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CULTURA E DESENVOLVIMENTO Reflexões à luz de Furtado cultura e desenvolvimento César Ricardo Siqueira Bolaño (Org.)

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Este livro é o resultado final de uma iniciativa fundamental da Secretaria da Economia Criativa do Ministério da Cultura do Brasil, que tenho o orgulho de haver liderado ao longo de um ano, entre 2012 e 2013: os Colóquios Celso Furtado de Cultura e Desenvolvimento. O objetivo dos colóquios, claramente definido pela secretária à época, Claudia Leitão, foi contribuir para a promoção de um debate nacional sobre Cultura e Desenvolvimento, visando construir um campo de reflexão em torno da economia política da cultura, tendo em vista a necessidade de incluir o tema na agenda do desenvolvimento brasileiro, não simplesmente no que se refere às inegáveis potencialidades da cultura em termos de geração de emprego e renda, mas principalmente à democratização da produção e acesso aos bens simbólicos no território nacional, abrindo os canais para a expansão da criatividade, tal como propunha Celso Furtado, já nos anos 1980, preocupado em incitar a sociedade a assumir a iniciativa no plano da criação cultural e dos valores. A adoção do seu nome para os colóquios respondia a uma necessidade fundamental da secretaria de buscar uma definição do problemático conceito de economia criativa que, afastando-o das perspectivas originais, inglesas ou australianas, lhe conferisse um significado adequado às exigências atuais, de ordem estrutural, da economia brasileira e às melhores tradições do pensamento crítico brasileiro. De fato, a economia sempre foi, para Furtado um meio para atingir o objetivo maior do “verdadeiro desenvolvimento”, que supõe a construção da autonomia cultural, condição essencial para a superação do atraso.

O organizador, César Ricardo Siqueira Bolaño, formado em Jornalismo pela Universidade de São Paulo, é mestre e doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas e professor da Universidade Federal de Sergipe. Fundador do campo da Economia Política da Comunicação e da Cultura no Brasil, tem vários trabalhos na área, entre os quais: Mercado brasileiro de televisão, cuja primeira edição é de 1988, Indústria cultural, informação e capitalismo, de 2000, baseado na tese de 1993, e recentemente publicou, pela EDUFBA (2015), um estudo sobre O conceito de cultura em Furtado, fruto de uma pesquisa apoiada pelo programa Cátedras IPEA-CAPES para o Desenvolvimento, visando retomar a obra daquele que foi o grande nome da Economia Política brasileira e latino-americana e desenvolver um elaborado conceito de cultura. Entre 2012 e 2013, César Bolaño coordenou os Colóquios Celso Furtado de Cultura e Desenvolvimento, a partir dos quais se organizou o presente volume. Mais informações no CV Lattes do autor e no portal www.eptic.com.br.

Este livro representa uma parte do material apresentado nos Colóquios Celso Furtado de Cultura e Desenvolvimento, organizados entre 2012 e 2013 nas cinco regiões do Brasil, pela Secretaria da Economia Criativa do Ministério da Cultura, coordenados por César Bolaño, a convite da secretária Claudia Leitão, com o objetivo de procurar uma definição para as ações da secretaria em consonância com as melhores tradições do pensamento brasileiro. Este livro se dirige a alunos e professores das diferentes ciências sociais, aos produtores e gestores culturais, artistas e ao público em geral, interessados no debate de temas tão relevantes para a sociedade brasileira, como as relações entre cultura e desenvolvimento, as políticas culturais e de comunicação como políticas públicas, as questões relativas à diversidade das expressões artísticas, entre outras.

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PresidentaDilma Vana Rousseff

Ministro da CulturaJuca Ferreira

Secretário-ExecutivoJoão Brant

Secretário de Políticas CulturaisGuilherme Varella

Diretora de Empreendedorismo, Gestão e InovaçãoGeorgia Haddad Nicolau

universidade federal da bahia

Reitor Joao Carlos Salles Pires da Silva

Vice Reitor Paulo Cesar Miguez de Oliveira

Assessor do Reitor Paulo Costa Lima

editora da universidade federal da bahia

Diretora Flávia Goulart Mota Garcia Rosa

Conselho Editorial Alberto Brum Novaes Angelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Ninõ El-Hani Cleise Furtado Mendes Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti Evelina de Carvalho Sá Hoisel José Teixeira Cavalcante Filho Maria Vidal de Negreiros Camargo

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2015, autores. Direitos para esta edição cedidos à EDUFBA. Feito depósito legal.

Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1991, em vigor no Brasil desde 2009.

Capa, projeto gráfico e editoração Rafa Moo

Normalização Mariclei dos Santos Horta

Revisão Eduardo Ross

Sistema de Bibliotecas - UFBA

Editora filiada à

Editora da UFBARua Barão de Jeremoabo, s/n – Campus de Ondina40170-115 – Salvador – BahiaTel.: +55 71 3283-6164Fax: +55 71 [email protected]

C968 Cultura e desenvolvimento: reflexões à luz de Furtado / César Ricardo Siqueira Bolaño (Organizador) - Salvador; Brasília : EDUFBA, 2015.

184 p.

ISBN 978-85-232-1383-1

1. Furtado, Celso 1920-2004. 2. Brasil - Política cultural. 3. Brasil – Política econômica. I. Bolaño, Celso. II. Minstério da Cultura. III. Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento

CDD 338.9 CDU 330.34:351.85

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AgrAdecimentos

Este livro é fruto de mais de dois anos de trabalho, relativos à orga-nização dos Colóquios Celso Furtado, propostos pela então titular da Secretaria de Economia Criativa do Ministério da Cultura (SEC/MinC), a Dra. Claudia Leitão, a quem devo agradecer em primeiro lugar e a toda a sua equipe. Não posso citar o nome de todos, mas devo referir-me a duas pessoas que acompanharam mais de perto o meu trabalho: Mércia Aquino e Luiz Antônio Gouveia. Este último teve ainda uma participação fundamental no apoio à publicação após a saída de Claudia do Minc. Agradeço também a Paulo Mi-guez, que participou do projeto e fez a intermediação com a Edi-tora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA). Além do MinC e da UFBa, devo agradecer também às instituições que ajudaram a viabilizar os colóquios: o Itaú Cultural e o Centro Internacional Celso Furtado para o Desenvolvimento (CICEF). Agradeço ainda a todos os participantes dos colóquios, a todos os envolvidos na sua organização em nível local, pessoas e instituições, nas cinco regiões do Brasil, e aos companheiros do Departamento de Economia da Universidade Federal de Sergipe.

Este livro é dedicado a três intelectuais latino-americanos faleci-dos no período de realização dos Colóquios Celso Furtado: Valério Cruz Brittos, grande parceiro na construção da Economia Política

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da Comunicação e da Cultura, figura de primeiro plano no cam- po da Comunicação no Brasil; Octávio Getino, cineasta e intelectual argentino, pioneiro no estudo da Economia da Cultura; Juan Díaz Bordenave, paraguaio, fundador da área de Comunicação e Desen-volvimento na América Latina.

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Prefácioum olhar oBjetivo soBre a cultura

Antes de se transformar em memória, a cultura é capaz de revelar aspectos fundamentais da contemporaneidade. E é extremamente necessário compreender a dinâmica de suas manifestações – que geram trabalho, emprego, renda, inclusão – para pensar em pro-gresso efetivo nos setores econômico e social do país.

O levantamento de indicadores e a promoção de debates ligados ao atual cenário cultural, portanto, são etapas essenciais para o pro-cesso de elaboração de políticas para a área. É só por meio da análi-se de dados precisos sobre a acessibilidade, os mecanismos de pro-dução, a demanda e o consumo de bens culturais, por exemplo, que podemos chegar a conclusões acerca da realidade socioeconômica em que vivemos – e daquela em que gostaríamos de viver.

Daí a relevância de iniciativas como os Colóquios Celso Furtado sobre Cultura e Desenvolvimento – que realizaram cinco encon-tros, um em cada região do país, e deram origem às reflexões reu-nidas neste livro.

Um dos apoiadores do evento, o Itaú Cultural visa colaborar para a evolução desse campo com o Observatório Itaú Cultural, que esti-mula e difunde o debate e a reflexão sobre políticas públicas para o universo da cultura, com foco nos âmbitos da gestão e da economia

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culturais. Criado em 2006, o projeto organiza seminários com es-pecialistas internacionais, coordena e dá suporte a pesquisas e pu-blica a Revista Observatório, cujo conteúdo é disponibilizado gratui-tamente na internet.

Por mais que seja sustentada em grande medida pela subjetivida-de, a cultura também deve ser encarada de maneira objetiva, preci-sa, como um objeto de estudo – ainda que multifacetado e em cons-tante transformação – possível de ser apreendido. E aperfeiçoado.

Eduardo SaronDiretor superintendente do Itaú Cultural

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APresentAção

Em 1984, em Belo Horizonte, durante o Encontro Nacional de Se-cretários de Cultura, disse o então Ministro da Cultura Celso Furta-do: “Sou da opinião de que a reflexão sobre a cultura brasileira deve ser ponto de partida para o debate sobre as opções do desenvolvi-mento”. Trinta anos depois, a observação de Furtado continua opor-tuna, afinal, nossos modelos de desenvolvimento ainda teimam em se dissociar dos nossos imaginários, das nossas tecnologias sociais, dos nossos modos de ser e de viver.

Embora tenho tido uma passagem de somente dois anos no Mi-nistério da Cultura, Celso Furtado produziu um pensamento signi-ficativo e ainda hoje impactante para as políticas públicas de cultura. Diferentemente da mentalidade de muitos economistas que, no afã de medir e mensurar, desprezaram o contexto e a transversalidade dos conhecimentos ( e por isso empobreceram a Ciência Econômi-ca), Furtado dialogou ao longo de sua vida com as Ciências Sociais, a Filosofia, as Artes e a Cultura para construir sua visão acerca do desenvolvimento brasileiro. Ressalto aqui sua relação pessoal e in-telectual com Amartya Sen, em Cambridge, nos anos 50, que o fa-ria perceber o anacronismo de uma ciência econômica pura, assim como a relação intrínseca entre o desenvolvimento e a ampliação das liberdades humanas.

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No seu livro Criatividade e Dependência nas Sociedades Industriais Furtado afirma que o objetivo da política cultural deve ser o da libe-ração das forças criativas da sociedade. Liberdade de criar é, portan-to, da essência do conceito de desenvolvimento e insumo para a transformação social. Furtado vai ainda mais longe quando traz para o seu projeto de desenvolvimento a retomada da atividade artís-tica como “ promessa de felicidade”, da construção de novas ativida-des políticas, de novas relações de gênero, inclusive de uma nova ecologia! É quase profética sua observação sobre as ameaças ao pro-jeto moderno do desenvolvimento brasileiro na segunda metade do século 20: a concentração de renda e de riqueza, a sonegação dos direitos sociais, a precarização do mundo do trabalho e a subalter-nidade da inserção nacional.

Por outro lado, Furtado enfatiza o perigo do deslocamento da ló-gica dos fins (voltada ao bem-estar, à liberdade e à solidariedade) para a lógica dos meios (ao serviço da acumulação capitalista). A ló-gica dos meios, adverte Furtado, trará grandes impactos às liberda-des criativas, aos recursos naturais, enfim, à própria humanidade dos indivíduos. Ao refletir sobre a crise de valores, em um mundo estruturado a partir de uma razão instrumental pragmática e utili-tária, toma as ideias de liberdade e criatividade como antídotos ca-pazes de enfrentar a “fetichização” do homem. E vai além, quando afirma que a grande atividade criadora do homem é a política, que deve rejeitar as formas de vida desumanas propostas pela civiliza-ção industrial, cuja grande característica é o apelo ao consumo. São palavras dele: “a luta pela redução das desigualdades conduziu ape-nas a formas mais diversificadas de consumo”.

A Secretaria Nacional da Economia Criativa nasce sob o pensa-mento de Furtado e traz em sua Missão os desafios levantados por ele: “Todos os povos lutam para ter acesso ao patrimônio cultural comum da humanidade, que se enriquece permanentemente. Res-ta saber quais serão os povos que continuarão a contribuir para esse enriquecimento e quais aqueles que serão relegados ao papel

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passivo de simples consumidores de bens culturais adquiridos nos mercados. Ter ou não ter direito à criatividade. Eis a questão”. O pen-samento de Furtado oferece conteúdo político à expressão “criativi-dade”, confortando os processos de institucionalização da SEC e sua tarefa de liderar a formulação de políticas para a economia da cul-tura. Essas políticas são estratégicas em um contexto em que as sociedades industriais vivem uma espécie de “frenesi” criativo, pois nunca se falou tanto em “inovação” como nos dias de hoje, lamen-tavelmente quase sempre na perspectiva da subordinação da lógica dos fins a dos meios! Todos sabemos que esta subordinação atra-vessa vários domínios, atingindo os campos científico, tecnológico, artístico e cultural.

Por isso, saúdo a publicação dos Colóquios Celso Furtado, que representam, de um lado, uma justa homenagem à contribuição original do ex-Ministro da Cultura para o pensamento cultural bra-sileiro, e de outro, o registro competente das reflexões e diálogos havidos durante 2012 e 2013 entre Governo, Universidade e Socie-dade, com o objetivo de se retomar um amplo e profícuo debate entre cultura e desenvolvimento. Enfim, sem políticas públicas vol-tadas aos estudos e pesquisas do campo cultural, o Brasil não pode-rá avançar na construção de um projeto de desenvolvimento em que os brasileiros se reconheçam. Essa é a minha utopia, em tem-pos de exaustão de utopias.

Cláudia LeitãoProfa. Dra. Universidade Estadual do CearáEx-Secretária Nacional da Economia Criativa, Ministério da Cultura

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sumário

introdução | 15César Ricardo Siqueira Bolaño

atualidade da política cultural de celso furtado: a propósito do depoimento à assembleia constituinte | 19César Ricardo Siqueira Bolaño

criatividade, inovação, cultura e desenvolvimento: uma contribuição ao debate | 39Elisabeth Regina Loiola da Cruz e Paulo Cesar Miguez de Oliveira

(sub)desenvolvimento, diversidade cultural, criatividade e o desenvolvimento local/regional no brasil | 67Carlos Antonio Brandão

o capitalismo imaterial: os novos papéis da cultura, da informação e do conhecimento | 93Alain Herscovici

criatividade como liberdade: a relação entre cultura e desenvolvimento em celso furtado | 115 Bárbara Freitas Paglioto e Alexandre Mendes Cunha

economia política da música e trabalho cultural: contribuições de estudos exploratórios | 135Verlane Aragão Santos

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cultura, criatividade e desenvolvimento sob um olhar furtadiano | 159Jair do Amaral Filho

sobre os autores | 181

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introdução

Este livro é o resultado final de uma iniciativa fundamental da Se-cretaria da Economia Criativa do Ministério da Cultura do Brasil, que tenho o orgulho de haver liderado, ao longo de um ano, entre 2012 e 2013: os Colóquios Celso Furtado de Cultura e Desenvolvimen-to. O objetivo dos colóquios, claramente definido pela secretária à época, Claudia Leitão, foi contribuir para a promoção de um debate nacional sobre Cultura e Desenvolvimento, visando construir um campo de reflexão em torno da economia política da cultura, tendo em vista a necessidade de incluir o tema na agenda do desenvolvi-mento brasileiro, não simplesmente no que se refere às inegáveis potencialidades da cultura em termos de geração de emprego e ren-da, mas principalmente à democratização da produção e acesso aos bens simbólicos no território nacional, abrindo os canais para a expansão da criatividade, tal como propunha Celso Furtado, já nos anos 1980, preocupado em incitar a sociedade a assumir a iniciati-va no plano da criação cultural e dos valores.

A adoção do seu nome para os colóquios respondia a uma ne-cessidade fundamental da secretaria, de buscar uma definição do problemático conceito de economia criativa que, afastando-o das perspectivas originais, inglesas ou australianas, lhe conferisse um significado adequado às exigências atuais, de ordem estrutural, da

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economia brasileira e às melhores tradições do pensamento crítico brasileiro. De fato, a economia sempre foi, para Furtado, meio para atingir o objetivo maior do “verdadeiro desenvolvimento”, que supõe a construção da autonomia cultural, condição essencial para a superação do atraso. O que se perseguirá, em última instân-cia, é a substituição da lógica dos meios, da acumulação e do valor pela lógica dos fins e dos valores fundamentais, da identidade na-cional e das diversas identidades que a compõem.

E assim foi a sua atuação à frente do Ministério da Cultura, quan-do criou, por exemplo, num país recém-saído do dirigismo estatal próprio do período autoritário, uma lei de incentivo à cultura via isenção fiscal cujo objetivo não era outro senão abrir as comportas de criatividade, colocando, por usar a distinção braudeliana, o mer-cado a serviço da cultura, e não a cultura a serviço do capital, como viria a ocorrer logo em seguida, quando, precisamente ao contrário do que defendia o grande economista, instaura-se o economicis-mo, condensado na máxima: “a cultura é um bom negócio”. O go-verno Lula foi marcado por um inquestionável avanço na democra-tização da cultura e inclusive no empenho em quantificar o setor, que esperamos que se consolide em breve com a construção, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de uma con-ta-satélite, fundamental para se entender a economia da cultura e fundamentar as políticas públicas setoriais, entendendo a política cultural como eixo estruturante das políticas de desenvolvimento.

Esse é o desafio assumido pelo Plano Brasil Criativo, do Ministé-rio da Cultura do governo Dilma Roussef, ao qual se vincularam os colóquios: pensar não meramente a Economia da Cultura, entendi-da, nos termos de uma ciência positiva, destacada da totalidade das relações sociais, mas nos da Economia Política da Cultura em todas as suas dimensões, o que requer explicitar as contradições que es-tão na base das assimetrias ligadas ao conjunto dos processos de produção, distribuição-circulação-difusão e consumo-fruição dos bens culturais e atuar sobre elas. Não se trata de adaptar ao país

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conceitos e linhas de ação pensadas em outras latitudes. O Plano é bastante claro a esse respeito, ao afirmar que

[...] a Economia Criativa Brasileira somente seria desenvol-vida de modo consistente e adequado à realidade nacional se incorporasse na sua conceituação, a compreensão da im- portância da diversidade cultural do país, a percepção da sus-tentabilidade como fator de desenvolvimento local e regio-nal, a inovação como vetor de desenvolvimento da cultura e das expressões de vanguarda e, por último, a inclusão pro-dutiva como base de uma economia cooperativa e solidária. (BRASIL, 2012)1

Aí estão os quatro princípios norteadores do Plano e foram eles também que nortearam a organização dos colóquios. Não se trata meramente de pensar as possibilidades de geração de emprego e renda através de empreendimentos culturais, ainda que esta seja uma dimensão que um país como o Brasil não pode dar-se ao luxo de menosprezar. Neste sentido, é fundamental priorizar “aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade social, por meio da formação e qualificação profissional e da geração de oportunida-des de trabalho e renda”, (BRASIL, 2012) o que terá, por si mesmo, rebatimentos sobre o plano da cidadania. Mas o objetivo é muito maior e vincula-se justamente à construção daquelas condições de autonomia cultural, base do verdadeiro desenvolvimento defendi-do por Furtado.

Os Colóquios Celso Furtado sobre Cultura e Desenvolvimento tive-ram por objetivo justamente retomar o debate em torno do projeto nacional de desenvolvimento, tendo por base a centralidade da cul-tura. Pressupõe-se que, nas negociações internacionais em torno de um novo desenho estratégico para enfrentar, seja a crise financeira, seja a ambiental, o Brasil tem duas contribuições a dar – e que repre-sentam, por outro lado, vantagens, mas também responsabilidades

1 Brasil. Plano Brasil Criativo. Brasília: ministério da cultura, 2012.

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– relacionadas à abundância de seus recursos naturais e à força da sua cultura. Natureza e cultura, cuja materialidade intrínseca – ao contrário do que poderiam pensar os iludidos – se opõe ao mundo virtual do capital fictício e da riqueza abstrata.

César Ricardo Siqueira Bolaño

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césar ricardo siqueira Bolaño

AtuAlidAde dA PolíticA culturAl de celso furtAdoA propósito do depoimento à Assembleia Constituinte

Este livro é o resultado final de uma iniciativa fundamental da Se-cretaria da Economia Criativa do Ministério da Cultura do Brasil, que tenho o orgulho de haver liderado, ao longo de um ano, en-tre 2012 e 2013: os Colóquios Celso Furtado de Cultura e Desenvol-vimento. O objetivo dos colóquios, claramente definido pela secre-tária Claudia Leitão, foi contribuir para a promoção de um debate nacional sobre Cultura e Desenvolvimento, visando construir um campo de reflexão em torno da Economia Política da Cultura, tendo em vista a necessidade de incluir o tema na agenda do desenvolvi-mento brasileiro, não simplesmente no que se refere às inegáveis potencialidades da cultura em termos de geração de emprego e ren-da, mas principalmente à democratização da produção e acesso aos bens simbólicos no território nacional, abrindo os canais para a expansão da criatividade, tal como propunha Celso Furtado, já nos anos 1980, preocupado em incitar a sociedade a assumir a iniciati-va no plano da criação cultural e dos valores.

A adoção do seu nome para os colóquios respondia a uma ne-cessidade fundamental da secretaria, de buscar uma definição do

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problemático conceito de Economia Criativa que, afastando-o das perspectivas originais, inglesas ou australianas, lhe conferisse um significado adequado às exigências atuais, de ordem estrutural, da economia brasileira e às melhores tradições do pensamento crítico brasileiro. De fato, a economia sempre foi, para Furtado, meio para atingir o objetivo maior do “verdadeiro desenvolvimento”, que su-põe a construção da autonomia cultural, condição essencial para a superação do atraso. O que se perseguirá, em última instância, é a substituição da lógica dos meios, da acumulação e do valor, pela ló-gica dos fins e dos valores fundamentais, da identidade nacional e das diversas identidades que a compõem.

E assim foi a sua atuação à frente do Ministério da Cultura, quan-do criou, por exemplo, num país recém-saído do dirigismo estatal próprio do período autoritário, uma lei de incentivo à cultura via isenção fiscal cujo objetivo não era outro senão abrir as comportas de criatividade, colocando, por usar a distinção braudeliana, o mer-cado a serviço da cultura, e não a cultura a serviço do capital, como viria a ocorrer logo em seguida, quando, precisamente ao contrário do que defendia o grande economista, instaura-se o economicis-mo, condensado na máxima: “a cultura é um bom negócio”. O go-verno Lula foi marcado por um inquestionável avanço na democra-tização da cultura e inclusive no empenho em quantificar o setor, que esperamos que se consolide em breve com a construção, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de uma con-ta-satélite, fundamental para se entender a Economia da Cultura e fundamentar as políticas públicas setoriais, entendendo a política cultural como eixo estruturante das políticas de desenvolvimento.

Esse é o desafio assumido pelo Plano Brasil Criativo, do Ministé-rio da Cultura do governo Dilma Rousseff, ao qual se vincularam os colóquios: pensar não meramente a Economia da Cultura, entendi-da, nos termos de uma ciência positiva, destacada da totalidade das relações sociais, mas nos da Economia Política da Cultura em todas as suas dimensões, o que requer explicitar as contradições que estão

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na base das assimetrias ligadas ao conjunto dos processos de pro-dução, distribuição-circulação-difusão e consumo-fruição dos bens culturais e atuar sobre elas. Não se trata de adaptar ao país concei-tos e linhas de ação pensadas em outras latitudes. O Plano é bastan-te claro a esse respeito, ao afirmar que

[...] a Economia Criativa Brasileira somente seria desenvol-vida de modo consistente e adequado à realidade nacional se incorporasse na sua conceituação, a compreensão da importância da diversidade cultural do país, a percepção da sustentabilidade como fator de desenvolvimento local e regional, a inovação como vetor de desenvolvimento da cultura e das expressões de vanguarda e, por último, a in-clusão produtiva como base de uma economia cooperativa e solidária. (BRASIL, 2012)

Aí estão os quatro princípios norteadores do Plano e foram eles também que nortearam a organização dos colóquios. Não se trata meramente de pensar as possibilidades de geração de emprego e renda através de empreendimentos culturais, ainda que esta seja uma dimensão que um país como o Brasil não pode dar-se ao luxo de menosprezar. Neste sentido, é fundamental priorizar “aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade social, por meio da formação e qualificação profissional e da geração de oportunida-des de trabalho e renda”, (BRASIL, 2012) o que terá, por si mesmo, rebatimentos sobre o plano da cidadania. Mas o objetivo é muito maior e vincula-se justamente à construção daquelas condições de autonomia cultural, base do verdadeiro desenvolvimento defendi-do por Furtado.

Os Colóquios Celso Furtado sobre Cultura e Desenvolvimento tive-ram por objetivo justamente retomar o debate em torno do projeto nacional de desenvolvimento, tendo por base a centralidade da cul-tura. Pressupõe-se que, nas negociações internacionais em torno de um novo desenho estratégico para enfrentar, seja a crise financeira,

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seja a ambiental, o Brasil tem duas contribuições a dar – e que re-presentam, por outro lado, vantagens, mas também responsabili-dades – relacionadas à abundância de seus recursos naturais e à força da sua cultura. Natureza e cultura, cuja materialidade intrín-seca – ao contrário do que poderiam pensar os iludidos – se opõe ao mundo virtual do capital fictício e da riqueza abstrata.

Já tive a oportunidade de estudar o conceito de cultura em Furta-do, analisando parte significativa da sua obra. (BOLAÑO, 2013) No que segue, tratarei de retomar um pouco dessa análise, enfocando, no seu interior, os fundamentos da sua política cultural. Para tanto, concentrar-me-ei basicamente no seu Depoimento à Assembleia Na-cional Constituinte, de 12 de maio de 1987. Trata-se de uma peça de ourivesaria, uma preciosidade, não só pelo seu valor histórico, mas também porque logra condensar de forma lapidar, em tão poucas páginas, parte significativa de uma concepção extremamente com-plexa da Cultura, presente, de forma nem sempre explícita, ao lon-go de toda a sua vasta obra.

Embora poucos tivessem isto em mente àquela altura, e mesmo hoje, causando, por vezes, espanto a sua indicação para a pasta da Cultura durante parte do governo Sarney – ele que foi um dos pais da Economia Política brasileira –, a contribuição de Furtado para a compreensão da questão cultural é fruto de uma preocupação anti-ga e de sólidos conhecimentos em Antropologia e nas Ciências So-ciais em geral, desde as primeiras leituras de Gilberto Freyre, ainda na adolescência, de quem aprendeu, como diria a certa altura, o mé-todo, não o conteúdo. (FURTADO, 1998, p. 9) Pode-se notar a im-portância da Cultura nos trabalhos de Furtado desde, pelo menos, Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. (FURTADO, 2009) Mas ao longo dos anos 1970, em livros como Desenvolvimento econômico, um mito,(FURTADO, 1974) ou Dependência e Criatividade na Civili-zação Industrial,(FURTADO, 1978) ou ainda no Prefácio a Nova Eco-nomia Política,(FURTADO, 1977) a questão cultural será tomada

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como objeto específico de análise, como elemento fulcral da sua preocupação com a construção de uma Ciência Social unificada.

Assim, do que se apresentava de início como certo culturalismo da sua Economia Política – que influenciaria de forma indelével os economistas brasileiros e latino-americanos –, surgia agora uma verdadeira Economia Política da Cultura no sentido mais amplo da expressão. Nos anos 1980, quando é chamado a comandar o Minis-tério da Cultura, essa obra estava pronta, constituindo a base inte-lectual do seu engajamento no processo de redemocratização, na Comissão Afonso Arinos e na Constituinte. De impressionante atualidade, após um quarto de século, o Depoimento é fruto dessa história e desse momento. O que impressiona não é, portanto, a desenvoltura com que trata do problema da cultura, mas a capaci-dade de síntese de um pensamento tão elaborado sobre o tema, construído ao longo de décadas.

O Depoimento encontra-se em vias de publicação nos Cadernos do Desenvolvimento, do Centro Internacional Celso Furtado para o De-senvolvimento (CICEF). A segunda parte deste texto é uma amplia-ção da breve apresentação que produzi para o texto, a convite dos editores. Apresento uma série de citações do mesmo, que poderão ser conferidas nas páginas dos Cadernos (número 12, janeiro a ju-nho de 2014). Antes de entrar na análise do texto, traço breves con-siderações sobre o conceito de cultura de Furtado, que analisei am-plamente em Bolaño (2013).1

1 resultado de pesquisa apoiada pelo programa cátedras do desenvolvimento instituto de Pesquisa econômica aplicada (iPea)/coordenação de aperfeiçoamento de Pessoal de nível superior (caPes). ver também, sobre o tema, a coletânea organizada por rosa aguiar Furtado (2013) que, ao lado deste livro e daquele, organizado pela mesma rosa, reunindo uma série de textos de Furtado (2012), constitui um esforço importante de retomada do debate em torno do conceito de cultura de Furtado, de extrema atualidade.

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Considerações gerais sobre o conceito de cultura em Furtado

No seu Prefácio a Nova Economia Política, Furtado defende a neces-sidade da construção coletiva de uma Ciência Social total, para a qual fornece, nesse trabalho e em toda a sua extensa obra, elemen-tos fundamentais. Assim, ao discutir as “duas formas básicas de apropriação do excedente” (autoritária e mercantil), cada uma delas correspondendo historicamente a um tipo de “formação sócio-po-lítica” (imperial e urbano-mercantil), sendo os “protótipos exem-plares”, respectivamente, o império faraônico e as cidades fenícias, afirma que

[...] a integração das duas formas referidas em um sistema de cultura parece haver sido ensaiada nessa aventura his-tórica sem par que foi a Grécia clássica. Algo semelhante ocorrerá na Europa ocidental a partir de começos do segun-do milênio. Com efeito, o fracasso da tentativa de reconstru-ção imperial carolíngia frustrou uma evolução no sentido de reconstrução da formação sócio-política imperial e abriu espaço ao desenvolvimento de formações urbano-mercan-tis, com considerável autonomia, que desempenhariam pa-pel considerável na transformação do excedente apropriado por via autoritária (renda da terra, dízimos, impostos) no quadro do feudalismo. (FURTADO, 1977, p. 35)

A existência dessas formações urbano-mercantis terá uma dupla consequência. De um lado, “graças ao desenvolvimento das ativida-des urbanas, diversificou-se consideravelmente a oferta de bens nas zonas rurais”, (FURTADO, 1977, p. 35) com impacto positivo sobre a produtividade no campo, onde se produzia o grosso do ex-cedente, por via autoritária.

Por outro lado, a margem de manobra de que gozaram os patriciados urbanos, matrizes das futuras burguesias,

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permitiu-lhes assumir crescente autonomia cultural, que servirá de barreira ao avanço da forma autoritária de apro-priação do excedente na fase subsequente de liquidação do feudalismo. O estado-nação na Europa moderna será bem mais do que um compromisso entre dois sistemas de do-minação. Em sua base existe uma efetiva integração de dois sistemas de cultura. (FURTADO, 1977, p. 35-6)

A autonomia cultural é, portanto, ao lado da ampliação do exce-dente, condição básica para a supressão do feudalismo e a constru-ção do Estado nacional, sob a base da referida integração cultural. É o sistema global de cultura, assim constituído, o elemento deter-minante das formas institucionais sobre as quais se desenvolve- rão as relações de produção e apropriação no período posterior, de construção da hegemonia burguesa. Da mesma forma, são deter-minações de ordem cultural, decorrentes das particularidades de cada formação histórica, que explicam a situação específica das eco-nomias desenvolvidas e subdesenvolvidas e sua integração no sis-tema global.

A cultura é determinante na gênese dos processos e das institui-ções econômicas e políticas. No caso brasileiro, por exemplo, a for-mação cultural do nosso povo é marcada por uma assimetria fun-damental, tendo em vista que o elemento português não apenas partira de uma importante superioridade técnica, mas, sobretudo, durante todo o período colonial, foi o único que “continuou a ali-mentar-se de suas fontes culturais européias”. Enquanto isso, “os aborígenes e os africanos haviam sido isolados de suas matrizes culturais respectivas e, ao serem posteriormente privados das pró-prias línguas, perdiam o senso da identidade cultural.” (FURTA-DO, 1984, p. 20)

A Europa da Revolução Industrial, ao promover um brutal au-mento da produtividade do trabalho, intensifica a acumulação e aumenta o nível e a diversificação do consumo, ao mesmo tempo em que a nova divisão internacional do trabalho permite a um país

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especializado em produção agrícola para exportação “acesso à mo-derna tecnologia sob a forma de produtos de consumo, sem ter que investir para elevar a produtividade física do trabalho.” (FURTA-DO, 1984, p. 22) A assimetria cultural da sociedade brasileira, numa situação de expansão da demanda internacional que garantia “vantagens comparativas estáticas criadas pela especialização”, fa-cilitava a importação de bens sofisticados por parte de uma elite cada vez mais identificada com os valores externos.

Esse comportamento imitativo, decorrente da adesão à “moder-nização dependente” – que terá como corolário a redução da cultu-ra do povo brasileiro a “uma referência negativa, símbolo do atraso, atribuindo-se significado nulo à sua herança cultural não européia e recusando-se valia à sua criatividade artística” (FURTADO, 1984, p. 23) –, se traduzirá, no nosso desenvolvimento, na incorporação do progresso técnico via consumo das elites, sem modificar os pro-cessos produtivos internos visando satisfazer as necessidades das grandes massas da população nacional.

Este é o sentido do conceito de dependência cultural em Furtado. Trata-se de uma relação de subordinação que, uma vez instalada, tende a perpetuar-se porque está inscrita na tecnologia e no con-junto dos processos econômicos e sociais, nos estilos de vida e pa-drões de cultura impostos pelas necessidades dos processos de acu-mulação de capital e de dominação. A hegemonia se define, assim, essencialmente no plano da cultura e dos valores, embora o sentido último de todo o processo seja a acumulação e a reprodução das relações de poder econômico e político.

Vivemos um momento de grandes mudanças no capitalismo em nível mundial, iniciadas com a crise estrutural dos anos 1970. O problema deve ser entendido como um fenômeno social total, em que economia, política e cultura não se separam. Antes, for-mam um conjunto, no interior do qual, por certo, a acumulação de riqueza e de poder é determinante, mas que não se estabiliza se-quer enquanto sistema de dominação econômica ou política sem

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a consolidação de uma cultura adequada. É a cultura, afinal das contas, que garantirá maior ou menor perenidade ao padrão de de-senvolvimento.

O modelo atual de organização do capitalismo foi-se implantan-do, desde a ruptura dos acordos de Bretton Woods, numa espiral ascendente de endividamento, instabilidade, crise, insegurança, em que o capital financeiro se descola da produção e a submete a uma lógica potencialmente catastrófica, à qual se deve agregar o fato de que o modelo fossilista de exploração dos recursos naturais do planeta se aproxima dos seus limites.

Enquanto isso, com a retomada, a partir dos anos 1980, da hege-monia dos Estados Unidos da América também no campo indus-trial – com a implantação, por exemplo, das infraestruturas globais da informação, com o avanço dos sistemas de propriedade intelec-tual, das biotecnologias, a privatização das telecomunicações, ou a globalização de Hollywood –, o novo entorno cultural levará a um renovado culto à “inovação” e à “criatividade”, por trás do qual po-dem-se notar óbvios interesses: direitos de propriedade intelectual, expansão da cultura digital a serviço dos oligopólios que dominam os diferentes setores da comunicação, das telecomunicações, da in-formática.

