ins-tituições de educação e de ensino.”10

Do ponto de vista socio-político, já HannahArendt11 considerava que os sistemas deeducação constroem, entre outros factores, umsentido para a sua existência a partir do “novo”recém-chegado em cada geração, quer dizer,o extraordinário, transformando-o na referên-cia de base das condutas de esperança e deencontro de oportunidades de mudança, mastambém de ilusão, da realidade social e culturalda educação. Com efeito, o reconhecimentodo papel reformador e positivo da escola navida comunitária global, segundo a ideia queem cima transparece, parece remetê-la paraum nível de percepção social em que éinterpretada, por um lado, como uma pos-sibilidade de encontro do “novo”, doutrasnovidades, e por outro, como lugar de cons-trução do colectivo12, onde o sentido atribu-ído à sua utilidade passa, sobretudo, porencará-la num registo de multifuncionalidadegerador de oportunidades de encontros e deconstrução solidária desses encontros. Nestecontexto, a crise da educação escolar, sendouma linguagem presente nos discursos sobrea escola durante este período, é definida poiscomo “uma perda de sentido” dessa constru-ção colectiva: mais uma vez a escola perdealguma coisa e tem de recuperar, para suasobrevivência, espaços de sociabilidadeafectiva entre o local (precário) e o central(autorizado), nos interstícios dos quais apolítica educativa vai exercendo a sua retó-rica.

2. Sagacidades de um juízo metodo-lógico: a ordem da análise

Como até ao momento se tem vindo aexpor, a construção do discurso sobre a

_______________9 De acordo com o documento, de 1998,

orientador das políticas educativas para o ensinobásico, “(...) o novo entendimento da escola comolugar nuclear do processo educativo e a consequentevalorização da respectiva autonomia pedagógica eadministrativa tornam não só inevitável como im-prescindível conceber a escola não apenas como olugar de desenvolvimento das funções de instrução,mas também como espaço privilegiado para odesenvolvimento da função educativa em geral, olocal que, em parceria e articulação sistemática comoutras instituições da comunidade, se torna espaçode referência da vida educativa. Educação, Integra-ção, Cidadania: Documento orientador das políti-cas para o ensino básico Lisboa: Ministério daEducação, 1998, p. 17

10 Educação, Integração, Cidadania: Documen-to orientador das políticas para o ensino básico,1998, op. cit., p. 26

_______________11 Arendtt, Hannah (2000). “A Crise da Edu-

cação”, in Arendt, Hannah, et al. Quatro textosexcêntricos. Lisboa: Relógio d’Água

12 Boltanski, Luc e Chiapello, Ève (1999). Lenouvel esprit du capitalisme. Paris: Gallimard

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Reorganização Curricular do Ensino Bá-sico, em 2001, compreende um conjuntode linguagens já visíveis no Relatório doProjecto “Reflexão Participada sobre osCurrículos do Ensino Básico” (1996/1997),no Regime de Autonomia das Escolas(Dec.-Lei n.º 115-A/98) e, finalmente, noDocumento Orientador das Políticas parao Ensino Básico (1998). De referir, ainda,que na sequência do Projecto “ReflexãoParticipada sobre os Currículos” é lançadoo Projecto “Gestão Flexível do Currícu-lo”13 enquanto medida de intervençãopolítica a ser capaz de promover umaalteração gradual nas práticas de gestãocurricular nas escolas do ensino básico. Édefendida a ideia de que deve ser dadaa possibilidade a cada escola de organizare gerir autonomamente o processo deensino e de aprendizagem, porque é parauma escola mais humana e inclusiva, istoé, aberta à vida e em face da vida, queas políticas educativas caminham e porqueé sempre em nome de uma autonomia queo contexto escolar pode vir a ser, um dia,um contexto comunitário. Sendo assim,genericamente, o conteúdo, regulador, dodiploma que aprova a medida da reorga-

nização curricular e que neste artigo éanalisado (Dec.-Lei n.º 6/2001), procuroutornar-se numa espécie de referente teó-rico das práticas educativas e curricularesa serem desenvolvidas pelos professorese pelos alunos nas escolas, como quequerendo significar uma ruptura positivacom o que até então vinha sendo reali-zado, tanto em termos políticos, como emtermos de ensino-aprendizagem e do modocomo se vivia a (e na) escola . Para alémdo seu conteúdo normativo, legal, é pos-sível identificar-se, de acordo com a suaforma14, três “linhas de força”, na figurade um novo projecto para a escola, queatravessam toda a sua composição: i) oentendimento da democratização da esco-la como uma garantia de democratizaçãodo sucesso educativo; ii) o ensino básicocomo uma “unidade educativa” fundamen-tal para os processos de aprendizagem aolongo da vida; iii) a autonomia relativadas escolas enquanto realidade necessáriae desejável para a conceptualização de umprojecto educativo e de um projectocurricular, devidamente contextualizados,concebida a partir de uma re-conceptualização mais ampla. Do ponto devista das suas oportunidades, a reorgani-zação que é proposta para o ensino básicoé, na verdade, sedutora, porque para alémde, discursivamente, introduzir toda umalinguagem que coloca a Escola face àmissão de resolver as desigualdades so-ciais, anuncia um conjunto de novidades

_______________13 Os despachos n.º 4848/97 de 30 de Julho e

9590/99 de 14 de Maio regulamentam e enquadram,respectivamente, as linhas orientadoras da “gestãoflexível do currículo”. No anexo deste último lê-se que “(...) por gestão flexível do currículo enten-de-se a possibilidade de cada escola organizar e gerirautonomamente o processo de ensino/aprendizagem,tomando como referência os saberes e as compe-tências nucleares a desenvolver pelos alunos no finalde cada ciclo e no final da escolaridade básica,adequando-o às necessidades diferenciadas de cadacontexto escolar e podendo contemplar a introduçãono currículo de componentes locais e regionais. Paraefeito, seria necessário promover, como é dito, “(...)uma mudança gradual na organização, orientação egestão das escolas do ensino básico, visando aconstrução de uma escola mais humana, criativa einteligente, com vista ao desenvolvimento integraldos seus alunos.”

_______________14 Em “A Análise do discurso: as políticas

educativas como texto”, Rui Gomes (1997) consi-dera que a forma, enquanto categoria analítica dodiscurso, integra um ou vários estilos de linguagemidentificáveis nos “(...) dispositivos de escrita,cálculo, listagem e notação que fazem de objectosdispersos universos conhecíveis.” (id., p. 145). Oconteúdo da forma e a forma do conteúdo, enquantocategorias analíticas, permitem encarar o discursocomo um campo mais vasto do que a retórica oua linguagem.

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– recuperando o seu sentido positivo – deordem cultural e prática. O Projecto queé proposto à educação escolar e, especi-ficamente, à Escola, passa por, em primei-ro, concebê-la como uma instituição quedelibera, pensa, reflecte, cria e recria e isto,por si só, constitui desde logo uma opor-tunidade (que é também um desafio) ecoloca alguns conflitos ao modo como láse trabalha e pensa. A realidade de umaescola pensante, a ser real, preenche todoo vazio do pensamento e da acção eportanto todas as decisões a serem toma-das pela escola não podem jamais servazias, quer dizer, individuais e sem pro-jecto.Assim sendo, no âmbito da problemáticaque intitula este artigo, e sobre a qual setem vindo a argumentar, passamos à análisedo discurso oficial da reorganizaçãocurricular do ensino básico, aprovado emdiploma legal (Dec.-Lei n.º 6/2001) etomado aqui como objecto de estudo.Tendo por finalidade a definição de umvazio em educação através da discussãodos modos da sua superação pelo Projec-to, sugerem-se como objectivos e eixosestruturadores do percurso dessa análise osseguintes:a) caracterização/desconstrução do sen-

tido da novidade introduzido pelodiscurso oficial de uma reorganizaçãocurricular do ensino básico;

b) análise do sentido atribuído ao Pro-jecto nos processos de definição de uma“reorganização curricular” e interpre-tação do seu papel enquanto instrumen-to de gestão e de superação dos pro-blemas educativos escolares;

c) interpretação do lugar do Projecto nosprocessos de definição da promessa daEducação Escolar e das finalidades daEscola;

