CRUZ 2011 Diferenciacao e Autonomia
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UNIVERSIDADE DE BRASLIAINSTITUTO DE CINCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA - DANPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
DIFERENCIAO E AUTONOMIA: RELAES POLTICAS E
EDUCAO ESCOLAR ENTRE OS TICUNAS NO ALTO SOLIMES,
AMAZONAS
Dissertao de Mestrado
Orientador: Professor Emrito Roque de Barros Laraia
Aluno: Joo Guilherme Nunes Cruz
Braslia, 19 de dezembro de 2011
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UNIVERSIDADE DE BRASLIAINSTITUTO DE CINCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA - DANPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
DIFERENCIAO E AUTONOMIA: RELAES POLTICAS E
EDUCAO ESCOLAR ENTRE OS TICUNAS NO ALTO SOLIMES,
AMAZONAS
Dissertao apresentada como requisito para
obteno do grau de Mestre em Antropologia
Social pelo Departamento de Antropologia da
Universidade de Braslia.
Orientador: Professor Emrito Roque de Barros Laraia
Aluno: Joo Guilherme Nunes Cruz
Braslia, 19 de dezembro de 2011
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UNIVERSIDADE DE BRASLIA
INSTITUTO DE CINCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA - DAN
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
DIFERENCIAO E AUTONOMIA: RELAES POLTICAS E EDUCAO
ESCOLAR ENTRE OS TICUNAS NO ALTO SOLIMES, AMAZONAS
Dissertao apresentada como requisito para
obteno do grau de Mestre em Antropologia
Social pelo Departamento de Antropologia da
Universidade de Braslia.
Banca Examinadora:
Prof. Emrito da UnB Roque de Barros Laraia
________________________________
Prof. Dr. Jos Antnio Vieira Pimenta
DAN/UnB
_______________________________
Prof. Dr. Christian Tefilo da Silva
CEPPACC/UnB
Aluno: Joo Guilherme Nunes Cruz
Braslia, 19 de dezembro de 2011
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Maria das Graas Menezes Cruz, tia Grace, de quem j sinto tantas saudades.
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Agradecimentos
Primeiramente, agradeo ao professor Roque de Barros Laraia por aceitar a orientao desta dissertao. Sua incomensurvel sabedoria, generosidade e pacincia foram fundamentais para a concluso da mesma. Agradeo no somente sua orientao ao trabalho propriamente dito, mas s instrutivas e sempre agradveis conversas sobre indgenas e outros mundos. Aos professores Cristhian Tefilo da Silva e Jos Pimenta por aceitarem compor a banca examinadora. Um agradecimento muito especial a Jussara Gruber, que possibilitou minha entrada no alto Solimes. Sua dedicao, doura e compreenso do contexto ticuna so contagiantes e foram uma significativa fonte de inspirao para que eu levasse a frente a ideia de escrever sobre eles. A importncia de Jussara em minha permanncia no Solimes no pode ser medida nessas poucas linhas. Aos ticunas que gentilmente abriram suas casas e sempre me trataram com muito carinho e companheirismo. Uma considerao muito especial aos amigos Constantino Ramos Lopes, Damio Carvalho Neto, Clves Mariano, Luciana da Silva, Nazareno Pereira Cruz e Saturnino Jesuno Jumbato. Juntos trabalhamos, nos angustiamos, mas tambm gargalhamos e nos divertimos em situaes que para sempre estaro em minha memria. Aos tambm amigos e mestres ticunas Joo Clemente Gaspar, Reinaldo Otaviano, Ozino Benedito Pedro, Valdino Moambite Martins, Jos Costdio e Geno Maximiano Bruno pela acolhida, amizade e frutferas conversas. s queridas professoras Terezinha Atade, Hilda Toms do Carmo e Adlia Lus Bittencourt que com muita honestidade puxavam minhas orelhas nos momentos de excessos, sem abrir mo da ternura. Aos professores ticunas como um todo pela persistncia e dedicao com que conduzem suas batalhas em prol de suas comunidades. Apesar do contexto muitas vezes duro, lidam a vida com alegria, msica e poesia. Sempre me lembrarei dos encerramentos dos cursos, de suas emoes, lgrimas e cantorias em coro. Aos amigos de Benjamin Constant, um abrao muito especial a Rodrigo Bichara, Sandro Mauro, Anube Medeiros e Sidney Marinho. Atravessando a regio Norte e pousando no Sudeste, no poderia deixar de agradecer meus pais, Jos Onildo e Jarlene Maria, que sempre foram meus maiores exemplos. Sem o apoio deles, no conseguiria realizar muita coisa. Foi sempre a eles que recorri quando a tristeza batia mais forte no Amazonas e deles sempre ouvi palavras de conforto e incentivo. A longa distncia nos tornou mais e mais amigos. Estendo o mesmo aos meus queridos irmos Jos Marcelo e Lila Cruz e sobrinhos Joo Pedro, Lucas, Juliana e Joo Victor. Retornando, enfim, ao Centro-Oeste, agradeo imensamente a minha companheira Lia Mendes Cruz, pelo carinho, amor e apoio incondicional. Espero sempre poder retribuir altura o que ela representa. Aos amigos Ney Maciel, Cloude Correia e Carlos Alexandre pelos conselhos e feedbacks sempre pertinentes. Ao pessoal da Katacumba, um agradecimento a todos pela amizade, mas especialmente a Elena Nava, Sandro Almeida, Jlia Brussi, Yoko, Fabiano, Lus Cayon, que, juntos com Lia, e na minha ausncia forada, no mediram esforos para tentar salvar o pouco que restara de meus materiais e livros na enchente que assolou a UnB. Vida longa a Katacumba! Ao pessoal da minha turma de Mestrado, um abrao todo especial: Simone Soares, Patrcia Carvalho, Tatiane Duarte, Pedro Stoeckli, Tiago Arago, Fausto Alvim, Gustavo Augusto, Anna Davidson, Rafael Lasevitz, Patrik Thames. Compartilhar conhecimentos e experincias foi para mim um prazer mpar e espero repetir a dose em muitas outras oportunidades.
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Resumo
Esta Dissertao apresenta uma anlise das relaes polticas entre professores indgenas da etnia Ticuna e Estado brasileiro, tendo como cenrio etnogrfico a construo da educao escolar entre esse grupo, habitante secular da calha do Rio Solimes, estado do Amazonas. Nesse sentido, procuro enfatizar as aes empreendidas por sua principal associao representativa na esfera educacional, a partir de eventos nos quais as perspectivas dos professores ticunas entram em arenas diversificadas de negociao com distintos atores representantes de aparelhos administrativos do Estado brasileiro, por sua vez responsveis pela elaborao, execuo e acompanhamento das polticas pblicas direcionadas educao escolar indgena. Procuro debater esse tema luz do contexto histrico das relaes entre ticunas e segmentos da sociedade no indgena, sobretudo aqueles associados a aparatos estatais, enfatizando as dinmicas de poder envolvidas.
Palavras-chave: ticuna, povos indgenas, poltica, estado, educao escolar indgena, organizaes indgenas, poder.
Abstract
This research presents an analysis of the political relations between the indigenous teachers of the Ticuna ethnicity and the Brazilian state, having as its ethnographic background the construction of the school education of this group, customary inhabitants of the Solimes River waterway in the state of Amazonas. Thus, I endeavor to emphasize the actions of their main association in the educational sphere based on the events on which the Ticuna teachers perspectives get into diverse arenas of negotiation with different representatives of the administration branches of the Brazilian state, which are responsible for the elaboration, execution and attendance of the public policies concerning indigenous school education. I aim to debate such theme centered on the historical context of the relations between the ticunas and other non indigenous sectors, mainly those associated to the state, emphasizing the dynamics of power at stake. Keywords Ticuna, indigenous peoples, politics, state, indigenous school education, indigenous organizations, power.
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ndice:
Introduo.......................................................................................................................................08
Captulo 1: O Alto Solimes e o povo Magta: consideraes sobre um contexto.......................20
Captulo 2: Educao escolar para os ndios numa perspectiva histrico-poltica.........................43
Captulo 3: Eventos polticos e poderes.........................................................................................80
Concluso.......................................................................................................................................99
Bibliografia...................................................................................................................................108
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Introduo
Este um trabalho sobre relaes polticas desenroladas entre o povo indgena Ticuna,
habitantes seculares da calha do rio Solimes, no lado brasileiro, e atores do que aqui optei
denominar de comunidade nacional, entendendo, assim como Benedict Anderson, a nao brasileira
como uma comunidade imaginada, ou seja, como um constructo histrico viabilizado por meio de
artifcios e sentimentos gerados a partir de fatos histricos que operam no sentido de conformar
heterogeneidades socioculturais num todo homogneo fortemente ideologizado (Anderson, 2009).
Como cenrio destas relaes a escola ticuna, por sua vez profundamente alterada no plano formal -
assim como as demais escolas indgenas no pas -, a partir da promulgao da Constituio de 1988
e de uma srie de documentos legais correlatos que procuraram fundamentar novos conceitos e
prticas para o que se convencionou chamar educao escolar indgena.