Aqui podemos voltar a Furtado. A inovação e a criatividade são definidas pelo autor como atributo de certos agentes capazes de impor a sua vontade aos demais e, com isso, promover uma “rup-tura no plano da racionalidade”:

A ruptura no plano da racionalidade ocorre quando o agen-te está capacitado para modificar o meio em que atua, apre-sentando no seu comportamento um fator volitivo criador de novo contexto. O campo do possível amplia-se e a racio-nalidade passa a requerer uma visão mais abrangente da re-alidade. Assumindo a criatividade, o agente impõe a própria vontade, consciente ou inconscientemente, àqueles que são

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atingidos em seus interesses pelas decisões que ele toma. Implícito na criatividade existe, portanto, um elemento de poder. O comportamento do agente que não exerce poder é simplesmente adaptativo. (FURTADO, 1978, p. 17)

O exercício da criatividade, portanto, envolve poder. Assim, a vantagem do capitalismo, desde a sua origem, é que, nesse siste-ma, o excedente passa a ser utilizado para a acumulação (e não apenas para a guerra ou o consumo deletério). Podemos dizer que, já então, a cultura (lógica dos fins) se subordina à economia (lógica dos meios), criando aquele automatismo irresistível da destruição criadora. Em todo caso, o que cabe ressaltar é que, para Furtado, a luta de classes é determinante da dinâmica global do sistema, as-sentada em dois impulsos contraditórios: o da acumulação (con-centração, inovação) e o da melhoria das condições de vida da popu-lação (difusão).

A especificidade cultural da revolução burguesa é que as ener-gias criadoras são “progressivamente canalizadas e postas ao servi-ço do desenvolvimento das forças produtivas”:

A história da civilização industrial pode ser lida como uma crônica do avanço da técnica, ou seja, da progressiva subor-dinação de todas as formas de atividade criadora à racionali-dade instrumental. Assim, a pesquisa científica foi progres-sivamente posta a serviço da invenção técnica, que por seu lado está a serviço da busca de maior eficiência do trabalho humano e da diversificação dos padrões de consumo. [...] Mas, na medida em que se transforma em atividade ancilar da técnica, reduz-se o seu escopo como experiência funda-mental humana. Algo similar ocorreu com a criatividade ar-tística, progressivamente colocada a serviço do processo de diversificação do consumo. (FURTADO, 1978, p. 83)

Segundo o autor, “cumpre-nos pensar em desenvolvimento a partir de uma visualização dos fins substantivos que desejamos

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alcançar, e não da lógica dos meios que nos é imposta do exterior.” (FURTADO, 1984, p. 30) Assim, “o debate sobre as opções do de-senvolvimento exige hoje uma reflexão prévia sobre cultura brasi-leira”, em que a questão essencial é:

Como preservar o gênio inventivo de nossa cultura em face da necessidade de assimilar técnicas que, se aumentam nossa capacidade de ação, nossa eficácia, também são ve-tores de valores que com frequência mutilam nossa iden-tidade cultural? [...] Esse problema se coloca hoje um pou-co por toda parte, na medida em que a produção de bens culturais transformou-se em ciclópico negócio e uma das leis que regem esse negócio é a uniformização dos padrões de comportamento, base da criação dos grandes mercados. (FURTADO, 1984, p. 31)

A solução de Furtado não passa obviamente pelo reforço do “ci-clópico negócio” em que se transformou a produção cultural, mas pela inversão da lógica que preside as relações entre “a cultura como sistema de valores e o processo de desenvolvimento das for-ças produtivas, entre a lógica dos fins, que rege a cultura, e a dos meios, razão instrumental inerente à acumulação.” (FURTADO, 1984, p. 30)

Um comentário sobre política cultural

Furtado inicia sua exposição à Assembleia Constituinte advertin-do para a necessidade de se dar uma nova abrangência à ideia de política cultural, tendo em vista que a elevação da riqueza material convive frequentemente com a preservação de padrões culturais es-treitos, ou seja, o crescimento, mesmo de caráter inclusivo, como o dos últimos anos no Brasil, não eleva necessariamente, nos termos do autor, a qualidade de vida, ou aquilo que hoje se conhece como

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the good life,la buena vida ou el buen vivir, no debate sobre alternati-vas para o velho conceito de desenvolvimento.

Assim, “a acumulação de recursos desemboca, com frequência, em aumento de desperdício de certas faixas de consumo, sem pro-duzir um real enriquecimento da vida.” (FURTADO, 1987, p. 317, grifo nosso) Neste ponto, o autor se refere criticamente aos mode-los de desenvolvimento dos anos 1950, fundados na ideia de máxi-ma eficiência no uso de recursos escassos:

Está implícito nesse raciocínio que os fins que presidem a ordenação social possuem um comportamento autônomo com respeito aos meios, comportamento que reflete opções realizadas pelos homens em função de suas necessidades materiais, de suas aspirações e ideais. Pouca atenção se dá às inter-relações entre fins e meios, ao fato de que o controle dos meios por indivíduos, grupos ou países pode conduzir à manipulação dos fins de outros indivíduos, grupos e países. (FURTADO, 1987, p. X)

E conclui: “ora, os fins a que estou me referindo são os valores das coletividades, os sistemas simbólicos que constituem as cultu-ras.” (FURTADO, 1987, p. 317) A relação entre lógica dos meios e lógica dos fins está na raiz do pensamento de Furtado e representa uma chave de leitura fundamental para entender o seu conceito de cultura. Num plano mais concreto, a sua concepção de política cul-tural como eixo estruturante das políticas de desenvolvimento fica assim esclarecida: “se a política de desenvolvimento objetiva enri-quecer a vida dos homens, seu ponto de partida terá que ser a per-cepção dos fins, dos objetivos que se propõem alcançar os indivídu-os e a comunidade.” (FURTADO, 1987, p. X)

Retomando uma antiga comparação sua (FURTADO, 1974) entre custo ambiental e custo “em termos de valores culturais e paisagís-ticos” do desenvolvimento, conclui que “a cultura deve ser observa-da, simultaneamente, como um processo acumulativo e como um

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sistema, vale dizer, como algo que tem uma coerência e onde o todo não se explica cabalmente pelo significado das partes, graças a efei-tos de sinergia.” (FURTADO, 1987, p. 318)2 O problema é mais agu-do “nas sociedades em que o fluxo de bens culturais possui grande autonomia com respeito ao próprio sistema de cultura”, isto é, nas sociedades de economia dependente, sem perder de vista que, em Furtado, a dependência é, em primeiro lugar, cultural, construída ao longo do processo de difusão da civilização industrial, que gera, si-multaneamente, o desenvolvimento e o subdesenvolvimento.

Ora, o que caracteriza as sociedades que se inseriram no comércio internacional como exportadores de uns poucos produtos e que, em fase subsequente, conheceram um pro-cesso de industrialização com base na substituição de im-portações é que a acumulação de bens culturais é em gran-de parte comandada do exterior, em função dos interesses dos grupos que dirigem as transações internacionais: a coe-rência interna do sistema de cultura está, em consequência, submetida a pressões consideráveis [...]. É natural, portanto, que o desenvolvimento material dos países de economia dependente apresente um custo cultural particularmente grande. As descontinuidades entre o presente e o passado não são apenas frutos de rupturas criativas; mais comu-mente refletem a prevalência da lógica da acumulação sobre a coerência do sistema de cultura. (FURTADO, 1987, p. 318)

Assim, a coerência do sistema nacional de cultura está perma-nentemente posta à prova, especialmente quando o fator tecnológi-co é dominante e, acrescentemos, ainda mais hoje, com o aprofun-damento e banalização da chamada sociedade tecnológica. Nessas condições, a identidade cultural adquire um papel absolutamente

2 Fica patente, nesse trecho, o caráter profundamente antieconomicista da sua concepção, contrária à instrumentalização da cultura, inerente à perspectiva anglo-australiana hegemô-nica das chamadas indústrias criativas, sem contudo abrir mão da análise das relações entre indústria, inovação e criatividade, para a qual fornece um instrumental teórico crítico alter-nativo.

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central para o desenvolvimento e a política cultural torna-se crucial-mente estratégica:

Quando nos referimos à nossa identidade cultural, o que temos em conta é a coerência de nosso sistema de valores, do duplo ponto de vista sincrônico e diacrônico. Esse é o cír-culo maior que deve abarcar a política de desenvolvimento, tanto econômica como social. Somente uma clara percepção de nossa identidade pode instilar sentido e direção a nosso esforço permanente de renovação do presente e constru-ção do futuro. Sem isso estaremos submetidos à lógica dos instrumentos, que se torna tanto mais peremptória quanto tende a nela prevalecer o fator tecnológico, dominante na civilização contemporânea. (FURTADO, 1987, p. 318-319)

O caráter estratégico da política cultural, nessas condições, signi-fica, mais do que defender-se simplesmente da condição de depen-dência, ou negociá-la nos melhores termos, garantir a autonomia cultural essencial para a consecução dos fins últimos do “nosso sistema de valores”, o que, na sua visão, subordina-a à política so-cial, à luta contra as disparidades, contra a heterogeneidade social, no sentido da Comissão Econômica para a América Latina (CE-PAL), pelo enriquecimento da vida e o bem-estar da coletividade – algo muito diferente da simples expansão da sociedade de consu-mo.

Também não se confunde com uma visão da cultura nacional, ou da cultura popular, como algo congelado ou mítico. Ao contrário, o ato criativo é definido pelo autor como ato de ruptura que se ali-menta da herança e assim deve ser intransigentemente defendido. Nesse sentido, é significativa a referência aos riscos da concentra-ção das indústrias culturais e à necessidade do Estado dar suporte aos criativos, nessas condições. O autor nunca chegou a desenvol-ver uma economia política da comunicação, mais especificamente, mas a sua posição sobre este tema – da concentração oligopolista

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dos instrumentos de produção e distribuição de bens culturais – é inequívoca.3

O papel do Estado é “apoiar seletivamente as distintas formas de produção cultural, sem interferir na criatividade artística.” (FUR-TADO, 1987) Lembremos que se tratava de fundar uma nova ins-titucionalidade, rompendo com o dirigismo estatal dos anos da ditadura, mas não em favor dos oligopólios culturais. Os últimos parágrafos do texto deixam bem claras as intenções por trás da primeira política de incentivos fiscais à cultura do Brasil, muito diferentes do que viria a ocorrer com as suas sucessoras, após as mudanças neoliberalizantes do governo Collor. Vale citar:

Cria-se [...] um vínculo entre a comunidade e os agentes cul-turais locais. Evita-se a tutela de autoridades distantes, e os custos administrativos, inevitáveis, se os recursos tivessem que ser arrecadados pelo governo federal e aplicados com a intermediação da pesada máquina burocrática. Estimula-se a iniciativa e reduzem-se os custos operacionais. Por outro lado, reforça-se a posição das instituições da sociedade ci-vil que se dedicam precipuamente às atividades culturais. As empresas que patrocinam atos culturais, com vistas a melhorar a sua própria imagem junto à cidadania, terão que fazê-lo com a mediação de instituições culturais, se preten-dem beneficiar-se da Lei Sarney. (FURTADO, 1987, p. 320)

E segue:

Trata-se, portanto, menos de um mecenato do que de uma aplicação de fundos públicos com interveniência de entida-des culturais surgidas da sociedade civil. Em síntese, bus-cam-se a descentralização, a redução dos custos administra-tivos, a consolidação das entidades culturais e a aproximação

3 Problema, aliás, não resolvido e que só se aprofundou desde então, inclusive pela constitui-ção de um poderoso star system e de formas avançadas de cooptação de setores da cultura popular.

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entre os agentes culturais e a comunidade em que estão in-seridos. Mais importante ainda é o efeito catalizador dessa política, que estimula a iniciativa e viabiliza milhares de pro-jetos que, sem ela, morreriam no nascedouro. (FURTADO, 1987, p. 321)

Pretendia-se, assim, “reforçar a corrente, dominante em nosso presente quadro histórico, dirigida para a abertura de espaço à ação individual e para o fortalecimento da sociedade civil em suas rela-ções com o Estado”, (FURTADO, 1987, p. 321) ou seja, apoiar o processo de democratização que deslanchava naquele momento. Nesse ambiente, depositou fortes esperanças, tanto no campo polí-tico como no cultural, numa tomada de consciência de uma classe média que ainda guardava uma proximidade fundamental da cul-tura popular contra os desvios tecnocráticos que caracterizaram o regime militar.

É interessante observar, com Octavio Rodríguez (2009), que o conceito de cultura de Furtado se estabelece em três níveis: mate-rial, espiritual e político-institucional. Seu entusiasmo, demonstra-do em diferentes momentos, em relação aos movimentos sociais, ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), ao movimento ecologista, aos “grupos contestadores”, ao movimento feminista, aos jovens, inclusive no Depoimento, mas também, e, sobretudo, no livro de 1978, deve ser entendido igualmente na perspectiva da criatividade. Assim, por exemplo, “a ação dos jovens e dos movi-mentos feministas é observada deste ângulo, procurando-se captar as linhas de força do processo de geração de novos valores cultu-rais.” (FURTADO, 1987)

Por outro lado, fica claro o compromisso com a diversidade cul-tural (em todos os níveis), elemento nuclear da identidade cultural brasileira. Além disso, “sendo a cultura, naquilo que deve preocu-par o governo, o fruto dos esforços que realizam homens e mulhe-res para melhorar sua qualidade de vida, é no cotidiano que deve

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ser observado, de preferência, o processo cultural”, (FURTADO, 1987, p. 321) nos locais de trabalho, de estudo, de culto, de lazer.

A melhoria da qualidade de vida deve dar-se em todas essas esfe-ras simultaneamente. “A visão tradicional da cultura como simples enriquecimento do lazer é profundamente antidemocrática, pois nada é mais desigualmente distribuído na nossa sociedade do que o tempo de lazer.” (FURTADO, 1987, p. 321) Aqui voltamos nova-mente à crítica, implícita mas muito clara, da Indústria Cultural e da sociedade de consumo. A ideia, aliás, devo dizer, de uma cidada-nia pelo consumo, nesta linha de raciocínio, mostra-se claramente absurda, quando o que se pretende é o enriquecimento da vida. Por outro lado, o autor defende que a política cultural deve dar atenção especial aos grupos sociais mais vulneráveis, que necessitam aces-so facilitado aos bens e serviços culturais.4

Esta é, portanto, a filosofia por trás da proposta de política cultu-ral do Ministro Celso Furtado, que se desdobrava em quatro objeti-vos específicos: (1) preservação do patrimônio e da memória cultu-rais; (2) estímulo à criatividade popular; (3) defesa da identidade cultural brasileira; e (4) democratização do acesso aos valores cul-turais. O fundamental, em todo caso, como se pode deduzir da lei-tura do Depoimento, é a centralidade da cultura para as políticas de desenvolvimento, ideia que jamais chegaria a ser plenamente in-corporada pelos sucessivos governos brasileiros, para os quais, indefectivelmente, a cultura assume um caráter secundário e es-sencialmente instrumental.

Há sem dúvida várias explicações para isso, mas o fundamental é que a cultura se constitui como espaço privilegiado de ação dos

4 não resisto a traçar a respeito um pequeno paralelo com a ideia, segundo entendi, das “mar-gens da existência”, externada pelo Papa Francisco na sua visita ao Brasil em julho de 2013, pouco depois das grandes demonstrações de junho, protagonizadas também, em sua maio-ria, pela juventude brasileira: o caráter concentrador da cultura de consumo contemporâ-nea, que tem no dinheiro a sua referência “ética”, marginaliza os extremos – a juventude e a velhice –, privando a sociedade dos dois elementos capazes de garantir a certeza, de um lado, na continuidade da aventura humana sobre a terra, inspirada, de outro, pelo conheci-mento acumulado das antigas gerações. ruptura que se alimenta da herança, como dizia Furtado.

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setores mais conservadores da sociedade brasileira, das oligarquias nacionais e locais, que até hoje conseguiram preservar, inclusive, a sua posição dirigente, mesmo quando associadas ou concorrendo com os oligopólios culturais internacionais. Essa hegemonia da bur-guesia nacional, construída sobre os cimentos da cultura popular brasileira, mas fortemente influenciada pela cultura internacional popular, será fortemente questionada pela expansão da internacio-nalização cultural promovida pela Internet e pela privatização e glo-balização das telecomunicações em condições de convergência eco-nômica e técnica.

No que se refere ao polo hegemônico, a solução tem passado pelo reforço das coalizões empresariais, que acaba por reproduzir, no campo da cultura, as alianças globais intercapitalistas, que se veri-ficam há muito tempo em outros setores da economia. Assim sen-do, uma política de desenvolvimento com autonomia cultural, ade-quada aos fins que se deve propor soberanamente a sociedade brasileira, como pensava Furtado, depende crucialmente das solu-ções regulatórias e das reformas estruturais pelas quais deveria passar o setor do audiovisual, envolvendo temas tão fundamentais como o da TV pública, dos modelos de financiamento, da regulação da Internet e da convergência, sobre a base não apenas de uma política industrial, também necessária, mas sobretudo de uma po-lítica cultural geral, pensada, como queria Furtado, em termos de seu papel estruturante dos projetos e das políticas de desenvolvi-mento, num momento em que estas últimas estão postas em che-que e de forma radical.

Num pequeno texto de 1986 incluído no volume 5 dos Arquivos Celso Furtado, o autor define a política cultural como “simples di-mensão de uma política global, graças à qual a coletividade tem acesso a um fluxo crescente de recursos a serem utilizados den- tro de prioridades ditadas por critérios sociais.” (FURTADO, 2012, p. 103) Ou seja, a política cultural deve ser parte da política social, na sua perspectiva. Por outro lado, como ato de ruptura, a criatividade

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alimenta-se com frequência da ação de grupos contestadores que, em uma sociedade aberta, devem encontrar espaço para atuar.5 O texto termina com uma pergunta e uma afirmação sobre o cam-po da Cultura:

Como duvidar de que é nesse setor que se apresenta o maior desafio na caminhada para um autêntico processo de desenvolvimento, para a convergência do processo de crescimento econômico com o aperfeiçoamento das for-mas de convivência social e a abertura de novos espaços à realização das aspirações tanto materiais como espirituais de toda a cidadania? Na fase atual de nossa história o ele-mento de utopia de que necessitamos somente poderá vir da política cultural. (FURTADO, 2012, p. 106)

Este é ainda o nosso problema. A luta política é vista, portanto, também em chave cultural, como quando considera, em outro contexto, (FURTADO, 1978) a institucionalização da greve como supremo ato de criatividade. Não é difícil imaginar a posição que nosso autor defenderia frente aos acontecimentos de junho de 2013 no Brasil.

Referência

BOLAÑO, César Ricardo Siqueira. O conceito de cultura em Celso Furtado. Aracaju: [Prelo, 2013].

BRASIL. Plano Brasil Criativo. Brasília: Ministério da Cultura, 2012.

FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. 5. ed.Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.

5 e segue: “demais, como a herança cultural e a criatividade se inserem na pluralidade étnica do país, o avanço na conscientização das populações negras e indígenas é visto como ampliação de nosso horizonte cultural”, (Furtado, 2012, p. 104) pensamento que repetirá também no Depoimento.

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criAtividAde, inovAção, culturA e desenvolvimentoUma contribuição ao debate

Um problema

Quais atividades econômicas funcionam mais como forças pro-pulsoras do desenvolvimento? Essa é uma pergunta que não tinha relevância até final dos anos 1970, mas que passou a ser recorren-temente feita desde que a crise do fordismo se instalou nas eco-nomias industrializadas, primeiramente, espalhando-se por todo o mundo, posteriormente. Muitas respostas têm sido dadas a essa questão. Esforços no sentido de respondê-la baseiam-se, frequen-temente, na constatação da crescente importância do setor de ser-viços, em detrimento do setor de manufaturados na conformação dos PIBs de economias que anteriormente encontravam seu vigor no setor secundário. Adicionalmente, destacam tanto o fato de que, no que diz respeito ao setor de serviços, os bens simbólico-cultu-rais, particularmente os que resultam da produção das chamadas indústrias culturais e dos media, apresentam expressiva e crescente importância econômica, como a não menos crescente importân-cia do papel dos elementos simbólicos, para um número cada vez

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maior de ramos industriais, nos processos de formação de preços. (GAMA, 2012; BOLAÑO, 2011)

Certamente, estudos desenvolvidos sobre os novos marcos do capitalismo pós-industrial aportaram importantes contribuições no sentido de compreender o papel da cultura, da inovação e da criatividade para o desenvolvimento.

É o caso, por exemplo, dos estudos de Celso Furtado. Nas suas reflexões, Furtado destaca a centralidade estratégica da cultura para o desenvolvimento e considera que a superação do subdesenvolvi-mento na etapa do capitalismo global impõe a necessidade de que o desenvolvimento “se traduza em enriquecimento da cultura em suas múltiplas dimensões e permita contribuir com criatividade própria para a civilização que se mundializa”, (FURTADO, 1998 apud BOLAÑO, 2011, p. 86) o que significa dizer, ainda nas pala-vras deste importante cientista social brasileiro, que a “política de desenvolvimento deve ser posta a serviço do processo de enrique-cimento cultural” da sociedade. (FURTADO, 1984, p. 32) Furta- do (2012, p. 43) afirma ainda que “Desenvolvimento é a utilização de um excedente, o qual abre um horizonte de opções, vale dizer, um excedente adicional que cria um desafio à inventividade”, mas a retomada do desenvolvimento requer vontade coletiva para a con-cretização daquele enriquecimento da cultura no plano político.

Essas citações de Furtado deixam claro que o mesmo está se re-ferindo ao Brasil e à interação da cultura, como sistemas de valores, com o processo de desenvolvimento das forças produtivas, sobretu-do quando lembramos que o mesmo também se refere à indústria da cultura como instrumento da modernização dependente, à inci-piente autonomia criativa de nossa classe média e à força reativa de camadas populares ameaçadas de descaracterização cultural, e cla-ma pela adição de um ingrediente de vontade coletiva visando a canalizar as forças criativas para a “reconstrução de estruturas so-ciais avariadas e a conquista de novos avanços na direção de formas superiores de vida.” (FURTADO, 2012, p. 31)

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Ainda que seja inegável o papel estratégico destes três elementos (cultura, inovação e criatividade) para a “equação” do desenvolvi-mento, não se pode correr o risco seja de incorporar a visão de que, naturalmente, eles estabelecem entre si relações positivas e sinér-gicas, seja, também, de alimentar a crença de que o conhecimento é necessariamente um bem público, visão e crença que negligen-ciam, por exemplo, muitas de suas condições de produção e de apropriação. Nesta linha, advertem Isar e Anheier (2010, p. 4, tra-dução nossa): “[...] Estamos conscientes do uso indiscriminado e frequentemente impreciso desses dois termos [criatividade e ino-vação], especialmente pela literatura popular de gestão assim como em alguns trabalhos de políticas culturais.”1 Hall (2010, p. X), no mesmo tom, afirma que

[...] mais recentemente, os termos criatividade e inovação foram ampliados para incluir muitos outros campos além do estético; e mais recentemente ainda foram assimilados a práticas tecnológicas, de um modo tão inflado, tornando-os quase inúteis.2

Pesquisa no Google com base nos termos “criatividade” e “ino-vação”, feita em 8 de março de 2013, evidenciou a existência de 26.000.000 registros. A repetição da pesquisa, na mesma data, com base nos termos “criatividade”, “inovação” e “cultura” indicou um total de 1.350.000 registros. Já quando a pesquisa é feita com a utilização dos quatro termos, “criatividade”, “inovação”, “cultura” e “desenvolvimento”, chega-se a um total de 963.000 registros. Re-gistros em quantidades tão expressivas despertam a curiosidade no

1 “criativity. innovation. We are all too aware of the inflated, and often imprecise, uses of these two terms, particularly in the popular management literature as well in some cultural policy work.” (isar; anheier, 2010, p. 4)

2 “more recently the terms creativity and innovation have been expanded to include many fields other than the aesthetic; and, more recently still, assimilated to technological, comer-cial, managerail practices, in self-inflating and commodified ways which make them unusa-ble.” (hall, 2010, p. X)

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sentido de se averiguar o tipo de produção que se está difundindo. Na óbvia impossibilidade de revisar todos os registros do Google, fez-se uma amostragem não probabilística dos registros, frutos da utilização dos quatro termos simultaneamente, classificando-os por ordem de relevância. Infelizmente, apenas os dez primeiros classificados vão ser apresentados.

Os dez primeiros registros incluem, pela ordem: (i) o site <www.endeavor.org.br/>; ii) apresentação de três trabalhos em conjunto, como artigos acadêmicos: o livro de Manuel Castels, La Galaxia Internet, cuja primeira edição é de 2001, citado por 2.301 autores; artigo de Eunice Alencar, sobre a criatividade nas organizações, pu-blicado na revista de Administração de Empresas-RAE, em 1998, e citado por 141 autores; e o livro de Ana Carla Fonseca Reis, Economia da cultura e desenvolvimento sustentável: o caleidoscópio da cultura, pu-blicado em 2007, citado por 74 autores; (iii) um artigo intitulado Cultura, Inovação Social e Economia Criativa: amplo, não? Sim. Não. Talvez., de autoria de Aron K. L. e publicado no site <www.estudio-nomade.com.br/>; (iv) a consulta pública das metas do Plano Nacio-nal de Cultura do Ministério da Cultura, no site <pnc.culturadigital.br/tema/desenvolvimento-sustentavel-da-cultura>; (v) a dissertação de Mônica Ferraz de Arruda pela FGV/SP, Cultura organizacional e inovação: estudo de caso em um hospital privado com características de inovação no Município de São Paulo, defendida em 2006; (vi) um anúncio do III Colóquio Celso Furtado sobre Cultura e Desenvolvi-mento, postado no site da Agência de Inovação da Universidade Federal da Paraíba, <http://www.centrocelsofurtado.org.br/inter-na.php?ID_M=1003>; (vii) apresentação de Isabel André no semi-nário Cultura, inovação e desenvolvimento de lugares, realizado em 2006, na Câmara Municipal de Odivelas, em Lisboa, disponível no endereço <www.cm-odivelas.pt/extras/pdm/anexos/.../Isabel_Andre.pdf>; (viii) site <laladeheinzelin.com.br/> de Lala Dehein-zelin, que se anuncia como profissional transdisciplinar especia-lista em economia criativa, desenvolvimento sustentável e futuros;

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(ix) propaganda do curso “Formação em Inovação e em Empreen-dedorismo Cultural”, oferecido pela Escola São Paulo <http://www.escolasaopaulo.org/atividades/1-semestre-de-gestao-do-empreen-dimento-cultural-e-criativo/1-semestre-de-gestao-do-empreendi-mento-cultural-e-criativo.>; (x) apresentação de Marcel Ferrada, em 2005, sobre Mudança, criatividade e inovação <pt.scribd.com/doc/6089045/Mudanca-Criatividade-e-Inovacao>.

Esse rápido escrutínio dos registros do Google mostra a força de difusão de informações, dados, artigos, modelos de fomento à ino-vação, propaganda de consultores, propostas e resultados de semi-nários e cursos, dentre outros, que tomam como tema os termos “criatividade”, “inovação”, “cultura” e “desenvolvimento”. Simulta-neamente, demonstra a ubiquidade das fontes e autorias, assim como a disparidade dos conteúdos veiculados. Como a publicação no Google não segue as regras da academia de revisão por pares, supõe-se que, no conjunto, encontramos muitos exemplos de uso impreciso dos termos “criatividade” e “inovação”, assim como exem-plos de suas relações com cultura e desenvolvimento, conforme an-tes assinalado por Isar e Anheier (2010) e Hall (2010).

Diante dessa dificuldade, outras fontes de pesquisa foram aces-sadas:3 a base de artigos do SciELO,4 a Revista Brasileira de Inovação (RBI) e o periódico eletrônico Políticas Culturais em Revista.

O quadro inflado de ocorrências antes anunciado muda drastica-mente em pesquisa feita no SciELO com os mesmos termos e rea-lizada na mesma data. Nessa pesquisa aparecem apenas 3 artigos.

3 a produção de conhecimento implica escolhas. há muitas outras fontes que poderiam ser acessadas para o desenvolvimento do presente capítulo, mas escolhas são condicionadas por fatores de tempo e de espaço e guiadas por a priores dos pesquisadores, e esse caso não foge a essas regras.

4 modelo para a publicação eletrônica cooperativa de periódicos científicos na internet. es- pecialmente desenvolvido para responder às necessidades da comunicação científica dos países em desenvolvimento, particularmente na américa latina e caribe, o modelo propor-ciona uma solução eficiente para assegurar a visibilidade e o acesso universal à sua literatura científica, contribuindo para a superação do fenômeno conhecido como “ciência perdida”. o modelo scielo contém ainda procedimentos integrados para medir o uso e o impacto dos periódicos científicos.

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Um investiga a relação entre produção científica e desenvolvimen-to social e econômico, classificando o estudo dessa relação como um dos principais desafios da filosofia e da sociologia da ciência. Ampara-se no modelo “Triângulo de Sábato”, o qual postula a ne-cessidade de relações de proximidade entre o sistema científico-tecnológico, empresas, indústrias e governos, e considera a inova-ção mecanismo-chave para promover o referido desenvolvimento. Em suas conclusões, os autores afirmam que as possibilidades de sucesso do referido modelo dependem do quanto os sistemas edu-cacionais dos países estimulam e promovem a difusão de procedi-mentos baseados no método científico – espírito crítico, criativida-de e rigor. Apontam, também, necessidades de mudanças nos sistemas educacionais vigentes na América Latina com vista a pro-mover a cultura científica. (MARONE; DEL SOLAR, 2007)

O segundo, de Teresa Torres Pereira Eça (2010), trata da relação entre arte e educação, localizando aí possibilidades para a constru-ção de capacidades fundamentais, como criatividade, inovação e pensamento crítico, indispensáveis para o desenvolvimento. Argu-menta ainda que é preciso rever e reformular os paradigmas atuais da educação e as abordagens da educação através da arte e, sobretu-do, apostar mais na formação de educadores e professores. O últi-mo artigo, um diagnóstico da cultura empreendedora na Escola de Engenharia de Antióquia (Colômbia), de Galindo e Echavarria (2011), defende que resultados mais consistentes do ensino de em-preendedorismo dependem da maior difusão no tecido social de princípios da cultura empreendedora (de inovação).

Além dessa busca no SciELO evidenciar a existência de poucos artigos também demonstra que a grande preocupação volta-se para entender as relações entre criatividade, inovação, cultura e desenvol-vimento com o objetivo de indicar propostas de intervenção seja em relação ao sistema educacional, seja em relação à difusão da cultura científica nas sociedades focalizadas. Assim como nas referências a Celso Furtado mais atrás anotadas, observa-se nesses estudos que

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cultura é contexto que pode favorecer ou dificultar o desenvolvimen-to; é meio onde práticas sociais e produtivas se realizam.

Pesquisa na Revista Brasileira de Inovação, em 10 de março de 2013, ratifica a escassez de artigos científicos que focam os temas de criatividade, inovação, cultura e desenvolvimento antes registrada. Essa pesquisa evidenciou que não havia qualquer artigo publicado naquela revista usando esses temas simultaneamente, enquanto o termo “inovação” levou à identificação de 61 artigos; “desenvolvi-mento”, a 66 artigos; “desenvolvimento regional”, a 3 artigos; e “cul-tura” a nenhum artigo. A análise dos respectivos abstracts mostra que os mesmos apresentam resultados de pesquisas em polos de inovação em vários setores (ÁVILA, 2004; GALINA; PLONSKI, 2005; DUNHAM; BOMTEMPO; FLECK, 2011), regiões, estados, cidades e países; (ERBER, 2004; TATSCH, 2008) avaliação de im-pactos dos fundos setoriais5 em empresas; (MELO, 2009; ARAÚJO et al., 2012) a relação entre aprendizado, conhecimento e desenvol-vimento; (TATSCH, 2008) o papel de políticas públicas para o aprendizado e acumulação de conhecimentos; (DAGNINO; DIAS, 2007) além do tema clássico de políticas para industrialização. (MAZZONI; STRACHMAN, 2012)

A análise dos abstracts dos artigos teóricos e sobre políticas indi-ca, ainda, a predominância de enfoque neo-schumpeteriano, não sugerindo, contudo, qualquer interface entre as questões culturais e de criatividade, mas verificando-se o relevo da visão de desenvol-vimento, que o associa à inovação e o descreve como processo de destruição criadora.

A mesma busca realizada na revista Políticas Culturais em Revis-ta mostrou a existência de apenas um artigo, Indústrias criativas e os conceitos de cultura, inovação e criatividade, de César Bolaño, ocupando-se em articular os tais três elementos ao processo de

5 os fundos setoriais foram instituídos no final da década de 1990, com o propósito de criar condições mais estáveis de financiamento público às atividades de ciência, tecnologia e inovação (ct&i) no Brasil.

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desenvolvimento. Este autor busca explicitar a relevância do pen-samento de Celso Furtado para delimitação de um conceito de cul-tura que viabilize a explicitação dos limites do conceito de indústrias criativas e, ao mesmo tempo, a retomada, em plano superior de aná-lise, dos conceitos de comunicação, cultura e desenvolvimento.

Mesmo que os resultados revisados mostrem que estudos das in-terfaces entre criatividade, inovação, cultura e desenvolvimento ain-da não ocupem lugar de destaque na academia brasileira – seja por-que são tributários da falta de diálogo entre disciplinas convergentes, seja porque há pouco consenso em torno de cada conceito de per si, seja, ainda, porque abordagens pioneiras que instigam a pesquisa das convergências entre criatividade, inovação, cultura e desenvolvi-mento, a exemplo das que realizou Celso Furtado, ou entre inovação e desenvolvimento, como é o caso das assinadas por Schumpeter, não são hegemônicas na Academia e, também, por conta do uso inflacionado dos conceitos de inovação e de criatividade, mais re-centemente, que os tornaram tão plásticos que pouco se prestam a ler a realidade –, organismos multilaterais, governos, escolas de en-sino superior, organizações públicas, privadas e do terceiro setor vêm buscando a instauração de clima propício à criatividade e ao reconhecimento da importância da diversidade cultural e propício à formatação e à implementação de instrumentos de estímulo à cria-tividade e à inovação, tudo isso como mola propulsora do desenvol-vimento. A percepção de existência de relação positiva e quase natu-ral entre criatividade, inovação, cultura e desenvolvimento, que reflete uma relativa falta de rigor científico no manejo dos quatros conceitos em questão, assim como a incompreensão sobre suas possíveis relações é quase que unânime nos textos revistos no site do Google,6 ficando muito aquém das formulações antes citadas de Celso Furtado e dos neo-schumpeterianos, as quais, além de sua robustez teórico-histórica, não negligenciam a importância da

6 embora já tenhamos sugerido os limites da revisão aqui feita, nunca é demais remeter o leitor a essa questão.

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vontade política para realizar potencialidades do desenvolvimento que coloquem em seu centro inovação, cultura, desenvolvimento e inclusão social.

Nesse quadro complexo e paradoxal se inscreve este capítulo, que não tem o objetivo de superar os problemas e paradoxos apon-tados, mas tão somente contribuir para reduzir a confusão reinante no campo a partir de uma breve delimitação conceitual dos termos em tela.

Um esforço de delimitação conceitual para enfrentar o problema

Iniciamos essa seção reafirmando que o nosso objetivo é tão so-mente contribuir para reduzir a confusão reinante na relação entre desenvolvimento e os fenômenos de criatividade, de inovação e de cultura. Antes de avançarmos temos de registrar, todavia, que essa confusão cresce porque comumente ao termo “inovação” associa-se um outro, “empreendedorismo”. Dessa forma, as variáveis que constituem o que podemos chamar de “equação” do desenvolvi-mento passam de três (criatividade, inovação e cultura) para quatro (criatividade, inovação, empreendedorismo e cultura).