O itinerário percorrido ao longo destes trêseixos assenta, portanto, na definição de

uma meta-categoria de análise que procu-ra tematizar os modos como é construídoo sentido do Projecto neste discursoeducativo em particular, sendo por issopertinente que se clarifique e se ampliea semântica do texto e dos discursos desi emergentes que, circulando e funcionan-do no interior de uma determinada soci-edade, dão lugar a processos vários dereactualização e generalização15. Comefeito, o discurso educativo, ou melhor, odiscurso sobre a educação é um discursoque se destina a justificar e a conduzir umadeterminada vontade educativa e remetesempre para uma prática: a sua procuraé uma procura de verdade que, por sua

_______________15 A propósito, Michel Foucault, em O que é

um autor?, considera que a instauração de umadiscursividade é sempre heterogénea relativamenteàs suas formas posteriores, o que pode querer dizerque uma discursividade, designando um conjunto dediscursos produzidos, neste caso, pela autoridadeoficial e a definirem coordenadas de sentido deacordo com certas funções, permanecerá obrigato-riamente, nas palavras de Foucault, retraída ou emexcesso em relação às modificações que por si sãoenunciadas. A análise do discurso educativo oficialconstitui-se, por isso, numa forma de leitura da“verdade” que aí é organizada e deverá eleger comoprincipais elementos de interpretação as justificaçõese os considerandos que lhe dão substância. Pordiscursividade, Foucault entende um conjunto dediscursos que tornam possível um certo número deanalogias, bem como de diferenças. Refere-se aFreud, por exemplo, como um instaurador dediscursividade, na medida em que o tipo de discursopor si produzido deu lugar a algo de diferente, emúltima análise, a um tipo de cientificidade fundadono discurso psicanalítico que veio a possibilitar asua abertura e aplicação futuras, ainda que o dis-curso dos instauradores, como o de Freud ou entãoo de Marx, não se situe em relação à ciência. ParaFoucault, é a ciência e a discursividade que serelacionam com a obra produzida pelos instauradores.Recorre-se a este conceito por se considerar que umdiscurso educativo é também instaurador de funções,de analogias e de diferenças e que a partir do seu“texto” e do seu “autor” é possível abrir-se um lequede transformações e de possibilidades de uso.(Foucault, Michel (2002). O que é um autor?. Lisboa:Veja).

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vez, quer legitimar a sua justificação numaordem prática. O discurso, portanto, nãodiz apenas respeito àquilo que se diz ouàquilo que se escreve sobre educação e aomodo, sintáctico e morfológico, como éapresentado16. No domínio da análise dediscursos político-educativos, como aque-le que aprova uma reorganização curriculardo ensino básico, as figuras de retórica e

de argumentação que consubstanciam odiscurso precisam de ser questionadas nasua origem e na sua dispersão, justamen-te porque o discurso interpela o sujeitoe sobre esse discurso é exercida sempreuma resposta. Por conseguinte, o critérioda análise do discurso não parece ser tantoa cientificidade ou a atitude “científico-analítica”, mas mais o do diálogo e o dainterpretação do significado educativo queaí é colocado e, além disso, enquadrado,designadamente num universo singular deactos de linguagem e de campos estra-tégico-discursivos que interagem, por issomesmo, com a esfera das lógicas depensamento e de acção dos sujeitos. Énesta medida que por categoria de aná-lise entende-se um conjunto de signifi-cados definidor de uma unidade de sen-tido: a categoria será mais uma meta-categoria e é nomeada, neste caso, emfunção dos significados que definem oProjecto, no seu sentido plural e nocontexto de um discurso educativo pen-sado em termos da superação de umacrise. O modo como estão expressas aspalavras, como dispersam e como alte-ram o quadro prévio da linguagem e comosão construídos os conceitos nela emer-gentes, produtos do próprio discurso e dedestinos futuros, é o elemento que orga-niza o trabalho de análise e que defineum critério de racionalidade, umametodologia. O quadro apresentado emanexo (anexo 1) faz o desenho dessetrabalho de análise.Sendo assim, enquanto objecto de análise,o discurso político sobre educação escolar,como o da reorganização curricular doensino básico, discurso tecno-legal enormativo, por um lado, e discurso repre-sentativo e enunciativo de práticas, poroutro, integra três dimensões que se re-lacionam entre si e serviram, tal comorepresentado no quadro anterior, de entra-

_______________16 Num sentido usual, de senso comum como

Olivier Reboul (1984) refere, o discurso designa umconjunto coerente de frases que publicamente sãoditas e que geralmente aparecem associadas a ummesmo sujeito, dirigindo-se a um sujeito ou entãoa um grupo de sujeitos (discurso político, eleitoral).Por outro lado, do ponto de vista da linguística, eno seu sentido linguístico restrito, o discurso é umasequência de frases que, pela sua estruturação, formae conteúdo, constrói uma determinada mensagem,possuindo, por isso, um início (de onde e como asequência é emitida) e uma conclusão (para ondee como essa sequência é recebida): é o caso de umartigo, um livro, um comunicado, uma declaração,etc. A unidade produzida pela mensagem, sendocondição da eficácia do seu sentido, é determinantenos processos de organização retórica e argumentativae que, neste âmbito, como é evidente, importasalientar. Mas no seu sentido linguístico alargado,como Reboul entende, o discurso é entendido comoum conjunto heterogéneo e tenso de outros discur-sos e é enunciado por um mesmo sujeito ou entãopor um grupo social, uma organização, uma insti-tuição: nesta asserção, o discurso designa, portanto,um termo colectivo que agrega espectros e saídasde conceitos, bem como de ideias, como que res-posta a uma causa (pública) a dever ser defendida.Sendo intermediário entre a língua e a palavra, odiscurso, neste sentido alargado, contém pois um“idioma” específico, integra uma estruturação e umadispersão conceptuais próprias e reflecte tambémopções por certas palavras, opções que são reali-zadas de acordo com um sub-código de naturezalinguística pertencente a um dado grupo social eideologia. Portanto, na investigação em CiênciasSociais e Humanas e da Educação, os processos deanálise do discurso consistem, de um modo geral,em fazer desprender o sentido plural do conteúdonele presente, formulando-se, a par com o encontroe a nomeação de categorias de organização e in-terpretação, uma determinada maneira de sepercepcionar um sector da realidade social aí emquestão (Reboul, Olivier (1984). Le langage del’éducation. Paris: PUF).

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das de leitura e sua análise17: i) aestruturação conceptual, isto é, o modocomo a linguagem é organizada por in-termédio das palavras centrais, recorrentese codificadas, o sítio que dominam, bemcomo as fronteiras que assinalam; ii) adispersão terminológica e discursiva,indicativa das expressões, regras e desviosde sentido que são produzidos no texto dodiscurso, através de actos de linguagemespecíficos que alteram, articulam ouacrescentam algo de diferente ao quadroprévio e anterior da linguagem; iii) ocampo estratégico-discursivo que se ma-nifesta nas possibilidades de formaçõesdiscursivas geradas a partir de um mesmodiscurso e que, por isso, originam diversasopções teóricas e práticas com implicaçõesno universo da experiência social eempírica.