Nesse sentido, desde j necessrio que se faam alguns recortes pertinentes ao que me
proponho. Primeiramente no pretendo analisar de modo to abrangente como poderia parecer neste
intrito, as relaes polticas entre ticunas e comunidade nacional em sua totalidade, mas sobretudo
quelas nas quais os rumos da educao formal esto sob foco e debate. Ou seja, boa parte dos
argumentos e do contexto etnogrfico se referem s interelaes entre professores indgenas e
agentes do Estado brasileiro, em instncias variadas. Sendo assim, sustento-me na anlise de alguns
eventos sociais - uns mais crticos que outros -, por mim presenciados que, no meu entendimento,
so reveladores da assimetria estabelecida e sobretudo atualizada das relaes entre ndios e
brancos no alto Solimes. Portanto, os professores indgenas, mas tambm professores no
indgenas que atuam em escolas indgenas, bem como outros gestores escolares (especialmente
diretores(as) de escolas, so os principais interlocutores desta dissertao. No obstante, as falas de
caciques, vice-caciques, lideranas de organizaes, bem como representantes (brancos) do
Ministrio da Educao, de secretarias municipais de educao e de outras instituies do poder
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pblico tambm vo aparecer no decorrer do texto, na medida em que oferecem elementos
interpretativos para anlise dos jogos polticos desenvolvidos no alto Solimes, no que diz respeito
educao indgena via instituio escolar. Assim, a escala etnogrfica restringe-se a atores que de
uma forma ou outra esto no centro das decises relativas s polticas de educao na regio.
Como desdobramento destas primeiras observaes, desde j creio que seja importante
ressaltar que esta dissertao no trata, portanto, propriamente de educao escolar indgena, no
sentido do que temos lido de modo extenso e muitas vezes profcuo na literatura antropolgica
sobre o assunto. O que me propus interpretar, no so as apropriaes filosficas ou cosmolgicas
levadas a termo por ticunas e aliados na construo de suas escolas, de modo a configura-la
segundo as orientaes mais recentes da educao entre os ndios, calcadas especialmente nos
princpios do bilinguismo, especificidade, diferenciao e interculturalidade. O intuito aqui o de
identificar os choques, os curto-circuitos existentes nas relaes entre ticunas e brancos no que
diz respeito construo poltica da escola ticuna e tentar analisar algumas consequncias de tais
curtos que afetam diretamente, inclusive, outro enunciado da educao escolar indgena, a saber, o
desenvolvimento da autonomia indgena no contexto em tela.
Esses pontos, bem como os conceitos aos quais se referem, sero melhor explicitados no
decorrer do texto. Antes, porm, creio que seja preciso enumerar alguns motivos pelos quais escolhi
esse caminho, que ressoam, por assim dizer, muito de minha experincia pessoal e profissional
tanto no campo da antropologia como no trabalho de campo junto aos ticunas.
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O ano de 2002 representa uma reviravolta em meus anseios como pesquisador e aspirante a
antroplogo. At ento envolvido com questes relacionadas a construo de identidades sociais em
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contextos urbanos mais especificamente aqueles associados ao futebol1 -, me deparei com uma
oportunidade nica que viria alterar significativamente meus propsitos profissionais e intelectuais,
bem como minha vida pessoal. Tratou-se de convite realizado pela Organizao Geral dos
Professores Bilngues, por intermdio de sua assessora pedaggica, Jussara Gruber, para coordenar
atividades de campo no mbito de um projeto recm aprovado por esta Organizao junto ao
Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renovveis (IBAMA) e que teria o
perodo de trs anos de execuo. O projeto denominava-se Educao Ambiental e Uso
Sustentvel da Vrzea em reas Indgenas Ticuna do Alto Solimes, e compunha um grupo de
projetos distribudos pela calha dos rios Solimes e Amazonas dentro do Projeto Manejo
Sustentvel da Vrzea (ProVrzea), por sua vez financiado pelo PPG7, especialmente nas figuras
do Department for International Development (DFID) da Gr Bretanha e do banco alemo
Kreditanstalt fr Wiederaufbau (KfW).
Minha familiaridade com os ticunas estava at ento em p de igualdade com o que conhecia
da literatura em etnologia indgena, restrita que estava a algumas leituras do professor Roberto
Cardoso de Oliveira, alm da empatia com o tema em si e com os reclames polticos do movimento
poltico indgena, dos quais me familiarizei inicialmente durante estgio realizado na Coordenao
Geral de Estudos e Pesquisas da Fundao Nacional do ndio (CGEP/FUNAI) em Braslia, entre
1996 e 1998.
Nessa situao, mudar de perspectiva significava necessariamente mudar de cidade e os
mais de 2.700 Km que separam Braslia do municpio amazonense de Benjamin Constant, no qual
se situa a sede da OGPTB e onde se concentrariam as aes do projeto, pareceu ser distncia bem
maior, quando enfim me desloquei da virtualidade dos mapas para a concretude do espao. O
espao percorrido - ao menos no que compete ao meu estranhamento -, foi menos geogrfico que
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1 O que deu origem a minha Monografia de Graduao defendida em maio de 2002 no Departamento de Antropologia da Universidade de Braslia, intitulada Apelando Razo: Futebol e Identidade no Gama, sob a orientao do professor Dr. Henyo Trindade Barretto Filho.
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simblico: entre um ponto e outro alteraram-se o mundo fsico, os semblantes, os sons e msicas, os
cheiros, as comidas, os meios de transporte, os fusos horrios e, como no poderia deixar de ser, a
temperatura.
Antes de iniciar o projeto propriamente dito, ainda fiquei cerca de uma semana na cidade de
Manaus realizando as compras necessrias para a execuo do projeto (cmeras fotogrficas,
gravadores de fitas cassetes, as prprias fitas, filmes e um computador). Em termos estritamente
econmicos, a famosa Zona Franca no se mostrou para mim muito diferente dos centros de cidades
de outras capitais do pas, conforme eu imaginava. Os preos eram basicamente os mesmos e a
diversidade de produtos idem. Mas as feies e os ouros, dependurados nos pescoos dos
vendedores em colares com pingentes de santos ou times de futebol, espessas pulseiras, ou mesmo
nos dentes destes, foi uma imagem que no mais saiu de minha memria.
Para realizar as compras, foi preciso visitar o escritrio do Ibama em Manaus, situado no
Distrito Industrial, onde recebi instrues sobre os procedimentos exigidos para tal atividade.
Cartas-convite, tomada de preos, planilhas de apurao, tudo isso era extremamente novo para
mim. Cheguei ao conjunto de escritrios do ProVrzea e iniciei o treinamento, o que demorou cerca
de uma hora e meia. Em meio s orientaes, uma das tcnicas me perguntou se eu no me achava
muito novo para sair de to longe a um contexto absolutamente desconhecido. A pergunta foi to
sbita e pertinente, que eu mal lembro o que respondi. De qualquer forma, essa foi uma das vezes
em que me questionei, o que estou fazendo aqui?. At ento no havia refletido muito o que tal
mudana significava em minha vida, mas tinha plena conscincia de que, tanto o projeto, quanto a
oportunidade de realizar algo novo me fascinaram a tal ponto que no foi muito difcil tomar a
deciso de ir. E, no obstante, tinha 27 anos, no era to novo assim. Posteriormente, a mesma
tcnica confessou-me que, ao me despedir, as pessoas presentes realizaram um bolo, onde
apostaram quando eu desistiria daquilo tudo. Ningum levou.
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Ainda em Manaus, as aventuras no tardaram a acontecer. Entre elaborao de cartas-
convites (trs para cada compra de cada item), entrega aos comerciantes, recebimento das
propostas, efetivao das compras e recebimento dos equipamentos, foram trs voos perdidos a
Tabatinga. Na ltima, escutei de um comerciante algo que ouviria tantas outras vezes: meu
patro, a mercadoria no chegou.... Como assim no chegou, se eu j realizei o depsito porque
voc me garantiu que tinha a mercadoria em estoque?. Pois meu patro, eu achava que tinha,
mas quando fui conferir, s tinha da outra marca.... Mas enfim, aps os atropelos iniciais,
felizmente consegui embarcar rumo a Tabatinga. Isso era agosto de 2002.
Alm de toda minha mudana, levava comigo os equipamentos do projeto de menor porte. O
computador, monitor, impressora, scanner foram embarcados no porto de Manaus e seguiram
diretamente a Benjamin Constant por barco. Imaginava Tabatinga como uma pequena cidade,
daqueles pequeninos vilarejos amaznicos que vemos em noticirios e me surpreendi com o tanto
de gente e de movimento para todo lado. Carros, mas principalmente motos, muitas motos. Havia
pesquisado sobre Benjamin Constant, mas no sobre Tabatinga. Chegando em Tabatinga, fui
diretamente ao porto, onde pegaria uma voadeira2 at Benjamin Constant. Uma pequena multido
de meninos, jovens e mesmo adultos logo cercaram-me: meu patro, deixa eu levar suas malas.
Meu patro, meu patro!. Fato que se repetiu ao chegar no porto em Benjamin.