Atentos às críticas já mencionadas quanto aos perigos da natura-lização das relações entre os termos da referida “equação”, vamos investir na abordagem da “equação” dentro de padrões acadêmicos, buscando-se evitar, contudo, definições rebuscadas e acessíveis apenas a um seleto clube de estudiosos. Embora definições simples não estejam facilmente disponíveis, vamos tentar encontrá-las, sem contudo mascarar complexidades e limites de tais definições.

Começamos perguntando: o que é desenvolvimento?Parafraseando Ortiz (2008), dizemos que o termo “desenvolvi-

mento” encobre realidades distintas e às vezes excludentes;7 então,

7 notem, os leitores, que “simples” não significa esconder polêmicas e diferentes pontos de vista. não somos de opinião que exista uma única ciência verdadeira, mas vários pontos de

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para sermos coerentes, cabe a pergunta feita por este autor: de que desenvolvimento estamos falando? Falamos de desenvolvimento como um processo de destruição criadora, cujo combustível princi-pal é a capacidade das organizações de gerar e incorporar inova-ções. Afirmamos também que, desde essa perspectiva, questões de inovação e do aprendizado estão no centro da dinâmica capitalista e, consequentemente, desenvolvimento e inovação mostram-se in-terdependentes no sentido de que não há desenvolvimento sem ino-vação. Mais que isso, desenvolvimento significa ruptura, destruição e substituição de estruturas antigas por novas. (SCHUMPETER, 1984) Temos que alertar também que desenvolvimento é um esta-do/objetivo que depende de empresas, governos e instituições.

Essa simples definição de desenvolvimento implica uma verda-deira revolução em termos do arcabouço do mainstream das ciên-cias econômicas. Primeiro porque macroeconomia e microecono-mia8 tornam-se, por exemplo, dimensões específicas mas também interdependentes do sistema econômico capitalista, em função das implicações derivadas do fato de que decisões dos agentes públicos e privados, essencialmente relativas à produção e ao investimento, influenciam-se mutuamente e determinam níveis atuais e futuros de produção, emprego e bem-estar. Também a situação de equilí-brio estável, em função de pressupostos de informações e mobili-dade dos recursos produtivos perfeitas e racionalidade irrestrita dos agentes econômicos, é questionada, assim como seus desdo-bramentos sobre o tecido econômico e social, dentre outros.

vista científicos. concordamos também com abordagens mais atualizadas do conhecimen-to científico que admitem relações de complementaridade entre conhecimento científico e conhecimento popular.

8 essa separação é nítida no campo da teoria neoclássica. ademais, embora tenha se debru-çado sobre o estudo da formação de expectativas dos agentes econômicos em um ambiente de incerteza, denotando preocupações com as questões de longo prazo, o foco da atenção keynesiana ainda é, por sua vez, o curto prazo. Por isso, também em seu caso, a separa-ção teórica entre micro e macroeconomia continuou relevante e a relação entre progresso técnico e desenvolvimento econômico permaneceu negligenciada, apesar dos avanços em-preendidos por Keynes em termos de endogenização do estado à dinâmica capitalista e na compreensão da problemática da evolução do capitalismo. (Possas, 2002)

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Postulações schumpeterianas acerca do desenvolvimento capita-lista, embora nunca tenham sido hegemônicas nas ciências econô-micas, deram respaldo à criação de grupos de pesquisadores que procuram investigar empiricamente a relação entre desenvolvi-mento e inovação e, paralelamente, promovem o avanço dessa abordagem, criando, por indução, expressiva leva de pesquisadores seguidores. Parte desses pesquisadores compõe hoje a abordagem neo-schumpeteriana.9

Podemos dizer, por influência de Schumpeter e dos neo-schum-peterianos, que o desenvolvimento de países é processo de transfor-mação, fortalecimento e qualificação de suas estruturas e institui-ções, e de internalização de seus fluxos de inovações. Engrenagens do processo de desenvolvimento – descrito como de equilíbrio di-nâmico – que se manifestam em determinado momento e espaço, e elementos centrais e definidores de estratégias empresariais, as instituições e o meio ambiente institucional influenciam decisiva-mente o crescimento, viabilizando (ou não) inovações tecnológicas, mudanças na forma de organização das firmas, na gestão no pro-cesso de trabalho e na coordenação de políticas macroeconômicas. (CONCEIÇÃO, 2002, p. 17)

Em oposição à lógica neoliberal, em consequência, entendemos que organizações, dos setores primário e terciário, e do terceiro se-tor, desempenham papel central para atingir o objetivo de desen-volvimento, porque são atores centrais dos processos de geração e de difusão de inovações. No entanto, o desempenho desses atores centrais depende, além de seus atributos internos e do quanto tais atributos estão perfilados às boas práticas setoriais, de inputs dos seus contextos específicos, setoriais e nacionais, enfim, de suas

9 ver sobre o assunto artigos e livros escritos por christopher Freeman, giovanni dosi, carlota Perez, K. Pavith, l. soete, richard r. nelson e s.g. Winter, os quais construíram, em locais diferentes, a base do que se designou de abordagem neo-schumpeteriana. como há um pa-drão analítico relativamente comum, pelo menos no que tange à preocupação com “formas” diferenciadas de desenvolvimento econômico, importância das instituições e dinâmica do crescimento, é possível compatibilizá-las com base no papel das instituições. (conceiÇÃo, 2002, p.17)

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condições de competitividade frente à concorrência global. Adicio-nalmente, como visto acima, as instituições (regras do jogo), as-sim como o ambiente institucional, jogam também papel central no desenvolvimento.

[…] crescer não implica apenas gerar acumulação de capital, mas estabelecer mecanismos endógenos à própria socieda-de, que viabilizem estruturalmente o crescimento, enquan-to processo. Daí a centralidade das formas institucionais de estrutura para o paradigma tecnológico. O ‘funcionamento institucional’ da economia realiza-se a partir de sua estru-tura institucional, que permite o ajustamento da produção à demanda social, mas de maneira sempre desequilibrada, descontínua e até contraditória, conferindo às mudanças um caráter necessariamente estrutural e de longo prazo. Portanto, crescimento econômico implica conjugar acumu-lação de capital com características sociais, políticas e ins-titucionais de dada sociedade, o que resulta em diferentes tipos ou padrões de crescimento ou de desenvolvimento econômico. (CONCEIÇÃO, 2002, p. 156-157)

O que é inovação – e como este termo relaciona-se com o quarto termo a pouco incorporado, “empreendedorismo”? Para Schumpe-ter (1982, 1984, 2002), as temáticas do empreendedor e da inova-ção – que é diferente de invenção – estão umbilicalmente ligadas, desde seu livro Teoria do Desenvolvimento Econômico. Em Capitalis-mo, Socialismo e Democracia, Schumpeter já havia abandonado a visão romântica e individualista do empreendedor (agente de ino-vação), assim como a abordagem simplificada dos processos de inovação e da inovação em si, ambas abraçadas por ele em Teoria do Desenvolvimento Econômico. Naquele livro, Schumpeter já nos fala dos grandes departamentos de P&D, que incorporariam a função de realizar inovações no capitalismo das grandes corporações, em especial. Na verdade, em Capitalismo, Socialismo e Democracia, o

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autor em foco mostra-se muito mais preocupado com a função ino-vação do que com a figura do empreendedor (agente de inovação).

Em Economic Theory and Entrepreneurial History, Schumpeter (2002) afirma que capitalistas não são empreendedores e vice-ver-sa. Considera que a provisão de capital não é a função essencial, nem a definidora, do ente empreendedor (agente de inovação). Ele distingue-se por três características: sua aptidão para inovar e, con-sequentemente, sua relação com a geração, difusão e incorporação de novos conhecimentos a produtos, processos, mercados e organi-zações; a dependência de conhecimentos parciais, o que lhe exige ser capaz de lidar com a incerteza quanto aos resultados de suas ações; e, finalmente, a possibilidade de gerar lucros anormais em função da decisão de implementar suas decisões. (METCALFE, 2003)10

Assumir riscos não é, assim, uma das funções do empreendedor, (SCHUMPETER, 2002) mas, sim, do capitalista que assume o ris-co e que perde o capital em caso de falência. Quando o empreende-dor empata recursos financeiros, sejam próprios ou de terceiros, ele o faz como capitalista e não como empreendedor.

Além da diferenciação entre capitalista e empreendedor, Schum-peter investe na diferenciação entre a função inovação e funções rotineiras, de natureza gerencial. Para Schumpeter, essas outras funções rotineiras, de natureza gerencial, são realizadas tanto por empreendedores (inovadores) como por outros responsáveis pela empresa. Embora uma mesma pessoa, frequentemente, realize ao mesmo tempo as diversas funções – a empreendedora (entrepreneu-rial) e as gerenciais –, é indispensável, segundo o enfoque schumpe-teriano, saber distinguir entre o empreendedor (entrepreneur) e o

10 “they have three principal attributes: their innovative nature, and by implication their con-nection with new knowledge; the uncertain prospects attached to them, and thus their dependence on partial knowledge; and, finally, the extraordinary profit rewards that can follow from implementing these decisions and thus their connection with radical knowled-ge.” (metcalFe, 2003)

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diretor ou gerente de uma empresa que toca a empresa seguindo orientações e padrões de gestão já estabelecidos.

Como dissemos antes, Schumpeter faz distinção também entre invenção e inovação. Invenção corresponde à geração de novas ideias e seu desenvolvimento até que tenham sido superadas as principais dificuldades conceituais e práticas para sua implementa-ção, enquanto inovação consiste em colocar novas ideias em práti-ca, dando a elas um uso comercial. Inovação associa-se a novidades no mercado.

Inovar é fazer coisas novas ou as mesmas coisas mas de maneira diferente, combinando diferentemente recursos produtivos, de for-ma a gerar retorno financeiro. A inovação pode se dar pela introdu-ção de um novo bem ou por mudanças incrementais em bens já existentes, pela introdução de um novo método de fazer as coisas, ou pela sua melhoria incremental, pela abertura de novos merca-dos, pela conquista de novas fontes de insumos e pelo estabeleci-mento de uma nova forma de organização em qualquer indústria. O ímpeto para inovar vem da possibilidade da inovação ser premia-da pelo mercado com lucros acima do normal. Por força do ante-rior, à medida que a inovação vai se difundindo, levas de seguidores entram no mercado e forçam a queda da taxa de lucros. As econo-mias descrevem comportamento cíclico, em forma de ondas, de fluxo e de refluxo. Inovações radicais surgem, comumente, em mo-mentos de crise e a difusão dessas inovações e seus aprimoramen-tos (inovações incrementais) proporcionam a saída das crises. (SCHUMPETER, 1982, 1984)11

Podemos ver que, em chave schumpeteriana, inovação liga-se a fazer algo novo ou de forma nova, traduz-se em bens e tecnologias físicas, mas também em tecnologias de gestão e de organização, e pressupõe que a inovação já foi testada no mercado, tendo em vista

11 o modelo de equilíbrio dinâmico permite o convívio entre firmas inovativas e imitativas. as conclusões que propicia se referem à relação entre as taxas de progresso técnico da indústria vis-a-vis à intensidade de P&d na indústria, que diferem e suscitam novas análises em relação à racionalidade da teoria neoclássica. (conceiÇÃo, 2002, p. 53)

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que já foi capaz de gerar retornos financeiros. Além disso, é o vetor do comportamento cíclico das economias, gerando as ondas de de-senvolvimento.

Até aqui definimos desenvolvimento e inovação e empreendedo-rismo, procurando evidenciar as relações entre estes fenômenos com base em formulações schumpeterianas e neo-schumpeteria-nas. Podemos agora avançar na delimitação dos dois conceitos re-manescentes tendo em vista o esforço antes anunciado de reduzir a confusão reinante no tratamento da “equação” desenvolvimento e de algumas de suas variáveis-chave

Novamente aqui, começamos nossas ponderações perguntando: o que é criatividade?

Criatividade é o processo de geração de novas ideias e de novos artefatos.12 Amparando-se em conhecimentos novos sobre o pro-cesso criativo gerados por pesquisas nas áreas de psicologia e das ciências da cognição, e de uma perspectiva sistêmica, Isar e Anheier (2010) descrevem o processo criativo como fruto da interação entre aquele que cria (a pessoa criativa), que usa informações de seu do-mínio de atuação, ou seja, de um sistema específico de símbolos, transforma-as ou amplia suas aplicações, e aqueles que validam os produtos do processo criativo (críticos de arte, proprietários de ga-lerias e artistas, por exemplo), que selecionam as novas ideias e métodos. Fechando o ciclo, no domínio operam-se a difusão dos produtos criativos e sua transmissão a outras pessoas, sociedades e gerações. Da interação entre esses componentes surgem e são re-conhecidos atos e produtos artísticos. De acordo com essa perspec-tiva, criatividade equivale a qualquer ação, ideia ou produto que muda um domínio existente ou que o transforma em um novo do-mínio. Essa definição de Isar e de Anheier (2010) é consistente com

12 no campo do planejamento urbano e da gestão, encontramos usos mais amplos do con-ceito de criatividade, abarcando muito mais do que atividades artísticas, como em Florida, (2002 apud isar; enheier, 2010) quanto mais restritos, como em ladry (2000 apud isar; anheier, 2010). tais usos são metafóricos e negligenciam conhecimentos novos sobre o processo criativo gerados por pesquisas nas áreas de psicologia e das ciências da cognição.

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a descrição do processo de autonomização do campo da cultura, em relação ao qual nos deteremos na próxima seção. No entanto, não podemos deixar de assinalar que o advento das tecnologias digitais revoluciona, radicalmente, o setor de produção de bens simbólicos, assim como seus processos de difusão, de legitimação e de comer-cialização. Ainda que em alguns nichos de mercado o papel dos especialistas, por exemplo, os críticos de arte, continue importante para a legitimação das novidades introduzidas em seus domínios, em muitos outros importantes segmentos esse papel está viven-ciando importância decrescente.

Pesquisas nas áreas de gestão e de sociologia das organizações têm evidenciado que criatividade e inovação emergem à margem dos sistemas, e não em seus centros, e são condicionadas por forças sociais, culturais e políticas. Teóricos da área organizacional suge-rem, por sua vez, que períodos revolucionários caracterizam-se por maior criatividade e melhoram o desempenho, em termos de inova-ção, naquelas organizações que decidem romper com a inércia es-trutural e cultural das rotinas existentes. (ISAR; ANHEIER, 2010) Note-se, aqui, uma relativa diferenciação em relação às postulações schumpeterianas, que enxergam a emergência de inovações em períodos de baixa do ciclo de crescimento das economias e que compreendem que é o surgimento dessas inovações e seu espraia-mento pelos tecidos social e produtivo que respondem pela saída das crises.

Essas delimitações do conceito de criatividade requalificam o ato criativo, deslocando-o da esfera meramente individual, que repou-sa fortemente, embora não exclusivamente, em qualidades artísti-cas, de um modo disruptivo, contraintuitivo, rebelde e tomador de risco, inserindo-o em um contexto sociocultural e definindo-o como o processo no qual novidades introduzidas em um domínio são re-conhecidas e aceitas. Segundo Stuart Hall (2010), a visão de criati-vidade como ato de indivíduos especiais, gênios, que são os únicos capazes de lidar com excelência com expressões estéticas, é típica

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da cultura ocidental, uma formulação, no século XIX, do Romantis-mo, e exclui muitas civilizações nas quais a relação entre criativida-de e ato individual não é tão forte. Outro movimento importante no campo de estudos da criatividade nas sociedades ocidentais é o des-locamento dessa visão da criatividade como ato individual para ato de grupos.

Esse último deslocamento associa-se a abordagens que têm se imposto e difundido, a exemplo da de “indústrias criativas”, (CA-VES, 2001; MIGUEZ, 2007) “distritos culturais”, (SANTAGATA, 2005) “territórios criativos”, (PUMHIRAN, 2005) “Arranjos pro-dutivos locais criativos”, (LIMA, 2009; MATOS; GUIMARÃES; SOUZA, 2008) “classe criativa”, (FLORIDA, 2002) mas não ape-nas a essas abordagens. No campo da literatura de gestão das orga-nizações e da gestão de ciência e tecnologia, por exemplo, é comum encontramos referências de que a criatividade, de indivíduos ou grupos, é precursora da inovação. Nessa última acepção, podemos inferir que criatividade e inovação não são fenômenos privativos do campo da cultura e das indústrias culturais, e podem perpassar e impactar todos os setores produtivos.

Podemos agora focalizar o último dos nossos conceitos: cultura. Não é tarefa fácil definir cultura. Expressando uma variedade mui-to grande de fenômenos humanos e referindo-se a um amplo e di-versificado conjunto de interesses, são em número cada vez maior as áreas do conhecimento que investem na tentativa de alcançar uma definição de cultura. Assim, além das ciências sociais, particu-larmente a sociologia e a antropologia, áreas classicamente dedica-das à problemática, também olham nesta direção os estudos comu-nicacionais, a ciência política, a história, a geografia, a crítica literária e, em anos mais recentes, a economia e a gestão. Daí a abundância de significados atribuídos à palavra cultura, como daí, também, a reconhecida escassez de consenso quanto ao que ela significa – o professor Muniz Sodré (1988, p. 43) adverte que “a multiplicidade

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das definições [de cultura] acompanha a diversidade dos interesses institucionais ou disciplinares.”

Questões conceituais à parte, deve ser registrado, contudo, que a cultura comporta tanto uma concepção ampliada quanto outra res-trita. (BOTELHO, 2001) Enquanto concepção ampliada, também denominada de antropológica, cultura significa o conjunto maior da produção e elaboração, simbólica e material, do ser humano: os artefatos, o imaginário, os comportamentos, as práticas; as formas de expressão, de organização, de percepção e de apropriação do co-tidiano. Significa, também, os modos como o homem se reconhe-ce, como se vê e se relaciona com o mundo.

Nessa perspectiva, portanto, cultura é eixo organizador da cons-trução e de expressão das identidades, que são histórica e socialmen-te construídas, mutáveis, livres de identificações com características estereotipadas de comportamentos de pessoas e de determinações geográficas ou biológicas e condicionadas por fatores situacionais, especialmente hoje, no mundo contemporâneo, quando, registra Stuart Hall (2003, p. 8), face aos abalos que atingem em força e profundidade referências-âncora, identidades estáveis “estão sen-do ‘descentradas’, isto é, deslocadas ou fragmentadas.” Já em sua concepção restrita, a cultura aparece como dimensão organizada e relativamente autônoma em relação a outros domínios da vida so-cial, como, por exemplo, a política e a religião. Ou seja, nesta medi-da, a cultura constitui-se enquanto uma prática social distinta, no dizer de Sodré (1988), um campo, isto é, um “espaço social de rela-ções objectivas”, conforme Bourdieu (1989, p. 64).

Ainda segundo Bourdieu, (1989) as principais transformações que, entre os séculos XVIII e XIX, resultaram na autonomia do campo cultural ocorreram, particularmente, em relação ao público consumidor, que deixou de estar restrito aos pequenos círculos da aristocracia ou do clero, passando a abarcar extensas e heterogêne-as parcelas da população, processo que vai garantir aos produto- res de bens e serviços simbólico-culturais demanda econômica,

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independência produtiva e legitimação cultural. Criam-se, assim, as condições para, a partir da passagem do século XIX para o século XX, o consumo de massa desses bens sob a égide da lógica da in-dústria cultural. Simultaneamente, a dinamicidade com que se es-tabelecem diferenças significativas em termos de identidades gera fluxos de definição e de redefinição de um conjunto de práticas, objetos e estilos, sinais de diversidade e de desigualdades de épocas e de sociedades, formando nichos diferenciados de mercados, que demandam bens culturais do tipo “especialidades”.

Na sua dimensão restrita, ou seja, enquanto campo singular e especializado, a cultura comporta instituições, profissões, atores, práticas, teorias, linguagens, símbolos, ideários, valores, interes-ses, tensões e conflitos, regras e sanções. Assim, diferentemente do seu significado mais antropológico, na concepção restrita, regis-tra Isaura Botelho (2001, p. 77), a cultura descola-se do cotidiano para significar

[...] uma produção elaborada com a intenção explícita de construir determinados sentidos e de alcançar algum tipo de público, através de meios específicos de expressão [que demanda, para se tornar efetiva,] uma organização da pro-dução cultural que permite a formação e/ou aperfeiçoa-mento daqueles que pretendem entrar nesse circuito de produção, que cria espaços ou meios que possibilitam a sua apresentação ao público, que implementa programas/pro-jetos de estímulo, que cria agências de financiamento para os produtores.

Pois bem. A partir da compreensão destas duas dimensões, apro-ximemos, agora, a noção de cultura da “equação” do desenvolvimen-to, registrando de forma destacada que ambas as dimensões, a am-pliada e a restrita, têm importância fundamental para a imbricação cultura e desenvolvimento, isto é, para a compreensão da cultura como dimensão estratégica do desenvolvimento.

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Compreendida na sua dimensão ampliada, a cultura é estratégi-ca para o desenvolvimento na medida em que expressa as tramas identitárias que são a argamassa dos pactos celebrados entre os vá-rios atores sociais. Tal implica que, imperativamente, políticas e projetos de desenvolvimento devam traduzir concertações dessa natureza, sob pena de insistirmos numa concepção de desenvolvi-mento de caráter meramente exógeno e tecnicista, portanto, abso-lutamente alheia aos embates sociopolíticos que conformam a vida social. De quebra, é também esta dimensão ampliada que “empres-ta” os valores simbólicos que, como alertado mais atrás, têm vindo a ocupar lugar de destaque nos processos de formação de preços num conjunto cada vez mais alargado de setores da produção mer-cantil, um fenômeno que podemos chamar de “culturalização da economia”.

Já do ponto de sua dimensão restrita, portanto, como campo es-pecializado de produção de sentidos, a cultura materializada na for-ma de bem ou serviço (simbólico-cultural), e a consequente consti-tuição de uma economia da cultura com seu potente mercado que atua em escala global, ocupa lugar de proa na atual fase da acumu-lação capitalista, ou seja, desempenha papel de extrema relevância na dimensão econômica do desenvolvimento como elemento ca-paz de gerar, em grandes proporções, emprego e renda.

Assim, seja pelo que significa enquanto dimensão ampliada, seja pelo que configura por conta da sua dimensão restrita, a cultu-ra deve marcar presença em todos os centros de decisão governa-mental e, assim, cortar de maneira transversal o conjunto das polí-ticas públicas que se ocupam da problemática do desenvolvimento.

Perigos e cuidados no enfrentamento do problema

Iniciamos este capítulo delimitando um problema: aquele que se circunscreve ao risco de naturalização da relação entre criatividade, inovação, cultura e desenvolvimento. Afirmamos que, em contexto

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tão paradoxal, nosso objetivo era somente contribuir para fazer avançar a discussão da equação do desenvolvimento e de suas vari-áveis – criatividade, inovação e cultura.

É evidente que a rapidez com que tentamos delimitar conceitu-almente os “novos” termos (cultura, inovação, criatividade e, tam-bém, empreendedorismo), que têm vindo a frequentar a “equação” do desenvolvimento, nem de longe dá conta da complexidade que encerram. É esta, com certeza, uma tarefa que exige um esforço de investigação multidisciplinar que precisa ser devidamente apro-fundado.

Analisamos a relação entre desenvolvimento, inovação e criativi-dade, de uma perspectiva schumpetriana, definindo desenvolvi-mento como o processo de destruição criadora, engendrado pela geração e difusão de inovações. Assinalamos ainda que, da pers-pectiva da literatura sobre desenvolvimento e inovação revisada, não podemos incorrer no risco de desconhecermos a importância e as contingências das instituições e do ambiente institucional para a criatividade, inovação e desenvolvimento, tendo em vista que todo desenvolvimento é dependente de caminho (path dependence).

Tentamos também evitar a “naturalização” do resultado virtuoso da relação entre cultura e desenvolvimento, evitando o risco de ne-gligenciar as especificidades do “onde e quando” se dá a trama so-ciocultural, isso é, as especificidades simbólico-culturais dos luga-res e territórios e sua apropriação por atores diferenciados, pois transformações nos usos e práticas podem vir acompanhadas de exclusões tanto de culturas como de seus agentes produtores primá-rios. Também não podem ser negligenciadas variáveis fundamen-tais e que se inscrevem no terreno da história, da política e da economia. Lembremos que a ênfase excessiva na criatividade de indivíduos e grupos na conformação de padrões de produção e de acumulação amplia riscos de recaídas deterministas de que “pro-gresso” e “desenvolvimento” são apanágios apenas de determinados

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povos, enquanto que outros estão fadados à pobreza e ao atraso eternos.

Outro cuidado de grande importância diz respeito ao fato de que não se pode sobrevalorizar os aspectos alegóricos dos bens cultu-rais em detrimento de seus aspectos simbólicos para atribuir-lhes valor de mercado, isto é, valor de troca, o que significaria reservar-mos à cultura um papel de simples e mero “recurso” na composi-ção da “equação” do desenvolvimento. Cuidados, também, devem ser adotados no que concerne às formas de organização da produ-ção e do trabalho no mercado da cultura e seus rebatimentos sobre a geração de valor, a natureza dos bens e serviços simbólico-cultu-rais e as formas de apropriação da riqueza gerada.

Igualmente importante é o cuidado em não reforçar a aplicação de marcos regulatórios tradicionais, a exemplo daqueles compre-endidos no escopo dos direitos de propriedade intelectual, mas não só esses, forjados sem considerar as múltiplas implicações e imbri-cações entre os conceitos ampliado e restrito de cultura e largamen-te alheios ao interesse público, tanto do ponto da fruição quanto no que toca aos processos de criação, produção e circulação dos bens culturais; reforço que minimizaria o alcance de objetivos de maior equidade na distribuição da riqueza gerada pela produção e comer-cialização de bens simbólico-culturais entre seus múltiplos agentes de produção.

Por fim, e numa perspectiva mais geral, é preciso estarmos aten-tos e alertas para que o potencial de geração de riquezas e de em-pregos representado pelo mercado da cultura não seja apartado da compreensão da cultura como geradora de riquezas simbólicas. Ou seja, não se trata apenas de perseguir o crescimento econômico por meio do estímulo às atividades ligadas à cultura, mas, também, e principalmente, de criar as condições propícias ao aumento da diversidade das manifestações culturais, promovendo a inclusão, simultaneamente cultural, social e econômica, de novos e múlti-plos agentes criadores.

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Adotar uma visão instrumental, e não substantiva, da relação en-tre cultura e desenvolvimento, significará, sem mais, reforçar e proteger os interesses dos agentes e repertórios culturais já estabe-lecidos. Significará, enfim, desconsiderar que a cultura, dimensão fundamental do desenvolvimento das sociedades, dos grupos so-ciais e dos indivíduos, representa um único e insubstituível corpo de valores que alimenta o enriquecimento do patrimônio comum da humanidade, na medida em que as tradições e experimentações de uma sociedade ou de um grupo social e suas formas de expres-são são seus meios de afirmar sua presença no mundo. A ausência dessa visão substantiva de cultura impacta negativamente sobre os outros termos da equação do desenvolvimento: criatividade e ino-vação/empreendedorismo.

Assim, o que se espera da relação entre cultura e desenvolvi-mento é, além da criação de um clima cultural propício à criativi-dade e à inovação, certamente, a perspectiva do acionamento das oportunidades que se abrem quanto à expansão do espaço de cria-ção e de circulação de manifestações culturais, com evidentes ga-nhos econômicos, mas, também, com ganhos propriamente cul-turais, com a produção e a circulação ampliadas de repertórios simbólicos capazes de oferecer alternativas às produções simbóli-cas dominantes, incluindo-se aí diferentes concepções e modelos de desenvolvimento.

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(sub)desenvolvimento, diversidAde culturAl, criAtividAde e o desenvolvimento locAl/regionAl no brAsil

O Brasil logrou construir, ao longo de séculos, ponderável unida-de na diversidade. Montou uma complexa e enorme economia na-cional, uma sociedade de massas urbanizada e sofisticada, porém nunca completou os requisitos centrais para se constituir enquan-to uma nação. O tema maior de todos os grandes intérpretes do Brasil – a marcha travada da construção da nação – é, portanto, ainda extremamente atual e decisivo nesta já segunda década do século XXI. Na verdade, “aos trancos e barrancos”, e graças à força mercantil da exploração dos negócios privados, e mesmo graças às fases recorrentes de mais aberta violência ditatorial, construímos um território nacional relativamente coeso (embora de apropriação itinerante e sempre reprivatizada). O vasto espaço geográfico e de reprodução social se configurou como um imenso e heterogêneo mosaico (mas também como uma continental plataforma territo-rial de expropriação e fuga para a frente), cuja única positividade é

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a diversidade regional e cultural de seu povo. Certamente, qualquer construção futura de uma civilização brasileira desenvolvida deverá estar ancorada nessa variedade sociocultural.

Em mais de quinhentos anos de história, partindo de um gigan-tesco espaço colonial-escravista e de uma dispersa “constelação” de núcleos de exploração mercantil, “chegamos a um povo de extraor-dinária polivalência cultural, a um país sem paralelo pela vastidão territorial e homogeneidade linguística e religiosa.” (FURTADO, 1992, p. 35) Porém chegamos a um país de extrema estratificação social, constituído, por um lado, de altas “castas” elitistas e opresso-ras, e de outro, por uma massa populacional redundante e margi-nalizada em relação ao núcleo moderno da economia, destituída que é dos privilégios e da segurança da propriedade, dos direitos e da cidadania plena.

No presente e no futuro, do enfrentamento de todas as formas de desigualdades e da revelação e valorização de todas as formas de diversidade, se poderá forjar uma matriz civilizacional singular, que poderá desestruturar e romper com o subdesenvolvimento e a dependência, marcas maiores, ainda, de nossa posição periférica e subordinada no contexto mundial, e ainda enfrentar as heteroge-neidades estruturais (sociais, regionais e produtivas) e valorizar nosso único trunfo – o magnífico patrimônio das diversidades múl-tiplas –, além de promover, de forma duradoura, o enriquecimento não só material, mas, sobretudo, cultural de nossa sociedade.

Este breve ensaio pretende alinhavar alguns elementos conside-rados essenciais em nossa trajetória histórica, em uma perspectiva de longa duração, esboçando o possível diálogo entre os mais estru-turais problemas nacionais brasileiros e as dimensões culturais e regionais do nosso processo de desenvolvimento.

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Subdesenvolvimento, dependência, heterogeneidades e diversidade cultural

O subdesenvolvimento é um processo histórico complexo através do qual uma sociedade vai acumulando historicamente múltiplos atrasos e deformando recorrentemente suas estruturas sociais. O subdesenvolvimento não é uma fase ou estágio que passará natu-ralmente com o transcorrer do tempo, simples momento na traje-tória linear rumo a uma situação superior, considerada a etapa em que se conclui e se alcança o progresso e o desenvolvimento. Pelo contrário, é uma estrutura com grande capacidade de persistência e reprodução de lógicas e instrumentos tradicionais e anacrônicos de dominação. Mesmo quando há crescimento e aumento do nível médio de vida da população, muitas vezes não se enfrentam as es-truturas reprodutivas do atraso, nem se conduz a um processo de homogeneização social.

Subdesenvolvimento é, sobretudo, uma malformação estrutural com grande capacidade de persistência, cumulatividade e reprodu-ção, com difícil irreversibilidade. Subdesenvolvimento é face, e não fase do processo de desenvolvimento. Não é uma etapa no percurso pré-definido de um caminho, mas face do processo global, mundial de expansão do capitalismo. É uma conformação, ou deformação constituinte e singular. Há acúmulo de formas e estruturas atrasa-das e retardamentos, no sentido constitutivo-genético, do ser com deformidades estruturais.

Subdesenvolvimento refere-se também à questão do caráter dos centros de decisão e comando sobre o destino de um espaço nacio-nal. Se esses centros são fracos, travados, insuficientes ou atrofia-dos, e não se logra constituir forças produtivas dirigidas a partir de um “sistema econômico nacional”, é porque se está em um contexto subdesenvolvido ou de mau desenvolvimento, como dizia Furtado.

Por sua vez, o processo de desenvolvimento significa que uma sociedade estendeu seu leque de opções e alternativas, ampliou seu

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raio de oportunidades. Esse alargamento dos horizontes de possi-bilidades requer o enfrentamento em várias frentes e de interesses diversificados e poderosos, pois desenvolvimento é tensão entre forças assimétricas. É um processo transformativo que exige a dis-torção da correlação de forças, que se busque desmontar os meca-nismos e as estruturas e coalizões tradicionais de dominação e re-produção do poder, forjando novo patamar de homogeneidade social, que se traduza em enriquecimento cultural, no sentido de Celso Furtado, e em apropriação dos avanços tecnológicos e novos padrões de sociabilidade e padrões civilizatórios.

O estudo do desenvolvimento tem como tema central a in-venção cultural, em particular a morfogênese social. Ora, essa temática permanece praticamente intocada. Por que uma sociedade apresenta em determinado período de sua história uma grande capacidade criadora, é algo que nos es-capa. Menos sabemos ainda por que a criatividade se orienta nesta ou naquela direção. (FURTADO, 1980, p. IX)

Vista dessa forma, a situação brasileira de busca de ampliação das margens nacionais de arbítrio, em diversas conjunturas históricas, encontrou sempre bloqueios extraordinários, antepostos pelos cen-tenários interesses anacrônicos estabelecidos. Em um contexto em que, por décadas, entregou-se o Brasil, “uma nação em construção travada ao mercado” (Furtado, 1980), e com massas despolitizadas e submetidas a enorme opressão tal tarefa se mostra hercúlea. O desafio político é ganhar poder de comando sobre os centros de decisão, em uma situação em que alguns poucos “nichos decisó-rios” estão internalizados e a maioria sob controle externo, e em que há o progressivo estreitamento dos horizontes temporais (e da legi-timidade) para as ações públicas estruturantes e coordenadoras.

No Brasil, país constituído como uma plataforma hospedeira de interesses nacionais e internacionais retrógrados, em que a explo-ração mercantilista e o ganho fácil prevaleceram, sobretudo na órbita

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da circulação, o estudo dessa órbita se torna fundamental. É aí que se captam de forma mais revelada as conexões entre subdesenvol-vimento e dependência.

[...] no estudo do subdesenvolvimento não tem fundamen-to antepor a análise ao nível da produção, deixando em se-gundo plano os problemas de circulação [...] é indispensável focalizar simultaneamente o processo de produção e o pro-cesso de circulação, os quais, conjuntamente, engendram a dependência cultural que está na base do processo de repro-dução das estruturas sociais correspondentes. (FURTADO, 1974, p. 80)

Nesse contexto, as discussões do perfil da acumulação estabele-cida e da destinação do excedente realizada tornam-se cruciais. Há a contínua reafirmação da dependência, posta a pretensão das eli-tes de imitação da cultura material da civilização industrial do capi-talismo avançado em um contexto de privação, desfiliação e desabi-litação das massas populares.

O paradoxal é que historicamente avança a acumulação (embora de natureza não reprodutiva, mas de preservação patrimonial e ga-nhos antirrisco) e, de forma simultânea, avança (e se torna comple-xa) a dependência. Essa, ao longo do tempo, ao invés de amainar, vai ganhando novo caráter e se vê revigorada. A assimilação de formas de vida miméticas e a modernização dos padrões de consumo con-firmam variadas configurações da dependência cultural, subordi-nando o processo de acumulação aos processos de modernização, em um emaranhado de articulações entre as relações externas e os mecanismos de dominação sociopolíticos internos.

Os grupos que se apropriam privilegiadamente do excedente so-cial, e se autossegregam espacialmente e através de símbolos de distinção, se apartam da maioria da população, assimilando, cres-centemente e sem mediações nacionais ou populares, novos e im-portados sistemas de valores.

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Segundo Furtado, “configura-se, assim, desde o início, um qua-dro de dominação cultural”, um avançar da “civilização industrial em sua propagação periférica”, reproduzindo padrões de sociabili-dade e formas sociais extemporâneas.