2.1 A educação de base que é a base detoda a educaçãoDo ponto de vista do texto do discursoque se analisa, a consagração de áreas deaprendizagem “não disciplinares”, aobrigatoriedade de um “ensino experimen-tal das ciências”, o aprofundamento da“aprendizagem de línguas modernas”, odesenvolvimento da “educação artística e

da educação para a cidadania” e o “refor-ço do núcleo central do currículo nosdomínios da língua materna e da matemá-tica”18, constituem o relevo principal detodo o seu fundamento: tornar a educaçãoescolar, não só educativa, como tambémo mais segura e competente possível. Àescola é pedido o trabalho de promoçãoda inclusão social, porque sendo a (pri-meira) instituição com capacidade deresposta para as situações de exclusãoprecisa, para isso, de oferecer, e do pontode vista curricular, “(...) mais espaços deefectivo envolvimento dos alunos e ac-tividades de apoio ao estudo.”19. O pro-gresso social e económico terá continui-dade à luz de um Projecto que faça daescola uma instituição educativa, porexcelência, e inclusora das experiências devida dos públicos que a ela chegam e aprocuram, pois só assim é que se tornapossível o envolvimento. O campo estra-tégico-discursivo deste discurso remete,portanto, para um conceito de educaçãoescolar que deve servir para uma “edu-cação e formação ao longo da vida”, cujosentido de uso ou de aplicação destina-se a significar um valor para a educaçãoque, por si mesma, porque existe e éreforçada, é garantia de desenvolvimentoe de “formação integral”. A atenção, porexemplo, que é dada à aprendizagem delínguas modernas, isto é, a metáfora damodernização, é inscrita no discurso en-quanto condição de igualdade de oportu-nidades, porque a promessa desta igual-dade é, sobretudo, uma promessa de igual-dades de oportunidades face à vida. Abrira escola ao mundo contemporâneo, impli-cando-se os alunos no processo de co-evolução do mundo e seu progresso, jus-tifica-se na medida em que cada sujeito

_______________17 Gomes, Rui, 1997, op. cit. Considerando as

“políticas educativas como texto”, Rui Gomes refereque o discurso político pode ser diferenciado emtrês dimensões, a linguagem, os actos de fala e aexperiência, e que os processos da sua análise,renunciado o “já dito” que reconduz a um pontorecuado no tempo, procuram antes o entendimentode como é que as medidas postas em prática re-produzem e distribuem o poder e os saberes nodomínio da educação. Neste sentido, as políticas sãovistas como construção dos próprios discursos, osquais, e na esteira de Foucault, devem ser encaradoscomo relações verificáveis com o conjunto de outraspráticas: para Foucault, a performance linguísticado discurso (neste caso, político e oficial) recuperapermanentemente o significado de acontecimentosmodestos, discretos.

_______________18 Dec.-Lei n.º. 6/200119 id.

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é obrigado a reconhecer-se num lugar nomundo e, para tal, torna-se necessáriointroduzir alterações nas práticas em cursoque possibilitem a “contextualização desaberes” e a “dimensão humana do traba-lho”.De acordo com este optimismo criador, osentido estratégico deste discurso apontaainda para uma outra medida de valori-zação da “educação de base” que é a“dimensão europeia na educação”, a serestimulada através de práticas educativasque recuperem a “educação para a cida-dania”, o “ensino experimental das ciên-cias” e a “educação artística”, porque,entre outros aspectos, ao dar um sentidoàs “aprendizagens significativas” realiza-das de acordo com as “necessidades dosalunos”, concretiza o pluralismo e opostulado democrático que estão justamen-te na base deste discurso20. Deste modo,a confiança na educação escolar, além de,discursivamente, reflectir uma tendênciaecuménica, utilizando as palavras deOlivier Reboul21, própria dos discursosoficiais sobre educação, retém, numa sin-taxe, tudo o que de positivo os discursoseducativos possuem. O discurso, nestestermos, é portanto um discurso necessa-riamente dialéctico que constrói o seucampo estratégico através da vinculaçãoa conceitos vários, neutralizando ou refor-çando a sua orla de aplicação: a dialéctica,assim sendo, e recordando Hegel, faz a

aproximação e o afastamento, a distânciae o alcance, a vigia e a unidade enquantooperações de leitura do real. E por isso,sendo dialéctico, este discurso, em lugaresdiferentes, dá um uso às palavras “exclu-são” e “qualidade”, “participação” e “in-tervenção”, “experiência” e “comunidade”,“projecto” e “responsabilidade”, “vida” e“aquisição”, “currículo” e “perfil” de ummodo sincreticamente disposto e anulandoa atribuição de outros significados senãoaqueles que o espírito reformista do dis-curso quer sugerir.Mas, na verdade, o discurso oficialeducativo é sempre de algum modolimitador, porque é o que mais dependede outros textos e de outras tradições que,por correntes ideológicas diversas, influ-enciam a sua produção interna e externa.Internamente, a disposição dos conceitos,como aparecem e como são associados aoutros produzem, portanto, a dispersãoterminológica que é necessária ao proces-so de justificação do sentido da“sequencialidade”, da “articulação”, da“autonomia”, do “desenvolvimento” e das“competências” que, sendo palavras-cha-ve, mas espelho do discurso da “reorga-nização”, são objecto de reforço enquantofundamento da missão da educação esco-lar de base. O conteúdo do projecto paraeducação escolar consiste assim nestesentido de “base” que tem de ser perma-nentemente reconstruído, em ordem aodesenvolvimento de competências capazesde assegurarem a gestão das competênciasda vida, da inclusão social e também daformação ao longo da trajectória dossujeitos. A propósito, Jean-Pierre Boutinet22

considera que é ao longo dos anos 90 doséculo passado, um pouco por toda a

_______________20 Significada, por exemplo, no artigo 9º, a

confiança na escola expressa-se do seguinte modo:“(…) as escolas, no desenvolvimento do seu pro-jecto educativo, devem proporcionar aos alunosactividades de enriquecimento do currículo, decarácter facultativo e de natureza eminentementelúdica e cultural, incidindo, nomeadamente, nosdomínios desportivos, artístico, científico etecnológico, de ligação da escola com o meio, desolidariedade e voluntariado e da dimensão europeiada educação.” (id.)

21 Reboul, Olivier, 1984, op. cit.

_______________22 Boutinet, Jean-Pierre (2002). “Des

compétences au projet, un dilemme à prendre encompte pour s’orienter”, in Revue scientifiqueCarriérologie, vol. 8, 3.

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Europa, que se assiste a um de aumentode legislação e de regulamentação produ-zida pelos órgãos de administração dossistemas educativos, relativa à necessida-de de os jovens em formação escolar sedotarem de um projecto, necessidade queaparece associada à ideia de que, atravésdo projecto, os sujeitos-alunos beneficiamde um leque variado de competências, masreconhecendo-se e validando-se os sabe-res adquiridos que possuem. É nestecontexto que o discurso que se está aanalisar apela ao “projecto” como condi-ção do perfil de “competências essenciaise estruturantes” a construir ao longo doensino básico, pois a verdadeira educaçãode base será aquela que, antecipando ocumprimento do perfil, fornece, desde logo,todas as situações e todas as “aprendiza-gens cruciais” à luz de uma superação daspróprias competências; por outras palavras,o acto de aprender cumpre-se, agora, numprojecto de vida. A educação de base quesurge como a base de toda a educação éainda refém da “comunidade educativa”que lhe possa trazer algum sentido e ésignificada de acordo com uma dispersãoterminológica que acrescenta ao quadroanterior da linguagem uma vontadeomnipresente: a “formação de cidadãosresponsáveis, críticos, activos eintervenientes”23. Este acto de linguagemespecífico desloca o discurso para umsentido de educação escolar que tem deser algo mais e se possível inovador: afacilitação da integração escolar, como édito, vista não só enquanto acto de lin-guagem, mas também, e sobretudo, comoestratégia discursiva que constrói o sen-tido da resolução dos problemas doinsucesso escolar, ao mesmo tempo quejustifica a importância de uma educaçãoao serviço do progresso e da redução das

injustiças, procura confirmar as vontadesda “formação pessoal e social” e da“participação individual e colectiva”, ele-mentos base da definição do significadoda educação escolar, inovação e reformado discurso, como também da sua neces-sária promessa.