Chegando em Benjamin, liguei para a casa de Jussara, que j se encontrava na cidade para o
incio das atividades do projeto. Jussara chegou pela primeira vez ao Solimes no final dos anos 70,
por intermdio do Projeto Rondon e de l nunca mais se desvencilhou, trabalhando intensamente (e
incansavelmente) com os ticunas nos mais variados projetos, principalmente na assessoria
pedaggica dos cursos de formao de professores e na organizao de materiais didticos, sobre os
quais falarei mais adiante. Logo percebi relaes de muita proximidade dela com os professores e
professoras e, mais tarde, percebi que a chamavam carinhosamente de noe, vov.
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2 Pequenas e mdias lanchas, que operam como lotaes fluviais, realizando, principalmente, o trajeto entre Tabatinga e Benjamin. Tambm denominadas localmente de catraias.
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Quem me pegou no porto foi Valdino Moambite Martins, ento presidente da OGPTB e
caminhamos a p at a casa de Jussara, uma bela e aconchegante construo de madeira. L conheci
uma parte da equipe do projeto, a antroploga Deborah de Magalhes Lima, que tambm havia
conduzido alguns anos antes oficinas de educao e meio ambiente com os ticunas e Constantino
Ramos Lopes, Fupeatcu, professor ticuna de longa data e muito atuante no campo da educao;
quem, de fato, tocava a administrao da OGPTB, j que morava em Benjamin Constant, ao
contrrio de Valdino, cuja moradia era na aldeia de Porto Espiritual, um pouco distante da cidade.
Restavam ainda chegar os demais professores que compunham a equipe tcnica do projeto, que j
estavam a caminho, os professores Clves Mariano Fernandes (Benjamin Constant), Nazareno
Pereira Cruz (Tabatinga), Luciana da Silva (So Paulo de Olivena), Damio Carvalho Neto
(Amatur) e Saturnino Jesuno Jumbato (Santo Antnio do Ic).
Minha participao no projeto consistia em duas funes principais: a) auxiliar a OGPTB na
conduo fsico-financeira e outras atividades de carter administrativo e burocrtico do projeto
(organizao da contabilidade, prestao de contas, pagamentos etc.) e; b) coordenar as atividades
de pesquisa de campo, desenvolvida pelo grupo de professores ticunas citados, escolhidos
previamente em reunies locais e durante etapas anteriores de cursos de formao de professores.
Tais pesquisas se desdobraram na produo de um livro (Lima, 2005) e de cartazes artisticamente
trabalhados tambm por professores ticunas, que tinham por finalidade demonstrar os usos
tradicionais da vrzea em seus variados aspectos produtivos (caa, pesca, agricultura) e culturais
(histrias, mitos, etc.). Foram eles: Adlia Luis Bitencourt, Joo Clemente Gaspar, Joo Otaviano
do Carmo, Manoel Rosindo, Hilda Toms do Carmo, Xisto Muratu, Artur Arapasso, Cidberght
Custdio e Edmundo Vasquez.
No tocante primeira funo, logo pude perceber que tratava-se de um conjunto de tarefas
no muito, para no dizer em nada, atraente para os professores indgenas. A parafernlia de tabelas,
documentos e planilhas que tinham, segundo a prpria equipe tcnica do ProVrzea, o intuito no
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somente de controle dos recursos empregados e atividades realizadas, mas o empoderamento da
associao comunitria, no fez surtir na equipe a menor predisposio, lembrando sobre esse
aspecto que para o cumprimento de tais tarefas exige-se o uso de computadores, at ento de pouca
familiaridade dos professores. Por outro lado, o afinco e o gosto com que conduziram os trabalhos
de pesquisa, de elaborao dos desenhos e ilustraes tanto do livro quanto dos cartazes, o empenho
nas oficinas de produo dos textos, bem como nas visitas e reunies s comunidades, demonstram
significativamente o entendimento que os professores fizeram do projeto, no qual as prioridades
foram hierarquizadas conforme os objetivos mais pertinentes no tocante s suas prprias realidades
e no ao processo burocrtico e documental que legitimava-o perante o mundo dos brancos.
O projeto transcorria com normalidade, com as atividades devidamente executadas
conforme o cronograma estipulado e com os indicadores avaliados positivamente pela equipe
tcnica do ProVrzea. Em incios de 2003, no entanto, fomos convidados, assim como todos os
coordenadores dos demais projetos apoiados pelo ProVrzea, a participar de uma oficina em
Manaus com a finalidade de trocas de experincias. No entanto, o pano de fundo do encontro era
nos informar que o ento financiador do projeto, DFID, estava retirando seu apoio em todo o
contexto amaznico, para aportar recursos na reconstruo do Iraque, em funo da guerra
promovida contra esse pas pelos Estados Unidos e a prpria Gr-Bretanha.
Apesar do rompimento do contrato no ter vindo de nossa parte e de estarmos absolutamente
em dia com nossas obrigaes, o nus ficou conosco. Transcorreram exatos oito meses, da sada do
DFID at o novo financiador, KfW, assumir a questo. Num projeto de trs anos, como o nosso,
oito meses sem receber recursos para as atividades - no obstante termos ainda que continuar a
prestar contas e atividades -, quase que decretou prematuramente o fim do mesmo. Felizmente,
nossa teimosia prevaleceu, as atividades foram concludas - no sem conflitos com um Ibama/
ProVrzea que muito cobrava e pouco retornava -, e os materiais distribudos s escolas indgenas.
Que ao fim e ao cabo, era o que mais importava.
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De qualquer maneira, o hiato forado no projeto, me possibilitou atuar de modo mais livre
em outras aes da OGPTB. Fui obrigado, no entanto, a solicitar alguns emprstimos a amigos,
parentes e banco para me manter financeiramente na regio. Porm, algumas dessas atividades
tambm me remuneraram, o que alentava um pouco a situao.
Foi dessa maneira que participei como professor, por duas ocasies, do Curso de
Formao Continuada - Magistrio Indgena, para professores formados pela OGPTB e do Curso de
Formao Continuada - Aperfeioamento em Educao Escolar Indgena, para aqueles professores
e estudantes que estudaram em escolas das cidades.
Tambm tive a oportunidade de acompanhar e contribuir com a organizao dos encontros
para elaborao do projeto de Licenciatura Plena em Nvel Superior, que seria mais tarde submetido
a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e, desta, ao Ministrio da Educao. Os encontros
ocorreram em 2003 e 2004 e foram momentos extremamente ricos e de intensa participao dos
professores, que definiram as bases do que consideravam relevante para a continuidade de seus
processos formativos, as reas temticas do curso e disciplinas vinculadas, o vnculo do projeto/
curso com o currculo do Ensino Mdio, as justificativas e expectativas. equipe tcnica de apoio e
assessoria, coube formalizar tudo isso nos moldes exigidos pelo Prolind - Programa do Ministrio
da Educao destinado fomentao de cursos de formao de professores indgenas em nvel
superior -, elaborar as ementas das disciplinas e fundamentar a proposta teoricamente.
O projeto, inteiramente escrito pela OGPTB - professores indgenas e equipe tcnica -, foi
ento aprovado pela UEA e por conseguinte pelo MEC. Junto ao curso desenvolvido pelo Ncleo
Insikiran, da Universidade Federal de Roraima, so as primeiras experincias aprovadas de
formao de professores indgenas em nvel superior no Brasil.
No mbito desse curso - cujo incio se deu em incios de 20063, quando ento j me
encontrava de volta a Braslia -, tive o imenso prazer em ser convidado para lecionar a disciplina de
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3 O referido Curso ocorre por meio de etapas presenciais nos perodos de frias escolares quando, assim, os professores podem se ausentar de suas classes.
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Introduo a Antropologia na primeira etapa, junto s colegas Mnica Nogueira (UnB) e Andria
Borghi (UEA). Foi especialmente significativo, pois a data da primeira etapa coincidiu com o
aniversrio de 20 anos da OGPTB. O encerramento da mesma foi um grande evento. Os ndios
fizeram uma cota entre todos e compraram camisetas, elaboraram uma tela com o smbolo da
OGPTB, representando Yoi, o heri mtico que d origem ao povo Ticuna (ver Captulo 1) e
gravaram-na em cada uma das camisetas, distinguindo-as pela cor, os membros da Diretoria da
OGPTB (camisetas verdes) dos demais professores-cursistas (camisetas brancas) e professores-
formadores (tambm identificados com camisetas brancas). Elaboraram, ainda, em cada sala de
aula, instalaes artsticas onde retratavam momentos de sua histria, do contato com os brancos e
elementos de sua cultura. Ao redor das salas de aula, faixas com os nomes das disciplinas que
compunham a grade curricular do curso: Matemtica, Biologia, Antropologia, Lngua Ticuna, Artes,
Direito...e ao fundo do local dos discursos de abertura e encerramento, no ptio externos s salas de
aula, uma grande faixa com o lema: OGPTB, 20 anos de luta e resistncia.