Nos países periféricos, o processo de colonização cultural radica originalmente na ação convergente das classes diri-gentes locais, interessadas em manter uma elevada taxa de exploração, e dos grupos que, a partir do centro do siste-ma, controlam a economia internacional e cujo principal interesse é criar e ampliar mer cados para o fluxo de novos produtos. (FURTADO, 1974, p. 85)

Irradiam-se, a partir dos mercados dos países centrais, padrões de consumo e comportamento para a periferia que pouco tem a ver com os ambientes institucionais e contextos de sociabilidade des-ses últimos.

Nessa problemática da modernização, da cópia dos hábitos con-sumistas de países em outro estado de desenvolvimento das forças produtivas, Furtado foi influenciado pela discussão do efeito de-monstração, conceito caro à Cepal, e pela leitura de Thorstein Ve-blen (1983) sobre as classes sociais ociosas, cuja “emulação pecuni-ária”, rivalidade das aparências através do consumo conspícuo, e o desejo cego em se notabilizar frente ao “outro” com suas marcas de distinção sobressaem-se sobre as outras vontades, como, por exem-plo, a nacional.1 Assim, seus estudos sobre o dinamismo da de-manda e do papel do processo de modernização na reprodução do subdesenvolvimento se consubstanciaram em uma:

1 caberia lembrar aqui dois outros grandes intérpretes. sobre o Brasil, sérgio Buarque de holanda (1936) destacará a americanização caricata dos estilos de vida das minorias afluen-tes da sociedade. sobre o mundo e a nação hegemônica norte-americana, Wright mills (1962) ensinará que o curso dos acontecimentos históricos não é uma corrente sem domínio, mas tem seus postos de comando nas decisões das “altas rodas” e dos círculos de poder dos estratos superiores que ocupam o centro das cadeias das ações dominantes.

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[...] teoria do subdesenvolvimento, que cuida do caso espe-cial de situações em que aumentos de produtividade e as-similação de novas técnicas não conduzem à homogenei-zação social, ainda que causem a elevação do nível de vida médio da população. (FURTADO, 1992, p. 7)

A investigação dos mecanismos de reprodução de estruturas de dominação arcaicas demonstrou como o Brasil construiu uma tra-jetória truncada de desenvolvimento, que recorrentemente trava o processo de homogeneização e o acesso mais amplo aos direitos fundamentais, exacerbando as heterogeneidades estruturais de toda ordem (produtivas, sociais, regionais, culturais, ambientais etc.).

Atacar de frente tais mecanismos, lógicas e estruturas sistêmicas de dominação exigiria construir homogeneização social, habilitando a população, intitulando e dando-lhe acesso à terra e outras proprie-dades, aos direitos, bens e serviços públicos de qualidade, minoran-do as privações, transformando a estrutura fundiária e imobiliária, dando acesso à educação, à cultura e ao conhecimento. Assim,

O conceito de homogeneização social não se refere à uni-formização dos padrões de vida e sim a que os membros de uma sociedade satisfazem de forma apropriada as necessi-dades de alimentação, vestuário, moradia, acesso à educação e ao lazer e a um mínimo de bens culturais. (FURTADO, 1992b, p. 6)

Valorizar a riqueza cultural brasileira e desmontar os mecanis-mos geradores de insegurança e marginalidade social típicos das formações capitalistas subdesenvolvidas, periféricas e dependen-tes exigiria partir do cumprimento universalizado de um patamar de acessibilidade cidadã aos bens e direitos, referenciado por valo-res substantivos.

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[...] o conceito de desenvolvimento, que se relaciona com grau de satisfação das ne cessidades básicas humanas elementares [requer] a referência a um sistema de valores, pois a ideia mesma de necessidade, quando não se trata do essencial, per-de nitidez fora de cer to contexto cultural. (FURTADO, 1980, p. 16)

Segundo Furtado (1980, p. 33), o estudo do desenvolvimento deve procurar “identificar a natureza do sistema de dominação: seu relacionamento com a estratificação social, seus meios de legitima-ção, sua organização no espaço, seus meios de reprodução etc.” Deve se centrar na análise dos horizontes de “enriquecimento do universo de valores capazes de incrementar a capacidade de ação.” O exercício de engendrar e aproveitar opções, que é o processo de desenvolvimento, deve articular cultura, criatividade e liberdade. Construir democraticamente participação nos centros de decisão e expandir a autonomia, baseada na criatividade, para escolher cami-nhos a trilhar.

Para Celso Furtado, cultura não se restringe à sua dimensão artística, entendendo-a, em suas dimensões mais amplas, como modo específico de ser no mundo de um povo, a par-tir das formas como constrói sua vida material e simbólica, sendo, neste sentido, o espaço da alteridade e da liberdade. Assim, tanto o imediato dos padrões de consumo, e de ur-banização, quanto a ciência e a tecnologia, tanto os modos de organização política quanto as formas de interação com as fronteiras simbólicas estrangeiras são dimensões da cul-tura e, desse modo, elementos do processo de desenvolvi-mento econômico e social da nação. (PAULA, 2007, p. 276)

Cabe lembrar a singularidade da grande prerrogativa brasileira de ser um dos maiores palcos mundiais da diversidade social, re-gional e cultural, de ser uma construção nacional em processo, for-jada no cadinho que misturou e fundiu povos e culturas múltiplos.

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Nos três séculos do período colonial desenvolve-se no Brasil uma cultura que, sendo portuguesa em sua temática e esti-lo, incorpora não apenas motivos locais mas também toda uma gama de valores das culturas dos povos dominados. (FURTADO, 1984, p. 20)

Elabora-se uma criatividade periférica e popular engendrada no isolamento relativo. As classes subalternas não lograram se sedi-mentar e constituir-se como um todo coerente. A reprodução social “dos de baixo” envolveu duas lógicas: a da mobilidade estrutural (espacial e social) de suas parcelas medianas; e a da marginalidade, a natureza de eternos desgarrados da terra-produção (sem-terra e marginalizados dos circuitos modernos da economia).

O distanciamento entre elite e povo será o traço característi-co do quadro cultural que emerge nesse período, produzido pela modernização dependente. As elites, como que hipno-tizadas, voltam-se para os centros da cultura européia, de onde brotava o fluxo de bens de consumo que o excedente do comércio exterior permitia adquirir [...] O povo era redu-zido a uma referência negativa, símbolo do atraso, atribuin-do-se significado nulo à sua herança cultural não européia e recusando-se valia à sua criatividade artística. (FURTADO, 1984, p. 23)

O isolamento popular relativo, marcante até a primeira metade do século passado, pouco a pouco será rompido pelo processo de rápida urbanização e avanço da participação das camadas médias: “a ascensão da cultura de classe média é o fim do isolamento do povo, mas também o começo da descaracterização deste como for-ça criativa.” (FURTADO, 1984, p. 24) A atividade cultural que ide-almente poderia se constituir em participação ativa da construção coletiva da civilização brasileira acaba capturada pela vida cultural privatista, como forma passiva de consumo. Uma parcela ampla da população brasileira não será integrada nos frutos benéficos dos

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processos civilizadores, mantendo uma cidadania inconclusa e li-mitada, depositando-se em loci periféricos em variados gradientes de não pertencimento:

As massas demográficas que a mo dificação das formas de produção pri va de suas ocupações tradicionais tendem a ins-talar-se em sistemas subculturais urbanos que só esporadica-mente se articulam com os mercados, mas exercem sobre es-tes uma forte influência potencial como reservatórios de mão de obra. Realizando em gran de parte sua reprodução de for-ma au tônoma, as populações marginais são a expressão de uma estratificação so cial que tem suas raízes na moderniza-

ção. (FURTADO, 1980, p. 24)

Essas massas depositadas, sobretudo nas cidades, encontraram-se em uma espécie de apartheid, com duras marcas de segregação ou discriminação, envoltos em suas estratégias de sobrevivência, como entes não absorvidos pelos mercados formalizados (de traba-lho, de terra, de moradia etc.) e jazeram destituídos de direitos. Consolida-se uma separação espacial, cultural, de status, em que a essas populações bloqueadas pelos processos de habilitação e cida-dania restam a prestação de serviços pessoais, domiciliares e outros empregos de baixa qualificação e salário. Em suma, têm baixa capa-cidade de incorporação com estabilidade e consistência na estrutu-ra de papéis e posições da nova sociedade urbana moderna que se instala.

Assim desprezado pelas elites, o povo continua seu pro- cesso formativo com considerável autonomia, o que permiti-rá que as raízes não européias de sua cultura se consolidem e que sua força criativa se expanda menos inibida, em face da cultura da classe dominante. A diferenciação regional do

Brasil deve-se essencialmente à autonomia criativa da cultura

de raízes populares. (FURTADO, 1984, p. 23)

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Assim, a diversidade cultural constituída no imenso território en-gendrou uma rica diversidade regional e urbana, porém marcada por imensas e persistentes desigualdades sociais e regionais.

Desenvolvimento local/regional no Brasil: dinâmicas e impasses

De mera plataforma de feitorias de unidades isoladas de negócios mercantis e verdadeiro arquipélago de núcleos monocultores e pri-mário-exportadores, centrífugos e exogeneizados, tendo toda sua lógica de funcionamento submetida aos desígnios dos mercados externos, ergueu-se no território brasileiro uma das dez maiores e complexas economias nacionais urbano-industriais do mundo. Esse “sistema econômico nacional” alcançou, com o passar do tem-po, elevado grau de integração comercial e produtiva, dotando-se de uma rede matricial de relações intra e interindustrial, que se distri-buiu desigualmente por todo o país e, mesmo com alta concentra-ção espacial, mostrou-se virtuosa no engate de todas as economias regionais em uma complementaridade expansiva, que conformava um todo que “crescia junto”, embora com assimetrias e disritmias entre suas partes coesionadas.

O intenso processo de crescimento histórico-geográfico desigual acentuou-se durante o século XX, com a concentração espacial de sua população e de sua riqueza material em uma restrita porção territorial, basicamente no litoral e no Centro-Sul, embora com as marcas de uma rede urbana, simultânea e, paradoxalmente, con-centrada e dispersa.

Cinquenta anos de industrialização acelerada, intensos fluxos migratórios, urbanização (simultaneamente metropolizada, inte-riorizada e de constituição de polos regionais medianos), integra-ção e nacionalização dos mercados (de bens, de trabalho e de con-sumo), sofisticação das classes sociais, sobretudo da fração média, insurgência de lutas políticas, estruturação de um pacto federativo

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sui generis, oferta de bens e serviços públicos massivos (porém in-suficientes e sem qualidade adequada), dentre outros, foram pro-cessos rápidos e intensos que se entrecruzaram e amalgamaram.

Consolidou-se um complexo esquema de relações centro-perife-ria, ancorado em uma longa trajetória de junções inter-regionais articulativas, que solidarizaram, pela via do mercado, as partes do país, fazendo com que os variados espaços regionais confluíssem seus projetos e coalizões de expansão em torno de uma conven-ção desenvolvimentista durável por meio século (1930/1980). Es-ses movimentos virtuosos, compostos por ciclos ampliados de produção-distribuição-consumo e de dinamismo econômico im-pulsionado pela sincronia entre as decisões públicas e privadas de inversão pesada, fez com que o país construísse integridade nacio-nal notável, dado o porte e a complexidade de suas heterogeneida-des estruturais.

A exploração mercantil encontrou reiteradamente vantagens ex-pansíveis, ao se apropriar das potências virtuosas, possibilitadas pela variedade de desmesuradas fronteiras internas de acumulação rurais-urbano-regionais de valorização, disponibilizadas recorren-temente em espaços potenciais sempre abertos e desimpedidos para a extração de lucros com pouco ou nenhum risco, e sempre sob amparo do Estado.

No plano econômico foram se definindo “novas áreas setorial-mente integradas com o núcleo central do aparelho produtivo nacio-nal”. Há uma “restruturação da demanda em favor de bens moder-nos e contra formas de gastar tornadas obsoletas”.

A fusão de mercados acompanhada da reestruturação da de-manda implica em movimentos vários: recuo e desapareci-mento de empresas tornadas submarginais; recuperação de unidades com possibilidades de evolução; implantação de novas empresas e ramos até então inexistentes nas regiões menos desenvolvidas [...] [tudo] aponta no sentido de uma maior integração das atividades ‘centrais’ e ‘periféricas’ [...]

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estimulando a descentralização dos investimentos. Decorre desse movimento uma crescente ‘sucursalização’ das econo-mias regionais que se traduz na gradativa constituição de um sistema regional interdependente, centrado sobre um polo onde se situam, preferencialmente, as matrizes de empre-sas de dimensão nacional. Ali ficam sediados, não apenas os maiores empreendimentos no campo manufatureiro, como os grandes interesses comerciais e os centros nervosos do sistema financeiro nacional, amalgamados num complexo in-

dustrial-comercial-financeiro. (CASTRO, 1969, p. 174, grifos do autor)

No último quartel do século XX a ação estatal, sobretudo na peri-feria nacional, reforçou seu papel de investidor direto e estruturan-te do território nacional. A implantação de um pesado bloco de in-vestimentos, a partir do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) 1974/76, proveu infraestrutura básica e avançou inversões diretas das empresas estatais nas indústrias de insumos básicos e de bens de capital. A expansão dos complexos minerais, agromer-cantis, agropecuários e agroindustriais, as diferentes formas de in-serção das matrizes produtivas regionais nos específicos mercados internacionais, de acordo com suas “especializações” setoriais pro-dutivas, determinaram que diversas porções periféricas lograssem dinamizar suas bases econômicas regionais.

No plano social, o crescimento econômico de todas as macrorre-giões gerou capacidade, localizada, mas potente, de absorção em estruturas ocupacionais formais para certas parcelas da população, que foram entranhadas por movimento de mobilidade intergera-cional e interespacial, encontrando abrigo na expansão e diversifi-cação dos estratos urbanos médios e metropolitanos em cada esta-do da federação. Outras parcelas acabaram jazendo em outras órbitas suburbanas, marcadas pela marginalização, desfiliação e desclassificação. Consolidou-se um regime de crescimento econô-mico rápido, e pelos caminhos de menor resistência, que legitimou

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um estilo perverso de convivência social. Taxas milagrosas de cres-cimento conjugadas com um padrão de sociabilidade extremo e de segregação, com talvez a montagem da maior máquina de exclusão do planeta, em que se amalgama esterilização de excedente social, depredação cultural, exclusão social, degradação ambiental e preda-ção de pessoas, recursos naturais e espaços geográficos abundan-tes. Em suma, em termos nacionais, e sobretudo durante os “cin-quenta gloriosos” do Brasil (1933/81), consolidou-se uma sociedade de massas complexa, dispersa e amorfa.

No plano político, frente a essa massa informe que se dispôs dife-renciadamente por todo o território nacional, solidificou-se incon-teste a hegemonia do bloco no poder das cúpulas políticas mercan-tis-territoriais-rentistas que dominam o Brasil. Com suas marcas históricas de imposição não democrática, pela via ditatorial, da co-optação ou do populismo, dentre outros mecanismos, soldaram-se as coalizões políticas conservadoras, ancoradas nos privilégios da valorização, garantidos pelo Estado, nas órbitas extensivas da circu-lação dos capitais, no controle inabalável da propriedade (rural e urbana) fundiária e imobiliárias e no uso geopolítico privatizado do território. Malgrado toda a “nacionalização” (dos mercados, das lu-tas e dos circuitos de valorização dos capitais), no Brasil ainda gras-sa, mesmo no século XXI, a força dos “regionalismos” e “localis-mos” oligárquicos e conservadores, e a profusão de narrativas es- calares e espaciais das retóricas “paroquialistas” e reacionárias, muitas antipopulares e antinacionais. Para as equações políticas e econômicas que se estruturam nesse pacto de poder e dominação interna foram funcionais o caudilhismo localista e regionalista. Nesse contexto, as virtuosidades cidadãs da escala local presentes, por exemplo, nas sociedades europeias se viram comprometidas no Brasil. A localidade brasileira lembra ainda muito mais o “coro-nelismo, enxada e voto” clássico da primeira metade do século

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passado2 do que o utópico lócus do encontro e da ancoragem das identidades, dos sentimentos de pertencimento e das tradições cul-turais e democráticas.

No plano cultural, a modernização célere e conservadora, a mon-tagem de uma civilização industrial e de consumo de massas, em poucas décadas (em processos que os países centrais levaram sécu-los para erigir), determinaram a imposição da indústria cultural. Historicamente, a extensividade, a fuga para a frente e a descartabi-lidade (de territórios, pessoas, instituições, normas etc.) foram as marcas maiores da experiência brasileira de intenso crescimento econômico, afligindo ou assolando as tradições locais e regionais que lutam por preservação. A altíssima concentração de renda, ri-queza e poder forjou o isolamento das capas inferiores e da ampla massa de deserdados e fez ascender aos centros de decisão dos des-tinos nacionais as elites aculturadas e as classes médias superiores, ambas com vocação mimética em relação aos padrões culturais e de consumo dos países centrais, embotando as possibilidades de constituição de uma sociedade menos autoritária e que pudesse dispor dos mecanismos e elementos de enriquecimento cultural e civilizatório de caráter mais permanente no curso de sua evolução histórica.

Na diversidade das regiões estão as raízes de nossa riqueza cultural. Mas a preservação desta riqueza exige que o desen-volvimento material se difunda por todo o território nacional.

No plano da escala planetária, não participamos de nenhum jogo decisivo no concerto da divisão internacional do trabalho. No plano da escala nacional, segundo Furtado, não tivemos ao longo da his-tória agressões culturais separatistas-nacionalistas, étnicas ou reli-giosas. Nossos problemas estiveram ligados ao estabelecimento de mecanismos permanentes de geração de assimetrias estruturais e

2 com a “ausência ou rarefação do poder público, apresenta-se o ‘coronelismo’ como certa forma de incursão do poder privado no domínio público.” (leal, 2012, p. 275)

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relações de dependência econômica entre as distintas regiões. Já no plano da escala regional,

[...] como somos um país de fronteiras que se deslocam per-manentemente, dentro do próprio território, nosso conceito de região é necessariamente dinâmico. Mas essa consciên-cia de unidade nacional, dentro de um espaço que se ex-pande, coexiste com o senso de identidade que se definiu historicamente em cada região particular. A identidade do brasileiro tem raízes em sua inserção regional. (FURTADO, 1999, p. 46)

Furtado irá colocar no centro de sua análise da problemática re-gional brasileira a questão do nosso pacto federativo. Em um país continental e cicatrizado por acentuadas heterogeneidades estrutu-rais, submetido a pressões desarticuladoras e de fragmentação, como o Brasil, seria decisivo dar margem de manobra às aspirações das regiões mais dependentes e garantir que o desenvolvimento material se difundisse menos assimetricamente dentro e na rela-ção entre as regiões. As relações entre as regiões brasileiras não deveriam ser de contraposição entre unidade nacional e identidade regional, sobretudo em um contexto em que a concentração geo-gráfica da riqueza e da renda e a transnacionalização tendiam a promover um perigoso afrouxamento dos vínculos de solidarieda-de entre as regiões díspares, colocando o risco sempre iminente da fragmentação. Só a integração, em suas diversas dimensões, pode-ria costurar a continental e heterogênea nacionalidade. Integração para dentro, mas também para fora, a fim de construir a coesão de toda a América Latina.

Na década de 1990 estas características estruturais se exacerba-ram em razão das opções neoliberais de condução da política econô-mica realizadas. Como de praxe, no Brasil, sempre que falha o enga-te em um ciclo internacional de liquidez exacerba-se o loteamento/privatização do Estado como locus de luta de setores empresariais

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com poder equipotente frente ao Estado, procurando escapar à re-tração/estagnação. O Estado perde poder de coordenação estrutu-rante, de orientar e promover frentes de expansão atrativas. torna-se cada dia mais difícil acomodar e coordenar tantos, grandes e dis-persivos interesses. Assim, em meados de 1990, promoveu-se a privatização do patrimônio público (telecomunicações, energia elé-trica, bancos, ferrovias, rodovias, mineração etc.) sem qualquer orientação estratégica.

Depois consolidou-se enorme perda de capacidade de concatena-ção por parte do Estado e, em decorrência, de indução do investi-mento privado. Ocorreu reespecialização e remercantilização, pois o Brasil durante os anos 1990 aprofundou ainda mais suas vanta-gens competitivas estáticas e absolutas históricas nos segmentos padronizados e de processamento contínuo de recursos minerais, florestais, energéticos, agrícolas e pecuários, como a produção de minério de ferro, siderurgia e alumínio (basicamente insumos me-tálicos semiacabados), petróleo e petroquímica, celulose e papel, alimentos industrializados (grãos, suco de laranja, carnes etc.) e têxteis padronizados etc. Assim ocorreu regressão no dinamismo industrial, com o reforço do agronegócio, dos segmentos ancora-dos na exploração de recursos naturais, extração e beneficiamento de petróleo e outros minerais.

Em suma, as forças sociais e políticas da redemocratização, que haviam imposto importantes avanços durante o processo consti-tuinte, não lograram fazer frente ao processo avassalador da verda-deira revolução conservadora (razão neoliberal) que tomou conta do país. A década perdida, 1980, seguida da desperdiçada, 1990, foram caracterizadas por surtos setorializados, incoerentes, instá-veis e focalizados de crescimento econômico em restritos pontos do espaço em cada uma das macrorregiões brasileiras. A perda ge-neralizada de dinamismo econômico e o alargamento dos desní-veis socioeconômicos entre suas regiões foram determinados pelo ambiente macroeconômico internacional, as opções equivocadas

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de política econômica e a perda da qualidade sistêmica e orgânica da atuação do Estado, o que resultou em disritmias entre os inves-timentos públicos e privados.

Os processos de abertura comercial e financeira, desmonte das capacidades estatais de intervenção e entrega do patrimônio públi-co à “iniciativa privada”, a internacionalização de parcela funda-mental do parque produtivo nacional, dentre outros fatores, deter-minaram importantes transformações nas relações entre as regiões brasileiras. Essas foram impactadas seletiva e setorialmente em suas as estruturas socioeconômicas e urbano-regionais. Foi muito diversa a sensibilidade de cada região aos processos de abertura, aos determinantes microeconômicos da reorganização empresa-rial, à deterioração da infraestrutura econômica e à desestruturação do setor público nos três níveis de governo da federação. (SIQUEI-RA, 2010)

Nos vinte anos, desde a crise da dívida até o final do governo FHC (1982/2002), as transformações do quadro regional brasilei-ro resultaram, em grande medida, de forças inerciais, involuções e desconstruções, isto é, mais dos impactos diferenciados regional-mente da crise econômica e das opções conservadoras de políticas macroeconômicas do que de alguma decisão autônoma de mudan-ça ou de uma política regional institucionalizada.

A partir do governo Lula, em 2003, mas sobretudo no período de crescimento 2004/2008, uma série de políticas de desenvolvimen-to foram implementadas, mesmo que a política econômica tenha se mantido conservadora. Caberia destacar a expansão do ensino superior, o crescimento formal do emprego, o avanço das políticas de transferência de renda, a valorização do salário mínimo, a ex-pansão do volume e das linhas de crédito e a luta pela permanência das conquistas e dos ganhos sociopolíticos da constituição cidadã.

Um conjunto de grandes projetos de investimento foi iniciado nos setores agroindustriais: da indústria extrativa mineral, da in-dústria automobilística e da infraestrutura. A implementação dos

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programas de exploração do pré-sal, de biocombustíveis e dos gran-des projetos de infraestrutura e de energia no âmbito dos PACs e dos novos programas no âmbito do Plano Brasil Maior (PBM) do Governo Federal, com o objetivo de estimular alguns setores consi-derados estratégicos, tais como o Programa Inova Petro, Plano Na-cional de Logística e Transportes (PNLT), as concessões e o novo regime automotivo (Inovar-Auto), poderão trazer grandes reper-cussões territoriais. (SIQUEIRA, 2013)

Os investimentos discutidos no âmbito da Iniciativa para a Inte-gração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e do Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (Cosi-plan) dos países membros da União das Nações Sul-Americanas (Unasur) compreendem 31 projetos-âncora buscando constituir um portfólio de ações conjuntas, almejando a maior integração fí-sica das infraestruturas logísticas, energéticas e de telecomunica-ções de doze países sul-americanos.

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em 2007, procura mobilizar um poderoso bloco simultâneo de inver-sões em infraestrutura. O conjunto dos investimentos programa-dos está organizado em três eixos: Infraestrutura Logística (cons-trução e ampliação de rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e hidrovias); Infraestrutura Energética (geração e transmissão de energia elétrica, produção, exploração e transporte de petróleo, gás natural e combustíveis renováveis); e Infraestrutura Social e Urba-na (saneamento, habitação, metrôs, trens urbanos, universalização do programa Luz para Todos e recursos hídricos).

Os investimentos do PAC, do pré-sal, da integração física e ener-gética sul-americana, do Trem-Bala, da Copa do Mundo e das Olim-píadas sugerem, devido a seus padrões locacionais rígidos, a ameaça de se reforçar a já enorme concentração de riqueza e oportunidades no espaço geográfico de maior dinamismo e melhor dotado de in-fraestruturas. A montagem de novas plantas (greenfields) industriais que requerem escala e densidade urbana e econômica tende a se

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localizar no centro-sul, sobretudo no litoral, o que indicia que esta-ríamos caminhando para um novo ciclo de reconcentração espacial da produção, da renda e da geração de empregos de qualidade.

No Brasil no período pós-1980 as instâncias de coordenação fo-ram sendo desmontadas, o que fez com que prevalecesse uma perspectiva setorialista e compartimentadora nas decisões públi-cas. As ações públicas se tornaram predominantemente setoriais e fragmentadas e orientadas pelo atendimento das demandas locali-zadas e circunscritas, de curto prazo. Por exemplo, se deslegitimou totalmente o tratamento abrangente e com continuidade planeja-dora da questão regional e da questão urbana.

As ações de indução pública e coletiva devem ultrapassar a sim-ples lógica e racionalidade do mercado e construir a competitivida-de sistêmica, contrária à simples especialização em vantagens na-turais reveladas (que na maioria dos espaços regionais mantém frágeis ou ausentes vínculos com sua hinterlândia e o território do seu entorno mais imediato).

Contra as ações fragmentadas e tópicas, serão necessárias apro-ximações sucessivas e ingresso no sítio para atingir adequadamen-te o lugar (place) em que a atuação pública é mais necessária, so-bretudo nas porções territoriais mais débeis. O lugar é a expressão do singular que precisa ser captada nas ações públicas emancipa-tórias e é o lócus último da efetivação e da efetividade dessas ações. Uma transformação na oferta de bens, serviços e infraestruturas sociais, meios de consumo coletivos de qualidade, que construam cidadania e segurança para as populações em situação social de risco é requerida. Mas essa ação pública não deve apenas transferir renda, fomentar emprego e fazer progredir o enriquecimento ma-terial, é preciso também a valorização da cultura e da criatividade, almejando o respeito à diversidade e a busca do enriquecimento cultural duradouro.

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Considerações finais

Como afirmou Celso Furtado (2002, p. 36),

A superação do impasse com que nos confrontamos requer que a política de desenvolvimento conduza a uma crescente homogeneização de nossa sociedade e abra espaço à rea-lização das potencialidades de nossa cultura […] a questão central se limita a saber se temos ou não possibilidade de preservar nossa identidade cultural.

“Somente a vontade política é capaz de canalizar as for-ças criativas para a reconstrução de estruturas avariadas.” (FURTADO, 1984a, p. 31)

Furtado se perguntava como uma sociedade como a brasileira, partejada no movimento expansivo europeu, pôde historicamente acumular tamanho atraso e deformação em suas estruturas so-ciais? Como pôde deixar de fora dos processos virtuosos do cresci-mento a parcela majoritária da população, enquanto dinamizava o consumismo ostentatório e imitativo do comportamento das elites dos países desenvolvidos? Como pôde dar utilização ao excedente social, realizando progresso técnico apenas pelo lado da demanda, pela via da modernização acelerada para uma minoria, sem desti- ná-lo minimamente para a satisfação das necessidades básicas da maioria, restringindo as cadeias de decisão ao comando de uma elite aculturada?

O Brasil modernizou-se rapidamente, porém não se desenvol-veu. O subdesenvolvimento prevalece como uma malformação es-trutural, geradora e reprodutora de desigualdades de toda ordem (sociais, socioespaciais etc.), e através de vários mecanismos. O Bra- sil mantém suas cicatrizes de subserviência ao império e de ver-dadeiras relações estamentais entre suas classes sociais. Apesar de ter construído a articulação econômica, a integração dos mer-cados regionais e a unidade nacional, todo o processo se deu sob

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um pacto de dominação ultraconservador, antidemocrático e anti-popular. Apesar de ter engendrado socioeconomias urbano-regio-nais e rurais bastante complexas e modernas, estas estiveram, e continuam estando, submetidas à estrutura política arcaica deste pacto, que soldou alianças políticas e um contrato social produtor de todas (e simultâneas) expressões de desigualdades. Acredito que o país montou talvez a maior máquina de (re)produção de desigual-dades do planeta. A expansão e apropriação territoriais privatistas conformaram forças produtivas, mas também “forças predativas”, muito potentes, marcadas pela “fuga para a frente”, com o privilé-gio da órbita da circulação dos capitais e o controle inabalável da propriedade (rural e urbana) fundiária que sempre costuraram as equações política e econômica que produzem o espaço brasileiro. Na verdade são forças totalitárias que em sua extensividade domi-nam ditatorialmente os espaços rurais, regionais e urbanos. Há um fascismo territorial marcado pela hegemonia política de formas mercantis-patrimonialistas e financeirizadas-rentistas, tendo clas-ses sociais precariamente constituídas.

De acordo com Furtado, só o processo de planejamento como uma técnica social que ordenasse a ação público-coletiva poderia lograr revelar os interesses postos, ou seja, tornar menos opacas as relações de poder e os projetos políticos em disputa em cada alter-nativa escolhida ou a escolher.

Entretanto, não se consolidam legitimação e força política sufi-cientes para romper o impasse da implementação de políticas na-cionais e regionais de desenvolvimento que, simultaneamente, respeitassem e pudessem fazer aflorar nossa diversidade e promo-vessem o enriquecimento cultural, ao tempo que enfrentassem o desigual desenvolvimento de suas regiões menos favorecidas pela má distribuição do enriquecimento material.

Nesse contexto, recoloca-se recorrentemente o desafio de ques-tionar como fazer aflorar e desatar nossas energias adormeci- das da criatividade contida e valorizar a riqueza cultural, revelada

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ou latente, de uma civilização nacional com altas heterogeneidade e diversidade.

O objetivo estratégico é assegurar um desenvolvimento que se traduza em enriquecimento da cultura em suas múltiplas dimensões e permita contribuir com criatividade própria para a civilização que se mundializa. No fundo está o desejo de preservar a própria identidade na aventura comum do processo civilizatório. (FURTADO, 1994, p. 42)

No enorme potencial de variedade (regional, setorial, urbana, cultural, ocupacional, etc.) estaria a chave de nossas possibilidades históricas civilizacionais, costurando politicamente uma configu-ração que capture, acione e valorize permanentemente essa rique-za de nossa ecologia da “biosociodiversidade”. A vitalidade e as po-tencialidades da convivência de talentos imaginativos e ativadores da capacidade revolucionariamente inventiva, criativa e cultural da sociedade brasileira, “fazendo aflorar nossas energias contidas.”

[...] todos os povos aspiram a ter acesso ao patrimônio co-mum da humanidade, o qual se enriquece permanentemen-te. Resta saber quais são os povos que continuarão a con-tribuir para esse enriquecimento e quais aqueles que serão relegados ao papel passivo de simples consumidores de bens culturais adquiridos nos mercados. Ter ou não ter acesso à criatividade, eis a questão. (FURTADO, 1999, p. 53)

Como construir trajetórias históricas mais autônomas e sobera-nas, alicerçadas em nosso específico patrimônio cultural, e vias mais plurais, alternativas e singulares de desenvolvimento inclusi-vo e duradouro?

Talvez uma boa forma de encerrar, depois dos traços largos aqui delineados neste ensaio, fosse citando os questionamentos cruciais e emocionados do nosso mestre e suas recomendações, de longo alcance, e pela luta democrática perene:

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Quantos milhões de vidas são ceifadas, anualmente, num país como o Brasil, pelo subdesenvolvimento? Quantos mi-lhões de vidas são consumidas, pela fome e pelo desgaste fí-sico provocado por formas primitivas de trabalho, antes que alcancem a plena maturidade? Quantos milhões de seres humanos por aí estão sem que tenham acesso à alfabetiza-ção ou qualquer outra oportunidade de participar nas ma-nifestações médias e superiores da cultura? Poucos de nós temos consciência do caráter profundamente anti-humano do subdesenvolvimento. (FURTADO, 1962, p. 23)

[É preciso negar a aculturação das minorias dominantes e lutar para superar o subdesenvolvimento, destruindo estruturas arcaicas e enrijecidas e construindo] “estruturas sociais que abram espaço à criatividade num amplo horizonte cultural e gerem forças preventi-vas e corretivas nos processos de excessiva concentração do poder.” (FURTADO, 1994, p. 42)

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o cAPitAlismo imAteriAlOs novos papéis da cultura, da informação e

do conhecimento.

1) No âmbito deste trabalho, analisarei as diferentes dimensões da “Economia imaterial” a partir de duas hipóteses que caracterizam o conjunto da obra de Celso Furtado: (a) a centralidade da Cultura (estrito, e largo, e senso) no processo de desenvolvimento econô-mico e (b) a necessidade de conciliar a análise abstrata com a di-mensão intrinsecamente histórica dos fenômenos sociais e econô-micos. Ressaltarei assim o papel crescente que a Cultura assume nos processos de crescimento e de desenvolvimento econômico e a necessidade de historicizar as ferramentas utilizadas para imple-mentar uma análise deste tipo.

2) Nos últimos anos, uma quantidade crescente de artigos cien-tíficos trata da Economia Criativa (Creative Economy). Esses artigos ressaltam a imaterialidade das diferentes atividades, seu peso cres-cente na Economia, sua dimensão qualitativa e individual; eles con-cebem este tipo de capital imaterial como a principal fonte de cres-cimento econômico.

O objetivo deste trabalho é duplo: trata-se de explicitar e de ana-lisar os mecanismos econômicos que permitem sustentar essas afirmações, no que diz respeito ao papel econômico da Cultura.

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Por outro lado, tal abordagem implica em ressaltar os limites ex-plicativos das teorias tradicionais diante dessas novas formas de acumulação.

A hipótese central que norteia este trabalho é a seguinte: os ele-mentos econômicos que eram considerados específicos aos bens culturais e imateriais, durante o fordismo, estão se generalizando para a maior parte das atividades econômicas, na fase atual do capi-talismo. São esses mecanismos que quero descrever e estudar aqui.

Este artigo sintetiza e atualiza uma série de trabalhos que já es-crevi a respeito da Economia da Cultura e da Informação, e tenta indicar, a partir desses resultados, novos eixos de pesquisa. Por esta razão, não retomarei aqui as diferentes análises e formalizações referentes a esses trabalhos anteriores, mas indicarei apenas as re-ferências utilizadas.1

3) O plano de estudo será o seguinte: numa primeira parte, cons-truirei uma periodização que diferencia os movimentos de indus-trialização e de desindustrialização da Cultura em relação ao fordis-mo e ao pós-fordismo. Numa segunda parte, mostrarei como essas evoluções implicam em modificações das modalidades concretas de produção de valor, e fornecerei uma definição do capitalismo “imaterial”. Ressaltarei as implicações no que diz respeito à nature-za econômica dos bens, às estratégias dos agentes e às formas con-correnciais.