2.2 Superar a homogenia, re-inscrever asrespostasAssegurar uma educação de baseglobalizante e que certifique um “percursoescolar” de qualidade não pode, contudo,recorrer a discursos sobre umas práticastotalmente subordinadas a esses mesmosdiscursos. Se o contexto necessário a umaeducação e formação ao longo da vida éo da comunidade educativa segura esignificante para as pessoas, a maneiracomo essa comunidade é assegurada sódepende dos reais interesses, expectativase necessidades de cada contexto escolarproduzido, em princípio, por aquelaspessoas. O campo estratégico deste discur-so aponta para uma ideia de educaçãoescolar que, na sua essência, e também noseu projecto de acção, tem de ser diferen-ciada em função das prioridadesdiagnosticadas em cada contexto escolare, além disso, flexibilizada à luz daspretensões, dificuldades e alternativas aserem aí resolvidas. A ideia de uns “ter-ritórios educativos de intervençãoprioritária” ou de uns “currículos alter-nativos” constituem, por um lado, espe-lhos dos princípios da igualdade, da in-clusão, da autonomia e da participação emcena neste discurso, e por outro, instru-mentos de concretização de uma ideologiade descentralização que, concebendo asescolas como lugares de decisão, atribuiaos professores o papel de construtores ereconstrutores de um curriculum próprio,adequado a si e aos seus alunos, e dife-renciado. Sendo produto de uma formação

_______________23 Dec.-Lei n.º 6/2001

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de conceitos que apelam à “reflexão”, à“flexibilidade”, à “responsabilidade”, aos“processos” e à “integração”, este campoestratégico abre o discurso à retórica dadiversidade de opções que as escolaspodem tomar, tendo em consideração,como é dito na alínea i) do artigo 3º “(...)as necessidades dos alunos, por forma aassegurar que todos possam desenvolveras competências essenciais e estruturantesdefinidas para cada um dos ciclos e con-cluir a escolaridade obrigatória.”24. A tó-nica que é colocada nas “necessidades”,sendo recorrente, produz um tipo de dis-persão terminológica assente na ideia deque a procura dos modos de se dar res-posta a essas necessidades, não existindoa priori, pertence à própria capacidade dese dar resposta a algo que é visto comosendo total e absolutamente necessário: noâmbito da sua autonomia, as escolas sãocomo que sujeitos-instituições com neces-sidade de respostas, precisam de desenvol-ver projectos porque precisam de umcontexto de suficiência que, ainda quepossa vir a ser sentido como tal, deixa logode ser suficiente mercê do que ainda estápor fazer, daquilo que ainda não constituiuma verdadeira autonomia. As respostasadequadas têm, por isso, que ser inscritasno quadro de funcionamento de cadainstituição, ainda que incerto, ainda quedistante do discurso produzido pelo poderoficial. Querendo legitimar um poder,característica aliás de qualquer discursooficial sobre educação, neste texto emespecial, esse poder é descrito como queestando aparte das “necessidades reais decada contexto escolar”, as quais, para viremum dia a ter respostas suficientes, preci-sam de diversificar ao máximo “ofertaseducativas” de acordo com uma “gestãocurricular” flexível – e daí o discurso da

capacidade de decisão – pensada e pra-ticada por “contextos concretos”, onde aorganização dos seus princípios é maisorientadora do que prescritiva. Trata-se,portanto, de uma leitura da realidadeeducativa nunca quieta, não só porque essaleitura admite, de facto, que não existemrespostas universais capazes de suprir aprocura de respostas para as necessidadesdos contextos concretos, mas tambémporque aos próprios contextos é impostaa responsabilidade pela construção de umprojecto de educação sempre plural quesupere um vazio de respostas: neste caso,o discurso limita-se, assim sendo, a criarcondições.O desejo de superação de toda e qualquerracionalidade homogeneizante, porque àeducação falta um sentido de procura derespostas adequadas, ou seja, um projecto,é conteúdo manifesto de uma estratégiapolítica que, discursivamente, toma opróprio Projecto enquanto instrumentoportador de um dinamismo prospectivo,capaz de re-inscrever as respostas de queos contextos escolares precisam, porque,com efeito, são vistos como comunidadesde forte diversidade humana, social ecultural, onde as respostas não podem, porisso, ser as mesmas para todos ou as quetodos procuram. E, através do projecto,superando-se a eventual homogenia dodiscurso político, isto é, a atribuição deum sentido indiferenciado e acabado àeducação, concebe-se a educação escolarenquanto obra a fazer e, por isso, actocriador, cuja autenticidade dependerá sem-pre da antecipação inédita que é possívelde ser feita pelos sujeitos implicados noacto de educar e de fazer aprender. Estesentido “quente” de projecto, dito deacordo com as palavras de Boutinet noartigo atrás indicado25, o dinamismo que

_______________24 id.

_______________25 Boutinet, Jean-Pierre, 2002, op. cit.

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subentende e não a funcionalidade a queé submetido pelas lógicas de uma soci-edade pós-industrual, coloca-o ao serviçode um tipo de acção educativa, preconi-zado por este discurso, que precisa de umasignificação que oriente a sua própriaorientação, ou seja, um tipo de acção quenecessita de um projecto para ser dinâmi-ca, ainda que este seja independente daacção que antecipa, como Shutz de restorefere26, e por isso, cativo na ilusão, nosentido em que pertence à produção de umafantasia que o dinamiza. De qualquermodo, pertence a este discurso, pelos actoslinguísticos específicos que lhe dão con-teúdo, um sentido de dinamismo a estarsempre presente pelo recurso à “diversi-dade de estratégias e metodologias” quenão empobreça o universo das aprendiza-gens educativas. Desde logo preambular,elemento tácito deste discurso educativo,o dinamismo é atributo das concepções deescola, de professor e de aluno e, enquan-to estratégia de enriquecimento curricular,é ponto de partida e de chegada do própriodesenvolvimento do curriculum, tal comoé dito no artigo 11º a propósito da diver-sificação das ofertas curriculares27. Adependência das modalidades flexíveis deconcepção e avaliação dos processos deaprendizagem, sempre a enriquecerem ocurriculum, não é, todavia, apática: aobsessão pelo específico, ou melhor, pelas“actividades curriculares específicas”,como é dito no texto, obriga a que seperceba que a mais concreta actividadepedagógico-didáctica, dentro de uma sala

de aulas e pensada por um professor, teráde ser uma espécie de fruto de toda umalógica de discurso e de acção, não deter-minada por si, mas por si organizada. Eacredita-se que o específico pode diferen-ciar, dá razão à flexibilidade e respeita asingularidade dos sujeitos da educação;mas, no silêncio das práticas, também podeisolar e desaproximar, porque é estranho,o discurso.

2.3 O contexto da escola que éenvolvimento e privilégioPensar-se que a identidade teórica e prá-tica da educação escolar é sempre deter-minada pela identidade do contexto espe-cífico que a abrange, a comunidade local,traduz, neste discurso educativo, um tipode dispersão terminológica sobre as dimen-sões positivas que um envolvimento comesse contexto propicia e faz depender todoo sentido da mudança e da inovação dacapacidade de as escolas fazerem mostrara sua competência de envolvimento. Aescola, a estar sozinha nesse contexto, sóo estará, em princípio, por causa dadesarticulação com uma comunidade quenão consegue integrar ou então porque oseu grau de abertura ou de fechamento àcomunidade “exterior” não está a ser bempensado. Mesmo no que toca aos proces-sos de avaliação das aprendizagens, estediscurso entende que as escolas devem“(...) assegurar a participação dos alunose dos pais e encarregados de educação...”28,não sendo já mais possível pensar-se aescola como uma instituição fora dacomunidade e da família, mas sim envol-vida com os serviços centrais e regionaisda administração, com outras escolasconsigo agrupadas, com estruturas técni-cas de apoio pedagógico, etc. Se a ava-liação já não serve para seriar ou premiar,

_______________26 Shutz, Alfred (1993). La Construcción Sig-

nificativa del Mundo Social: introducción a lasociología comprensiva. Barcelona: Ed. PiadosIbérica

27 “(...) compete às escolas, no desenvolvimentoda sua autonomia e no âmbito do seu projectoeducativo, conceber, propor e gerir outras medidasespecíficas de diversificação da oferta curricular.”(Dec.-Lei n.º 6/2001).