Por fim, muitos discursos emocionados. Aps o encerramento oficial, uma enorme mesa foi
posta com quitutes, bolachas salgadas e doces, um grande bolo comemorativo e refrigerantes.
Assim que terminaram de colocar a mesa, uma inesperada e torrencial chuva os fez retirar tudo e
recolocar assim que a mesma cessou. Tudo isso foi feito acompanhado de muita galhardia e muitas
gargalhadas. Com o cessar da chuva, seguiu-se a comilana acompanhados por muita dana e
msica com a Banda Eware, formada por msicos e danarinas ticunas, e que fazem uma mescla
entre temas tradicionais indgenas com ritmos tpicos da fronteira. Danava-se em volta da mesa,
dentro das salas de aula, em qualquer canto que houvesse espao para aquela gente to orgulhosa e
excitada com o que havia conquistado.
Ainda pude participar da terceira etapa do curso, em janeiro de 2006, dessa vez
acompanhado pelos amigos Ney Maciel (UnB) e Thiago vila, tambm da UnB, que infelizmente
veio a falecer prematuramente anos mais tarde. No haveria de deixar de registrar, no entanto, que
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as contribuies de Thiago foram de suma importncia para elaborarmos os planos de aula e a
sequncia de leituras dessa etapa, por se tratar de interface entre Antropologia e sade dos povos
indgenas4, assunto do qual manejava com desenvoltura, em funo de sua j significativa
experincia na rea.
Tive ainda a felicidade de retornar ao alto Solimes em outubro de 2010, por intermdio da
Organizao Internacional do Trabalho, que iniciou um programa conjunto a outras agncias da
ONU e instituies estatais brasileiras, em Dourados (MS) e no prprio alto Solimes. Uma das
atribuies da OIT traduzir a Conveno 169 para lnguas indgenas e pretende utilizar as duas
reas citadas como experincia piloto. Minha participao nesse contexto foi elaborar um plano de
trabalho com a OGPTB de modo a propiciar o trabalho de traduo da Conveno e de ajudar
outras cinco associaes ticunas a elaborarem projetos para o Programa Carteira Indgena, do
Ministrio do Meio Ambiente brasileiro.
***
A ideia inicial dessa Dissertao era abordar o Curso de Licenciatura em Nvel Superior,
luz do processo de construo social do mesmo por parte dos ticunas e sua interface com os
programas pblicos de fomento formao em nvel superior de indgenas em atual processo de
criao pelo Estado brasileiro. Infelizmente, mais uma vez uma chuva se fez presente e, ao
contrrio do encerramento da primeira etapa do curso de formao narrado na pgina anterior, na
qual foi possvel salvar os comes e bebes da festa de encerramento, no meu caso o dano se
concretizou. A chuva que atingiu a Universidade de Braslia em maro do presente, amplamente
divulgada pela imprensa local, teve como um dos focos mais impactados a Katacumba, local de
estudos e encontros dos estudantes de Ps-Graduao em Antropologia da UnB. A sala que eu
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4 Cada etapa do curso possua um tema transversal, sobre o qual as disciplinas deveriam construir um dilogo. Na primeira etapa, o tema foi Culturas e Direitos Indgenas.
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utilizava, junto a colega Elena Nava, foi quase que completamente destruda e meus dados de
campo perdidos tambm quase que em sua totalidade. L estavam todos os meus dirios, os dirios
de alguns professores indgenas que os haviam emprestado-me, quando por l estive em 2010 em
funo da OIT. Fotos, fitas cassetes ainda no degravadas, alm da bibliografia pertinente e todos os
cadernos com os fichamentos das aulas do curso de Mestrado. No computador, muitos arquivos e
escritos no salvos em outras mdias digitais. Demorou um tempo para avaliar com preciso mnima
qual rumo tomar diante dos dados que possua a partir de ento e muito do formato desta
Dissertao, bem como da maneira como os dados etnogrficos esto dispostos no decorrer dos
captulos, dependeu diretamente desse acontecimento imprevisto e determinante.
Percebi ento que possua fragmentos de campo de eventos que havia presenciado e
etnografado e que, em grande medida, possuam conexes com as ideias que j pensava em
trabalhar no projeto de pesquisa anterior, ou seja, revelavam facetas contemporneas das relaes
polticas entre ticunas e atores sociais vinculados instituies do Estado. Dessa maneira, optei no
por analisar um fenmeno especfico, mas alguns pequenos eventos que tinham correlao com
outro de maior dimenso e que, no meu entendimento, oferecem um panorama dessas relaes. Fui
encorpando minha reflexo com elementos de minha prpria experincia e de outras coisas que
observei, participei, presenciei e refleti. Procurei, desse modo, cumprir com o que propus Banca
de Seleo de Mestrado em 2008: refletir sobre minha insero antropolgica no mundo dos
ndios e sobre minha experincia entre os ticunas.
Sendo assim, o trabalho est dividido em trs captulos. No primeiro, procuro fornecer
elementos que possibilitem visualizar o contexto histrico, social e poltico de conformao do alto
Solimes, tendo como pano de fundo as relaes entre os ndios e as agncias de expanso na
Amaznia e me valendo principalmente dos principais estudos antropolgicos que abordaram essas
questes, como os de Curt Nimuendaj ( The Tukuna, de 1952), Roberto Cardoso de Oliveira (O
ndio e o mundo dos brancos, de 1964) e Joo Pacheco de Oliveira Filho (O Nosso Governo, de
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1988). Tambm apresento sucintamente alguns elementos da cultura e organizao social que
singularizam os ticunas enquanto grupo tnico. Os segundo e terceiro captulos, possuem uma
interface mais direta com minha prpria experincia na regio. No segundo, que tambm possui um
carter histrico, porm voltado especificamente para a questo da construo da escolarizao
formal entre os ticunas, procuro abordar as distintas fases pelas quais esse processo se deu e
enfatizar o perodo em que os ticunas, organizados em torno de associaes representativas, passam
a protagonizar de modo mais concreto seus projetos de vida, dentre eles o da educao. No terceiro
e ltimo captulo, abordo os eventos propriamente ditos e que sobre os mesmos citei e caracterizei
acima.
Por fim, optei por no escrever um captulo exclusivamente terico, mas de inserir as
abordagens com as quais dialoguei concomitante s minhas reflexes e conforme os dados foram
sendo apresentados.
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1. O Alto Solimes e o povo Magta: consideraes sobre um contexto
A nica maneira de compreender a verdadeira novidade do novo
analisar o mundo pela lente do que era eterno no velho (Slavoj Zizek,
2009:19)
Notas sobre organizao social e parentesco
Pode-se afirmar que Curt Nimuendaj (1883-1945) o primeiro pesquisador a sistematizar
informaes sobre variados aspectos do povo ticuna, de sua organizao social e poltica, bem
como da simbologia de seus mitos e rituais. Tambm se dedicou a descrever elementos gerais de
suas vidas, como habitaes, caracteres fsicos, vestimentas, instrumentos musicais, atividades
produtivas e lngua. Sua incurso inicial entre os ticunas se deu em 1929, em funo do trabalho
que prestava ao Servio de Proteo ao ndio (SPI), rgo governamental ento responsvel pela
poltica indigenista no pas. O objetivo era fornecer um panorama das condies de vida da
populao ticuna e dos aspectos gerais de sua configurao social e manifestaes culturais.
Posteriormente, Nimuendaj ainda visita os territrios ticunas em duas oportunidades: a primeira
entre 1941-42, poca em que coleta a maior parte das informaes que comporiam sua etnografia
intitulada The Tukuna; e uma segunda e ltima oportunidade em 1945, ocasio em que vem a
falecer, sendo sepultado no prprio territrio ticuna (Baldus, 1982:25; Neto, 1981:22).
Nimuendaj vai perceber na organizao social dos ticunas certos elementos que tipificam o
modelo de parentesco ticuna e que, no obstante alguns acrscimos e novas interpretaes de
autores posteriores, so consensuais a todos: uma sociedade organizada a partir de duas metades
exogmicas, compostas, cada uma delas, por diversas unidades clnicas. Os casamentos interditos
so aqueles entre membros de cls que pertenam mesma metade. O pertencimento a um
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determinado cl, por conseguinte metade englobante, se d mediante transmisso por linhagem
paterna. Nimuendaj enumerou trinta cls ao todo, grouped into moieties, whose names I could
never discover; I shall therefore refer to them here simply as A and B. The Tukuna language has
only one word, kia, for both tribe and clan (Nimuendaj, 1952:56). A metade A aglutinaria os cls
que de forma direta fazem referncia a alguma espcie de rvore ou animal, ao passo que a metade
B seria aquela composta por cls que esto relacionados a um nmero variado de espcies de
pssaros.