1 a este respeito, da mesma maneira que vários economistas e sociólogos, ressaltei a existên-cia de uma “fratura digital”, e o fato dessas novas mídias serem, por natureza, excludentes. hoje, à luz das evoluções recentes, voltei, em parte, sobre essas conclusões; esses erros de previsão se explicam a partir da falta de uma definição do modelo econômico estabilizado que caracteriza a economia digital, e das modificações relativas à natureza econômica des-ses bens.

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As evoluções históricas: uma proposta de periodização

Retomarei e complementarei a periodização que eu tinha feito a res-peito das diferentes fases de mercantilização da Cultura. (HERS-COVICI, 1995) Os termos de Economia da Representação e da repetição provêm do livro Bruits, de Jacques Attali (1997), e se re-lacionam mais especificamente com a música; no entanto, eles podem ser aplicados, sem modificações maiores, ao conjunto das produções culturais.

as diferentes fases de industrialização da cultura e da informação

A Economia da Representação

De um ponto de vista histórico, a Economia da Representação, que se relaciona com o período que vai da metade do século XVIII até a metade do século XX, representa a primeira fase de mercanti-lização da cultura e dos bens simbólicos. No que diz respeito mais especificamente às Artes Cênicas e à Música, as características so-ciológicas e econômicas são as seguintes:

• O bem ou o serviço é totalmente individualizado: as produções artísticas e simbólicas são intrinsecamen-te ligadas a um autor e às especificidades de seu tra-balho. De um ponto de vista sociológico, é o capital simbólico específico do autor (o ready-made, segundo a expressão de Bourdieu (1977)) que explica o valor simbólico do bem cultural e, consequentemente, seu valor econômico.

• Contrariamente à época pré-capitalista, a validação social da obra é determinada a partir da validação

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econômica operada pelo mercado, ou seja, a partir da sanção de uma demanda “anônima”.

• Esses bens simbólicos são bens econômicos: (a) eles são trocados em mercados específicos e (b) eles são ob-jetos de Direitos de Propriedade que permitem auferir uma renda para os agentes que detêm esses direitos: criadores e editores.

Não obstante, tratam-se de bens específicos: eles não podem ser reproduzidos a partir de uma lógica industrial. Sua reprodução é limitada, e para cada “produção”, a presença do artista intérprete é necessária. Em outras palavras, a industrialização dessas produ-ções é, por natureza, limitada: não é possível implementar proces-sos de substituição capital/trabalho, o que significa que não é pos-sível diminuir substancialmente os custos de produção artísticos/intelectuais.

A Economia da Repetição

Este período, de 1950 a 1995, é caracterizado pela industrializa-ção da Cultura e pela intensificação de sua mercantilização. A apli-cação sistemática da tecnologia à reprodução e à retransmissão da imagem e do som permite minimizar diretamente os custos artís-ticos, a partir da reprodução industrial de uma matriz original, e maximizar as receitas a partir da ampliação das audiências assim alcançadas. O sistema de Direitos de Propriedade Intelectual é am-pliado: aos direitos de representação é preciso acrescentar os direi-tos de reprodução.

É o apogeu da Cultura de massa: os produtos são voluntariamen-te “descomplexificados” para poder maximizar o público e as audi-ências, (HERSCOVICI, 1995) há uma queda dos preços de acesso e uma primazia da oferta em relação à demanda.

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No caso dos produtos culturais editados sobre um suporte mate-rial (livros, discos e CD), ou produzidos (concerto, teatro, Artes Cê-nicas, cinema), o consumo é individual e os bens são bens priva-dos: tratam-se de bens escassos cujo acesso é condicionado ao pagamento de um preço.

Outros modelos2 aparecem: a imprensa, o rádio e a televisão aberta. A impressa representa um modelo diferente, à medida que parte de suas receitas provém da venda de espaços publicitários, ou seja, da venda de audiência. O rádio e a televisão aberta vão utilizar este mesmo mecanismo; o desenvolvimento desses mercados in-termediários (hoje chamados de double sided markets) permite di-minuir, ou até anular, o custo de acesso suportado diretamente pelo consumidor final. Essas estratégias serão amplamente desenvolvi-das e complexificadas na era digital.

No caso do rádio e da televisão, tratam-se de bens públicos, no sentido definido por Samuelson (1954): não há exclusão nem riva-lidade, o que obviamente não é o caso da imprensa. Por outro lado, aparecem fortes complementaridades entre os bens editados e/ou produzidos e a imprensa, o rádio e a televisão.

A industrialização da Cultura teve os seguintes efeitos:

• Os bens culturais se tornam bens privados e, como tais, são validados a partir de sua rentabilização no mercado. Mas, por outro lado, eles se tornam bens públicos (o rádio e a televisão) ou bens mistos, no caso da imprensa.

• Uma diminuição substancial dos custos ligados ao tra-balho artístico e/ou intelectual caracteriza este proces-so: o trabalho “morto” substitui, parcial e progressiva-mente, o trabalho vivo. O exemplo da música popular

2 Para uma análise detalhada desses modelos, ver huet e colaboradores (1978) e herscovici (2008).

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é significativo: o show ao vivo é parcialmente substitu-ído pelo espetáculo mecânico. (HERSCOVICI, 1995)

• Não obstante, mesmo reproduzidos industrialmente e objetos de troca nos mercados, os bens culturais continuam apresentando fortes especificidades eco-nômicas: além desta lógica de industrialização, sua valorização no mercado é particularmente aleatória. Este caráter aleatório se explica pelo fato que seu va-lor econômico depende de seu valor simbólico, ou seja, que ele se valoriza a partir das especificidades do trabalho artístico e/ou intelectual aplicado na “fa-bricação” da matriz original.

- A concorrência se exerce principalmente fora dos preços, a par-tir de uma lógica ligada à acumulação simbólica realizada pelos produtores culturais no seio do campo de produção (BOURDIEU, 1977); os bens e serviços se valorizam como bens específicos e úni-cos, mesmo sendo reproduzidos industrialmente.

Essas especificidades permitem explicar o fato que as receitas não se relacionam com os custos.3 Nesta economia não há um regulador que limita as variações dos preços, o que permite explicar o cará- ter intrinsecamente especulativo desses mercados. Ricardo (1982, p. 43, 44) já afirmava, a respeito das obras de arte, que:

Algumas mercadorias têm seu valor determinado somente pela escassez [...]. Seu valor é totalmente independente da quantidade de trabalho originalmente necessária para pro-duzi-los, e oscila com a modificação da riqueza e das prefe-rências daqueles que desejam possuí-los.

É preciso notar que, durante este período, fora a cultura de fluxo (rádio e televisão) e a imprensa, a Cultura não assume nenhuma

3 ver o conceito de paradoxo de van gogh. (herscovici, 2008)

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função na lógica de acumulação do capital: de um ponto de vista sociológico, o discurso artístico se fundamenta na denegação das práticas econômicas usuais (BOURDIEU, 1977), ou seja, sobre a teoria da arte pela arte. De um ponto de vista econômico, o setor cultural é improdutivo e sua manutenção implica numa transfe-rência crescente do valor criado no setor produtivo. (BAUMOL, 1967; HERSCOVICI, 2002)

desindustrialização e efeitos externos

A Economia da Diferenciação

A Economia da Diferenciação se explica a partir das característi-cas do capitalismo oligopolista e monopolista. A concorrência entre as firmas tornou-se oligopolista, o que significa que os bens são al-tamente diferenciados: a concorrência se exerce fora dos preços, a partir da diferenciação dos produtos. As operações de comunicação dessas firmas se diversificam: além da publicidade relativa aos pro-dutos, essas firmas desenvolvem uma comunicação institucional.

Paralelamente, certos produtos se complexificam: está havendo uma diversificação da qualidade dos produtos. Neste caso, o preço é um indicador imperfeito que não permite avaliar esta qualidade (AKERLOF, 1970; GROSSMAN; STIGLITZ, 1976): a marca pode atuar como uma garantia de qualidade e compensar assim as falhas do sistema de preços.

Por outro lado, a globalização se traduz por uma nova estrutura-ção do espaço mundial: os capitais cada vez mais internacionaliza-dos são investidos nos espaços geográficos que apresentam a maior taxa de retorno. Nesta economia-mundo, cria-se uma nova estrutu-ração dos espaços: os segmentos mais dinâmicos se constituem em clubes, no seio dos quais os capitais são investidos, e as inovações tecnológicas produzidas e apropriadas.

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Existe assim a necessidade de uma dupla diferenciação: a dife-renciação dos bens e das marcas, como parte das estratégias con-correnciais, e a diferenciação dos espaços geográficos, para atrair o capital internacional.

Esta economia da diferenciação se traduz pela produção de ex-ternalidades: os efeitos benéficos da marca, como símbolo de qualidade,4 e a construção de uma imagem do espaço geográfico, imagem esta que representa o espaço em relação ao exterior: me-gaoperações como Rio 92, por exemplo, são características deste tipo de estratégia.

As diferentes produções culturais, intrinsecamente, produzem fortes efeitos de diferenciação: assim, a partir dos diferentes meca-nismos de financiamento elas serão associadas a essas lógicas de diferenciação, tanto no que diz respeito aos bens industriais quanto aos espaços geográficos. Os diferentes atores privados e públicos produzem, a partir desta lógica de diferenciação, as externalidades que eles mesmos vão tentar internalizar.

Várias observações fazem-se necessárias:

i. Nesta fase, contrariamente ao que acontecia até agora, a Cultura assume diretamente uma função na lógica de acu-mulação do capital.

ii. Isto se traduz por modificações importantes das formas con-correnciais. Nessas, os efeitos externos cumprem um papel cada vez mais importante, e boa parte dos bens pode ser as-similada a bens públicos. A concorrência se implementa a partir das estratégias de internalização dessas externalidades. (HERSCOVICI, 2008) Essas modalidades de internalização podem igualmente ser ilegais, como ressalta o desenvolvi-mento das diferentes formas de pirataria.

4 a marca pode ser concebida como um sinal de qualidade: se, por um lado, os produtos se tornam mais caros, devido a esses gastos em publicidade e propaganda, por outro, eles permitem diminuir, para os consumidores, os custos de busca (search costs) relativos a esta qualidade. (Posner, 2005)

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iii. Finalmente, é importante ressaltar as modificações relativas à natureza das externalidades e dos mecanismos de interna-lização. Na tradição da Economia Pública, (SAMUELSON, 1954; MUSGRAVE, 1959) as externalidades são essencial-mente tecnológicas: elas não se manifestam no mercado, mas nas funções de utilidade dos agentes; neste caso, o Estado tem que intervir para implementar os mecanismos que permitem anular os efeitos negativos dessas externalidades: regulamenta-ção ou compensação dos poluídos. O Estado, na sua vertente hegeliana, internaliza essas externalidades.

Ao contrário, as externalidades próprias à Economia da diferen-ciação são pecuniárias: elas se manifestam diretamente no merca-do, e os mecanismos de internalização são essencialmente o fato dos atores privados. (COASE, 1960)

Utilidade social e novas formas mercantis: a economia do Google

Esses mecanismos de produção e de internalização das externa-lidades vão se generalizar com o aparecimento e o desenvolvimen-to da Economia Digital. A complexificação do sistema de informa-ção e de comunicação próprio à Economia Digital se traduziu por um jogo complexo de produção de externalidades, por possibilida-des de apropriação dessas e pelo desenvolvimento dos diferentes comportamentos de free rider.

O caso da indústria musical ilustra perfeitamente este tipo de situação: por um lado, as firmas fonográficas não têm mais condi-ções de enfrentar a concorrência representada pelos diferentes sis-temas de compartilhamento dos arquivos digitais (peer to peer) e tentam impor, sem conseguir, um sistema de Direitos de Proprie-dade Intelectual (DPI) ligado à era analógica e ao consumo indivi-dualizado dos consumidores. Por outro lado, os produtores de har-dware e de sistemas operacionais, os provedores de acesso, têm

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interesse no desenvolvimento desses diferentes sistemas de peer to peer. Finalmente, os produtores de programas que permitem bai-xar gratuitamente (e ilegalmente, hoje) os arquivos musicais se be-neficiam dos financiamentos dos produtores de hardware e de sof-tware. De uma maneira geral, os produtores de hard e de software e os provedores têm interesse em desenvolver este tipo de platafor-ma; isto incita os consumidores a comprar o soft e o hardware, a aumentar a potência dos materiais e dos programas, e a utilizar provedores com capacidade cada vez maior.

A concorrência consiste em se apropriar das diferentes externa-lidades geradas pela complexificação do sistema. É possível falar em externalidades cruzadas quando há convergências dos interes-ses econômicos dos agentes que produzem essas externalidades: o caso dos produtores de hard e de software, e das redes peer to peer. Existem, ao contrário, desvios de externalidades quando há conflito de interesse: os interesses conflitantes das firmas fonográficas, de um lado, e dos fabricantes de hard e de software, dos servidores e das redes peer to peer, do outro lado. Neste caso, as firmas fonográ-ficas não têm mais condições de internalizar as externalidades que elas mesmo criaram.

A criação de valor agregado se explica a partir de uma dupla trans-formação: (a) as externalidades tecnológicas são transformadas em externalidades pecuniárias e (b) as externalidades de demanda em externalidades de oferta.

Nesta Economia Digital, a partir dos mecanismos econômicos próprios à economia das redes, a criação de valor está diretamente ligada à criação de efeitos de redes, ou seja, de utilidade social. Em termos econômicos, isto corresponde às externalidades de deman-da, da maneira como elas foram definidas por Katz e Shapiro (1985): quanto maior a quantidade de usuários, maior a utilidade do servi-ço para cada usuário que faz parte da rede. Por outro lado, quanto maior esta utilidade social, maior o valor pelo qual a firma proprie-tária da rede pode negociar a venda de espaço para os anunciantes.

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O paradoxo relativo ao debate sobre a propriedade intelectual é o seguinte: um sistema de propriedade intelectual privado baseado sobre o consumo individual dos consumidores limita a quantidade de consumidores/usuários a partir de um sistema de exclusão pe-los preços. Consequentemente, ele limita as modalidades de cria-ção de valor no seio da cadeia.

Alguns questionamentos teóricos: a redefinição necessária dos conceitos e das ferramentas analíticas

O capitalismo imaterial: uma definição braudeliana

Historicamente, é preciso dissociar capitalismo e produção ma-terial ou, mais precisamente, capitalismo e produção industrial; segundo a análise de Braudel (1979), no Renascimento o capitalis-mo se desenvolve nas atividades ligadas ao comércio e à finança internacional, e não nas atividades ligadas à produção material. É apenas no século XIX que o capitalismo se torna efetivamente industrial.

Por outro lado, Braudel (1986) distingue dois tipos de econo-mias: o primeiro se caracteriza pela troca transparente, local e des-contínua. O segundo, ao contrário, se caracteriza pelas assimetrias de informação, pelo fato de funcionar em fluxo contínuo e de se relacionar com o comércio de longa distância.

No que diz respeito às atividades materiais, Braudel (1979; 1985) define três níveis nas sociedades:

i. A vida material que é constituída pelas diferentes prá-ticas sociais e regulada pelo valor de uso.

ii. A economia de mercado, na qual se efetuam as trocas; na base da transparência dessas relações, esta situa-ção sendo próxima de uma situação concorrencial.

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iii. A economia capitalista que constitui a superestrutura, e que se relaciona com as trocas internacionais e com a possibilidade de obter taxas de lucro superiors à mé-dia, na base de informações assimétricas e da existên-cia de posições dominantes.

Se a existência de uma economia de mercado é uma condição necessária para o desenvolvimento do capitalismo, ela não é uma condição suficiente. A análise de Braudel permite formular as se-guintes observações: a lógica de mercado se constitui em um nível intermediário entre a vida material e o que ele define como capita-lismo. Nesta perspectiva, o capitalismo se desenvolve quando ele consegue expandir a superestrutura, ou seja, quando ele consegue controlar as trocas de mercado e ampliar a lógica mercantil para o conjunto das atividades sociais. A estrutura econômica resultante do sistema atual de DPI representa uma extensão da lógica capita-lista para áreas sociais que pertenciam à vida material, no sentido definido por Braudel.

As implicações são as seguintes:

i. O capitalismo não está diretamente ligado às ativida-des de produção material, ou seja, à produção de mer-cadorias, no sentido definido por Marx. Em outras pa-lavras, o capitalismo não é intrinsecamente industrial.

ii. A teoria do valor trabalho, na sua versão ricardiana ou marxista, está diretamente ligada à fase industrial do capitalismo; na fase pré ou pós-industrial, ela não tem mais condições de explicar a produção e a distribuição do valor.

iii. Historicamente, o capitalismo pós-industrial é se-melhante ao capitalismo pré-industrial: primazia das atividades altamente especulativas, internacionais e

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ligadas a finanças, controle do capitalismo especula-tivo sobre a economia de mercado e a produção ma-terial, e o fato de uma parte importante da produção escapar da lógica de mercado: todas as formas de pro-dução ligadas à economia “solidária” e cooperativa que existem na Economia Digital.

iv. A fase atual do capitalismo pode ser definida a partir da existência do capital dinheiro que se valoriza a par-tir de uma lógica de apropriação privada; esta lógica não precisa estar diretamente ligada à produção de mercadorias.

A concepção braudeliana permite afirmar que a fase atual do ca-pitalismo se caracteriza pela extensão da moeda como equivalente geral. Trata-se de um sistema altamente capitalista, da maneira como Braudel o define, à medida que: (a) as atividades capitalistas dominaram a maior parte dos mercados, na base de uma informa-ção assimétrica; (b) a maior parte dos mercados deixa de ser con-correncial; (c) no âmbito de uma lógica de globalização, as trocas são mundiais. Este capitalismo, na base de um sistema de DPI pri-vado, se define a partir das modalidades de apropriação privada do conhecimento produzido coletivamente.

O paradoxo é o seguinte: o desenvolvimento do capitalismo se explica pela extensão da lógica de mercado para áreas da produção social que, até hoje, não eram reguladas por lógicas mercantis. Não obstante, este desenvolvimento se efetua fora a forma mercadoria: por exemplo, numa perspectiva coasiana, existe um mercado no qual os direitos de poluição dos diferentes países são negociados. (COASE, 1960)

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Do capitalismo industrial ao capitalismo imaterial

Todas as escolas de pensamento, por razões diferentes, estabele-cem uma correlação negativa entre a abundância de capital e a taxa de lucro. Esta relação já está presente na obra de Adam Smith (1980) e foi desenvolvida por Marx (1976) a respeito da tendência à queda da taxa de lucro. Na Teoria Geral, Keynes (1990) estabelece este tipo de relação; no modelo de Solow (1956), a produtividade marginal do capital é decrescente; a taxa de lucro diminui quando a razão capital/trabalho aumenta.

A partir deste tipo de relação, é possível estabelecer a seguinte periodização: a fase industrial se caracteriza pela abundância de capital intangível e pela escassez de capital tangível. Ao contrário, na fase pós-industrial, há abundância do capital tangível e escassez do capital intangível. Isto explica a tendência à queda da taxa de lucro (via produção de valor agregado) dos setores ligados à produ-ção material, e a elevação dessas mesmas taxas no que diz respeito à produção imaterial. (HERSCOVICI, 2010)

Esta economia imaterial se caracteriza pelo fato de cada trabalha-dor manipular uma quantidade maior de conhecimento codifica-do. A relação conhecimento codificado/trabalhador (a composição orgânica do capital, segundo Marx) aumenta consideravelmente no capitalismo imaterial. (HERSCOVICI; BOLAÑO, 2005)

É assim possível avançar a seguinte hipótese: no capitalismo imaterial, o conceito de trabalho abstrato é substituído pelo de co-nhecimento codificado, e o conceito de trabalho concreto, pelo de conhecimento tácito. Tendo em vista o grau de complexidade da informação que os trabalhadores têm que manipular, o conheci-mento tácito à disposição dos trabalhadores e das diferentes insti-tuições é um elemento importante de valorização do capital. (AR-ROW, 2000, p. 90)

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a modificação da natureza econômica dos bens

Bens padrão e complexidade

Implicitamente, a economia neoclássica oriunda da análise wa-lrasiana se relaciona com bens privados padrão, os quais apresen-tam características particulares em relação à natureza do sistema de preços, à estrutura dos custos e à natureza dos Direitos de Pro-priedade.5

A construção walrasiana parte da hipótese que os preços trans-mitem, gratuitamente, todas as informações necessárias para o consumidor. Esta hipótese é altamente contestável, e isto pelas se-guintes razões:

a. Isto só pode ser aplicado a bens homogêneos, cuja complexidade é obrigatoriamente limitada. Isto im-plica que os fatores de produção empregados sejam igualmente homogêneos.

b. A Economia da Informação, da maneira como ele é concebida por Stiglitz (2003), mostra claramente que o sistema de preço fornece um sinal imperfeito (noisy signal). O risco moral e a seleção adversa ressaltam essas falhas do sistema de preços e permitem o de-senvolvimento de comportamentos oportunistas (free riding) incompatíveis com o ótimo de Pareto.

c. O sistema de preços não tem condições de fornecer in-formações confiáveis a respeito dos componentes qua-litativos dos bens. Se isto se aplica a bens comuns (os carros de segunda mão, segundo Akerlof (1970)), este

5 as outras matrizes teóricas partem dos mesmos pressupostos.

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mecanismo é mais intenso quando trata-se de bens de experiência.

É possível aplicar um sistema de DP eficiente às transações que se relacionam com esses bens padrão:

a. Este sistema de DP é eficiente à medida que todas as modalidades de apropriação deste bem correspondem a um retorno para o produtor: este bem padrão é per-feitamente divisível e não gera externalidades tecnoló-gicas e/ou pecuniárias.

b. O sistema de DP é aplicável sem nenhum custo de transação (BARZEL, 1997):

• sua divisibilidade perfeita permite controlar to-das suas modalidades de apropriação, e isto sem custos;

• sua complexidade limitada é tal que o sistema de preços tem condições de fornecer informações completas e confiáveis;

• a ausência de externalidades elimina a presença de comportamentos oportunistas.

Tendo em vista as especificidades econômicas dos bens imate-riais, é possível concluir que a economia neoclássica não fornece os instrumentos adequados para estudar tais bens. Para a teoria neoclássica, a informação é assimilada a um bem padrão: os agen-tes compram informação até o custo marginal desta se igualar com sua receita (ou sua utilidade) marginal. As imperfeições da informação são assim integradas na matriz neoclássica.6 Trata-se

6 a este respeito, ver stigler (1961) e a teoria das expectativas racionais, por exemplo.

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de uma concepção unidimensional da informação: ela apresenta a mesma utilidade para os diferentes agentes, e é possível avaliar, ex-ante, esta utilidade.

Por outro lado, as análises neoclássicas partem da hipótese se-gundo a qual a informação é produzida em condições concorren-ciais: custos marginais crescentes e rendimentos de escala constan-te, o que não é o caso. (GROSSMAN; STIGLITZ, 1976) Os custos marginais são geralmente desprezíveis e os rendimentos de escala crescentes, conforme mostram todas as análises em termos de eco-nomia de redes.

Outras abordagens privilegiam o caráter multidimensional da informação: (ARROW, 2000; STIGLITZ, 2003) há uma utilidade diferenciada da informação e não é possível determinar sua utili-dade ex-ante. Isto é particularmente verificado quando se trata de bens de experiência.

Este conceito de complexidade é próximo daquele de especifici-dade dos ativos, no sentido definido por Williamson (2002): os con-tratos são incompletos e os custos de transação são positivos. Ao contrário, no que diz respeito aos bens padrão, os contratos são completos, os custos de transação nulos, e o sistema de DP plena-mente eficiente.

Heterogeneização dos bens e dos fatores de produção

Está havendo uma heterogeneização dos diferentes componen-tes econômicos:

i. Do lada da demanda, o problema da avaliação dos componentes qualitativos e dos diferentes níveis de experiência dos consumidores ressalta este caráter he- terogêneo.

ii. Do lado da oferta, as diferentes formas de capital (e os diferentes bens) se valorizam a partir de suas

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especificidades. A partir das categorias construídas por Marx, isto significa que esses bens se valorizam a partir do trabalho concreto, e não do trabalho abstrato; consequentemente, esses bens não são mercadorias.

O sistema de Direitos de Propriedade Intelectual tem por objeti-vo proteger o produto de trabalhos específicos e assegurar um re-torno econômico para esses trabalhos específicos; é por esta razão que o sistema de Direitos de Propriedade (DP) é mais complexo, e também menos eficiente, que aqueles aplicados na produção in-dustrial; é por esta razão que os custos de transação relativos à im-plementação de tais direitos são muito mais elevados. No caso de bens padrão, o sistema de preços permite implementar, gratuita-mente, e com uma eficiência total, o sistema de DP; a remunera-ção do trabalho é assegurada a partir dos salários; trata-se da remu-neração de um trabalho homogêneo que produz bens “simples”. No que diz respeito aos bens complexos, trata-se de uma economia rentista: (HERSCOVICI; BOLAÑO, 2005) trabalhos específicos são remunerados a partir das rendas de monopólio que o sistema de DP vigente permite auferir.

O problema relativo à agregação de capitais altamente heterogê-neos é o seguinte: é preciso expressar em uma mesma unidade es-ses capitais e esses trabalhos qualitativamente diferentes, ou seja, heterogêneos. A solução consiste em expressá-los em valor; no en-tanto, as abordagens tradicionais não têm condições de fornecer uma solução. Apesar de tentativas tímidas e limitadas para incorpo-rar esses elementos qualitativos nos agregados,7 essas análises são incompletas e limitadas.

Quando há uma forte heterogeneizaçao dos fatores de produção (capital e trabalho), as ferramentas utilizadas na Economia perdem seu valor explicativo. Por exemplo, o multiplicador keynesiano de investimento só é efetivo quando trata-se de uma economia cujos

7 Por exemplo, os preços hedônicos.

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fatores de produção são homogêneos. Nesta perspectiva, qualquer aumento da demanda não vai se traduzir pelo aumento da produ-ção nem do volume de emprego, mas apenas pelo aumento das rendas auferidas por alguns produtores, aqueles que conseguiram acumular o capital simbólico. O mesmo tipo de observações se apli-ca nas modalidades concretas de cálculo da produtividade e, mais especificamente, da produtividade do trabalho. Essas especificida-des limitam o valor explicativo dos modelos de crescimento elabo-rados, obrigatoriamente, em nível macroeconômico.

Observações finais

Em conclusão, é importante ressaltar os seguintes pontos: as evolu-ções históricas mostram que as especificidades econômicas do se-tor cultural, especificidades essas que correspondiam às diferentes modalidades de industrialização da Cultura, se estenderam, hoje, para a maior parte das atividades econômicas. Este capitalismo ima-terial ligado às diferentes formas de capital intangível apresenta as mesmas características: valorização altamente aleatória, ausência de relação entre os custos e os preços, ausência de preços regula-dores e dimensão especulativa. As “falhas” do sistema de preço de mercado tornam necessária a presença de fatores institucionais e de mecanismos de coordenação para os mercados poderem concre-tamente funcionar.

Por outro lado, houve modificações importantes da natureza eco-nômica dos bens, das estruturas de mercado e das formas de con-corrência.

Finalmente, em função dessas observações preliminares, é preci-so reavaliar o valor explicativo dos diferentes paradigmas econômi-cos, de suas hipóteses e dos modelos que eles permitem construir. Nesta perspectiva, a complexidade crescente dos bens, da maneira como eu defini este conceito, não é compatível com as matrizes te-óricas oriundas da Economia Clássica, da Economia Neoclássica e

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mesmo do Keynesianismo: ao contrário, o paradigma ligado à Eco-nomia da Informação, como Stiglitz (2003) o define, parece ser muita mais apropriado: ele incorpora esta complexidade e ressalta as falhas do modelo neoclássico diante deste tipo de economia. (HERSCOVICI, 2012)

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criAtividAde como liberdAde:A relação entre cultura e desenvolvimento em Celso Furtado

A contribuição original de Celso Furtado para se pensar a articulação entre cultura e desenvolvimento vem sendo revisitada nos últimos anos, produzindo um novo flanco de interesse1 na obra do autor. Parte desse interesse tem sido visto dentro do atual debate que vem ganhando força no Brasil acerca da Economia Criativa e suas pos-sibilidades enquanto estratégia de desenvolvimento. Todavia, como destacado por Bolaño (2011), o pensamento de Furtado se insere em boa medida em um patamar diferente da análise entre cultura e desenvolvimento, sem relação direta e imediata com os conceitos e políticas defendidas nos discursos padrão da Economia Criativa.

Marca este momento também o lançamento do livro organizado por Rosa Freire d’Aguiar Furtado, intitulado Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura (2012), quinto volume da coleção Arquivos

1 exemplos disto são as diversas mesas e seminários que vêm sendo realizados sobre o tema nos últimos dois anos, qualificando o que rocha (2012) destacou como um momento de resgate das contribuições de Furtado sobre cultura. cite-se, por exemplo, a mesa-redonda realizada no Bndes em novembro de 2011, sob o título “celso Furtado: a dimensão cultural do desenvolvimento” e uma mesa organizada dentro do 36o encontro anual da associação nacional de Pós-graduação e Pesquisa em ciências sociais (anPocs), em outubro de 2012, com o título “celso Furtado: cultura e criatividade”, ou a série “colóquios celso Furtado: cul-tura e desenvolvimento”, organizado pelo ministério da cultura, em especial pela secretaria de economia criativa, sob a curadoria do professor césar Bolaño, em 2012 e 2013.

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Celso Furtado, que reúne alguns escritos do autor envolvendo a te-mática da cultura em diferentes períodos de sua vida. Neste livro, Rosa d’Aguiar destaca, na introdução, os quatro momentos que, segundo ela, foram de profunda reflexão dessa temática para Furta-do, que seriam: o final dos anos 1970, marcado especialmente pela publicação da obra Criatividade e Dependência na civilização indus-trial, de 1978; o período em que fora ministro da Cultura, de 1986 a 1988; o momento em que foi membro da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento,2 entre 1992 e 1995; e, finalmente, o tempo em que foi membro da Academia Brasileira de Letras, a par-tir de 1997.3

Destes quatro momentos, entendemos que o mais relevante para compreender de forma ampla o pensamento de Furtado sobre cultura, do modo como ele a entendia, é certamente o primeiro, no qual incluiríamos, seguindo Rodríguez (2007), a publicação do li-vro Cultura e Desenvolvimento em época de crise, publicado em 1984, que reúne um conjunto de reflexões em torno da crise econômica que se fazia presente naquele momento. Reflexões estas apresenta-das em diferentes contextos pelo autor a partir de 1982.4 Embora em Furtado (1978), talvez seja possível dizer, já se encontre toda a base que fundamentará as argumentações presentes em suas obras publicadas posteriormente.

É baseado, principalmente, portanto, nessas duas obras que bus-caremos apresentar e discutir algumas das que julgamos como principais características do pensamento de Celso Furtado sobre o tema da cultura, em especial a sua intrínseca relação com a temática do desenvolvimento-subdesenvolvimento. Para tanto, focaremos,

2 essa comissão gerou como produto de suas atividades um relatório intitulado Our Creative Diversity, publicado em 1995. Por se tratar de uma obra coletiva não se pode identificar o que neste relatório é contribuição específica de celso Furtado.

3 celso Furtado faleceu em 20 de novembro de 2004.4 versão dos dois primeiros capítulos deste livro também se encontram publicadas em

Furtado (2012), com o título Que somos?, conhecido também como Sete teses sobre a cultura brasileira.

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primeiramente, em uma análise das dimensões histórica e filosófi-ca da relação entre cultura e desenvolvimento, discussão que se in-sere na compreensão de uma teoria da dependência furtadiana – significativamente pautada pela dependência cultural –, mas que também diz respeito a uma visão específica de desenvolvimento que gira em torno das noções de liberdade e de criatividade. Sob a luz deste entendimento, partiremos então para uma análise do modo como Furtado refletiu sobre a questão das políticas culturais5 no Brasil, visando demonstrar de que modo suas reflexões histórico-filosóficas a respeito da cultura se refletem na sua visão sobre políti-ca cultural.

Um período de transição

Conforme colocado por Cunha e Britto (2011), os anos 1970 são um momento de redefinição no pensamento de Furtado em relação às suas proposições originais dos anos 1950.6 Esta redefinição estaria relacionada ao momento de crise por que passava tanto as teorias do desenvolvimento de forma geral quanto, mais especificamente, o pensamento estruturalista. Cunha e Britto (2011) descartam, do ponto de vista da contribuição para a teoria do desenvolvimento, a hipótese de linearidade, sugerida por Furtado em texto autobio-gráfico, (FURTADO, 1997, t. 3) no avanço de suas ideias desde os anos 1950 até as formulações sobre dependência e cultura. O pró-prio Furtado, pouco tempo depois, em outro texto autobiográfico, atribui especial relevância ao período passado por ele em Cambrid-ge, entre 1973-1974, como um momento de reconstrução de ideias no qual se dedicou a “espremer a cabeça para decifrar alguns dos enigmas que havia tempo [o] perseguiam.” (FURTADO, 1997, t. 3,

5 não se trata de uma análise do Furtado enquanto figura política a frente do ministério da cultura, mas do pensamento refletido em suas obras.

6 nos anos 1950, Furtado desenvolve sua teoria do subdesenvolvimento, baseada no método histórico-estrutural.

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p. 223) Destas reflexões teriam nascido as obras O mito do desenvol-vimento econômico (1974), Prefácio à nova economia política (1976), Criatividade e dependência (1978) e Pequena introdução ao desenvolvi-mento (1980). Segundo Rodríguez (2007), porém, alguns aspectos fundamentais das ideias de Furtado sobre a relação entre cultura e desenvolvimento já estariam presentes em produção anterior7 da década de 1960.

Acreditamos que seja possível identificar certa manutenção por Furtado de seu método de análise histórico-estrutural8 e de sua principal motivação, que é entender o problema do subdesenvolvi-mento. A questão da dependência cultural toma corpo à medida que evolui a visão do autor sobre as relações entre os dois polos do sistema capitalista (centro-periferia), problema encarado, cada vez mais de forma transdisciplinar, em toda sua multidimensionalida-de. Porém, entendemos que é somente a partir da crítica à estrutu-ra conceitual da ciência econômica e da tentativa de redefinir o campo da economia do desenvolvimento9 que o sentido de desen-volvimento se torna compatível com uma abordagem mais ampla envolvendo a dimensão cultural.

Furtado busca ainda, nesse momento, encontrar respostas às no-vas tendências com as quais a civilização industrial começa a se de-parar no último quarto do século XX, em que as relações econômi-cas internacionais tornam-se mais complexas, repercutindo sobre

7 Dialética do desenvolvimento (1964).8 Podemos identificar três capítulos que podem ser considerados históricos em Criatividade

e Dependência: o segundo e terceiro, que tratam da emergência e difusão da civilização industrial, e o sétimo (penúltimo), denominado Ensaio de visão retrospectiva. Pode-se notar, contudo, que as transformações por que passa a “visão de mundo” de Furtado afeta a maneira como o conteúdo histórico entra em sua obra. o capítulo quatro, por exemplo, Da ideologia do progresso à do desenvolvimento, pode ser considerado um capítulo sobre filosofia da história.

9 esforço, segundo cunha e Britto (2011), desempenhado em Furtado (1976). nesta obra, Furtado afirma que por detrás da restrição do campo de estudo dos economistas e da pre-tensão de constituir a ciência econômica enquanto uma ciência “pura” – válida de modo independente das estruturas sociais – estaria uma aceitação das estruturas sociais existentes como imutáveis, ocultando, sobretudo, o elemento de poder que existe nas decisões econô-micas. (Furtado, 1976, p. 17 e p. 30)

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as economias nacionais e aumentando a concentração geográfica da renda e da riqueza. Uma síntese das ideias do autor sobre este con-texto está exposta logo no primeiro capítulo de Furtado (1978).