_______________28 id.

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mas sim para compor um “juízoglobalizante sobre as aprendizagens rea-lizadas pelos alunos”, acredita-se que essejuízo deva contribuir para a produção deinformação relevante para os professores,para as escolas e, em última instância, paraa administração central, a favor do diag-nóstico e regulação sistemáticos dos déficesde aprendizagem e sua anulação. Perce-bida numa “lógica de ciclo”, a avaliaçãodas aprendizagens, diagnóstica, formativae sumativa, serve a “superação de even-tuais dificuldades dos alunos” e a “inte-gração escolar e apoio à orientação esco-lar e vocacional”29. A evolução do proces-so educativo dos alunos, ao longo dos trêsciclos de ensino, é então uma evolução queé definida em função do projecto da escolae do modo como esta desenvolve acçõesde avaliação mais adequadas a essa evo-lução, o mais particulares possível eadequadas às necessidades dos alunos: aavaliação torna-se num privilégio da es-cola e todo o contexto que a envolve estásintonizado com a sua pertinência e uti-lidade. A coerência de sentido presenteneste discurso, isto é, o modo circular comoa linguagem é apresentada, alterada ereproduzida a partir das regras que adefinem, ao transformar todas as dimen-sões da educação escolar em propostaspositivas, de qualidade positiva, é comose deixasse de poder ser entendida enquan-to objecto de questionamento. Por outrostermos, a maneira particular através da qualos objectos educativos são qualificados poreste discurso, numa circularidade coerentee sincrónica, torna-o absolutamenteinquestionável ou aparentementeconsensual e, por isso, de desenvolvimen-to facilitado nos contextos concretos deacção. É de acordo com esta lógica, atra-vés de actos específicos de linguagem, que

a escola é significada enquanto contextode aprendizagem de “métodos de estudo”,de desenvolvimento de “temas de pesqui-sa”, de promoção de “estratégias de di-ferenciação pedagógica”, em ordem àvalorização das “aprendizagens experimen-tais” e das experiências já vividas pelosalunos. Na verdade, o sentimento dedesilusão social e económica (e relativoao funcionamento das instituições emgeral) que parece ter assombrado a décadade 90 do século passado, como Hobsbawmconsidera e ao qual se fez alusão naprimeira parte deste artigo30, se no períodode transição para o séc. XXI assumeconfigurações diferentes, nomeadamente adesconfiança dos sujeitos para com asideologias políticas e a incerteza dospróprios mecanismos de acção política einstitucional, esse sentimento encontraagora o seu antídoto num discurso quereabilita e reforça o sentido de uma so-ciedade que se esforça na luta pela edu-cação escolar pública, porque, apesar daescola, a sociedade é já em si uma cidadeeducadora, cujo crescimento e progressodependerá dos projectos educativos queconseguir veicular. Um desses projectos adesenvolver refere-se às “tecnologias deinformação e comunicação”, campo estra-tégico-discursivo deste texto, que remeteas políticas educativas para o reconheci-mento de que cabe à escola abrir-se àincontornabilidade das tecnologias, exigên-cia macrossistémica, e fazer todo o tra-balho de inclusão social a partir de “de-senhos curriculares” voltados para o do-mínio de competências que permitam ocontrolo da informação e da comunicação,produtos da técnica e também do aleató-rio: deste ponto de vista, os sujeitos quenão têm um papel activo no domínio detodas essas tecnologias, são os “sem-pro-jecto” daquela sociedade educadora.

_______________29 id.

_______________30 Hobsbawm, Eric, 2002, op. cit.

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Mas como forma de se contribuir para ainclusão, o contexto da escola surge comoacompanhante do estudo dos alunos, área deformação para a cidadania e lugar de cons-trução de projectos capazes de articularemsaberes diferentes e de diversas áreascurriculares e de se centrarem em problemasou espaços de intervenção dos alunos. Ocampo estratégico das “áreas curricularesdisciplinares e não disciplinares” apela àideia de uma escola que envolve as disci-plinas com o conhecimento de senso comumdos sujeitos e com as suas habilidades paramobilizarem procedimentos de pesquisa e deresolução de conflitos, integrando, nesseprocesso, os conteúdos das disciplinas. Destemodo, por causa da sua autonomia, o con-texto da escola tem todo o privilégio de estarcheio de vida e de oportunidades de orien-tação da vida das pessoas, passando por sia definição das componentes de umcurriculum a estar sempre em acção. Doponto de vista discursivo, esta procura doenvolvimento com a vida e com a acção,forma de superação da crise do própriodiscurso e de justificação da sua ambição,activa sucessivamente o sentido do tempoem educação, sentido este que, permeávelao contratempo enquanto dimensão educa-tiva, precisa de superar a própria acção dotempo e de a projectar segundo umaintencionalidade. O contexto da escola ésistematicamente objecto de definição,legitimação e recuperação de umaintencionalidade.

2.4 Do desejo da decisão à heurística doprojectoUm educação escolar assente nos princí-pios da participação e da partilha suben-tende, portanto, a descentralização do podercentral em matéria curricular, ao mesmotempo que perspectiva as escolas enquan-to estâncias de decisão autónoma econtextualizada. Esta tendência, no absolu-

to, revela porém o conflito de não serefectivamente simples compatibilizar umaautonomia de escola, reconhecida pelodiscurso e enquanto condição de umaescola decisora que adequa um curriculum,com uma administração educativa queestabelece um padrão de autonomia ouentão apenas admite que são necessáriascondições para que essa autonomia seconcretize, ao mesmo tempo que não asviabiliza. Mas do ponto de vista estraté-gico-discursivo, este texto estabelece umarelação de causalidade entre decisão eprojecto, na qual a autonomia representao valor supremo de condução dessa rela-ção e da tomada de decisões futuras porparte da escola. Decidir em função deinteresses próprios implica sempre, numregisto de maior ou menor autonomia,abdicar de interesses alheios, contrariarvontades instituídas, padronizar um regis-to de aparente liberdade que, no fundo,seria a garantia de todo o sucesso daspolíticas educativas e da acção concretadas escolas. E, para tal, o projecto énecessário enquanto modo de colocar emcurso o que se decide e o que se preconizacomo sendo uma identidade de escola: opressuposto fundamental do curso de umprojecto é, segundo este discurso, “(...) acapacidade de decisão relativamente aodesenvolvimento e gestão das diversascomponentes do currículo e a uma maiorarticulação entre elas, bem como umacréscimo de responsabilidade na organi-zação das ofertas educativas.”31. Acrescerresponsabilidade às acções através de umprojecto é, por parte da administração quedefine um sentido de autonomia, um actode solidariedade tomado para com asescolas que, por si, têm de vir a saberencontrar respostas e modos deoperacionalizar a sua autonomia que, num