O autor vai pontuar a nfase ticuna em seu modelo de exogamia, elemento que, segundo o
autor, refora as fronteiras identitrias entre esses e a sociedade envolvente, chamados por ele de
Neobrazilians:
The tenacity with which the Tukuna respect their laws of exogamy even today, their implacable liquidation of the transgressor, and the complete incomprehension of this by the Neobrazilians, even the priests, are the most serious obstacles to frank promiscuity with the Neobrazilian population, and by preventing such promiscuity they efficiently contribute to the preservation of the tribe (:61)
Os impactos scio-culturais na vida dos ticunas relacionados s agncias colonizadoras e aos
empreendimentos econmicos no alto Solimes, foram objeto de anlise de Roberto Cardoso de
Oliveira (1969[1964]). Ao situar os estudos etnolgicos sob uma perspectiva relacional, escapando
da idia de sistema, tal como nos estudos de aculturao e de uma anlise sistmica de carter
formalista, de inspirao parsoniana (idem:10), Cardoso de Oliveira analisa modalidades de
relaes entre ticunas e brancos, desenvolvendo dessa forma as bases do conceito de frico
intertnica (id:17). Ao enfatizar a frico, Cardoso de Oliveira pe no centro das discusses uma
situao etnogrfica especfica: a situao de contato. Nesse sentido, o contato o fenmeno pelo
qual alteridades disputam e negociam espaos fsicos e simblicos, nos quais um novo espao
criado, como numa operao de interseco. Sendo assim, as realidades sociais em jogo cedem, ao
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mesmo tempo que buscam cristalizar determinados valores numa complexa rede de relaes entre
entidades contrrias que originam uma realidade sincrtica (id:30), que por sua vez, muito em
virtude da situao encontrada por este pesquisador, tenderia ao desaparecimento da parte mais
fragilizada, por meio de sua incorporao s posies mais baixas da hierarquia social na estrutura
social da sociedade no indgena.
Passados quase vinte anos entre os estudos de Nimuendaj e os de Cardoso de Oliveira, o
segundo encontra uma sociedade caracterizada por uma Diviso formal em metades, exogmicas e
annimas, combinada com sua real unificao, alcanada pelas alianas interclnicas (e, portanto,
entre as metades) e expressa numa endogamia tribal(id:65).
Apesar das similitudes com Nimuendaj, a perspectiva de Cardoso de Oliveira traz novos
elementos anlise do sistema clnico ticuna. Inicialmente, este autor identifica dezoito cls a mais
do que o etnlogo alemo e traz tambm uma nova grafia tribal para cl, kia, que, de acordo com o
autor, traduzido como nao pelos ndios. No entanto, a inovao interpretativa de Cardoso de
Oliveira mais relevante a esse respeito a categoria de subcl. Dessa forma, continua o autor, o cl
arara vermelha, por exemplo, seria uma unidade do cl inclusivo Arara, assim como o subcl
maracaj estaria relacionado ao cl majoritrio Ona, e assim por diante (id:68). Com respeito s
metades, Cardoso de Oliveira vai atribuir duas categorias: metade Plantas e metade Aves, aqui
tambm se diferenciando de Nimuendaj.
No que diz respeito s regras de exogamia, Cardoso de Oliveira busca identific-la a partir
de dois aspectos: um que leva em conta situaes adversas provenientes do contato e as estratgias
adotadas pelos ticunas para se seguir ou no o modelo preferencial de matrimnios; outra com
respeito ideologia do prprio modelo quanto aos casamentos preferenciais. Afirma o autor, sobre o
primeiro ponto, a partir de um fato etnogrfico:
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Um homem do cl Ona apaixonou-se por sua enteada, filha de um homem do cl Ava, portanto ambos membros da mesma metade. A unio que desejavam contrair ficava, assim, proscrita pela comunidade Tukna que via nisso um caso de incesto, totalmente imoral aos seus olhos. No obstante, o casal forou a situao, encontrando apoio no Encarregado do Psto Indgena Ticunas que dizia nada ter demais o matrimnio de um homem com sua enteada, uma vez que no era parentes. A consequencia disso foi o casamento por fuga, tornando impossvel o retrno do casal incestuoso para a comunidade ou para qualquer outro lugar povoado por Tukna. (:70-71).
Vimos nesse breve relato, noes distintas de parente, incesto e moralidade. Semnticas
opostas num choque de mentalidades e condutas que obrigam, mais aos ticunas do que aos brancos,
a bem da verdade, readequaes que impem constantes provas a ordem jurdica tradicional (id:
71). Cardoso de Oliveira afirma que esse tipo de situao tem causado o esvaziamento do cl como
unidade corporativa, tendo por outro lado o fortalecimento compensatrio da famlia extensa, com
indcios da emergncia de grupos unilineares de descendncia demonstrvel (id:77). Em grande
medida, tal substituio contribui para a permanncia de um aspecto importante do parentesco
ticuna, o segundo dos aspectos citados anteriormente: aquele que permite a eles permanecer com o
sistema de troca de mulheres, no qual a unio mais desejada aquela em que um indivduo A casa
com a irm de B e este contrai matrimnio com a irm de A. O enfraquecimento ou no dos cls
para o universo simblico e social dos ticunas algo para ser apreciado com maior cuidado, no
cabendo tal tarefa a esse trabalho.
A emergncia de famlias extensas, no entanto, um dado etnogrfico tambm percebido por
Joo Pacheco de Oliveira Filho. Ao analisar o sistema poltico ticuna, caracterizado segundo o autor
por um modelo especfico de faccionalismo, Oliveira Filho demonstra como as frentes de
colonizao engendraram uma nova ordem de ao poltica, na qual o estabelecimento de famlias
extensas se d concomitante ao surgimento de novas lideranas e de categorias limtrofes entre os
contextos indgenas e no indgenas, em especial os capites e tuxauas5. Nesse sentido, os
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5Diferentemente dos caciques e pajs tradicionais, os capites e tuxauas possuam uma funo dbia: ora serviam mais aos interesses das instituies no indgenas (barraces, SPI, Funai), ora mediavam as relaes entre os ndios e tais instituies. Voltaremos mais adiante a esse ponto.
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casamentos passam a ser configurados para alm das questes de organizao social, ganhando
terreno no espao das alianas polticas (Oliveira Filho, 1988: 125-130).
O autor vai chamar ateno para o que denomina processo deculturativo, relativo s
alteraes vividas pelos ticunas em sua organizao social, a partir do contato intermitente com as
agncias colonizadoras, sejam elas de governo ou missionrias. Vai descrever, por exemplo, o
desaparecimento das grandes malocas habitaes que comportavam diversas famlias de um
mesmo cl -, e dos impactos causados pela evangelizao promovida pelo irmo Jos ao longo das
aldeias ticunas nos anos de 1970.
Entretanto, assim como aparece em Nimuendaj e em Cardoso de Oliveira, as estruturas
bsicas do sistema de parentesco ticuna parecem resistir s incurses do mundo dos brancos na vida
tribal. Oliveira Filho encontra o sistema clnico operativo no que diz respeito aos acertos
matrimoniais, mas oferece uma nova grafia para os cls: c (lembrando que para Nimuendaj as
naes so kia e para Cardoso de Oliveira kia). Com respeito s metades, aparecem aqui novos
termos: metade sem pena e metade com pena.6 Essa, a meu ver, a forma mais adequada para
categorizar as metades.
A gente pescada por Yoi7
Conta o mito de origem do povo ticuna e consequentemente do resto do mundo e dos
povos -, que procurarei expor aqui de modo bastante sucinto, que em tempos imemoriais viviam
duas personalidades: Ngutapa e sua esposa Mapana. No possuam filhos e. as relaes entre
ambos era bastante tensa, permeadas por muitas brigas. Numa dessas, Ngutapa amarra Mapana a
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6James Lankim j havia citado essas expresses como categorias nativas em sua experincia entre os ticunas do lado peruano. No entanto, enquanto categoria analtica, se valeu dos termos Rattle e Birds, para descrever as metades ticunas (Lankim, 1970: 97-101).
7 Resumo do mito a partir de Oliveira Filho, que por sua vez se baseou em narrativa de Joo Laurentino, do igarap So Jernimo, em 1981 (Oliveira Filho: 1988: 89-105)
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uma rvore e solta uma casa de caba (marimbondo) por cima de sua vagina. Sofrendo com as
intensas dores causadas pelas ferroadas, Mapana enfim consegue fazer um acordo com um pssaro
canc que a solta do crcere a cu aberto. Ela, ento, aguarda Ngutapa retornar a mata para caar e
quando este o faz, ela acerta um golpe em seus joelhos com um porrete. Ngutapa agoniza de dor e
no consegue mais caminhar at sua casa. Do inchao de seus joelhos causados pela porretada
desferida por sua esposa, surpreendentemente crescem quatro pessoas. Assim, de seu joelho direito
nascem os irmos Yoi e Mowatcha e do joelho esquerdo nascem outro par de irmos, Ipi e Aicna.