A civilização industrial e a criação de um sistema de dependência cultural

Em Os ares do mundo, Furtado sugere que a ideia de dependência cultural partia de um desdobramento de uma das teses10 identifica-das por ele como “representativas do pensamento ‘clássico’ da CE-PAL”, (FURTADO, 1997, t. 3, p. 66) especificamente da visão de que o padrão tecnológico e os padrões de consumo atuais impedem que o processo de industrialização periférica seja similar ao ocorri-do anteriormente nos países desenvolvidos, freando as possibilida-des de desenvolvimento das economias periféricas. Mas para Ro-dríguez (2007), a compreensão da existência de uma relação direta entre desenvolvimento e cultura seria um aspecto diferenciador da obra de Furtado em relação aos demais estruturalistas. Furtado in-terliga a questão do padrão industrial periférico à questão do com-portamento da demanda, sendo capaz de demonstrar que a incor-poração dos avanços técnicos aos bens de consumo engendrava um processo de “dependência cultural que condicionava a estrutura econômico-social”, (FURTADO, 1997, t. 3, p. 69) sendo a depen-dência tecnológica somente um aspecto desse quadro mais amplo.

Em Furtado (1978) é possível captar a conexão entre teoria e his-tória na elaboração dessa defesa. O autor parte de uma análise his-tórica do processo de formação e difusão da civilização industrial, e do conjunto de valores que esta civilização carrega, para chegar ao conceito de dependência cultural.

O que Furtado chama de civilização industrial pode ser entendido como a sociedade que emerge como produto comum das revoluções

10 essas teses teriam sido elaboradas para os seminários realizados no ilPes, no chile, logo após o golpe militar no Brasil, a partir de junho de 1964. (Furtado, 1997, t. 3)

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burguesa, científica e industrial, tendo, portanto, sua origem em um contexto histórico bastante específico do continente europeu. A am-pliação das rotas comerciais no continente gera um ganho de produ-tividade e, consequentemente, de excedente. O influxo de metais provenientes da América teria favorecido a monetização deste exce-dente, estimulando o comércio intracontinental e a ascensão da clas-se burguesa. Essa classe, onde ganha acesso aos centros de decisão, inicia um processo de transformação institucional, ampliando suas áreas de ação e subordinando o trabalho e a terra à lógica mercantil. Processo que fortalece a valorização da racionalidade instrumental e a subordinação das atividades sociais à lógica da acumulação. (FUR-TADO, 1978, p. 33)

Paralelamente, a revolução científica conduz à secularização e ao neoplatonismo galileano, alterando a visão do homem sobre a na-tureza a partir da crença na possibilidade de compreensão racional desta natureza, o que seria descritível matematicamente. Neste sen-tido, é diminuído o valor do qualitativo, ou seja, daquilo que é per-cebido pelos sentidos. (FURTADO, 1978, p. 153)

A difusão das práticas sociais exigidas pela acumulação teria pro-duzido um ambiente receptivo ao discurso “científico”. A civilização industrial se apropria deste discurso em favor do processo de acu-mulação, canalizando a criatividade para a criação tecnológica e di-recionando os avanços da ciência e da tecnologia. (FURTADO, 1978, p. 158-59) O processo de acumulação se acelera quando os valores mercantis chegam à produção, conduzindo à Revolução Industrial.

Sendo assim, Furtado considera que da civilização industrial emerge uma nova visão do processo social de produção baseada na racionalidade e, respectivamente, uma nova ordem social na qual as atividades econômicas influenciam todas as dimensões da cultu-ra. Ampliação do excedente e eficiência produtiva constituem obje-tivos em si mesmos, ou seja, esta é uma civilização que subordina os fins aos meios. Nesta nova ordem, “a inovação nos métodos pro-dutivos passa a ser o caminho mais curto para surpreender os

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concorrentes e, portanto, um instrumento de poder”, (FURTADO, 1978, p. 39) capaz de induzir uma constante diversificação nos pa-drões de consumo, da qual é dependente a continuidade do proces-so acumulativo. Esta diversificação e o aumento dos gastos de con-sumo são traduzidos pela ideologia do progresso como elevação do nível de vida, graus crescentes de liberdade e felicidade individuais – o que garante a coesão social –, mas ocultam um processo de discriminação entre os consumidores, via fluxo de inovações, que favorece a reprodução de desigualdades. (FURTADO, 1978)

A aceleração do processo de acumulação permitiu aos povos eu-ropeus dominar e controlar grande parte do planeta, gerando um processo global de difusão da civilização industrial, que ainda hoje subordina os países subdesenvolvidos. Neste novo contexto, a ideia de progresso, fundamental na manutenção do pacto tradicional de divisão internacional do trabalho, é substituída pela ideologia do desenvolvimento. Diferente da ideia de progresso, a de desenvolvi-mento não se associa à estrutura social interna, mas se traduz em um pacto entre grupos internos e externos em favor da acumulação. (FURTADO, 1978)

Furtado reconhece na inovação a via pela qual a acumulação in-troduz as modificações no sistema de produção e nas estruturas sociais que condicionam o desenvolvimento. Ou seja, o desenvolvi-mento seria um “processo cultural e histórico cuja dinâmica se apoia na inovação técnica [...] posta a serviço de um sistema de do-minação social.” (FURTADO, 1978, p. 57) Sendo assim, “se a acu-mulação se transforma em um fim em si mesmo [...] o processo de criação de novas relações sociais transforma-se em simples meio para alcançá-la.” (FURTADO, 1978, p. 48) Nesse sentido, o desen-volvimento, na civilização industrial, se resume ao avanço da domi-nação dos meios naturais e à eficiência na utilização de recursos escassos. Sendo, portanto, a razão considerada como o princípio fundamental de realização das potencialidades humanas.

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No contexto europeu (incluindo os “domínios europeus” na Amé-rica do Norte e Oceania) e nas demais regiões que, apesar da pene-tração da civilização industrial, foram capazes de reagir à ameaça de dominação externa e se reestruturaram em sentido adaptativo (caso do Japão e Rússia),11 Furtado esclarece que o processo se deu por uma via direta, em que os avanços da tecnologia puderam ser gradualmente absorvidos, à medida que era necessário poupar mão de obra, e no qual a acumulação foi capaz de gerar transformações sociais favoráveis à integração política das massas e à homogenei-zação do acesso a bens de necessidade básica e bens coletivos (ape-sar de mantida a heterogeneidade no acesso a bens supérfluos). Já o subdesenvolvimento é considerado uma via indireta de acesso à civilização industrial, que conduz a uma situação de dependência estrutural. (FURTADO, 1978)

Por essa via indireta, o acesso aos frutos do progresso tecnológi-co se daria, primeiramente, via consumo, concentrando-se a acu-mulação em gastos em infraestrutura urbana e bens de consumo duráveis importados, reforçando, assim, as velhas estruturas de do-minação. (FURTADO, 1978) Posteriormente, a orientação da tecno-logia estaria ligada a um esforço de adaptação e cópia de padrões, muito distinto da orientação dos países desenvolvidos, nos quais esta se liga a um processo mais amplo de criatividade cultural. Nas palavras de Furtado (1978, p. 50),

[...] como o acesso indireto à civilização industrial signi-ficou a introdução dessas transformações ao nível da de-manda final (sob a forma de modernização), o processo de industrialização assumirá a forma de um esforço de adap-tação do aparelho produtivo de alta densidade de capital, que não corresponde ao nível de acumulação alcançado no

11 o caso da rússia é ilustrativo da maneira como a ideologia do progresso, baseada na acumu-lação, atinge até mesmo o pensamento revolucionário, contribuindo também, por essa via, para a expansão da civilização industrial.

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conjunto da sociedade, com fraca capacidade de geração di-reta de emprego.

Assim, o aumento da produtividade viria acompanhado por uma crescente heterogeneidade social e técnica, em que uma minoria teria acesso a um consumo diversificado, convivendo de perto como uma grande massa sobrevivendo com baixos salários, reforçando sempre as desigualdades.

É possível perceber, portanto, que, em cada via de acesso à civili-zação industrial se estabelece um processo distinto de “desenvolvi-mento”. A diferença entre estes dois processos, porém, se oculta por detrás de um “véu ideológico” que sustenta a dependência cul-tural a partir da migração do centro para a periferia, não apenas de bens de consumo ou tecnologias, mas também de valores. Neste caso, a modernização da periferia apenas fortalece a relação de de-pendência a partir de uma apreciação de tudo que é de fora, como referências de progresso e prestígio social.

O esforço desempenhado pelos países periféricos na tentativa de reduzir a distância com relação ao centro, empenhado principal-mente a partir do século XX, se baseia na ideia de uniformização das “necessidades” humanas reforçada pela expansão do mercado glo-bal, que orienta a atividade inovadora. Neste contexto, a hierarquia global se dá não apenas em termos de acumulação de forças produ-tivas, como em termos de autonomia tecnológica. Sendo assim, na visão de Furtado, a acumulação é condição necessária, mas não su-ficiente, para reduzir a dependência, principalmente se persiste a dependência tecnológica. As dificuldades se ampliam uma vez que a luta na frente tecnológica depende de estar “assegurado o controle de importantes segmentos de mercado interno e reunida uma mas-sa crítica de recursos financeiros.” (FURTADO, 1978, p. 123)

Além disso, à medida em que avança o processo de transnacio-nalização de empresas e bancos,12 novos desafios são colocados aos

12 Processo detalhadamente descrito por Furtado (1984) no oitavo capítulo – Crise e transforma-ção na economia mundial.

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países subdesenvolvidos. Estas instituições se beneficiam do avan-ço das técnicas de comunicação, aumentando a participação de transações internas à empresa, em nível internacional, o que am-plia sua liberdade de manobra frente às restrições impostas pelos coordenadores nacionais. Tiram vantagem, por exemplo, da inexis-tência de forças neutralizadoras organizadas nos países subdesen-volvidos, o que favorece a concentração de renda em favor dos paí-ses que controlam o seu capital. (FURTADO, 1978)

A grande empresa transnacional é encarada como o primeiro eixo nítido de um sistema de forças global. Este tipo de empresa deteria o quase-monopólio da inovação tecnológica, graças ao seu potencial de investimento em P&D, correspondendo a estas “o máximo de iniciativas no campo da acumulação e da criatividade.” (FURTADO, 1978, p. 23) Nesse nível, o caráter político das decisões econômicas fica cada vez mais claro e a grande empresa é vista, aci-ma de tudo, como manifestação de condensação de poder, que mui-tas vezes entra em conflito com os interesses do próprio Estado.

Diante desse quadro de dependência, continuamente reforçado, independentemente dos esforços dos países periféricos em se mo-dernizar e se “desenvolver”, fica claro para Furtado (1978) que o rompimento com esse padrão dependeria de uma reavaliação da própria noção de desenvolvimento, que passaria por uma contesta-ção da lógica e dos valores intrínsecos à civilização industrial.

Cultura e desenvolvimento, criatividade e liberdade

A fonte última do que se entende por desenvolvimento – e que per-mite perceber em seu sentido, mesmo que de modo implícito, uma mensagem de caráter positivo –, para Furtado, (1978) estaria na energia potencial gerada pela vida em sociedade, que para liberar-se depende de meios adicionais, gerando, assim, de modo inten-cional, um processo contínuo de criação de excedente e também de valores culturais. Furtado parte da ideia de que é a busca do homem

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para se compreender que impulsiona a sua potencialidade criativa e que gera um “fluxo social de criatividade”, num permanente es-forço para enriquecer de valores o mundo. Neste sentido, cultura não seria somente herança do passado, uma vez que inclui esse fluxo de transformação gerado pela criatividade como resposta aos problemas permanentes do homem. (FURTADO, 2012, p. 91, 53) Nas palavras de João Antônio de Paula (2007, p. 278):

Para Furtado a cultura é tanto a vanguarda que anuncia a utopia do mundo solidário quanto é a sonda que, mergulha-da em nossa história, em nossas tradições, também é capaz de convocar o novo que seja democrático e popular.

A compreensão que Furtado traz da ideia de cultura fica bastante clara a partir dos textos publicados recentemente. Para ele, o concei-to de cultura não se restringe à sua dimensão artística, nem tampou-co “se trata de adotar uma visão antropológica e submergir no con-ceito de que cultural é tudo aquilo que resulta da ação do homem sobre a natureza.” (FURTADO, 2012, p. 94) Cultura seria “a dimen-são qualitativa de tudo o que cria o homem”, sendo constituída, por-tanto, por todas as “coisas impregnadas de significação.” (FURTA-DO, 2012, p. 51)

É essa a visão sobre cultura que Furtado (1984) confronta com a ideia mítica de desenvolvimento enquanto baseado na razão ins-trumental inerente à acumulação, uma vez que o processo de de-senvolvimento entendido dessa maneira traz, junto à assimilação de técnicas, uma assimilação de valores que ameaçam a identidade cultural dos povos dependentes. Esse processo afetaria a sua capa-cidade criativa, uma vez que “o ato criativo é tanto ruptura como processo que se alimenta da herança cultural, a qual é captada no seu recorte histórico regional, em suas relações com o ecossistema, e levando na devida conta a estrutura social em que emerge.” (FUR-TADO, 2012, p. 103)

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É neste sentido que o autor defende que, uma vez que existe uma dependência cultural que elimina a faculdade da periferia de conce-ber os próprios fins, o ideal seria “instilar uma nova lógica dos fins no processo de acumulação: de resgatar a criatividade da tutela que sobre ela exerce atualmente a racionalidade instrumental.” (FUR-TADO, 1978, p. 124) Diante desse objetivo maior, a luta contra a dependência torna-se somente um aspecto de uma questão muito mais ampla que envolve essa ressignificação do sentido de desen-volvimento, tanto pela periferia quanto pelo próprio centro.

Sendo assim, na leitura de Rodríguez (2007), a criatividade para Furtado pode ser expressa em três âmbitos: no âmbito material ou econômico, através do progresso técnico, que amplia as possibili-dades de geração de excedente; no âmbito sociopolítico, onde a cria-tividade se impõe como uma necessidade para administração das tensões políticas geradas pela acumulação; e, finalmente, no âmbi-to mais amplo do sistema de cultura, no qual ideias e valores abrem caminho para a realização das potencialidades latentes no próprio homem nas esferas filosófica, religiosa, artística e científica. O pro-cesso de desenvolvimento seria, portanto, um processo de amplia-ção da criatividade nestes três âmbitos. Processo esse inibido, nos países periféricos, pelos diversos fatores anteriormente explicita-dos, condicionantes da dependência cultural.

Embora a acumulação incentive a iniciativa individual, a inven-tividade pessoal, a fim de garantir um fluxo de inovações, “a visão de mundo a partir do qualitativo foi relegada ao plano da consci-ência pré-racional ou ingênua, ou foi desviada para a esfera não cumulativa da intuição artística.” (FURTADO, 1978, p. 156) Isso ao se desconsiderar a possibilidade dos objetos de arte se transfor-marem em simples meios de acumulação de riqueza no momento em que seu valor de troca tende a prevalecer sobre sua mensagem intrínseca. E até mesmo a atividade política, que a princípio ca-naliza a criatividade para a lógica dos fins, serve à acumulação na medida em que é condição para reduzir as tensões sociais e que

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está baseada em superideologias disciplinadoras em benefício dos grupos hegemônicos.

Não seria suficiente submeter a criatividade à “lógica dos meios, razão instrumental inerente à acumulação”, mas necessário pautar-se pela lógica dos fins que rege a cultura, abrindo espaço para a libe-ração das “forças criativas da sociedade.” (FURTADO, 1984, p. 32) Essa criatividade Furtado (1978) relaciona – fazendo referência a Nietzsche – à ideia de liberdade. O desenvolver-se passaria, assim, pela conquista dessa liberdade, quando entendida não de modo negativo, como um rompimento com o pré-estabelecido, mas como uma concepção positiva referente a um ato de criação, como a capacidade de se autotransformar. Nas palavras de Furtado (1978, p. 165):

A criatividade como liberdade corresponde a um ato de afirmação pessoal que vincula moralmente quem cria à sua obra. [...]. A incapacidade do homem de simplesmente en-tender o que criou constitui a manifestação mais dramática de sua alienação, no sentido de sua perda de identidade.

O desejo de liberdade, essência do humano, estaria, desse modo, expressa na sua cultura, na sua ação criadora, uma vez que seja garantida a sua capacidade de fundir o criar com o viver, de possuir uma visão global sobre o sistema ao qual se insere e a consciência crítica que esta visão desperta. Nas economias de mercado da civi-lização industrial, a subordinação da criatividade à lógica dos meios é, portanto, uma instrumentalização da própria liberdade, o que impossibilita essa visão global. A “liberdade inerente ao sistema” é, portanto, consequentemente limitada. (FURTADO, 1978, p.170)

Mas ao entendermos a liberdade como criatividade, essa “facul-dade humana de interferir no determinismo causal”, abre-se a pos-sibilidade para descontinuidades estruturais capazes de enriquecer de “novos elementos qualquer processo social.” (FURTADO, 1978, p. 172)

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É a partir dessa interlocução entre as ideias de liberdade e de criatividade apresentadas em Criatividade e dependência (1978) que Furtado abre caminho para novas linhas de reflexão sobre a noção de desenvolvimento endógeno, da forma como ele a apresenta no último capítulo da obra Cultura e Desenvolvimento (1984).

A ideia defendida por Furtado (1984, p. 108) de desenvolvimento endógeno seria capaz de romper com o estigma da dependência cultural canalizando a criatividade em favor dos fins, a partir da “faculdade que possui uma comunidade humana de ordenar o pro-cesso acumulativo em função de prioridades por ela mesma defini-das”, através dos valores que constituem a sua identidade cultural. Como objetivo inclui-se a superação da heterogeneidade social através da mudança da estrutura produtiva impulsionada pela ação política deliberada, passando assim pelas mudanças institucionais necessárias e pela conciliação e coordenação dos interesses dos dis-tintos grupos envolvidos.

Não se trata de negar a necessidade de acesso a tecnologias mo-dernas, mas de conduzi-las sem cair na armadilha do mimetismo. Não se trata ainda de isolar-se do resto do mundo, mas “assegurar um desenvolvimento que se traduza em enriquecimento da cultura em suas múltiplas dimensões e permita contribuir com criativida-de própria para a civilização que se mundializa.” (FURTADO, 1984, p. 124)

Nada disso é possível quando, como considera Furtado (1978), a única forma autêntica de liberdade de sua época, a criatividade política, é abdicada em favor do Estado. Para que haja criatividade política é necessário vontade coletiva e esta requer “um reencontro das lideranças políticas com os valores permanentes de nossa cul-tura, cujas raízes estão na massa da população.” (FURTADO, 1984, p. 30) O papel dos intelectuais nesse processo seria o de traduzir as aspirações sociais que não possuem meios próprios de expressão.

A partir dessas conclusões do autor é possível perceber o ca-minho natural pelo qual este chega à necessidade de se pensar a

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política cultural, interligada à política de desenvolvimento. Não é sem motivo que, no momento em que o Brasil sofria os desgastes de um longo período de autoritarismo e de crescimento com desi-gualdade, Furtado é chamado a colocar o seu pensamento crítico a serviço da ação política estatal, ao assumir a responsabilidade do recém-criado Ministério da Cultura, em 1986.

Reflexões sobre política cultural

A política cultural é encarada por Furtado (2012) como desdobra-mento e aprofundamento da política social. Essa visão da política cultural importa para que a atividade cultural brote da própria so-ciedade, para que se manifeste o seu gênio criativo. Nesse sentido, a função do Estado só se justifica em um contexto em que a socieda-de civil não é capaz, de forma autônoma, de assegurar a liberdade de criação e fruição. Portanto, “o objetivo central de uma política cultural deveria ser a liberação das forças criativas de uma socieda-de. Não se trata de monitorar a atividade criativa e sim abrir espaço para que ela floresça.” (FURTADO, 1984, p. 32)

Para tanto, seria preciso romper os obstáculos impostos pelo po-der burocrático, por comerciantes travestidos de mecenas e pelas instituições ditas “guardiãs” da herança cultural. O autor ainda aler-ta para o fato de que “um maior acesso a bens culturais melhora a qualidade de vida dos membros de uma coletividade. Mas, se fo-mentado indiscriminadamente, pode frustrar formas de criativida-de e descaracterizar a cultura de um povo.” (FURTADO, 1984, p. 32)

Na visão de Furtado (2012, p. 76), política cultural e política de desenvolvimento caminham juntas, pois “se a política de desenvol-vimento objetiva enriquecer a vida dos homens, seu ponto de parti-da terá que ser a percepção dos fins, dos objetivos que se propõem alcançar os indivíduos e a comunidade”, devendo, portanto, ser posta a serviço do processo de enriquecimento cultural.

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Para pensar essa interação, Furtado (2012, p. 63) parte da distin-ção entre três categorias de necessidades humanas: as essenciais à sobrevivência, tais como a alimentação, a habitação, o vestuário, etc.; outras de raiz quase instintiva, como a convivência, a seguran-ça, a comunicação; e as que ele considera necessidades especifica-mente humanas, que seriam a de conhecer o mundo e a si mesmo. Esta terceira categoria de necessidades seria a fonte da pulsão cria-tiva que se projeta na aspiração de modificar o mundo exterior.

Sendo assim, a dimensão cultural do cotidiano seria a mais sig-nificativa em termos de política cultural, em negação à visão tradi-cional da cultura como simples enriquecimento do lazer, uma vez que esta visão é “profundamente antidemocrática, pois nada é mais desigualmente distribuído na nossa sociedade do que o tempo de lazer.” (FURTADO, 2012, p. 104) O cotidiano importa uma vez que o homem não pode ser visto como simples força de trabalho, estan-do as suas necessidades especificamente humanas presentes em todos os momentos de sua vida. Na visão do autor, “o resgate das expressões populares que constituam aspectos relevantes do coti-diano, oriundas de segmentos sociais minoritários ou marginaliza-dos, impõe-se como decisivo para que possamos ter uma clara per-cepção de nossa identidade.” (FURTADO, 2012, p. 90)

Enfim, cabe identificar as condições particulares da sociedade que favorecem a criatividade e aquelas que a inibem. Substituir o padrão de comportamento imitativo por um novo processo cultural criativo. Combater as desigualdades regionais e os constrangimen-tos sociais e afirmar a identidade frente à indústria cultural.

No final do século XX, a cultura de massa ganha força com o crescimento da indústria transnacional da cultura, que passa a fun-cionar como um instrumento do processo de modernização depen-dente. Com a explosão dos meios de comunicação, teria se fechado o ciclo de globalização do sistema de cultura, podendo-se falar em um Patrimônio Cultural da Humanidade. Porém, nesse processo de construção cultural existem povos que atualmente são apenas

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passivos consumidores. É nesse sentido que se atualiza o questio-namento: “ter ou não ter direito à criatividade, eis a questão.” (FUR-TADO, 1984, p. 25)

Considerações finais

Embora a palavra criatividade esteja muito em moda atualmente, considerada por diversos autores como a principal fonte de valor em uma suposta “era da informação” ou “pós-industrial”, o termo, para Furtado, tem um significado muito distinto. Não se trata de enxergar na criatividade um “capital (humano)”, mas um direito:

§ O direito de enxergar o mundo e interagir com ele a partir do olhar e dos valores da própria cultura;

§ O direito de transformar continuamente esses valo-res em benefício da sociedade;

§ O direito de concentrar as energias individuais e co-letivas na busca pelos fins substantivos;

§ O direito, enfim, de construir uma nova civilização, mais cooperativa, mais justa e mais livre.

Fica claro, desse modo, como o pensamento de Furtado sobre cultura – e, consequentemente, sobre política cultural – não passa pela simples defesa da produção cultural como uma produção me-ritória, mas sim pela compreensão da sua intrínseca relação com as forças propulsoras de um “verdadeiro desenvolvimento”, que não se deixa levar pelo automatismo do processo de acumulação, mas que visa os fins em si mesmos, a construção de valores e a reformu-lação da estrutura social.

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É justamente pelo seu potencial em restaurar essa lógica dos fins que a cultura, por meio da liberação de suas forças criativas, é capaz de restaurar a liberdade humana ao recolocar essa lógica em dife-rentes frentes de resistência à lógica opressiva imposta pela civili-zação industrial, que nos países periféricos é reforçada pela depen-dência cultural.

Furtado identifica alguns desses movimentos que surgem como uma base antagônica à lógica dos meios. A arte seria um deles ao constituir-se como uma linguagem privilegiada capaz de transmi-tir “mensagens que alcançam a mais ampla gama da sensibilidade humana.” (FURTADO, 1978, p. 174) Os são também, por exem-plo, os movimentos ecologistas, ao colocarem em questão a rela-ção do homem com a natureza, assim como os movimentos femi-nistas, ao tomarem consciência da posição subalterna que cabe às mulheres na sociedade industrial. “Nos três casos os conflitos emer-gentes assumem a forma de rejeição das estruturas de enquadra-mento social, de afirmação da pessoa humana, de reivindicação de liberdade.” (FURTADO, 1978, p.181)

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verlane aragÃo santos

economiA PolíticA dA músicA e trAbAlho culturAl Contribuições de estudos exploratórios

Em Criatividade e Dependência, no início do ensaio intitulado Acu-mulação e Criatividade, Celso Furtado (2008, p. 111) afirma que

[Q]uaisquer que sejam as antinomias que se apresentem entre as visões de história que emergem em uma sociedade, o processo de mudança social que chamamos de desenvol-vimento adquire certa nitidez quando o relacionamos com a idéia de criatividade.

Atento à capacidade de certos povos em transformar a realidade em face de condições existentes dadas, o pensador paraibano ob-servará, entretanto, que postas às necessidades do processo de acumulação e ao tipo de racionalidade que lhe é própria as capaci-dades criativas humanas tornam-se insumos para a realização de sua lógica.

Ciente das contradições inerentes aos processos sociais, lembra-rá ainda que

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[S]e pouco sabemos das leis da criatividade cultural, é ampla a evidência de que o campo do possível no que concerne a essa criatividade é mais amplo do que, sob influência de tradições religiosas e filosóficas, somos inclinados a pensar. (FURTADO, 2008, p. 113)

As observações de Furtado, expostas há mais de três décadas, podem constituir um importante ponto de partida e de inspiração, já que a questão de fundo deste texto é pensar a criatividade, ou melhor, o trabalho criativo, intelectual, cultural, que se constitui sob o ponto de vista assumido pelo elemento central dos processos produtivos, em especial nas indústrias culturais e, no que diz res-peito aos estudos aqui apresentados, na indústria da música.

Para efeito da perspectiva adotada, a economia da música será compreendida como um campo de relações sociais que são consti-tuídas com o propósito de efetuar, sob a lógica do capital, processos de produção, distribuição e consumo de bens culturais/musicais, sendo, por sua vez, estruturados com base em três elementos de-terminantes: os parâmetros tecnológicos; a organização do merca-do, em que pesa a atuação dos atores hegemônicos; e as formas de subsunção do trabalho cultural no capital.

Tal compreensão, assim como colocada, reflete a influência da Economia Política da Comunicação e da Cultura (EPC), na sua ver-tente latino-americana, em especial,1 e do conceito clássico de In-dústria Cultural, apresentado pelos frankfurtianos.2 Poder-se-ia, então, se tratar de uma Economia Política da Música, termo este já inscrito por Jacques Attali (1995) em seu texto Ruídos, de 1977.

Quanto à categoria do trabalho cultural, a referência são as pro-posições de César Bolaño, apresentadas em texto de 1997, quando

1 tomamos como paradigmática a resenha de apresentação da economia Política da comu- nicação e da cultura, em paralelo à evolução das contribuições latino-americanas, realizada por Bolaño, herscovici e mastrini, publicada em 1999.

2 guardadas as devidas interpretações no seio da escola de Frankfurt, tomamos o texto de adorno e horkheimer (1986) para a delimitação do fenômeno.

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economia política da música e trabalho cultural | 137

expõe sua crítica à Escola Francesa da Economia da Comunicação e da Cultura, referente à explicação que esta dá para os limites à sub-sunção da obra de arte do período burguês clássico e seu caráter único, valorizando a personalidade do artista. Bolaño, ao contrário, insiste no caráter de mediação do trabalho cultural.

A figura paradigmática do trabalhador da cultura é a do artista

popular, duplamente despossuído. Por um lado, separado do pú-

blico. Para ter acesso a este, é obrigado a submeter-se a um apa-

rato técnico e econômico no interior do qual se torna produtor

de mais valia. Assim, por outro lado, o seu trabalho passa a ser

enquadrado, subsumido no capital, que chega mesmo a raciona-

lizar de forma mais ou menos ampla a produção cultural, pro-vocando os efeitos clássicos de especialização do trabalho, desemprego, criação de um exército industrial de reserva, que marcaram o surgimento e expansão da classe operária.

O problema é que esse processo de subsunção do traba-lho cultural no capital tem limites que colocam em dúvida a possibilidade de que a subsunção real chegue a se impor da forma como se impôs na produção material. Esse limite, responsável pelas características distintivas da produção cultural (aleatoriedade da realização, estratégias econômi-cas para superá-la, necessidade de renovação, manutenção de estruturas de mercado muito específicas), é visto pela escola francesa da economia da comunicação e da cultu-ra como decorrente de uma herança da obra de arte única que marcou o surgimento da arte burguesa no período do Renascimento.

Minha própria explicação do fenômeno é distinta: o traba-

lho cultural tem uma função de mediação simbólica entre as

instâncias de poder e o público porque o trabalhador cultural é

ele próprio um elemento surgido da cultura popular e que tem,

portanto, a capacidade de se comunicar com o povo, de criar um

efeito de empatia que não pode ser conseguido de outro modo.

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É claro que se pode substituir uma orquestra inteira por um único órgão eletrônico, mas as necessidades simbólicas do mundo da vida são tais e tão complexas que esse processo, até o momento, tem encontrado limites insuperáveis, im-pedindo que os saberes do artista popular possam ser ex-propriados ao ponto em que foram os do artesão na fase do que chamei de ‘acumulação primitiva do conhecimento [...]’. (BOLAÑO, 1997, p. 74, grifo nosso)

Tendo, então, delimitado nossa própria perspectiva, o objetivo do presente texto é levantar, a partir de três pesquisas de base empíri-ca, desenvolvidas no Brasil, problemáticas na perspectiva de esta-belecer diálogos na direção de uma economia política da música. Para tanto, busca-se apresentar os resultados desses estudos, cujo foco recai na natureza e na centralidade do trabalho do músico, ou seja, do trabalho cultural, intelectual, criativo, reservando maior es-paço para os resultados alcançados pelo estudo de Santos e colabo-radores (2013), sobre a música produzida no estado de Sergipe/Brasil.

O primeiro desses estudos é o trabalho de dissertação de Rita de Cássia Lahoz Morelli, defendido no Curso de Pós-Graduação em An-tropologia da Unicamp e publicado em 1991. A hipótese levantada

[...] dizia respeito à especificidade do processo capitalista de produção de mercadorias ditas culturais em relação ao processo capitalista comum de produção de mercadorias, especificidade esta que julgávamos ser possível encontrar ao nível das próprias relações sociais de produção existen-tes entre os trabalhadores artísticos e o capital. (MORELLI, 1991, p. 183)

A tese de doutorado de Luciana Pires de Sá Requião foi defendi-da em 2008, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Uni-versidade Federal Fluminense (UFF), com o “objetivo geral [de] analisar, discutir e compreender os atuais processos e relações de

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trabalho deste setor, em específico o trabalho do músico em apre-sentações ao vivo.” (REQUIÃO, 2008, p. 2)

O projeto de pesquisa Economia Política da Música em Sergipe: trabalho, tecnologia e mercado, coordenado por Verlane Aragão San-tos, foi desenvolvido no âmbito do Observatório de Economia e Co-municação da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e teve seus primeiros resultados apresentados em novembro de 2013. O obje-tivo geral da pesquisa foi o de analisar a produção, distribuição e comercialização de conteúdo musical no estado, sendo esses aspec-tos observados com base em aplicação de questionário junto aos artistas (solo/banda), perscrutando o uso e a apropriação das tecno-logias digitais e as estratégias de negócios utilizadas.

Os trabalhos destacados foram desenvolvidos em áreas de co-nhecimento específicas, com abordagens diferenciadas, mas que guardam uma particularidade comum: seu foco consiste na análise (a partir) do trabalho em uma área de criação humana tão univer-sal, a música.

Processo e relações de trabalho no campo da música

A pesquisa do Morelli (1991) situa a discussão do trabalho cultural em um contexto distinto das outras duas pesquisas consideradas, tendo caráter de ineditismo ao estudar a indústria fonográfica no Brasil nos anos de 1970, concentrando-se nas relações entre artis-tas e gravadoras e na questão da divulgação da imagem pública de dois artistas: os cantores Belchior e Fagner. Nesse contexto, temos um mercado centralizado na produção e divulgação do suporte físi-co, no formato Long Play (LP).

Destacamos aqui as discussões trazidas no capítulo 2, Relações de produção e direito autoral: concepções, práticas sociais concretas e histó-ria, e as conclusões do material publicado.

Pressupondo que a separação entre produção material e produ-ção cultural se manifestaria no interior da indústria fonográfica,

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assentada em representações que conformariam noções díspares de cultura, a pesquisadora afirma:

[...] o ponto de partida de nosso trabalho foi justamente o desejo de fazer um estudo da indústria cultural que não se limitasse à tradicional análise crítica do conteúdo de seus produtos – e que, antropologicamente falando, não descui-dasse nem das práticas sociais, nem das representações a elas associadas, num campo em que esse objetivo contraria particularmente a exclusão da produção material do univer-so da cultura, operada justamente com a redução do con-ceito antropológico originalmente abrangente de cultura. (MORELLI, 1991, p. 88)

A partir daí, a análise caminha no sentido de perscrutar de perto as práticas sociais relacionadas à produção material dos objetos di-tos culturais, permitindo assim identificar como se manifestaria a separação entre produção material e produção cultural. Seu ponto de observação recairá sobre a distância existente, e “não desperce-bida”, entre o estúdio e a fábrica de uma gravadora.3 No estúdio, atuam intérpretes, músicos e técnicos de som, cujo processo de trabalho define o produto, a “fita master”, que “contém em si tudo o que de musical será mais tarde contido no disco”. Na fábrica, trabalha-se diferentemente sobre os objetos, o disco de acetato. São retiradas, então, a “madre” e as “matrizes” que serão base para a reprodução em série do disco.

Observada com mais atenção, a divisão entre estúdio e fábrica não é exata, pois deve ser considerado no espaço físico da fábrica o trabalho, similar àquele realizado pelos técnicos de gravação e mi-xagem que atuam no estúdio, de manipulação de sons, pelo técnico de corte. A natureza de seu trabalho o distingue em relação aos demais trabalhadores da fábrica, sendo seu nome o único a figurar, dentre estes, na contracapa do produto.

3 no estudo de morelli (1991), a gravadora em questão é a Polygram, no rio de janeiro.

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A separação entre produção material e produção cultural inscrita na distância observada entre estúdio e fábrica deixa de existir nos termos antes postos quando as relações sociais de produção, aque-las estabelecidas entre os diversos agentes e as gravadoras, são con-sideradas, para além da inserção de cada agente no processo de trabalho.