_______________31 Dec.-Lei n.º 6/2001

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futuro, vem a distingui-la de todas as outrase a colocá-la num registo de maior visi-bilidade. Este aspecto é, aliás, a razão defundo da estratégia dos “projectos de gestãoflexível dos currículos” e também de uma“formação centrada na escola”, discursosproduzidos por este texto e espectros de umalógica de desenvolvimento curricular pen-sada para a participação na comunidade.Gerir, portanto, as experiências de vida nasescolas requer uma decisão qualquer, umaalteração de rumo e uma análise à lupa dosentido da prioridade a ser estipulado, comose houvesse um rosto que a escola precisa,a todo o custo, editar. A capacidade dedecisão é, por isso, também uma espéciede definição do conteúdo do desejo que aescola precisa apropriar, ainda que a suaapropriação não seja de todo pacífica, nemmuito menos facilitada: o projecto repre-senta assim o meio pelo qual as escolhassão tomadas e, de acordo com este sentido,o contexto de uma escola sem projecto écomo se fosse contexto sem escolhas.Para se constituir mental e socialmenteenquanto objecto para a acção, este dis-curso precisa de se tornar sobretudo per-meável para que se torne possível pensare falar sobre educação através de certosdiscursos. Sendo permeável, o campoestratégico dos discursos é percorrido pelaconstrução de conceitos que o reproduzemà escala da utilidade e da aplicação, aomesmo tempo que lhe sinalizam os cam-pos da sua justificação pelo recurso aformas próprias de ver a realidade. O modocomo é pensado o Projecto, abertura àdecisão e descoberta do dinamismo queparece estar ausente na educação escolar,dá-lhe, por um lado, o sinal da continui-dade e da protensão necessário ao própriodiscurso e, por outro, submete-o a umdeterminado modo de fazer, próximo daideia de uma competência que testemunhao mínimo de uma orientação possível e

de um “governo sobre si próprio”32. Asdecisões programadas e levadas a cabopelas escolas, no âmbito da sua autono-mia, são agora inscritas num “projectocurricular de escola” e num “projectocurricular de turma”, instrumentos aoserviço do desenvolvimento do própriocurriculum e da aquisição, pelos alunos,das competências consideradas essenciaise prioritárias. A estratégia decorre assimde um sentido que é atribuído ao Projectoenquanto condição da própria decisão poresta ou aquela competência que vem a serinscrita numa planificação de escola e, aomesmo tempo, enquanto personificação deum tipo de acção que precisa de estarassociada a um sujeito ou sujeitos porta-dores de uma história, como queidentificada com um sujeito individualiza-do com uma experiência julgada possui-dora de um saber-fazer característico. Poroutras palavras, o modo de pensar oprojecto como a promessa da construçãoda competência do sujeito, sendo ao mesmotempo orientação aberta e validação dossaberes adquiridos, traduz o efeito sinto-mático, nas palavras de Boutinet, de umasociedade ainda à procura do seu novoestatuto pós-industrial33. Segundo o autor,os projectos e as competências introduzem,por isso, uma mesma dúvida que é a daincerteza de um sujeito animado pelacapitalização da sua própria experiência ealém disso pela orientação que deve saberdar a essa capitalização. Questionando-sesobre o sentido dessa orientação, isto é,como é que a sua experiência tem sentidonum projecto, o sujeito-aluno vê-se obri-gado a pensar sobre si e por si mesmoo seu próprio desenvolvimento, em ordemà aquisição das competências que marcama sua experiência, ainda que num contextode crise de saberes, e a sua singularidade,

_______________32 Boutinet, Jean-Pierre, 2002, op. cit.33 id.

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ainda que a sua expressão precise deconvocar uma combinação activa de ele-mentos (saberes, capacidades, atitudes,experiências, etc.) que, num registopluridimensional, enriqueça a sua identi-dade pessoal e de vida.Por outro lado, a lógica das competências,substrato da estratégia de um “currículonacional” aprovado pelo discurso que seestá a analisar, obedece grande parte dasvezes a uma forma passiva de formulação,isto é, a uma forma que permite que sediga se um sujeito é competente ou nãoé competente na aprendizagem que lhe éproposta e que deve construir, como se,no fundo, não se tratasse mais do que umacapacidade ou de uma atitude psicológicarelativamente à utilização de um objecto34.

Ressalta deste discurso a ideia de que oreconhecimento de um sujeito competen-te, por princípio emancipado e com umsentido de orientação possibilitado pelaimplicação pessoal num projecto, é feito,não tanto por aquilo que sente relativa-mente a um objecto de aprendizagem, masmais por aquilo que usa a partir do objecto.A subordinação do projecto à competênciaremete para um sentido de tecno-escolha,dito com Margaret Archer35, criador daideia de que o sujeito pode vir a saberquem é a partir do momento em que usae molda esse processo de conhecimentode acordo com escolhas determinadas poruma racionalidade objectiva e técnica,próprias do imperialismo da razão instru-mental. A definição digital da identidadedo sujeito é, portanto, e ainda de acordocom Archer, produto de uma tecnofilia queelege os usos operativos do conhecimentocomo manifestação da competência. E aser uma espécie de “bagagem”, como GuyJobert adianta, a competência precisa,contudo, de ser pensada como uma acçãoem constante revalorização e actualização,porque, na prática, o lugar onde éconstruída uma representação mental so-bre o objecto de aprendizagem sobre asoperações que se podem realizar sobre ele,o sujeito não dispõe de outros recursosexcepto as imagens que lhe servem, nãoapenas para falar desse objecto, massobretudo para pensá-lo36; daí a competên-cia ser mais do que um saber-stock, porquetem como finalidade fazer desse mesmostock um instrumento para a acção, con-duzindo o sujeito, ao nível de um processode selecção do seu conteúdo, a retirar do

_______________34 A propósito, o actual currículo nacional do

ensino básico, aprovado na sequência da publicaçãodo texto oficial da reorganização curricular emdiploma legal, define um conjunto de dez compe-tências gerais que, em princípio, traduz um “perfilde saída do aluno” ao terminar os três ciclos deensino, formuladas do seguinte modo: (1) Mobilizarsaberes culturais, científicos e tecnológicos para com-preender a realidade e para abordar situações eproblemas do quotidiano; (2) Usar adequadamentelinguagens das diferentes áreas do saber cultural,científico e tecnológico para se expressar; (3) Usarcorrectamente a língua portuguesa para comunicarde forma adequada e para estruturar pensamentopróprio; (4) Usar línguas estrangeiras para comu-nicar adequadamente em situações do quotidiano epara apropriação de informação; (5) Adoptarmetodologias personalizadas de trabalho e de apren-dizagem adequadas a objectivos visados; (6)Pesquisar, seleccionar e organizar informação paraa transformar em conhecimento mobilizável; (7)Adoptar estratégias adequadas à resolução de pro-blemas e à tomada de decisões; (8) Realizar acti-vidades de forma autónoma, responsável e criativa;(9) Cooperar com outros em tarefas e projectoscomuns; (10) Relacionar harmoniosamente o corpocom o espaço, numa perspectiva pessoal einterpessoal promotora da saúde e da qualidade devida. Para além deste conjunto de competências, sãoainda formuladas “competências específicas” por áreadisciplinar e para cada ciclo de ensino (Competên-cias Essenciais – Currículo Nacional do EnsinoBásico (2001). Lisboa: Ministério da Educação).

_______________35 Archer, Margaret (1990). “Theory, Culture and

Pos-Industrial Society”, in Theory, Culture & Society.Londres: Sage, vol. 7

36 Jobert, Guy (2000). “Dire, penser, faire: apropos de trois métaphores agissants en formationdes adultes », in Education Permanente, 143 – 2.