Desde cedo, Yoi se mostra talentoso e dotado de poderes especiais, dentre eles o de fazer
surgir e criar coisas conforme sua vontade e pensamento. Nessa poca no existia dia, somente
noite. O mundo era encoberto por uma grandiosa samaumeira (rvore amaznica de grande porte,
com copa larga, podendo atingir at 45 metros de altura). Aps sucessivas negociaes com um
quatipu (espcie de roedor), a samaumeira finalmente derrubada e Mowatcha, irm de Yoi e Ipi
entregue ao quatipu para fins de casamento. No dia seguinte, no entanto, os dois irmos descobrem
que a rvore voltou a crescer. Ao investigarem, descobrem que o corao da mesma ainda se fazia
presente em seu interior. Yoi negocia com a cutia para que essa roesse o tronco da rvore at
encontrar o corao e lev-lo na forma de semente para ser enterrado em sua casa. A cotia faz o que
solicita Yoi e este, sem avisar ao irmo Ipi, passa a cultivar a semente da samaumeira. Dessa
semente nasceu um p de umari8, cuja primeira fruta originou uma mulher, Tetchi aru ngu (moa
do umari). A ideia de Yoi era que Tetchi aru ngu se tornasse sua esposa e por isso a escondeu do
irmo, que j vinha demonstrando interesse pelo p de umari desde o incio. Yoi esconde Tetchi aru
ngu numa flauta de taquara, mas Ipi num dado momento descobre o esconderijo e acaba por ter
relaes sexuais com a esposa do irmo. Dessa relao nasce Tecu-quir. Yoi enraivecido com a
atitude de ambos, obriga seu irmo a buscar jenipapo para pintar seu filho. A partir da falha do casal
adltero, as mulheres passariam a sofrer com o parto e a sangrar periodicamente, afirma Yoi. Por
25
8 rvore de grande porte que produz frutos amarelados-alaranjados, muito apreciados na Amaznia. As rvores podem chegar at 25 metros de altura.
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isso era necessrio que Ipi coletasse jenipapo para pintar seu filho e assim proteg-lo nos primeiros
momentos de sua vida. Ipi assim o faz e comea a ralar o jenipapo para produzir a tinta, mas Yoi
obrigava-o a ralar a fruta ininterruptamente, at quando este comea a ralar o prprio corpo que se
despedaa em inmeros fragmentos que se espalham pelo rio.
Ao perceber a saudade de Tetchi aru ngu do cunhado-amante Ipi, Yoi resolve pescar seu
povo e, assim, se distanciar definitivamente de Ipi e Tetchi aru ngu. Com a fruta do tucum pesca
todos os bichos, sempre macho e fmea. Com a macaxeira comeou a pescar o povo Magta,
inclusive seu irmo Ipi. Entretanto, ele ordena que Ipi pescasse seu prprio povo e este o obedece,
pescando os peruanos. Do resto da borra do jenipapo, Yoi pescou os negros. Eles ento se separam
em definitivo.
Um dia Yoi pensou que seria importante que cada integrante do povo Magta tivesse sua
prpria nao. Para tanto, matou a cozinhou uma jacarerana (espcie de lagarto amaznico, com
hbitos semi-aquticos) e fez com que todos provassem de seu caldo. Os primeiros que tomaram
receberam a nao de ona. Cada pessoa que bebia ganhava uma nao e ia morar longe dos
demais. Assim foram definidas as naes que existem at os dias atuais.
Esta breve narrativa, de um mito muito mais extenso, traz em si elementos muito
interessantes que fundamentam boa parte da organizao social dos ticunas, assim como uma
maneira peculiar de compreender o mundo e o meio natural.
E, sem dvida, um aspecto de especial importncia nessa narrativa mtica o que se refere
formao dos cls ou naes. De acordo com o mito, em consonncia com os estudos etnolgicos,
os cls so unidades que possuem relativa independncia frente aos demais (seus membros vo
habitar em lugares diferentes uns dos outros, assim exige Yoi). No entanto, esto intrinsecamente
ligadas pela obrigatoriedade dos intercursos matrimoniais, obedecendo, j sabido, s regras de
exogamia entre as metades (todos foram pescados por um mesmo ente, portanto pertencem a um s
povo). Sobre esse ponto, Oliveira Filho vai afirmar que
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H que notar ainda que o mito no apresenta um inventrio completo e fechado das naes existentes. (...) Ao estabelecer as naes como unidades discretas, mas no fornecendo delas uma relao exaustiva, o mito cria condies peculiares de relacionamento entre o hoje e o passado, entre a estrutura e o produto do processo histrico. (Oliveira Filho, 1988:109-110)
Exemplo disso so os cls de galinha e boi, elementos originalmente estranhos ao contexto
cultural e ambiental dos ticunas, mas que foram incorporados sua organizao social, de modo a
incluir descendentes de casamentos entre ticunas e brancos ou outros povos indgenas, obedecendo,
inclusive lgica constitutiva das metades (sem pena x com pena).
Mas a dimenso que mais nos interessa no momento se pode interpretar do mito a
autonomia relativa dos cls enquanto unidade poltica. A mensagem transmitida por Yoi de que
cada nao deveria seguir seu prprio rumo parece ir de encontro ao que observou Nimuendaj,
Cardoso de Oliveira e Oliveira Filho, no que concerne ausncia de centralizao poltica entre os
ticunas.
De forma similar, o sistema de parentesco ticuna combinado com sua dimenso poltica -,
deve ser percebido levando em considerao os distanciamentos (entre cls de uma mesma metade)
e aproximaes (entre as metades distintas), como mecanismos que conferem coerncia ao sistema
social tradicional. Considero pertinente essa questo para quando formos abordar, no captulo
seguinte, as relaes polticas entre as associaes polticas ticunas e entre essas e o trabalho
antropolgico. De antemo, cabe afirmar que no percebo uma correlao direta entre cls e
associaes (uma associao correspondendo a um cl), mas que o pano de fundo - a autonomia das
unidades polticas e a tendncia ao faccionalismo -, me parece ser operativo tambm na
conformao e dinmica poltica das associaes.
Referente educao, cabe ressaltar que as narrativas mticas constituem temticas
transversais na elaborao dos contedos pedaggicos dos cursos de formao e dos materiais
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didticos organizados pela OGPTB. A prpria verso aqui resumida parte de uma das primeiras
iniciativas conduzidas pelos ticunas por meio do Centro Magta, com o objetivo de aproximar suas
interpretaes acerca da origem do mundo e das coisas e a educao escolar (Tor Dug, de
1983). Recentemente, a OGPTB teve aprovada junto ao Ministrio da Educao, a publicao de
trs volumes contendo uma vasta coletnea de mitos em lngua ticuna, a serem distribudos s
escolas indgenas da regio. Esse trabalho de compilao de histrias foi desenvolvido por alguns
professores ticunas, que entrevistaram principalmente os mais velhos(as) para produzi-lo. Toda essa
produo, que inclui outras publicaes como o Livro das rvores (OGPTB, 1997), o Livro dos
Pssaros (2002) e o Livro dos Sapos (2002), assume particular relevncia para professores,
dirigentes e assessoria pedaggica da OGPTB no sentido de implementar e incrementar o material
didtico das escolas. Ou seja, sua funo primordial, de acordo com a perspectiva dos professores e
sua organizao representativa, atingir diretamente as salsas de aula e, dessa maneira, dirimir os
impactos causados na educao pelo contato intertnico, bem como buscar conter uma perspectiva
pedaggica universalista e homognea representada, segundo os ndios, pelas secretarias municipais
de educao.
Notas histricas
O povo indgena ticuna, ou conforme a autodenominao, Magta (gente pescada por Yoi)9,
habita uma extensa rea na trplice fronteira formada entre Brasil, Peru e Colmbia, espalhando-se
ao longo do curso do rio Solimes10. Ao longo de toda a rea, as aldeias ticunas distribuem-se em
cerca de 600 quilmetros de extenso, a partir da regio de Chimbote (Peru), ponto mais ocidental,
atravessando o Trapzio Amaznico colombiano e chegando at a regio de Barreira da Misso, no
28
9 Heri mtico do povo Magta que cria o mundo e origina seus seres.
10 Ganha essa denominao at o seu encontro com o Rio Negro, nas proximidades de Manaus, quando passa a ser chamado de Amazonas, mesma denominao que possui em Colmbia e Peru.
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municpio de Tef (Amazonas, Brasil), o extremo oriental (Faulhaber, 2005)11. Fora das terras
legalmente demarcadas pela Estado brasileiro, h tambm registro de famlias ticunas na cidade de
Manaus, atradas por trabalhos no Distrito Industrial, no caso dos homens e de trabalhos
domsticos, no caso das mulheres. Moram, principalmente, no bairro Cidade de Deus e esto
organizadas, inclusive, em associao. Em conjunto, os ticunas so a populao indgena mais
numerosa da regio amaznica brasileira, com cerca de 32 mil ndios no Brasil, 4,5 mil na
Colmbia e de 4,2 mil no Peru (ISA, 2007). Esto especialmente concentrados no territrio
brasileiro, principalmente na regio do Alto Solimes12, por onde distribuem-se por dezenas de
terras indgenas13 em estados diferenciados de reconhecimento oficial do Estado brasileiro,
processo iniciado sobretudo a partir dos anos 1980.