Vemos, então, que a separação entre produção material e produção cultural pode ainda ser percebida, mas que ago-ra também os técnicos de som que trabalham no estúdio estão incluídos na primeira categoria, cujo sinal distintivo passa a ser a forma salário de remuneração que recebem. Ao contrário, os produtores culturais não são assalariados: os autores e os intérpretes das músicas são remunerados através da participação percentual nas vendas de seus dis-cos, enquanto que os músicos recebem cachês para cada período de gravação de que tomam parte – ficando cada vez o produtor numa posição ambígua, sendo ora um assalaria-do, ora um autônomo, e algumas vezes participando, inde-pendentemente dessa situação, de uma porcentagem sobre as vendas dos discos que produz. (MORELLI, 1991, p. 90)

Ainda assim é possível identificar a correlação processo de traba-lho/relações de produção, quando:

[...] de fato, embora tanto técnicos quanto artistas traba-lhem com os sons, os primeiros atuam sobre eles através da manipulação de equipamentos de gravação, de mixagem ou corte, ao passo que os segundos produzem diretamente esses sons, seja criando a obra musical, seja dando a ela uma interpretação vocal ou instrumental. Por outro lado, a própria ambigüidade que marca as relações de produção do produtor com a gravadora pode ser relacionada ao fato de que é ele quem coordena os trabalhos assim diferenciados que se desenvolvem nos estúdios, sendo, portanto, caracte-rístico de seu próprio trabalho realizar a junção prática dos

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universos de produção material e cultural que já coexistem. (MORELLI, 1991, p. 90-91)

Quanto aos artistas (músicos, autores e intérpretes), as observa-ções identificam diferentes formas de remuneração, que não se restringiriam à forma tradicional da relação capital/trabalho de tro-ca da força de trabalho por salário. No caso dos autores e intérpre-tes, os direitos de autor e os conexos, correspondentemente, pro-moveriam uma relação diferenciada destes com as gravadoras. Em relação aos intérpretes, são estabelecidos contratos que garantem às gravadoras os direitos de exclusividade sobre o artista.

Apesar de ter sido garantido aos músicos também o direito cone-xo à obra musical, sua situação se define como a de qualquer outro trabalhador, “embora o nome ‘cachê’, atribuído à sua remuneração, aponte para um reconhecimento, ainda que apenas verbal, da na- tureza especificamente artística dos serviços que prestam.” (MO-RELLI, 1991, p. 91)

Uma questão importante, destacada pela autora, que fala direto às especificidades do trabalho artístico e que está na base dos direi-tos sobre a obra, foi a de relacionar os direitos conexos recebidos pelas gravadoras, que passaram a ser arrecadados e distribuídos imediatamente após o seu reconhecimento legal, ao investimento de capital realizado por elas, e não àquelas especificidades.

Por sua vez, o trabalho de Requião (2008), enfocando o trabalho dos músicos nas casas de shows da Lapa, no Rio de Janeiro, assenta toda a discussão da relação entre músicos e donos das casas de shows na análise mais geral do trabalho submetido a processos e relações de trabalho capitalistas. Reportando-se, em particular, às discussões de Marx sobre trabalho produtivo e trabalho improduti-vo, considera o seguinte:

No contexto das casas de shows da Lapa, se considerado im-produtivo, poderíamos entender que o trabalho do músico é vendido diretamente ao público consumidor, podendo ser o

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empresário considerado como um ‘parceiro’ ao ‘ceder’ suas instalações ao músico para que possa realizar seu trabalho. Ao contrário disso, entendemos que o músico, em casas de shows como o Rio Scenarium, é trabalhador subordinado ao capital que lhe explora sobretrabalho, ou seja, mais-valia.

Nesse sentido poderíamos dizer que o ingresso pago pelo público ao entrar na casa seria o símbolo de todo um pro-cesso produtivo, considerando seus meios de produção (o imóvel e suas instalações, os equipamentos de sonoriza-ção, a matéria-prima para a cozinha e o serviço de bar, entre outros) e a compra da força de trabalho (como a dos cozinhei-ros, garçons, faxineiros, seguranças e músicos). O trabalho do músico ‘trata-se, portanto, de trabalho que serve direta-mente ao capital como instrumento da sua auto-valorização, como meio para a produção de mais-valia’ (MARX, 1975, p. 93). Importante notar que apesar do músico possuir al-guns meios de produção, como os instrumentos musicais, não tem controle sobre os processos de produção. O músi-co não estaria vendendo ao capitalista um produto musical, mas sim sua força de trabalho através de formas específicas de assalariamento. Em tais formas estão embutidos artifí-cios encontrados pelo capital para encobrir a real exploração do trabalho do músico. (REQUIÃO, 2008, p. 201)

Vista de uma perspectiva mais ampla, a análise oferecida por Re-quião (2008) permite a apreciação em contraponto entre, de um lado, o discurso otimista sobre o significado da expansão e da inten-sificação do movimento de retomada do bairro boêmio da Lapa, no sentido da alavancada econômica local, baseada na exploração de uma economia do entretenimento que ao mesmo tempo serviria para a revalorização de aspectos que reforçariam a identidade cultu-ral, a partir de gêneros musicais como o samba e o choro; e, de ou-tro, as relações de exploração do trabalho, em especial dos músicos.

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Para seu estudo, a autora levanta questões importantes para o es-tudo da música, na perspectiva da economia política que aqui ape-nas pontuaremos: a relação entre economia e cultura, indissociáveis no atual estágio das forças capitalistas de produção; a constituição do mercado da música e a conformação de uma cadeia produtiva da economia da música. Neste sentido, aborda a evolução da indústria

fonográfica e as transformações que alteraram o papel das majors.

Economia política da música: trabalho, tecnologia e mercado

A pesquisa realizada no âmbito do Observatório de Economia e Co-municação da Universidade Federal de Sergipe (OBSCOM/UFS)4 adota como pressuposto a mudança paradigmática representada pela introdução e difusão da digitalização nas etapas de produção, distribuição/comercialização e consumo de conteúdo musical. Para tanto, estabelece articulação do aspecto tecnológico com o processo e as relações de trabalho e com a reorganização dos atores determinantes no mercado em questão – Sergipe.

Nos termos da taxonomia clássica definida pela EPC, desde o surgimento paradigmático da televisão, a indústria da música figu-raria no tipo indústria de edição, com a produção dos fonogramas, que contemplou na passagem à tecnologia digital o formato CD. Contudo, o avanço da digitalização resultaria em uma transforma-ção radical em termos técnicos e de suas potencialidades sociais com o surgimento do Mpeg Audio Layer 3(MP3) e da disponibiliza-ção de conteúdo musical pela Internet, o que configuraria ainda nos termos da própria EPC uma nova lógica social, o que chama-riam de Economia Política da Internet. (BOLAÑO et al., 2007)

4 mais informações relativas à pesquisa, como o catálogo da música de sergipe, acessar o site <www.obscom.com.br/musica>.

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a cadeia produtiva da economia da músicaA pesquisa utilizou como instrumento analítico, com vistas ao

enquadramento das atividades econômicas setoriais e interseto-riais, o modelo da cadeia produtiva da economia da música, a partir do estudo de Prestes Filho e colaboradores (2004).

A cadeia produtiva da economia da música conforma um con-junto de atividades e agentes, articulados em etapas, que vão da pré-produção, passando pela produção, distribuição/comercializa-ção, chegando ao consumo (Figuras 1, 2, 3 e 4), com o propósito do desenvolvimento de produtos (CD; DVD) ou de serviços (shows; espetáculos). “Conceitua-se cadeia produtiva, em geral, como o conjunto de atividades, nas diversas etapas de processamento ou montagem, que transforma matérias-primas básicas em produtos finais.” (PRESTES FILHO et al., 2004, p. 21)

A análise sobre a cadeia produtiva propõe a identificar as etapas (ou elos), sua demarcação e o grau de articulação entre as mesmas, permitindo: a) identificar debilidades e potencialidades nos elos que compõem as etapas da cadeia; b) identificar fatores e condicio-nantes da competitividade em cada segmento. A cadeia produtiva da economia da música apresentaria as seguintes características: estrutura difusa; a criação musical, elemento básico da cadeia, é um bem intangível; sua elaboração obedece a parâmetros não se-quenciais das diversas fases do processo produtivo.

A metodologia utilizada, para efeito do levantamento das ativi-dades e dos agentes atuantes nas quatro fases da cadeia produtiva da economia da música (pré-produção, produção, distribuição/co-mercialização e consumo), considerou como fio estruturante o CD e o show.

A pesquisa utilizou como principal instrumento metodológico a aplicação de questionário semiestruturado junto aos artistas (so- lo/banda) para uma amostra aleatória simples representada por

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146 depoentes.5 O questionário contemplou um conjunto de ques-tões que buscava identificar, entre outras coisas, outros agentes, entre profissionais, entidades e empresas, e as relações que eram estabelecidas entre eles.

Na etapa de pré-produção (Figura 1), os itens referentes às indús-trias de instrumentos musicais e de equipamentos de som e grava-ção continuam a ser pontos frágeis da cadeia, não obstante se iden-tificar uma tendência ao aparecimento de luthiers – haja vista uma tradição de luteria6 no estado. A demanda crescente é atendida por produtos importados, devendo ser considerado tanto o aumento do número de lojas de comercialização como a facilidade representada pelo comércio eletrônico, sendo a internet uma forte ferramenta para a aquisição dos bens supracitados.

Figura 1 - Etapa da Pré-produção da cadeia produtiva da economia da música

Indústria deinstrumentos

musicais

Indústria de equipamentos

de som e gravação

Matéria-prima

Ensinoartístico/

profissional

FinanciamentoEmpréstimo

Crédito pessoal

Educaçãomusical

IOF

PRODUÇÃO

pré-produção

COMERCIALIZAÇÃO

DISTRIBUIÇÃO

CONSUMO

Fonte: Prestes Filho e colaboradores (2004).

5 a população foi definida a partir da consolidação de quatro fontes: cadastro de 2011 da secretaria de estado da cultura (secult/se); do documento som da terra (2010); dados do site Palco MP3, colhidos em 2012; e da lista do coletivo Fórum música sergipe (Fms), de 2011, totalizando 936 artistas (solo/banda). o questionário foi aplicado em onze municípios sergipanos, com maior densidade demográfica para a população dada, em dois momentos, de julho/2011 a janeiro/2012, pelo preenchimento do questionário na plataforma google, e de novembro/2012 a agosto/2013, de forma presencial.

6 um caso exitoso é da guitarra Brasil, do luthier elifas santana, responsável pela confecção da famosa guitarra baiana.

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Outro ponto problemático é o da inexistência de canais de finan-ciamento, com crédito específico para a área musical, disponíveis para os artistas. Basicamente, estes financiam seus produtos (CDs e shows) com recursos próprios.

No caso do Ensino Artístico e Profissional e de Educação Musi-cal, concorrem positivamente para uma mudança qualitativa a cria-ção do curso de Música na Universidade Federal de Sergipe, no primeiro caso, e a efetivação da Lei n. 11.769 que define a obrigato-riedade do ensino de música nas escolas de nível fundamental e médio. (BRASIL, 2008) Em ambos os casos, ainda serão necessá-rios alguns anos para se identificar e avaliar seus efeitos.

Figura 2 - Etapa da Produção da cadeia produtiva da economia da música

Criaçãocomposição

Estúdio

Gravação

Mixagem

Masterização

Produçãofonográfica

Produçãoaudiovisual

ProduçãográficaDesign

Texto

PRODUÇÃO

PIRATARIA

INTERNET

ARTE

produção

COMERCIALIZAÇÃO

DISTRIBUIÇÃO

CONSUMO

Fonte: Prestes Filho e colaboradores (2004).

Quando considerada a fase da produção (Figura 2), são destaca-dos os seguintes aspectos: a diversidade e quantidade relativa à pro-dução autoral no estado mostra a evidente pujança criativa da cena local, e com as facilidades hoje postas pelas ferramentas digitais, fases da produção fonográfica são assumidas por agentes locais, no uso tanto de home studios quanto de estúdios profissionais, em es-pecial na gravação e na mixagem. Nas respostas ao questionário são apontados nominalmente profissionais e empresas atuantes na área de estúdios de gravação, entre outras atividades.

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Figura 3 - Etapa da Distribuição e Comercialização da cadeia produtiva da economia da música

LivrariasSupermercados

Camelôs

(venda)

(logística, divulgação/promoção)Lojas

especializadasGrandes

magazinesBancas

de jornal

Exportação

Especial(tipo: compreum songbook

e leve um CD)

Internet

Marketing

Logística

Publicidade

Internet

Rádio AM

Rádio FM

TV aberta

TV a cabo

Espetáculos

Shows

PRODUÇÃO

distribuição e comercialização

COMERCIALIZAÇÃO

DISTRIBUIÇÃO

CONSUMO

Fonte: Prestes Filho e colaboradores (2004).

Mesmo considerando as fragilidades nas etapas de pré-produ-ção, produção e consumo (Figura 4), neste último caso, relaciona-das às restrições de espaço nos meios de comunicação massivos, como a TV aberta e a rádio FM, como no que tange também ao não recolhimento de direito autoral, isto relacionado ao desconheci-mento dos artistas dos trâmites para tal, assim como no caso de espaços – bares e casas de shows – privados, o grande ponto de es-trangulamento na cadeia produtiva da economia da música de Ser-gipe é a fase de distribuição/comercialização (Figura 3).

Figura 4 - Etapa do Consumo da cadeia produtiva da economia da música

ICMS e ISS

IPI

RádioTVCelularEspetáculosShowsCDDVDBailesTeatroCinemaFestivaisFestas popularesBaresBoitesAcademiasConsultóriosEscritórios

PRODUÇÃO

consumo

COMERCIALIZAÇÃO

DISTRIBUIÇÃO

DIREITOAUTORAL

ECADDireitos Autorais - Execuções Públicas

CONSUMO

Fonte: Prestes Filho e colaboradores (2004).

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O gargalo na distribuição/comercialização tem forte relação com a divulgação e o consumo. Se, de um lado, as tecnologias digitais permitiram a incorporação e o barateamento do processo fonográ-fico e a internet, em particular, esteja servindo para a divulgação do conteúdo musical, as principais vias para que essa música chegue ao público estão dominadas pelo poder público, pelos meios de co-municação de massa tradicionais e pelos grandes produtores lo-cais, que assumem o gerenciamento de bandas que só fazem refor-çar os sucessos que os próprios meios de comunicação e as grandes gravadoras promovem e a política de eventos que governos estadu-al e municipais perpetuam.

os circuitos musicaisO estudo, à medida que avançou em termos da delimitação teó-

rico-metodológica e ao passo que os primeiros aspectos relativos à organização da cena musical eram levantados, construiu a seguinte hipótese: da constituição de “circuitos musicais” próprios no inte-rior da economia da música no estado.

Os “circuitos musicais”, como definidos, articulam-se, em pri-meiro plano, em torno de gêneros musicais (arrocha, axé, forró, gospel, pagode, pop rock, rock, sertanejo, etc.) e, secundariamente, o que ressaltaria suas especificidades, em termos: 1) das relações entre as ações do Estado (“políticas públicas”), do setor privado e dos meios de comunicação de massa; 2) do uso e da apropriação das tecnologias digitais pelos “trabalhadores culturais”; 3) e das es-tratégias de negócios assumidas por estes (Figura 5).

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Figura 5 - Circuitos Musicais

Circuitosmusicais

Gênerosmusicais

Estratégias denegócios

Uso eapropriação

dastecnologias

Políticaspública; Setor

privado;Meios de

comunicação

Fonte: Santos e colaboradores (2013).

Na pesquisa, é destacado o circuito musical que agrega os gêne-ros rock – em suas diversas variações – e pop – que contempla as experiências estéticas e de linguagens sonoras que põem em diálo-go referências locais e globais, em sua maioria autorais –, que se articulam com forte apoio das emissoras públicas de TV e rádio FM, abrindo espaço na programação regular e na promoção de fes-tivais, e com espaços privados, em sua maioria formados por pe-quenos empreendedores, para shows. Este conformaria um circui-to virtuoso para a produção local e autoral. Contudo, ainda sem força similar ao circuito musical formado na órbita dos “gêneros da moda”, como o sertanejo, axé/pagode, forró eletrônico e o arrocha, mais recentemente, que encontram forte apoio do público tanto nos eventos públicos quanto nos meios de comunicação privados, forma mais eficiente de exibição e divulgação, garantindo o desdo-bramento por todo o ano.

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o perfil da amostra: relações sociais de uma produção (in)dependente

Para a amostra, levantou-se que quase 2/3 dos artistas possuem CD (Gráfico 1). Destes, 10% foram lançados por selos ou gravado-ras, sendo em geral vinculados à cena do rock e selos especializados neste gênero musical. Caracteriza-se, assim, um cenário onde se destaca uma produção autoral – 69% da amostra – e independente, marcada pela diversidade de gêneros, o que comprova o próprio perfil da amostra (Gráfico 2). Observou-se a coexistência de vários suportes. Inclusive os LPs voltaram a ser produzidos e cada vez mais novos lançamentos contam com sua versão em CD e no for-mato bolacha, considerado por muitos artistas um fetiche, argu-mentando em face de características próprias – como o benefício à arte da capa e a fidelidade do som e suas nuances –, facilitado, ade-mais, pelo acesso às fábricas fora e dentro do país.

Gráfico 1 - Produtos

CDDVD

Video (In

ternet)

Video C

lipSingle

Outros

140

120

100

80

60

99

4

24

57 63

132

40

20

0 4 5 562

Fonte: Santos e colaboradores (2013).

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Gráfico 2 - Perfil da Amostra Gêneros/Estilos Musicais

Outros26%

Outros (Reagge, Metal, Instrumental, Folclore...)

Arrocha5%

Pagode/Axé5%

Regional5%

MPB5% Forró

Pé de Serra7%

Pop rock8%

Gospel/Religioso

8%

Pop10%

Forró10%

Rock11%

Fonte: Santos e colaboradores (2013).

A maioria dos artistas está na internet, sendo na sua grande par-te sob a forma de perfis no site de relacionamentos Facebook (Grá-fico 3). Perfis e músicas disponibilizadas, alguns artistas em sites especializados, porém sem registro de obtenção de renda pela ven-da de faixas na rede mundial de computadores.

Gráfico 3 - Sites e/ou outros Perfis na Internet10080604020

Série1 32

Site

P...

Qtd

de

Artis

tas/

Band

as

Faceb...

PalcoM...

Sound...

Outros

85 31 10 50

0

Fonte: Santos e colaboradores (2013).

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Uma característica da organização e gestão das carreiras é que boa parte dos artistas assume a prerrogativa de produção, articulan-do e negociando shows e cachês, principal fonte de remuneração, já que o CD passou a figurar como “cartão de visita” (66% infor-mam não possuir produtor, sendo que 10% explicitam o fato de as-sumir tal função). Ademais, poucos informam fazer uso de editais públicos, seja para a participação em shows, prática ainda incomum junto aos governos locais, com exceção do Governo do Estado que, através da Secretaria de Cultura, abriu para o ano de 2013 edital para a composição das atrações locais do palco principal do Verão Sergi-pe; seja para a realização de turnês dentro e fora do estado, com os editais de circulação e a produção de CDs. Faltam informação, co-nhecimento e capacitação em relação a esse instrumento.

Os artistas encontram-se dispersos, quando se considera sua vinculação a uma entidade de classe e a coletivos e/ou fóruns. São citadas mais de duas dezenas de entidades, muitas delas não se configurando de fato como representação classista. O mesmo acon-tecendo para o segundo grupo de organização sugerida. Isto denota claramente a fragilidade da classe na apresentação e defesa de suas demandas junto aos poderes públicos municipais e estadual.

A maior parte dos depoentes informou não ter na atividade musi-cal sua principal ocupação. Cerca da metade percebe até R$1.000,00 mensal de renda na atividade musical, demonstrando que para a maioria a atividade é insustentável financeiramente. Uma observa-ção deve ser feita aqui. A continuidade e o interesse de muitos em adentrar na atividade musical resultam, não exclusivamente, mas especialmente, na busca de reconhecimento, sendo a música en-tendida como um meio de manifestação inerente ao indivíduo e à sua realização pessoal e social.

Ainda assim, é possível apontar um grupo, não desprezível, que recebe entre R$1.001,00 e R$5.000,00, inviável em termos das despesas assumidas, na contratação de técnicos e músicos de apoio; e um outro formado por artistas que chegam a cobrar cachês com

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valores acima de R$30.000,00. Estes últimos correspondem a um percentual pequeno da amostra e são os únicos capazes de promo-ver uma estrutura profissional e semiprofissional nos seus shows. Essa estrutura, por sua vez, garante a promoção de ocupação de músicos e técnicos e sua remuneração.

Uma das principais fontes de receita dos artistas – músicos e intérpretes – constitui-se nos cachês pagos em shows (e dos com-positores, que em sua maioria coincide com a figura do músico e intérprete, além de que a receita oriunda da arrecadação de direitos autorais é nula). Como trabalhador autônomo, estes estabelecem uma relação com o contratante similar à de qualquer trabalhador. Ao mesmo tempo, sendo ele porta-voz da criação musical, permite a mediação simbólica necessária entre os capitais privados, o Esta-do e o público. Assim temos o substrato da cultura de massa, que tem na cultura popular sua principal fonte. Temos então que, com acesso a parte dos meios de produção, dadas as possibilidades tra-zidas pelas tecnologias digitais, e dos meios de intermediação com o público, nos submeter a uma relação desigual com os que detêm estes meios.

O perfil dos artistas que responderam ao questionário é marca-do, em resumo, ainda por: não possuir formação musical específi-ca; na atividade musical, a renda percebida concentra-se principal-mente na venda de shows; realizar shows preferencialmente no estado e em eventos públicos; comercializar seus produtos em shows. Dentre as principais dificuldades apontadas estão: a inexis-tência de espaços para shows, a falta de incentivo do poder público e a dificuldade de acesso aos meios de divulgação midiáticos, espe-cialmente TV e rádio FM.

Considerações finais

Os estudos apresentados, guardada a distância temporal que sepa-ra o primeiro deles dos demais, propõem averiguar a natureza das

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relações sociais que se estabelecem entre trabalhadores culturais – músicos, intérpretes e compositores – e o capital, seja na forma tanto de capitais individuais, como gravadoras, no caso da pesquisa de Morelli (1991), dos donos das casas de shows, no estudo de Re-quião (2008), como no caso dos contratantes privados e do Estado, “capitalista coletivo ideal”, para a pesquisa de Santos e colaborado-res (2013). No último caso, essas relações são perscrutadas a partir do levantamento e análise das estratégias adotadas pelos artistas para garantir a produção, distribuição e comercialização da música que criam.

A música, a mais universal das artes e uma das mais lucrativas indústrias culturais no mundo, tornou-se campo privilegiado da introdução e difusão das tecnologias digitais. Se, antes do fonogra-ma, a música assumia um caráter ritualístico na sociedade e com o surgimento da profissão de músico e da forma de fruição musical composta pelas apresentações ao vivo assume o caráter de repre-sentação – como nos conta Jacques Attali em sua obra Ruídos –, no decorrer do século XX avançaria sob a lógica da repetição e da mer-cadoria. As novas tecnologias, por sua vez, no final do século passa-do, implicariam uma nova etapa, a da música como composição, considerando o autor as possibilidades técnicas não só de reprodu-ção, mas de (re)criação musical.

Nesse sentido, assiste-se a um processo de mudança que tem como marco o surgimento do MP3 na década de 1990 – e a possibi-lidade aberta para o compartilhamento livre de conteúdo musical –, e que tem como um de seus principais reflexos – pelo menos o mais aparente – a queda de receita oriunda da venda de CDs, o que teria anunciado pretensamente uma crise da indústria fonográfica. Uma pretensa crise, já que dados recentes da International Federation of the Phonographic Industry (IFPI) demonstram que, no mundo, CDs continuam a ser vendidos – como são retomadas a produção e a comercialização de LPs –, e o mais importante: as grandes gravado-ras ampliam seus lucros com a utilização de outras estratégias,

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como a comercialização de produtos online, a venda de unidades por demandas, além da publicidade e de sistemas de recomenda-ção de rádios online, como o lastfm.com e o spotify.com. Além dis-so, tem crescido a formação de escritórios que se dedicam ao inves-timento em estruturas de shows e gerenciamento de carreiras.

O que se tem, de fato, é a perda de centralidade do CD, abrindo espaço para outros formatos e negócios, ampliando o leque de atu-ação e de retorno dentro da economia da música, que em vez de significar uma crise da indústria fonográfica, baseada no poder das majors, define-se como uma reestruturação, necessária mediante as possibilidades das novas tecnologias.

Entretanto, e não menos importante, é crucial visualizar que a Internet – corolário desse novo momento digital – representa tam-bém, em face de suas potencialidades democratizadoras, novas possibilidades para os artistas – músicos, intérpretes e autores –, pois permite que estes se apropriem de etapas que outrora estive-ram sob o domínio exclusivo das gravadoras, colocando em cheque o papel de intermediação que estas sempre assumiram entre o ar-tista e o público. A questão estaria então em saber em que sentido e com qual propósito os artistas têm identificado e aproveitado tais possibilidades. Mais que isso, se está claro para quem atua no cená-rio da música que papel lhe cabe quando são consideradas as corre-lações de forças que interferem e são determinantes para garantir a sobrevivência, tanto econômica quanto social, do artista.

A digitalização implica a demarcação de uma nova lógica social, já que altera os padrões de interação dentro do sistema, relativa à economia da internet ou das redes eletrônicas, estabelecendo no-vas oportunidades, inclusive no campo da música. As mudanças, porém, como assente Enrique Bustamante, seriam mesmo anterio-res, ou seja, ainda na vigência do modelo analógico, próprias ao avanço do processo de mercantilização da cultura que acompanhou todo o século XX. Sendo assim, as mudanças trazidas pelas tecno-logias digitais, mesmo que significativas, “não implicam uma

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revolução ou uma ruptura brusca com a história anterior, porque, em última instância, as novas tecnologias não podem apagar a natureza central da mídia na sociedade capitalista atual.” (BUS-TAMANTE, 2010, p. 75)

O forte impacto dos meios de comunicação de massa tradicio-nais, junto com o papel central que assume o Estado, para o caso estudado em Sergipe, parece confirmar a tese de Bustamante, mesmo considerando que muitas das possibilidades trazidas pe-las novas tecnologias ainda sejam campo aberto para a ação cria-tiva humana.

Referências

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jair do amaral Filho

culturA, criAtividAde e desenvolvimento sob um olhAr furtAdiAno

A cultura está por toda parte, na forma de símbolos, crenças e iden-tidades, enfim, na forma de valores. Onde há grupos de pessoas ha-verá sempre cultura ou culturas instaladas. A Economia da Cultura, por sua vez, entendida como produção social, está em poucos luga-res, pois depende de dotações humanas e materiais, bem como, e sobretudo, de capacidades endógenas dos atores, para poderem se articular, se organizar e se manifestar em direção de um mercado. Tal capacidade é a fonte da emergência de sistemas e arranjos pro-dutivos culturais.1 A criatividade, por seu lado, pode estar em todos os indivíduos, em todos os lugares, pois não obedece a qualquer determinação física ou natural para emergir, e se apresenta como potencializador da capacidade dos atores produtivos que atuam em cultural communities. (SCOTT, 1999)

A necessidade, muitas vezes, é a maior aliada da criatividade, aliança essa observada desde o início da evolução humana. Do pon-to de vista econômico, afirma Furtado (1978), a necessidade de se

1 sobre o conceito de sistema e arranjo Produtivo local ver amaral Filho (2011).

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gerar novo excedente econômico, por um grupo ou sociedade, se transforma em um desafio à inventividade das pessoas. O exemplo dado por De Masi (2000), das pontas das flechas encontradas por arqueólogos datando da Idade da Pedra, exibindo uma estética em forma de folhas de louro, pode ser indicado como síntese da com-binação entre necessidade, cultura e criatividade. A produção em série de centenas de Moaïs, gigantescas estátuas de pedras vulcâni-cas, realizada por volta de 1.300 D.C., que ainda povoam a Ilha de Páscoa, no Chile, é outra ilustração impressionante dessa aliança. Entretanto, há lugares e ambientes que, culturalmente, são mais ou menos propícios à emergência e à manifestação da criatividade. Nas eras moderna e pós-moderna, as cidades, mas geralmente as grandes cidades, são os lugares favoráveis para que necessidade, cultura e criatividade se aliem para gerar uma Economia da Cultura ou da Criatividade.

As cidades, entendidas como aglomerações complexas de indiví-duos portadores de características diversas, em sua maioria desco-nhecidas, como observa Jacobs (2000), são os lugares ideais para se processar a mistura desses ingredientes: necessidade, cultura e criatividade. As aglomerações humanas desenvolvem enormes ca-pacidades em atrair pessoas, que por sua vez aumentam estas pró-prias aglomerações, que por seu turno atraem mais pessoas, num fluxo circular cumulativo. Nas cidades, ou indo para elas, as pesso-as procuram satisfazer suas necessidades realizando trabalho para outras pessoas, e estas, para outras, estabelecendo uma grande di-visão invisível de trabalho, que representa a diversidade da cidade. Mais recentemente, alguns autores estão ampliando essa base de raciocínio e acrescentando alguns outros ingredientes, tais como a “tolerância”, (FLORIDA, 2005) para justificar o vanguardismo de alguns centros urbanos mundiais, altamente concentradores de “talentos”.

Observa-se que, durante o longo período de predominância do sistema fordista de produção, as cidades eram preparadas para

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atender o mundo do trabalho, não para bem acolher o trabalhador, mas para viabilizar a produção de massa por meio de estruturas fí-sicas e econômicas racionalmente montadas para servir a produção capitalista de grande escala. Em contraposição a esse tipo de “orga-nização econômica programática”, (GRAMSCI, 1978) arquitetos, planejadores e gestores urbanos há muito vêm trabalhando para contrariar essa tendência, colocando suas criatividades em favor da liberação de espaços públicos, áreas verdes e ar respirável, para tor-nar as cidades mais humanas. Entretanto, em tempos recentes, as-siste-se à manifestação de um ponto de inflexão do sistema fordis-ta, provocado pela emergência de novas formas de organização. Alguns autores denominam essa nova realidade por meio de várias nomenclaturas, tais como pós-fordista, pós-modernista ou pós-in-dustrial.

Independente da nomenclatura, a verdade é que uma das carac-terísticas desse fenômeno, manifestado principalmente nas áreas urbanas, é o fato de que o tempo dedicado pelas pessoas para o la-zer e entretenimento vem aumentando. Algumas das razões estão (i) na difusão da tecnologia entre indivíduos e organizações, dan- do a estes mais autonomia e maior capacidade de interação social; (ii) na entrada retardada dos jovens no mercado de trabalho; (iii) no aumento da expectativa de vida; (iv) na multiplicação de segmentos e profissões nas áreas de serviço; (v) na descentralização da produ-ção; e (vi) na segmentação da demanda. A valorização das liberda-des individuais de escolha é a base ideológica de tal fenômeno. Em nenhum outro momento da história houve tal janela de oportunida-de para que necessidade, cultura e criatividade, com o apoio incon-dicional do conhecimento e da tecnologia, se aliassem para consti-tuir uma Economia da Criatividade, na qual a expansão do tempo dedicado ao lazer e ao entretenimento se apresenta como o princi-pal incentivo de mercado para as atividades culturais. Entretanto, deve-se ressaltar que na raiz dessa base ideológica encontra-se o que

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Furtado (2012)2 chamou de “mito da soberania do consumidor”, que pressupõe boa propensão a consumir bens culturais além da capacidade e controle sobre o sistema de valores embutidos nos bens culturais adquiridos pelo consumidor final.

Problemática: fronteiras difusas entre cultura e criatividade

Autores como Furtado (1984) não tinham, ou não têm, dúvidas a res-peito da relação entre cultura, criatividade e desenvolvimento. Para o autor citado, cultura pode ser encarada sob dois pontos de vista intricados, ou seja, cultura como sistema de valores de uma socieda-de e cultura como patrimônio e manifestações culturais, onde está impregnada a identidade cultural. Nessa perspectiva, para Furtado, a identidade cultural permite a busca da coerência dos sistemas de valores de uma comunidade ou sociedade. Sem ela, os indivíduos se tornam presa fácil de manipulações globalizadoras; tornam-se vulneráveis aos imperativos tecnológicos, reduzindo o conceito de criatividade aos paradigmas dominantes. Por sua vez, segundo o mesmo autor, a criatividade é a capacidade inventiva, o “gênio in-ventivo”, da sociedade para combinar e desenvolver as forças produ-tivas sob certo contexto cultural. Como pode ser observado, Furtado (1984, p. 31) não separa cultura de criatividade, mas alerta para o risco da desconexão entre ambas, “isto é, da separação entre a lógica dos fins, que rege a cultura” e a “lógica dos meios, razão instrumen-tal inerente à acumulação”, acionada pela criatividade.

Explicando melhor, Furtado (1984, p. 31) diz com todas as letras:

Como preservar o gênio inventivo de nossa cultura em face da necessidade de assimilar técnicas que, se aumentam nos-sa capacidade de ação, nossa eficácia, também são vetores

2 texto preparado para o projeto preliminar do relatório da cmcd, apresentado na reunião em são josé de costa rica, fevereiro de 1994.

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de valores que com frequência mutilam nossa identidade cultural? Simplificando: como apropriar-se do hardware da informática sem intoxicar-se com o software, os sistemas de símbolos importados que com freqüência ressecam nossas raízes culturais? Esse problema se coloca hoje um pouco por toda parte, na medida em que a produção de bens cul-turais transformou -se em ciclópico negócio e uma das leis que regem esse negócio é a uniformização dos padrões de comportamento, base da criação de grandes mercados.

Como se vê, embora no início do processo da globalização atual, em 1984 Furtado já colocava com muita lucidez os dilemas cultu-rais que os países periféricos atravessariam no capitalismo contem-porâneo. Por isso, considera-se apropriada a afirmação de Cassiola-to (2008) de que esses dilemas devem ser observados e analisados à luz da Economia Política, isto é, inseridos em contextos sociais historicamente construídos.

Dito isso, parece ter ficado mais fácil definir o que é criatividade e situá-la no contexto do desenvolvimento. Tal fenômeno pode ser entendido como uma atitude motivada ou acionada por uma ideia nova, criadora, podendo ou não se transformar em inovação, de produto ou de processo (no sentido dado por Schumpeter, 1997). Importante que ela seja associada a um ato de criação, e de exclusi-vidade da ação, embora os resultados sejam passivos de transborda-mentos. Os indivíduos são as principais fontes da criatividade, mas as organizações, por meio da aprendizagem e da seleção, também produzem atitudes criativas, provocando inovações e rupturas em suas trajetórias e ambientes, que por sua vez propiciam a emergên-cia de novas criatividades. Entretanto, quando se trata de organiza-ção social e de sua reinvenção, a própria sociedade, por meio das interações sociais (cooperativas e conflituosas) se encarrega de pro-duzir criatividades coletivas.

O deslocamento do paradigma manufatureiro para o paradigma do conhecimento tem sugerido um cenário no qual a criatividade

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se transforma em atitude rotineira, fato que tem merecido dos es-tudiosos, das áreas do crescimento e do desenvolvimento econômi-co, atenção especial para a chamada economia das ideias. (JONES, 1988) Sendo as ideias o eixo principal do conhecimento, e este a base da competitividade, seus geradores necessitam de mecanis-mos de proteção, e de incentivo, para que suas ideias gerem o retor-no esperado, e sem que elas sejam apropriadas por outros em forma de externalidade. Daí porque é praticamente impossível dissociar a Economia Criativa de mecanismos de proteção, tais como direito autoral, patente e direito de propriedade intelectual. Desta maneira, tornou- se muito familiar a associação entre Economia Criativa e bens rivais, ou exclusivos, ou seja, aquilo que se contrapõe aos cha-mados bens ou serviços públicos, ou não exclusivos.