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stock geral do seus saberes aqueles quedevem ser calculados como sendo osnecessários para acompanhar e cumprir arealização de um conjunto de tarefas. Adispersão terminológica e discursiva dotexto da reorganização curricular aponta,justamente, para o “envolvimento dosalunos” e para a atenção às “experiênciasde aprendizagem”, porque, em últimaanálise, são os únicos elementos que podemvir a definir o conteúdo das competênciaspropostas pelo curriculum, ainda que semgarantia, mas como promessa. De facto,os saberes que são hoje transmistidos aosalunos derivam de uma selecção já feitaao nível dos programas e das metas deaprendizagem definidas pelo poder central,mas precisam agora de ser postos emsituação real de ensino e de aprendizagem,porque são o resultado de toda a insta-bilidade, bem como globalidade, da desig-nada sociedade de informação. De acordocom este sentido, um “perfil de compe-tências”, conceito presente no artigo 2ºdeste discurso, serve então para assegurara mobilidade dos sujeitos competentes emtermos inseguros, num contexto, como ésabido, de conflito de perspectivas e ten-dências económicas. Mas é justamentesobre a definição de saberes produzidosna e pela acção que a ideia das compe-tências, um saber que se acciona e aomesmo tempo se renova na acção, aparececomo uma espécie de “muleta”, dito deacordo com Jobert, para se dizer e se pensaro objecto que a própria competênciadesigna. Segundo o autor, o saber comoacção convida o professor a desenvolveruma acção já não centrada sobre os con-teúdos ou sobre o sujeito-aprendente, masantes sobre as suas diversas condições demobilização subjectiva: a razão da produ-ção de competências como saberes emacção reside, parafraseando-o, na “(...)alquimia das interacções situadas entre um

sujeito singular (cognitivo, afectivo, cor-poral), os objectos sobre os quais deve agir(coisas, pessoas) e, por fim, os outrossujeitos (pares, hierarquias)”37.A capacidade de decisão das escolas comocondição de construção de um projectoeducativo próprio, adequado aos projectoscurriculares de escola e de turma quedeterminam o leque de competênciaspossibilitado por esses mesmos projectos,emerge, deste modo, conectada com odesejo de tornar singular toda a utilizaçãodos saberes produzidos pela escola, atra-vés de acções reais definidas em funçãode interesses e preocupações dos alunos.Restituir os interesses dos alunos, supe-rando “eventuais dificuldades” e integran-do-os em “dispositivos de organização egestão do currículo”, variáveis e diversi-ficados, procura significar que essesmesmos interesses ou dificuldades, aoserem transformados em objectos de usopara um projecto de construção de com-petências, representam, em última análise,o modo possível de se promover o “de-senvolvimento de atitudes e capacidades”,justificação aliás de todo o sentido dascompetências. Assim sendo, é um sentidoque define o conteúdo dessas competên-cias como uma operação de formalizaçãodestinada a construir uma capacidade e umaatitude psicológica aplicáveis à resoluçãode uma família de situações problemáti-cas38, mas que para as quais não existesaber assertivamente “aplicável”, transfe-rível, antes improvisação: o sujeito com-petente é aquele que improvisa e que sabeque não pode contar com o que sabe. Fazer,portanto, a priorização de um leque decompetências para os alunos, a partir dadefinição da administração educativa,

_______________37 id., p. 2138 Gillet, Pierre (1998). “Pour une écologie du

concept de compétence”, in Education Permanente,135-2

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optando, decidindo, escolhendo e rejeitan-do, determinando, no fundo, um projectoe uma procura de respostas, traduz o desejode se olhar as instituições escolares en-quanto contextos de organização de conhe-cimentos, mas, contudo, segundo o crité-rio da performance dos alunos, observadae avaliada, que descreve a organização útildesses conhecimentos, isto é, segundo aimposição experiencial das competências39.Articular o “frio” da competência, ocontrolo da tarefa e da aprendizagemremetendo-o para o domínio do exameexperiencial da vida, com o “quente” doprojecto, o dinamismo no qual repousa,parece ser hoje o mandato de uma edu-cação escolar virado para um tipo depraxeologia que, da gestão e do mundojurídico, importa a preocupação pelossaberes em acção, as competências. Masa heurística do Projecto seria aconcretização, não do controlo da vida, masda aceitação da vida como realizaçãoeducativa não dependente da vida daescola.

3. Vazio, Projecto e Crise: as aporias dasuficiência. Apontamento final

Por processos específicos de justificação,o sentido da novidade que o discurso quese analisou procura introduzir, adopta oProjecto, não só como utopia fundadorada própria novidade, mas sobretudo comoinstrumento funcional à organização dasestruturas educativas e das práticas derelação com os saberes e de autonomizaçãodesses mesmos saberes. Num contexto emque os princípios de mercado se sobrepõem

aos princípios do estado, o saber vistocomo um bem em si passa, contudo, comoManuel Matos refere, a ser interpretadocomo um investimento económico40 e oprojecto, pela sua translação em compe-tência de gestão, a ser encarado enquantofigura declarada do comprometimento dossujeitos com o controlo da incerteza deum saber que, em si, deixa transpareceruma crise. E os processos de afirmaçãoda autonomia, campo estratégico do dis-curso que se analisou, emergem sobretudoenquanto princípios de regulação políticanum quadro de eminência do mercado ede determinismos económicos, globalmenteconvencionados e localmente apropriados.De acordo com esta lógica, a crise daeducação escolar, socialmente construídae institucionalmente fragmentada, longe detraduzir apenas a perda de todos os va-lores que guiam a missão da escola e que,à partida, seriam irrecuperáveis, produz aideia de que a crise da educação escolarnão lhe pertence, é antes razão e efeitodas mudanças em curso, das transforma-ções modernas e das necessidades criadaspela própria ideologia do progresso. En-quanto instrumento de superação da crise,como se da crise não fosse possível abrir-se uma oportunidade, o Projecto prometea certeza de que a crise é tão intrínsecaà educação e, portanto, precisa de ser abase de toda a gestão problemática daeducação, como inclui e exclui nessa gestãoos sujeitos que manifestem a competênciamais adequada de serem incluídos, ou entãoa menos apropriada, dinâmica e prática,justificação da própria exclusão.Assim sendo, a crise que hoje parece estara dizer-se (não no sentido de uma históriaque se está a finalizar) implica, emcontrapartida, que se recupere a discussão

_______________39 Lebahar, Jean-Charles (1995). “Compétences

de conception, conception de compétences: lepédagogue est un concepteur de tâches fictives“, inEducation Permanente, 123-2; Boutinet, Jean-Pierre,2002, op. cit.

_______________40 Matos, Manuel (2002). Por falar em forma-

ção centrada na escola...”. Porto: Profedições

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filosófica da educação, desde logo, eporque num contexto de hetero-utopias, arepresentação que se constrói sobre a acçãoé diferenciada e plural. Apontando fina-lidades próprias, o discurso educativo quese analisou, transforma a novidade numacultura de originalidade, não parecendo,todavia, remetê-la para o domínioheurístico do sentido da própria educação,antes para o domínio pedagógico que, deum modo ou de outro, determina o sentidodaquele domínio heurístico41. A definiçãode uma intencionalidade representa um dosprimeiros processos da justificação dodiscurso educativo que, se por um lado,anula o Vazio da “não intencionalidade”,por outro, e através de uma linguagemespecífica, procura resolver uma crise emeducação, geradora de toda o perigo einstabilidade e condicionadora do próprioprogresso educativo. Relacionando-se entresi, num movimento circular que produzaberturas e fechamentos discursivos, adefinição, a legitimação e a recuperaçãode uma intencionalidade podem ser vistoscomo os processos de justificação dodiscurso educativo, bem como de signi-ficação do seu campo estratégico-discursivo. A figura apresentada em anexo(anexo 2) procura ilustrar os processospelos quais se relacionam.