As primeiras menes registradas sobre os ticunas surgem a partir dos meados do sculo
XVII (Cristobal de Acua, 1641; Laureano de La Cruz, 1649, Padre Samuel Fritz, 1691) e
compunham o conjunto de documentos produzidos no contexto das disputas entre Espanha e
Portugal pela definio de seus territrios coloniais situados no extremo oeste amaznico (De la
Rosa, 2000: 292-299). At ento, o contato com os ticunas se dava de forma indireta, por
intermdio de outros grupos tnicos circunvizinhos, que mantinham relaes de trocas e guerras
com eles. a partir do sculo XVIII que o contato se d diretamente,
29
11 Na realidade, existem terras indgenas ticunas mais abaixo do municpio de Tef, por exemplo, a Terra Indgena Cajuhiri Atravessado, no municpio de Coari (compartilhada com famlias cambebas e miranhas) e a Terra Indgena So Jos, no municpio de Manacapuru, que encontra-se em processo de identificao (Portaria 962 de 25/08/2005 da presidncia da Funai; no possuo dados atualizados do processo). Fonte: Povos Indgenas no Brasil: 2001/2005. Instituto Socioambiental. De qualquer forma, para os efeitos desta Dissertao, lidarei com o recorte geogrfico onde encontra-se a maior parte da populao ticuna e onde se concentram as mobilizaes polticas ticunas de modo mais contundente, a saber, onde esto compreendidos os municpio de Benjamin Constant, Tabatinga, So Paulo de Olivena, Amatur e Santo Antnio do I.
12 Regio situada no extremo sudoeste do Estado do Amazonas, inserida no contexto da Bacia do Rio Amazonas, compreende nove municpios: Atalaia do Norte, Benjamin Constant, Tabatinga, So Paulo de Olivena, Amatur, Santo Antnio do I, Tonantins, Juta e Fonte Boa. Abrange rea de 214 mil km2 e populao de mais de 200 mil habitantes, de acordo com dados do Ministrio da Integrao Nacional brasioleiro. Os municpios de Benjamin Constant e Tabatinga so os que limitam fisicamente Brasil e Peru e Brasil e Colmbia, respectivamente.
13 So elas: Betnia, Bom Intento, Estrela da Paz, vare I, vare II, Lago Beruri, Lauro Sodr, Macarro, Marait, Matintin, Nova Esperana do Rio Jandiatuba, Porto Limoeiro, Porto Praia, So Francisco do Canimari, So Jos, So Leopoldo, Santo Antnio, Feijoal, Porto Espiritual, Umariau, Tup-Sup, Uati-Paran e Vui-Uata-In (exclusivas dos ticunas); e Barreira da Misso, Cajuhiri Atravessado, Ilha do Camaleo, Lago do Correio e Riozinho (compartilhada com outros grupos tnicos. Fonte: Povos Indgenas no Brasil: 2001/2005. Instituto Socioambiental.
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bajo la forma de dos vectores radicalmente diferentes de penetracin europea que acabaron chocando por el control del Alto Amazonas: por un lado, las razzias de las llamadas tropas de resgate portuguesas, flotillas esclavistas que remontaban el ro para abastecer las necesidades de las plantaciones de azcar de la ciudad de Belem do Par, por el otro, los jesuitas espaoles enviados desde Quito para emprender un ingente proyecto de evangelizacin extensiva de los pueblos ribereos del Amazonas (Ardto 1993; Goiob 1982). (idem: 292)
Em l759 Marqus de Pombal acaba com o regime das misses, substituindo-as pela poltica
do Diretrio dos ndios, en el que un representante de la Corona, el Director, sustituye al misionero
en cada poblado, con la contradictoria funcin de controlar el trabajo servil de los indios y velar por
su paulatina integracin como ciudadanos en la sociedad colonial. (idem: 294). O intuito de
Pombal com os Diretrios era promover a integrao indgena progressivamente, conformando uma
sociedade amaznica mestia e economicamente baseada na propriedade privada e comrcio. De
acordo ainda com De la Rosa, o objetivo principal de Pombal se viu convertido no acirramento das
relaes de explorao do trabalho indgena e na desfigurao de sua organizao social, no caso
particular dos ticunas, uma vez que contribuiu com o estabelecimento de um status quo
sociopoltico, que se fundamentava na manuteno das desigualdades entre brancos e ndios. (idem:
294-296)
Os registros histricos analisados por diversos autores, nos sinalizam que a ocupao ticuna
no alto Solimes se dava onde hoje se encontram os municpios de Tabatinga e So Paulo de
Olivena, no alto dos igaraps, tributrios do Solimes em sua margem esquerda, distanciando-se,
dessa forma, de seus inimigos omguas e mayorunas, habitantes das margens do rio principal
(Nimuendaju, 1952: 2-11; Cardoso de Oliveira, 1969[1964]; Oro, 1978: 13-14; Erthal, 1998:60, de
la Rosa: 2000). At ento, alm dos trs grupos tnicos supracitados, a regio contava com
marcante pluralidade de grupos indgenas e intensas trocas materiais e simblicas entre esses,
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situao esta alterada substancialmente a partir do contato sucessivo e intermitente dos povos locais
com as diversas frentes colonizadoras na regio:
Na mesma regio habitavam ainda diversas tribos como os Aruaques do rio Putumayo/I (Mariet, Yumana e Pass), os Siona da regio do rio Putumayo/Caquet, e a oeste, os Ygua e Peba. De todos esses povos, integrados em um mesmo complexo cultural anterior ao contato, os Ticuna sobreviveram como grupo at os dias de hoje, e outros desapareceram dizimados pelas diversas formas de subordinao, por doenas e pela progressiva mestiagem de seus descendentes (...) os Ticuna foram protegidos, num primeiro momento, pela sua localizao no alto dos igaraps, no interior das florestas. Como resultado mais imediato das disputas territoriais, os Omgua praticamente desaparecem das ilhas do Solimes, permitindo o acesso dos Ticuna a sua margem esquerda. Os Omgua ocupavam as ilhas e a margem esquerda do Solimes e eram originalmente superiores em nmero, territrio ocupado, habilidades militares e tecnologia, desconhecendo os Ticuna, inclusive, o fabrico e manejo de canoas. O enfraquecimento crescente dos Mayoruna, tambm seus inimigos, que controlavam a margem direita do rio, facilitou a expanso dos Ticuna ao longo da beira e das ilhas do Solimes. Paralelo a esse movimento, os ndios Cocama da regio do baixo rio Ucayali, se estabeleceram entre os Ticuna, em aldeias independentes, no rio Solimes. (Erthal, 1998:60-65).
Os relatos sobre os grupos indgenas da regio nos sculos seguintes so de autoria de
importantes cronistas da historiografia brasileira a servio, de uma forma ou outra, dos projetos de
colonizao (pela bblia e/ou pela armas) de suas respectivas naes, dentre eles Padres Jos de
Moraes (1748) e Monteiro Noronha (1768), Ribeiro de Sampaio (1774/5), Aires de Casal (1817),
Lister Maw (1828), Castelnau (1846) e Walter Bates (1850) (Cardoso de Oliveira, 1969[1964]:43)
14. Tais escritos trazem descries sobre a configurao populacional da regio, com nfase nos
grupos indgenas habitantes, suas formas de vida, aspectos variados de suas culturas e meio
ambiente, de modo a subsidiar atravs do conhecimento sobre os povos indgenas da regio, as
31
14Para uma leitura mais aprofundada das relaes entre povos indgenas, agncias colonizadoras e a formao do alto Solimes ver Cardoso de Oliveira (1969[1964]), especialmente o captulo III, Oliveira Filho (1977), captulo I e Erthal (1998), captulo II.
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estratgias de colonizao da Coroa portuguesa15. A partir de sculo XX, um novo fluxo de agncias
se fazem presentes na regio, sob a gide da consolidao das fronteiras nacionais em jogo,
articuladas com o estabelecimento de relaes de explorao da mo-de-obra indgena nos
barraces de extrao do ltex, do aprofundamento das relaes do povo ticuna com instituies
evangelizadoras e movimentos messinicos e de uma presena em grande medida tardia, porm
paulatina, do Estado brasileiro e instncias governamentais em nvel federal na regio.
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A literatura sobre os ticunas bastante extensa, especialmente no que diz respeito ao regime
de barraco para extrao da borracha no alto Solimes, processo que se inicia j nas primeiras
dcadas do sculo XX (Nimuendaju, 1929 e 1952; Cardoso de Oliveira, 1969 [1964]; Oro, 1978;
Oliveira Filho, 1988), cujo declnio se inicia no incio dos anos 40 desse sculo, num primeiro
momento a partir da interveno e atuao mais presente do Servio de Proteo ao ndio na
regio16 (Oliveira Filho, 1988: 214-235).