Por outro lado, não é tarefa fácil definir o significado de ambiente criativo, ou seja, campo territorial sobre o qual, dentro do qual, ou pelo qual se desenrolam os processos e eventos criativos. Por influ-ência da Economia do Conhecimento, há uma tendência dominan-te na literatura recente em considerar, por exemplo, cidades califor-nianas como São Francisco, Palo Alto, San José, no Vale do Silício (EUA), como referências mundiais de ambientes criativos. Nesse Vale se concentra uma grande quantidade de empresas de base tec-nológica em tecnologia da informação, profissionais qualificados de alto nível e talentosos, universidades e centros de pesquisas de ponta, capitais de risco, museus e equipamentos que estimulam crianças e jovens a serem criativos e inovadores. San José, terceira maior cidade da Califórnia e encravada no Vale do Silício, com cerca de 1 milhão de habitantes, registrou entre 2007 e 2011 o número médio de 9.237 patentes por ano, além de servir de arena para gran-des embates jurídicos travados entre as empresas Samsung e Apple. (ROTHWELL et al., 2013) Isso tem transformado esta cidade, e seu entorno, num território potente na atração de talentos e curiosos criativos do mundo todo, sobretudo da Ásia.

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Enfim, respiram-se nessa região inovação e tecnologia, de ma-neira que a cultura e as linguagens locais encontram nesses dois elementos seus pontos comuns. Dentro de um ambiente dessa na-tureza, a criatividade tecnológica passa a ser uma regra, até por uma questão de sobrevivência dos indivíduos, empresas e organi-zações. No entanto, não se pode transformar o caso do Vale do Silí-cio num paradigma normativo de ambiente criativo, a ser seguido por outras regiões e cidades com pretensões de conquistar um títu-lo de criatividade.

A propósito, é oportuno assinalar que a análise da Economia Cria-tiva se adapta bem melhor ao método indutivo no lugar do método dedutivo, posto que não há uma teoria geral, especialmente porque os resultados das observações empíricas tendem a orientar inter-venções de políticas públicas, e estas não devem ser padronizadas, senão particularizadas. Nesse ponto, autores como J. Howkins, R. Florida e M. Porter têm se rendido diante do voluntarismo nor-mativo imposto pela prática das megaconsultorias, na medida em que tendem a considerar como criatividade as atividades intensivas em inovação e tecnologia, o que no mínimo é reducionista. Além disso, ou por conta disso, suas visões e sugestões se alimentam de receitas prontas habitadas por “boas práticas”, “casos exempla-res”, como se fosse uma mera lista de supermercado. Em resumo, essa corrente acaba colocando no centro do debate a propriedade intelectual e, por consequência, acaba sugerindo um “modelo” de criatividade excludente do ponto de vista social e espacial.

Ao contrário disso, para cada ambiente ou território, há que se identificar o seu veio cultural representativo e mobilizador. Nos ca-sos de São Francisco, Palo Alto e San José e o seu Vale do Silício, os símbolos culturais passaram a ser o iPhone, o iPad e marcas como o Google, Yahoo, Facebook e outras, mas para as demais localida-des os símbolos culturais são o bumba meu boi, o maracatu, o for-ró, o cinema, entre outros. Todavia, ao contrário de estarem separa-dos, estes últimos se utilizam dos primeiros, como meios, para se

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projetarem e atingirem com mais rapidez seus consumidores ou, simplesmente, públicos. Quais das manifestações culturais, festi-vas ou bandas de forró não se utilizam da internet e redes sociais como ferramentas de acesso ou difusão?

Portanto, numa outra perspectiva, há locais e cidades que, mes-mo não sendo impregnados por atividades empresariais de alta tecnologia, têm na criatividade coletiva uma reserva econômica importante. Este é o caso das atividades ligadas à cultura e ao en-tretenimento em muitos lugares do mundo. Apesar de essas ativi-dades serem, em sua grande parte, realizadas e expandidas por meio de atitudes criativas coletivas, tais como o carnaval, as festas juninas, etc., elas não podem prescindir das atitudes criativas indi-viduais, assim como do conhecimento e da tecnologia, especial-mente digital. Neste caso, bens e serviços exclusivos e não exclusi-vos, ou seja, bens e serviços privados e públicos, convivem e devem conviver de maneira inseparável, muitas vezes tensa, por causa dos conflitos gerados em torno dos problemas relacionados aos direitos autorais ou de propriedade intelectual.

No lugar de ser um problema, esse quadro complexo deve ser encarado como fonte importante de riqueza, geradora de emprego e renda. Os governos, por meio do seu poder regulatório e das polí-ticas públicas, podem tirar partido dessa complexidade expandindo e liberando bens e serviços culturais para a população, assim como protegendo e assegurando os direitos autorais e de propriedade in-telectual daqueles indivíduos e grupos responsáveis pela criação do conteúdo que move as indústrias culturais e criativas. Como será mostrado mais adiante, vários têm sido os governos, nacionais e locais, que vêm tomando decisões nesse sentido, como é o caso do governo britânico que, desde 1997, vem dando destaque às indús-trias criativas dentro de suas políticas públicas. Acreditando na po-tencialidade dessas indústrias, de compensar o declínio das indús-trias manufatureiras, o governo britânico trabalhista criou o Minister

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for Creative Industries & Tourism a fim de coordenar as ações dirigi-das para tais indústrias.

O governo britânico define as indústrias criativas como aquelas:

[...] baseadas na criatividade, competência e talento indivi-dual com potencial para criação de trabalho e riqueza atra-vés da geração e exploração da propriedade intelectual. Isso inclui propaganda, arquitetura, mercados de arte e antigui-dades, artesanato, design, moda, filme e vídeo, software de lazer, artes performáticas, edição, jogos de computador, TV e Rádio. (UNITED KINGDOM, 2009)

Por um ângulo mais includente e democrático, a Unesco trata o fenômeno de economia ou indústria cultural no lugar somente de indústria criativa, agregando as atividades culturais tradicionais com as novas atividades industriais criativas e mais as atividades corre- lacionadas, transformando essas atividades num grande complexo produtivo. (UNESCO, 2005) Completando o campo das definições, Hartley (2005, p. 32) diz que Economia Criativa é a: “convergência conceitual e prática das artes criativas (talento individual) com as in-dústrias culturais (escala de massa) no contexto das novas tecnolo-gias das mídias dentro de uma nova economia do conhecimento.”

Natureza econômica dos produtos (e serviços)

O reconhecimento dos bens e serviços culturais e criativos pela Ciência Econômica é uma realidade relativamente nova. Não fos-se o aparecimento e a expansão da Economia do Conhecimento, perpassando inclusive aqueles setores ditos tradicionais, os temas relativos à cultura e à criatividade estariam ainda hoje restritos às preocupações sociológicas, antropológicas e psicológicas, além, é claro, dos campos específicos das Artes. Adam Smith e David Ricardo, chamados economistas clássicos, consideravam as ativi-dades ligadas às artes e à cultura como trabalho improdutivo, por

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isso ficaram fora de seus esquemas analíticos da Economia Políti-ca. Alfred Marshall, por seu lado, entendia que as atividades cultu-rais eram fundamentais para a sociedade, mas não atribuiu a elas valores econômicos precisos, dada a singularidade desses tipos de produtos. John M. Keynes, apaixonado pelas artes, especialmente pelas artes plásticas, não dedicou qualquer atenção científica para as atividades culturais. (BENHAMOU, 2007)

A maior dificuldade encontrada pelos economistas na tarefa de valorar um bem ou serviço cultural está no fato do mesmo ser por-tador de singularidade, especialmente quando se trata de peças únicas adquiridas individualmente, como observa Furtado (1988). Por exemplo, certo quadro de Picasso, quando original, é único no mundo, assim como outros de seus quadros originais e assim como obras de outros artistas. Essa dificuldade foi claramente reco-nhecida por economistas como A. Marshall. Dentro da história do pensamento econômico há, pelo menos, duas metodologias dispo-níveis para estabelecer o preço de uma mercadoria comum, não cultural. A primeira, associada aos economistas clássicos, orienta a formação do preço por meio da teoria do valor, ou seja, pela quanti-dade de trabalho incorporada na mercadoria. A segunda, filiada à escola neoclássica, define o preço pelo comportamento da curva de utilidade marginal proporcionada pelo consumo dos bens e servi-ços. Ou seja, quanto mais se consumir um bem ou serviço, menor será a utilidade marginal proporcionada por esse consumo.

Como se vê, aplicadas ao mundo da cultura, essas duas metodo-logias são insuficientes para captar a essência dos símbolos cultu-rais, dado que estes são estranhos à racionalidade econômica. Como coloca Furtado (1988), “a cultura é da esfera dos fins, e a ló-gica dos fins escapa ao cálculo econômico em sua versão tradicio-nal”. Daí, portanto, a dificuldade e o desconforto dos economistas em analisar as atividades culturais dentro de uma perspectiva do valor econômico, tal como se manifesta em outras atividades co-muns. Para Benhamou (2007), com a emergência paulatina dos

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conceitos, somente mais recentemente que se começa a formar uma base para a análise da Economia da Cultura. Formam essa base elementos como as externalidades positivas produzidas pela cultura vis a vis da sociedade; necessidades de investimentos de lon-go prazo; especificidades na remuneração dos agentes, tendo em vista a forte presença da incerteza; a rigidez dos custos marginais na produção dos espetáculos ao vivo; a presença da utilidade margi-nal crescente, no lugar de utilidade marginal decrescente, como acontece com os bens e serviços comuns e a importância da ajuda pública ou privada no apoio à realização e à socialização das ativida-des culturais.

Foi com Baumol e Bowen (1965) que as atividades culturais inauguraram sua entrada no campo das preocupações científicas dos economistas, sendo, desta feita pela teoria microeconômica. Convidados pela Fundação Ford, dos EUA, esses economistas se debruçaram na resolução do problema relativo à rigidez dos custos marginais verificada na produção de espetáculos ao vivo. Ao mon-tarem espetáculos ao vivo, empresários e produtores verificavam altos custos fixo e marginal que impunham preços elevados aos ingressos individuais, adquiridos pelos espectadores. Através de seus estudos, Baumol e Bowen reconheceram que a produção e a oferta de bens e serviços públicos necessitavam de subsídios do Estado. Foi a primeira vez que os bens e serviços culturais recebe-ram dos economistas um exame rigoroso, o que permitiu iniciar um longo, mas lento, processo de codificação econômica que tem sido capaz de mostrar as potencialidades econômicas desses bens; mas não só: mostrar também que os mesmos são portadores de aspectos singulares.

Na contramão das conclusões desses economistas vieram os au-tores da Teoria da Escolha Pública (public choice), liderada por J. Bu-chanan, alertando para o risco de os recursos e políticas públicas se transformarem em reféns de grupos de interesse organizados e oportunistas, posição, aliás, que contribuiu para o avanço das

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avaliações microeconômicas de cada segmento a fim de melhorar as decisões dos poderes públicos. Aparentemente contrária às con-cessões de subsídios, essa corrente permitiu às políticas públicas culturais uma postura mais democrática e menos clientelista e eli-tista em relação aos produtores e consumidores.

Apesar dos avanços verificados nos campos das Economias da Cultura e da Criatividade, seu conhecimento estruturado e comple-to está longe de acontecer, principalmente por causa da expansão da complexidade provocada pela adição de novos e inúmeros ele-mentos, pela diversidade dos mesmos e pelos cruzamentos e fu-sões das relações. Tendo em conta essa complexidade, não se pode negar crédito àqueles autores que se arriscaram com seus exercí-cios futuristas tentando decifrar e desenhar os novos contornos as-sumidos pela economia capitalista a partir dos finais da década de 1960 e início dos 1970, começo da trilha da economia “pós- industrial” ou “pós- fordista”. (TOFFLER, 1980; BELL, 1977)

Autores como esses, citados, verificaram que as novas caracterís-ticas que se apresentavam não se tratavam de categorias provisó-rias de um sistema que “passava por uma crise passageira”, ou me-ras atividades de escape que procuravam se defender da forte onda de desemprego que atingia as sociedades de mercado durante os anos de 1970 e 1980, mas se tratavam de atividades que demons-travam características próprias, além de alguma autonomização em relação aos mecanismos da economia industrial pura e dura. Mas o que tem sido constatado, desde os finais da década de 1990, é que dentro das atividades de serviços se destacam, ainda de ma-neira difusa, as atividades e indústrias culturais e criativas. Estas têm sido objeto de vários estudos e reflexões. (DE MASI, 2002; HOWKINS, 2002; CAVES, 2002; FLORIDA, 2005; REIS, 2007)

A chamada Economia Criativa não se confunde com alguma ou-tra economia do passado, o que significa dizer que sua emergência pode ser datada e identificada com um período de tempo que pode-ria ser localizado nos finais do século XX. Nesse período, passando

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para o século XXI, arrebentam e confluem vários fenômenos dos quais a globalização é o mais evidente. A abertura econômica e a globalização, como se sabe, colocaram em primeiro plano a temáti-ca da competitividade e da inovação. Entretanto, a Economia Cria-tiva tem um campo de influência mais amplo e generoso. Procu-rando definir esse momento, ao mesmo tempo que o próprio fe- nômeno, as Nações Unidas/United Nations Conference on Trade and Development (2008), em seu Relatório Anual, colocam que no mundo contemporâneo um novo paradigma está emergindo, o qual liga economia e cultura, envolvendo aspectos econômicos, culturais, tecnológicos e sociais no processo de desenvolvimento.

Na raiz desse “mundo contemporâneo” encontram -se fenôme-nos dos quais podem ser destacados: (i) o triunfo dos movimentos contraculturais, iniciados durante os anos 1960, provocando a in-versão da pirâmide ditadora das modas e comportamentos; (ii) a ascensão da categoria social chamada “jovem”, e sua repercussão sobre os padrões de consumo; (iii) a valorização do indivíduo e a segmentação dos mercados consumidores; (iv) a expansão do tem-po dedicado ao lazer e ao entretenimento, fazendo ampliar as esca-las de consumo por produtos simbólicos e culturais; (v) a valoriza-ção dos símbolos e patrimônios culturais, em função da globalização e do surgimento de estratégias de desenvolvimento local, visando geração de emprego e renda, etc. Aliado a tudo isso se deu a amplia-ção do conhecimento e a multiplicação das tecnologias intensivas em informação e ferramentas digitais. Estes têm sido, dentro da Economia Criativa, os principais meios de difusão e de redução de custos das atividades culturais. Como se percebe, a Economia Cria-tiva emergiu sem que algum planejamento fosse necessário.

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Papel do estado e possibilidades para as políticas públicas

Em meio a qualquer discussão relativa à intervenção do Estado na economia, ou na sociedade, é normal que surjam questões como as que seguem: (i) por que o Estado realiza algumas atividades e não outras?; (ii) por que o papel do Estado tem variado muito nos últimos anos?; (iii) o Estado interfere muito na economia e na vida das pessoas?; (iv) o Estado é eficiente em suas atividades? Se essas questões aparecem quando se discute a relação do Estado com a economia, elas são recorrentes quando se trata da relação do Estado com as atividades culturais e criativas.

Houve época em que a intervenção do Estado na economia era vista como ato pernicioso para o mercado. Mas houve época, no entanto, em que a intervenção do Estado passou a ser encarada como algo positivo para o mercado, pois o ajudava a encontrar mais rapidamente o seu estado de equilíbrio. Isto acontece a partir da grande depressão dos anos 1930 e se reforça após a Segunda Gran-de Guerra Mundial. A crise fiscal verificada nos anos 1980 e 1990 obrigou o Estado a deixar boa parte da economia, embalado pelas teses liberais. Mais recentemente, a intervenção estatal nos merca-dos passou a ser vista e avaliada em função das necessidades e das especificidades dos mercados.

De acordo com as correntes dominantes, ou pelo menos influen-tes na ciência econômica, a intervenção do Estado na economia se justifica por três grandes razões (STIGLITZ; WALSH, 2003; BI-DERMAN; ARVATE, 2004), a saber: (1) melhorar a eficiência eco-nômica ou corrigir falhas de mercado; (2) promover valores sociais de justiça ou equidade, alterando resultados de mercado; (3) per-seguir outros valores sociais tornando obrigatório o consumo de certos bens meritórios, e proibindo o consumo de outros, chama-dos bens não meritórios (nocivos). No tocante às falhas de merca-do, as justificativas se alimentam em cinco fontes: (i) concorrência

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imperfeita, ou formação de monopólios; (ii) assimetria de infor-mação entre agentes de um mesmo mercado; (iii) a manifestação de externalidades negativas; (iv) necessidades de se oferecer bens e serviços públicos; (v) ausência de mercados.

Enquanto na economia, em geral, já se tem clareza sobre quando e como o Estado deve intervir, nos segmentos da cultura e da criati-vidade, e em seus arranjos produtivos, essas questões estão longe de serem respondidas com a mesma clareza. Há basicamente dois elementos que dificultam uma definição mais clara para o papel do Estado nesses segmentos: a primeira diz respeito à complexidade, mas principalmente, à sensibilidade dessas áreas, e a segunda difi-culdade está associada às indefinições que gravitam em torno do problema da valoração e precificação dos bens e serviços culturais. Entretanto, um problema microeconômico.

Como se sabe, a cultura é um campo sensível porque é portadora de símbolos e tradições. Sendo assim, a cultura pode se transfor-mar em presa fácil para os grupos que se apropriam do poder e que a transformam em ferramenta de alienação e dominação da popu-lação. Não por acaso que essa questão foi amplamente estudada pelas correntes marxistas e gramscianas, bem como pela Escola de Frankfurt, visando mostrar a dominação exercida pelas classes do-minantes por meio dos aparatos ideológicos. Por outro lado, apesar das várias contribuições já realizadas, das quais as de Baumol e Bowen são as mais importantes, há ainda muita dificuldade em se precificar os bens e serviços culturais, assim como os conteúdos gerados pelos processos de criação. Quanto a esta última dificulda-de, ela tem aumentado na medida da intensificação do uso da tec-nologia digital e das facilidades em relação à difusão de sons, ima-gens e textos escritos.

Apesar dessas dificuldades, pode -se dizer que já existem algu-mas convicções bem desenvolvidas no que diz respeito a vários campos e objetivos a serem preenchidos pelo poder público e pelas

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políticas públicas em geral, no tocante às Economias da Cultura e da Criatividade.

De um lado, essas convicções têm favorecido o avanço das inter-venções e das políticas públicas no sentido de garantir a cultura como bem público e geradora de externalidades, emprego e renda para a sociedade. Mas antes de tudo, segundo Furtado (1984, p. 32), “[...] o objetivo central de uma política cultural deveria ser a libera-ção das forças criativas da sociedade. Não se trata de monitorar a atividade criativa e sim de abrir espaço para que ela floresça”. Para o autor, é necessário remover os obstáculos à atividade criativa, ins-talados nas estruturas conservadoras e burocráticas e, ao mesmo tempo, defender a liberdade de criar, “certamente a mais vigiada e coatada de todas as formas de liberdade”. Nesse sentido, o desen-volvimento das “liberdades substantivas”, ou da consequente “ex-pansão das capacidades individuais”, defendidas por Sen (2000) como o caminho do desenvolvimento, podem ser consideradas como passarelas ideais de travessia ao “mundo” de Furtado.

Numa linha complementar, de acordo com Reis (2007), há uma lista de itens que devem fazer parte de uma política cultural lato sensu: a formação da identidade regional ou nacional; a promoção da diversidade cultural e da democracia de acesso cultural; o poten-cial da cultura como fator de inclusão socioeconômica, de atração do turismo, de fomento ao fluxo de informações e construção da consciência individual. Ainda segundo a autora citada, uma políti-ca cultural não deve ser executada com objetivos próprios e isolada; ao contrário, como tal deve assumir um caráter transversal e ser assumida por todos os setores do governo, isto é, secretarias ou ministérios da Educação, Ciência & Tecnologia, do Trabalho etc., de maneira a integrar todos os instrumentos setoriais num objetivo comum. Desta maneira, a política cultural estará contribuindo para o desenvolvimento sustentável, seja em âmbito local, estadual ou nacional.

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Como já foi avançado em outra passagem do texto, numa pers-pectiva mais voluntarista e normativa, governos de vários países, e com o apoio político e técnico de organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvi-mento (UNCTD), vêm implementando estratégias macrossetoriais voltadas para o estímulo, organização e o desenvolvimento das in-dústrias criativas e da economia cultural de uma maneira geral. A UNCTD, já em 2004, em sua XI Reunião em São Paulo, deixou clara e estabelecida a importância que poderia ter a Economia Cria-tiva no fortalecimento da identidade cultural e na qualificação da pauta das exportações dos países, particularmente subdesenvolvi-dos e em desenvolvimento. Essas estratégias têm como objetivo fazer com que haja um fortalecimento das identidades culturais nacionais diante do processo de globalização cultural, e ao mesmo tempo possibilitar o fortalecimento setorial desses segmentos vis à vis do setor manufatureiro, em declínio, possibilitando assim a ex-pansão da oferta de emprego e renda. Em geral, segundo Hartley (2005), as políticas dos países têm caminhado sobre fronteiras e dilemas, as quais dividem e confundem (i) artes criativas e indús-trias criativas, (ii) segmentos públicos e privados, (iii) Estado e em-presário, (iv) cidadãos e consumidores e (v) política e indivíduo.

De outro lado, aquelas mesmas convicções têm igualmente for-talecido o papel do poder público em relação às garantias dos direi-tos autorais e dos direitos intelectuais, a fim de incentivar o nasci-mento de novas ideias e assegurar a renovação e a reprodução da Economia Criativa. Para isto, os governos devem se posicionar no sentido de orientar os autores e as áreas de criação a criarem marcos regulatórios, agências reguladoras e implementarem fiscalizações eficazes, especialmente em relação à atuação das atividades promo-toras da “pirataria”. Como se sabe, a reprodução de produtos falsifi-cados tem sido um forte desestímulo aos investimentos e esforços

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dirigidos para a pesquisa e desenvolvimento voltados para projetos geradores de novos produtos, estejam eles associados às atividades culturais e de entretenimento como também aos bens de consumo duráveis e não duráveis, eletrônicos.

Categorização e classificação das atividades culturais e criativas

Há muita controvérsia entre autores e governos em relação à cate-gorização e classificação das atividades ditas criativas, que envol-vem as indústrias criativas. De um lado, existem aqueles que pro-curam categorizar e classificar os segmentos e profissões criativos seguindo rigorosamente o critério da criação de conteúdo, o qual só pode ser entendido a partir da Propriedade Intelectual (PI), ou da perspectiva da exclusividade de um bem. Nesses termos, essa corrente segue o paradigma puro da sociedade do conhecimento, popularizada pelo nome de sociedade pós-industrial. Dentro dessa corrente encontram-se autores como Howkins (2002). De outro lado, há aqueles que procuram adotar a tradição originada na Eco-nomia da Cultura como critério básico, para os quais as atividades culturais formam o núcleo central da economia criativa, embora evoluindo para uma fusão com a Economia do Conhecimento, res-ponsável pela renovação, rupturas, difusão e consumo dos produ-tos culturais. Esta segunda abordagem torna a metodologia de clas-sificação mais inclusiva do ponto de vista espacial, além de conter um caráter mais evolucionário e permitir a diversidade cultural.

Ao final, a escolha por uma ou por outra corrente vai depender essencialmente do que se dispõe em realidade. Lugares e cidades situados no Vale do Silício, por exemplo, não teriam qualquer pro-blema em escolher como critério de categorização a Economia do Conhecimento, ou Tecnologia da Informação, resultando em eixo central de classificação. Mas este não é o caso da maioria dos luga-res, em se tratando de centros urbanos, localizados principalmente

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nas regiões e países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. O que se observa, comumente, são atividades e indústrias culturais sendo tomadas como eixo central de classificação, mas trazendo com elas todas aquelas atividades correlatas, e que se caracterizam pelo uso intensivo de tecnologia e conhecimento. Nesse caso, poderia dizer que Economia Criativa são aquelas atividades culturais intensivas em criatividade ou atividades criativas intensivas em cultura. Muito embora o conceito de criatividade seja associado à criação de conte-údo, este segmento não consegue sobreviver de si próprio, necessi-tando para tal de outros segmentos, tais como produção, difusão, marketing, distribuição e comercialização.

Throsby (2001) parece oferecer uma classificação razoável que parte de um núcleo duro habitado pelas atividades e indústrias cul-turais. Nesse núcleo ele considera atividades criativas acompanha-das de conteúdo simbólico e algum grau de propriedade intelectu-al, nas quais se encontram a música, a dança, teatro, literatura, artes visuais, artesanato, vídeo, multimídia. Em seguida, numa faixa próxima e correlata, ele inclui as atividades ligadas à edição, ao rádio, ao jornal, ao filme, à TV e à revista. Por último, o autor indica outras atividades menos próximas, mas ainda correlatas, a arquite-tura, a propaganda e o turismo. O interessante dessa classificação está no fato de oferecer um cardápio básico de atividades sobre o qual poderão ser adicionadas algumas outras atividades, correlatas, mas que sejam particulares a determinados locais.

Considerações finais

As reflexões aqui desenvolvidas não possibilitam realizar uma con-clusão sobre o tema, dado que sua pretensão foi aquela de esta-belecer algumas bases para uma discussão mais ampla sobre as questões da cultura, criatividade e desenvolvimento. Nesse senti-do, os exercícios realizados ao longo do texto permitem entrever algumas fontes alimentadoras de pesquisa e debates, dentre elas:

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(i) a cultura pode ser encontrada em todos os lugares onde existam diversidade e interação entre indivíduos e grupos, e como tal ela se apresenta de maneira particular; (ii) a cultura se diferencia da cria-tividade na medida em que a primeira reflete um conjunto de valo-res (ético, moral e religioso), e a segunda as capacidades individual e coletiva de transformar e superar determinados padrões (de pro-dução e de consumo); (iii) dependendo do diálogo e entendimento entre cultura e criatividade locais, abre- se um campo extenso para se trabalhar, por meio de políticas públicas, as possibilidades de transformação da cultura e da criatividade em produtos finais de consumo, resultando em fontes de geração de emprego e renda para as comunidades.

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SOBRE OS AUTORES

Alain Herscovici

Possui graduação em Administration – École Supérieure de Commer-ce d’Amiens (1978), graduação em Economia – Université de Picardie (1978), mestrado em Economia – Université Paris 1 (Panthéon-Sorbon-ne) (1980), doutorado em Economia – Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) (1983) e doutorado em Economia – Université de Picardie (1992). Atualmente é professor associado IV da Universidade Federal do Espírito Santo, líder do Grupo de Estudos em Economia da Cultura, da Informação, do Conhecimento e da Comunicação (GECICC), CNPq, e diretor das Relações Científicas da ULEPICC, seção Brasil. Tem ex-periência na área de Economia, com ênfase em Macroeconomia e em Economia da Informação e da Cultura, atuando principalmente nos se-guintes temas: dinâmica macroeconômica, metodologia e epistemologias econômicas, Law and Economics, economia institucionalista, direitos de propriedade intelectual e economia digital, e economia da informação.

Alexandre Mendes Cunha

Graduado na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Fe-deral de Minas Gerais e obteve seu mestrado e seu doutoramento em História pela Universidade Federal Fluminense, com pesquisas que

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articularam temas de história econômica com história do pensamento econômico. Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Econômi-cas da UFMG, na qual leciona no curso de Ciências Econômicas desde 2003. É também pesquisador do Cedeplar/UFMG, com experiência de pesquisa nas áreas de História e Economia, com ênfase em história do pensamento econômico luso-brasileiro e difusão internacional das ideias econômicas.

Bárbara Freitas Paglioto

Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (2011) e mestrado em Economia pelo Centro de Desen-volvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR) da Universidade Federal de Minas Gerais (2015). Membro do Grupo de Pesquisa em Eco-nomia da Cultura do Departamento de Ciências Econômicas da UFMG desde 2012, trabalhando principalmente com os temas economia criativa e economia de museus.

Carlos Antônio Brandão

Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Bolsista 1 D CNPq. Cientista do Nosso Estado FAPERJ. Suas atividades de docên-cia, pesquisa e extensão se concentram na área do Planejamento Urba-no e Regional. Possui doutorado, livre-docência e é professor titular em Economia Regional e Urbana pela UNICAMP. Mestrado em Economia pelo Cedeplar/UFMG. Pós-doutorado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Coordenador do site <www.interpretesdo-brasil.org>. Coordenador do Observatório Celso Furtado para o Desen-volvimento Regional do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. Editor da Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais (ANPUR).

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César Ricardo Siqueira Bolaño

Graduado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade de São Paulo (1979), tem mestrado e doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (1986 e 1993, respectivamente). Professor da Universidade Federal de Sergipe, colaborador do PPG em Comunicação da Universidade de Brasília, foi fundador e primeiro presidente da União Latina de Economia Políti-ca da Informação, Comunicação e Cultura (ULEPICC) e atualmente é presidente da Associação Latino-americana de Pesquisadores da Comu-nicação (ALAIC). Mantém, desde 1999, no Observatório de Economia e Comunicação da UFS (OBSCOM), o portal EPTIC e a revista aca-dêmica EPTIC Online, especializada na área de economia política das tecnologias da informação e da comunicação (www.eptic.com.br).

Elisabeth Regina Loiola da Cruz Souza

Concluiu o doutorado em Administração pela Universidade Federal da Bahia em 1998. Atualmente é professora associada IV da Escola de Ad-ministração da Universidade Federal da Bahia. Publicou 54 artigos em periódicos especializados e 84 trabalhos em anais de eventos. Possui 17 capítulos de livros, 3 livros publicados e 75 itens de produção técnica. Orientou 29 dissertações de mestrado e 7 teses de doutorado na área de administração, de psicologia organizacional e do trabalho e de cultura e sociedade. Recebeu 4 prêmios e/ou homenagens. Atua na área de admi-nistração, com ênfase em administração de setores específicos. Em suas atividades profissionais interagiu com 66 colaboradores em coautorias de trabalhos científicos. Em seu currículo Lattes os termos mais frequentes na contextualização da produção cientifica, tecnológica e artístico-cul-tural são: competitividade, agroindústria, inovação/empreendedorismo, capacitação, desenvolvimento regional, estratégia, aprendizagem organi-zacional, desenvolvimento local, cultura e redes sociais.

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Paulo Cesar Miguez de Oliveira

Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal da Bahia (1979), mestre em Administração (UFBA, 1995) e doutor em Comu-nicação e Culturas Contemporâneas (UFBA, 2002). Atualmente é pro-fessor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (UFBA), do qual foi coordenador entre 2010 e 2012, e pesquisador do CULT – Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (UFBA). Foi Assessor Especial do ministro Gilberto Gil e Secretário de Políticas Cul-turais do Ministério da Cultura, de 2003 a 2005, e membro do Conse-lho Estadual de Cultura da Bahia, entre 2009 e 2011. Principais áreas de interesse: estudos socioeconômicos da cultura; políticas culturais; e estudos da festa, com ênfase no carnaval.

Verlane Aragão Santos

Graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Ser-gipe (1992), mestre em Ciências Sociais pela mesma instituição (1999) e doutora em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná (2007), com estágio de doutoramento na Facultad de Co-municación da Universidad de Sevilla. Professora do Departamento de Economia, do Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Economia e do mestrado em Comunicação, e membro do OBSCOM – Observatório de Economia e Comunicação, da Universidade Federal de Sergipe. Experi-ência na área de Economia Política, com ênfase em Economia Política da Comunicação e da Cultura, atuando principalmente nos seguintes temas: processo de trabalho, reestruturação produtiva, telecomunicações e economia da música.

Jair do Amaral Filho

Doutor e pós-doutor em Economia e professor titular em Desenvolvimen-to Econômico no DTE/FEAAC/Universidade Federal do Ceará-UFC. Professor e pesquisador do Curso de Pós-Graduação em Economia-CAEN

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da UFC. Coordenador do Grupo de Pesquisa “Região, Indústria e Com-petitividade – RIC”. Membro pesquisador da RedeSist. Linhas de Pesqui-sa concentradas em desenvolvimento econômico, desenvolvimento local e regional, sistemas produtivos, federalismo econômico.

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Colofão

Formato 16 x 23 cm

Tipografia Scala

Papel Alcalino 75 g/m2 (miolo)Cartão Supremo 300 g/m2 (capa)

Impressão Edufba

Capa e Acabamento Cartograf

Tiragem 1.000 exemplares

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Este livro é o resultado final de uma iniciativa fundamental da Secretaria da Economia Criativa do Ministério da Cultura do Brasil, que tenho o orgulho de haver liderado ao longo de um ano, entre 2012 e 2013: os Colóquios Celso Furtado de Cultura e Desenvolvimento. O objetivo dos colóquios, claramente definido pela secretária à época, Claudia Leitão, foi contribuir para a promoção de um debate nacional sobre Cultura e Desenvolvimento, visando construir um campo de reflexão em torno da economia política da cultura, tendo em vista a necessidade de incluir o tema na agenda do desenvolvimento brasileiro, não simplesmente no que se refere às inegáveis potencialidades da cultura em termos de geração de emprego e renda, mas principalmente à democratização da produção e acesso aos bens simbólicos no território nacional, abrindo os canais para a expansão da criatividade, tal como propunha Celso Furtado, já nos anos 1980, preocupado em incitar a sociedade a assumir a iniciativa no plano da criação cultural e dos valores. A adoção do seu nome para os colóquios respondia a uma necessidade fundamental da secretaria de buscar uma definição do problemático conceito de economia criativa que, afastando-o das perspectivas originais, inglesas ou australianas, lhe conferisse um significado adequado às exigências atuais, de ordem estrutural, da economia brasileira e às melhores tradições do pensamento crítico brasileiro. De fato, a economia sempre foi, para Furtado um meio para atingir o objetivo maior do “verdadeiro desenvolvimento”, que supõe a construção da autonomia cultural, condição essencial para a superação do atraso.

O organizador, César Ricardo Siqueira Bolaño, formado em Jornalismo pela Universidade de São Paulo, é mestre e doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas e professor da Universidade Federal de Sergipe. Fundador do campo da Economia Política da Comunicação e da Cultura no Brasil, tem vários trabalhos na área, entre os quais: Mercado brasileiro de televisão, cuja primeira edição é de 1988, Indústria cultural, informação e capitalismo, de 2000, baseado na tese de 1993, e recentemente publicou, pela EDUFBA (2015), um estudo sobre O conceito de cultura em Furtado, fruto de uma pesquisa apoiada pelo programa Cátedras IPEA-CAPES para o Desenvolvimento, visando retomar a obra daquele que foi o grande nome da Economia Política brasileira e latino-americana e desenvolver um elaborado conceito de cultura. Entre 2012 e 2013, César Bolaño coordenou os Colóquios Celso Furtado de Cultura e Desenvolvimento, a partir dos quais se organizou o presente volume. Mais informações no CV Lattes do autor e no portal www.eptic.com.br.

Este livro representa uma parte do material apresentado nos Colóquios Celso Furtado de Cultura e Desenvolvimento, organizados entre 2012 e 2013 nas cinco regiões do Brasil, pela Secretaria da Economia Criativa do Ministério da Cultura, coordenados por César Bolaño, a convite da secretária Claudia Leitão, com o objetivo de procurar uma definição para as ações da secretaria em consonância com as melhores tradições do pensamento brasileiro. Este livro se dirige a alunos e professores das diferentes ciências sociais, aos produtores e gestores culturais, artistas e ao público em geral, interessados no debate de temas tão relevantes para a sociedade brasileira, como as relações entre cultura e desenvolvimento, as políticas culturais e de comunicação como políticas públicas, as questões relativas à diversidade das expressões artísticas, entre outras.

cultura e desenvolvimento Reflexões à luz de Furtado

cultu

ra e desen

volvim

ento

César Ricardo Siqueira Bolaño (Org.)

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1

ISBN

978-85-232-1383-1

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