Do ponto de vista discursivo, a educaçãojustifica o seu sentido através das inter-secções que lhe são permitidas de esta-belecer entre três processos principais: adefinição de uma intencionalidadeorientadora do projecto (significando-se,deste modo, as acções propostas e sua forçaideológica), a legitimação de umaintencionalidade que apresente um conjun-to de alternativas na figura de um progra-ma novo e reformador e, por fim, a re-cuperação dessa intencionalidade a partirdo momento em que o Projecto decididoe colocado em curso é retraído ou ampli-ado, não tendo reflexo no mundo daexperiência empírica e das acções dossujeitos. Tratando-se de uma representa-ção da acção, o Projecto antecipa a rea-lidade de acordo com o desejo de tornarpresente a realidade dos próprios objectos.E por estar ligada ao futuro, a antecipaçãoé vazia no que toca à sua qualidade deprotensão, tal como diria Shutz, porquecarece do objecto que a poderá realizar.Nesta medida, o que define o desejo e aacção do Projecto é um tipo de condutaque antecipa o futuro em forma deprotensão vazia e este é apenas o que aindavai ser realizado, uma esperança de acçãocumprida: por outras palavras, Desejo eProjecto re-apresentam constantemente oobjecto, a partir de uma não-presença, istoé, o Vazio do próprio objecto. Por outrolado, se se admite que um discursoeducativo “entra em Crise”42, isso nãoquererá apenas dizer que o discurso é

_______________41 Como Reboul refere, o domínio do “para quê”

que tem vindo a instalar-se nos discursos e naspráticas educativas traz consigo um julgamento sobrea actividade de pensar e de educar de tipo clássico,isto é, a ideia de que o sujeito se educa a partirdo que lhe é uma falta, do que é ou está incompleto.Por outras palavras, educar pelo recurso ao projecto,sendo finalidade do discurso educativo restituir aautonomia individual dos alunos criando-se condi-ções para a organização e selectividade de conhe-cimentos, capacidades, atitudes e valores, isto é, decompetências, acaba todavia por transformar o“porque” se educa e se ensina num valor de uso,permanentemente examinado pelo sujeito, e alémdisso conformado com o “para quê” serve educare ensinar (Reboul, Olivier, 1984, op. cit.).

_______________42 A este propósito, a crise, por exemplo na

cultura oriental, designadamente para os chineses,é uma “crase”, um termo que, derivando do grego,significa mistura ou fusão. Na língua chinesa, pro-nunciando-se wei-ji, este conceito agrega osideogramas perigo e oportunidade (Duarte, João-Fransisco (2004). O sentido dos sentidos: a educa-ção do sensível. Curitiba: Criar Edições).

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excessivamente arriscado, antes oportu-nidade de alteração e de mudança. Éneste aspecto particular que a dispersãoterminológica produzida pelos discursospossui um poder absolutamente decisi-vo, pois é através da formação especí-fica de conceitos que a estratégia éorganizada e o significado do textointerpretado.Através do que de sub-entendido é partedo texto do discurso e dele resultante,o oculto que, em termos gramaticais sedesigna de elipse, é possível concluir-se que um discurso educativo tem cla-ramente como consequência da sua pro-dução fazer calar o óbvio e o não-dito,no fundo, regular o seu grau de opaci-dade ao mesmo tempo que o procurajustificar e dar-lhe algum sentido. Aqui-lo que falta dizer num discurso é noentanto suprimido pelo contexto ou pelasituação que é descrita, ou seja, se háalgo que falta ao discurso, a elipse, issoé desde logo suprido com vista à recu-peração de um sentido completo. Porintermédio da análise realizada, o sen-tido de um vazio frequentemente asso-ciado às ideias de carência ou de déficee supostamente re-torturado na agoniaindividual, adquire, neste contexto, ou-tras configurações: se se admitir que asdialécticas do vazio em educação reflec-tem, de igual modo, dialécticas sociaise sobre o social, terá interesse discutir-se um sentido de Vazio em diálogo comas lógicas socialmente programadas queaparecem enquanto forças de solução ede resgate da insuficiência. E resgatadaa insuficiência, os “processos de preen-chimento de sentido” estariam assimresolvidos, quer para o sujeito, quer paraas instituições que, no tempo, produzemsentidos educativos diversos. A este pro-pósito, Levinas diria que, na realidade,a insuficiência não possui satisfação

possível, trata-se de uma “(…) não-possemais preciosa do que a posse”43, um vazioque, mesmo indicando uma espécie dedescoberta da insuficiência dainterioridade, só o é, insuficiente, devi-do ao confronto com uma exterioridadeaparentemente suficiente, mas mesmoassim insuficiente segundo a lógicadesejável do Eu. Porém, pelo que se estáa escrever, o vazio supõe atranscendência do que o define comofalta, lacuna, falha natural, mera possi-bilidade de preenchimento egótico: cons-tituindo-se no desejo de significação dosobjectos, o vazio radica precisamente nainadequação, no paradoxo do diálogocom o mundo, a par com todas ascondutas de preenchimento e de gestãodas crises sociais e políticas.Saber o lugar, pelas linguagens que oconstróem, onde se cria e se recria aeducação escolar é um processo comple-xo, sobretudo num momento em que asnarrativas do progresso entraram em criseexigindo, por sua vez, que se questioneos modos de realização do projecto queadjectiva o próprio conteúdo da educa-ção, dado que esse projecto será sempreo projecto de um cultura. Com efeito,a cultura moderna democrática coincidecom o fazer do projecto uma ética deacção social e individual a favor, por umlado, da libertação de um sentido éticodifundido pela religião e regulador damoral prática dos sujeitos, e por outro,mas por consequência, da conquista deum bem estar individual e colectivo aser possibilitado pelo imperativo de umamoral que parece assentar numa sobe-rania, como Lipovetsky designa, do de-

_______________43 Levinas, Emmanuel (2000). Totalidade e

Infinito. Lisboa: Edições 70, p. 161

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ver44. Face ao projecto global de uma trans-formação da educação, livrando-a da crisee da precariedade das relações – a con-denação ao Vazio – multiplicam-se as von-tades de fazer do projecto uma acção emsi mesma de emancipação e de competên-cia a ser gerida pelo sujeito num contextosocial e escolar de características especí-ficas. Consequentemente, como se o pro-jecto se tornasse na natureza da acção, querideológico-politica, quer prático-escolar, asuperação de todo e qualquer vazio emeducação é possível, pelo menos enquantodesejo de re-estabecimento do que falta.Não sendo apenas inevitável, a linguagemdo Projecto é desejável também ao pró-prio projecto de descentralização daspolíticas educativas e à auto-justificação,a dever ser feita pelo sujeito, das respon-

sabilidades por um determinado percursona escola. Deste modo, e finalizando, nãoé assim de todo desapropriado procurarperceber que a ideia de um perfil dese-jável de competências (presente nos textoscurriculares portugueses), pretensamentecapaz de assegurar e de acompanhar asmudanças em curso no mundo, se encon-tre na figura de um projecto de perfilcultural, desejável e sobretudo justificati-vo da promessa da Escola. Se não podemser vistos como actos cumpridos, projectoe progresso são hoje, no entanto, oscumprimentos da função social da educa-ção escolar, grata que parece estar àcompetência que a liberta da passividadee que a coloca frente a todo o dinamismo– educar já não precisará mais então dejustificar o Vazio.

_______________44 Perseguindo o optimismo do aperfeiçoamento

global da humanidade, considera-se que o sentidomoderno do dever, o “bom senso” que para Descartesseria “a coisa do mundo melhor partilhada”, preco-niza a necessidade, obrigatoriamente afecta ao sujei-to, de um conhecimento profundo e puro das suasobrigações, pois será deste modo que a justiça e ahonestidade o poderão libertar de toda airracionalidade. É nesta medida que Lipovetsky re-fere que, no quadro da Modernidade, “(...) não sepode separar a religião do dever da confiança (…)na educação e na perfectibilidade infinita do génerohumano, da fé na difusão das Luzes e no progressomoral da humanidade. (...), é inculcando os princípiosjustos de uma moral humana e social que as condutasmais indignas se deterão em benefício de umahumanidade mais dedicada, mais sã, mais laboriosa.”(Lipovetsky, Gilles (1994). O Crepúsculo do Dever.Lisboa: Publicações Dom Quixote, p. 43).

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