Em resumo, o sistema do barraco era caracterizado por uma intensa e exaustiva explorao
de mo-de-obra indgena no remunerada, pois baseada que estava num sistema de pagamento por
troco (idem: 176). Nesse sistema, o patro - denominao local para o seringalista - era tambm
o dono do comrcio e, portanto, quem estipulava os preos das mercadorias, utilizadas por sua vez
como pagamento aos ndios, conforme o montante extrado das seringueiras por estes ltimos. Na
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15 De acordo com De la Rosa, nessa poca a regio do alto Solimes j se encontrava sob domnio de Portugal: El conflicto de intereses entre ambos imperios se concret en una guerra de baja intensidad entre 1697 y 1710 que no termin oficialmente hasta la paz de Utrechde 1714 y cuyas principales consecuencias fueron la destruccin de la mayor parte de las reducciones jesuticas y el control por parte de Portugal de las 3/4 partes del ro Amazonas (De la Rosa, 2000:293)
16 Importante ressaltar que esse o incio do declnio do regime de barraco baseado na explorao dos ndios. No obstante, a situao de explorao persiste ainda por pelo menos uma dcada aps o SPI se fixar na regio, o que comprovado pelo estudo de Roberto Cardoso de Oliveira. O que temos, portanto, a manuteno do sistema exploratrio revelia, inclusive, da baixa produtividade dos barraces, mesmo quando comparada a fase urea da extrao do ltex no alto Solimes, que por sua vez nunca atingiu a relevncia produtiva de outras localidades amaznicas produtoras de borracha, como o Acre e o rio Madeira (Oliveira Filho, 1988)
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lgica dos patres, s havia um nico caminho de relacionamento comercial dos ndios, que era
com eles prprios, gerando uma situao de encapsulamento (idem: 49-54) do trabalho e da vida
indgena. A estratgia dos patres nesse sentido consistia em adquirir glebas para explorao das
seringueiras que se localizavam principalmente ao longo dos igaraps. O barraco, por sua vez,
onde se localizava a casa do patro e o comrcio que tambm lhe pertencia, se situava na
embocadura desses igaraps, especialmente as dos igaraps de Belm, So Jernimo e Tacana. Essa
conformao territorial facilitava o controle sobre os ndios e aumentava a relao de submisso da
vida indgena nos seus mais variados aspectos, j que se tratava praticamente da nica sada destes
ltimos ao mundo fora do contexto dos seringais. Conforme atesta Cardoso de Oliveira:
Toda a produo do igarap adquirida pelo barraco em troca de mercadorias, tais como retalho de fazenda, sal, gordura, acar, instrumentos de trabalho, como faces e machetes, e, sobretudo, a cachaa. (Cardoso de Oliveira, 1969 [1964]:51)
Articulado a isso, havia ainda uma srie de sanes punitivas para os ndios que ousassem
negociar, por outro lado, os frutos de seus trabalhos na agricultura e/ou na pesca (ou seja, fora do
contexto do trabalho nos seringais) com outras pessoas que no fossem o patro. Tais sanes
incluam castigos corporais, prises, humilhaes pblicas e at mesmo assassinatos. Em suma, e de
acordo com a bibliografia a respeito, tratava-se de uma relao de submisso extrema, totalmente
estranha aos padres e valores socioculturais indgenas com respeito ao trabalho e sociabilidade, e
consequentemente com profundos impactos na conformao da identidade tnica ticuna. O caboclo,
categoria local trazida tona e analisada por Roberto Cardoso de Oliveira, seria produto dessa
situao - historicamente construda pelo contato intertnico -, de penria da realidade indgena,
produzida principalmente nos barraces, mas incrustada numa espcie de auto-imagem indgena
alienada e necessariamente situada em posies inferiores da hierarquia social.
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O caboclo, o Tukna transfigurado pelo contato com o branco. le se diferencia dos grupos tribais do Javari, porquanto se constitui para o branco numa populao indgena pacfica, desmoralizada, atada s formas de trabalho impostas pela civilizao, e extremamente dependente do comrcio regional, oposto ao ndio selvagem, nu ou semi-vestido, hostil ou arredio (...). Em certo sentido, o caboclo pode ser visto ainda como o resultado da interiorizao do mundo do branco pelo Tukna (...) O caboclo , assim, o Tukna vendo-se a si mesmo com os olhos do branco; isto , como intruso, indolente, traioeiro, enfim como algum cujo nico destino trabalhar para o branco. (idem: 80)
Felizmente, o prognstico pessimista do autor no se concretizou, mas no h como
contextualizar sua anlise sem levar em considerao a situao que o mesmo encontrou quando de
sua pesquisa. Atualmente, a categoria caboclo acionada principalmente quando se referem s
comunidades ribeirinhas da regio e uma srie de novas situaes, nos termos de Joo Pacheco de
Oliveira Filho (1988:24-54), alteraram substancialmente a auto-imagem dos ticunas frente aos
brancos, invertendo de certa maneira a oposio caboclo-ndio selvagem. Retomarei a esse ponto na
Concluso.
Outro aspecto a se ressaltar sobre o regime dos barraces, talvez o mais importante para os
propsitos desta dissertao, diz respeito atuao do Estado e poderes pblicos na regio e como
os mesmos atuaram diante das empresas seringalistas, o que revelador de suas prprias
ambiguidades. Mais uma vez me apoio em Cardoso de Oliveira quando este afirma que o prprio
Exrcito Brasileiro agiu no sentido de conter as correrias indgenas no Javari17, a partir de
solicitaes encaminhadas pelos lderes polticos - que tambm eram os seringalistas - contra o
chamado perigo indgena (Cardoso de Oliveira, 1969[1964]:33-34). Numa escala reduzida, o
autor relata o uso da Polcia Militar de Benjamin Constant para expulso de ndios localizados em
territrios de propriedade da empresa seringalista A.A.(idem: 40). Noutra passagem, o prprio
poder judicirio local que se mostra corrompido. Nesse triste episdio, o juiz, por meio de carta
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17 As correrias indgenas no Javari tratavam-se de ataques de grupos indgenas contra as localidades de explorao de madeira, que por sua vez, e igualmente ao regime dos barraces, se valia de trabalho servil indgena e que tinham como proprietrios a elite poltica e econmica do municpio de Benjamin Constant.
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endereada a um poderoso seringalista da regio, se desculpa a este ltimo por ter solto um
prisioneiro ticuna - por estar adoentado e sem nada para comer, nos dizeres do prprio juiz -, mas
que, caso soubesse que havia sido encaminhado pelo seringalista, assim no teria procedido (id:
116). Cardoso de Oliveira afirma que Ser difcil encontrar um outro documento que assinale
maior subservincia e falta de imparcialidade jurdica de uma autoridade governamental (id ibid).
Portanto, o Estado, ou melhor dizendo, as agncias estatais presentes na regio, operavam no
sentido de contribuir e proteger a empresa seringalista e madeireira, mesmo que isso contribusse
para reificar o sistema de opresso e perpetuao do preconceito e racismo diante dos ticunas e
grupos indgenas do Vale do Javari, por meio das aes de seus, principais representantes, tornando
a questo indgena marginal e invisvel aos olhos do prprio Estado.
O regime dos barraces, como dito anteriormente, comea a esfacelar com a presena do
SPI na regio, especialmente a partir do estabelecimento do Posto Indgena Ticuna em Umaria e
muito em funo da atuao do segundo encarregado do posto desde sua fundao em 1942,
Manoel Pereira Lima, o Manuelo (cuja gesto durou entre 1943 a 1946) (Oliveira Filho, 1988:
176-191). A partir das aes do SPI, principalmente protagonizadas por Manuelo, os ticunas
iniciam um processo de migrao para a gleba recm adquirida pelo rgo indigenista - que adiante,
nos anos 1980, adquiriria o status jurdico-administrativo de Terra Indgena de Umariau,
homologada em 1988 -, a fim de gozarem de relaes comerciais mais simtricas e de um sistema
de preos e pagamentos estipulados pelo Posto Indgena Ticuna (PIT) muito alm dos preos do
barraco18, e conforme a produo organizada pelo Posto (especialmente de gneros das roas e de
pescado) das famlias ticunas19. Paralelamente, o PIT elabora uma srie de relatrios denunciando a
penria em que se encontravam as famlias ticunas dos igaraps de Belm, So Jernimo e Tacana,
decorrentes do sistema de submisso levados a cabo pelos patres da borracha, sobretudo naqueles
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18 Oliveira Filho destaca que a primeira estratgia de atrao criada por Manuelo foi adquirir farinha dos ndios em troca de mercadorias e dinheiro, o que de prontido teve resposta positiva dos ndios (Oliveira Filho, 1988:162)
19 As chamadas roas do Posto, realizadas pelos prprios ndios em regime de trabalho remunerado. (Oliveira Filho, 1988: 162)
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barraces sob o comando da famlia Mafra. (Cardoso de Oliveira, 1969[1964]; Oliveira Filho,
1988).
A presena do SPI teve duas caractersticas fundamentais: a) sua atuao passa no somente
a inibir, mas a coibir os excessos de toda sorte praticados pelos patres da borracha contra os
indgenas20, seja por meio da denncia oficial de um rgo federal, o que j ganhou peso no
contexto, seja pela criao e incentivo de novos relacionamentos comerciais e produtivos; b) trouxe
regio uma segurana poltica e jurdica face aos ticunas, at ento subjugados pelas regras dos
patres e da elite poltico-econmica local.
No se trata aqui de fazer apologia ou de resgatar um passado glorioso do rgo indigenista
na regio. O prprio Cardoso de Oliveira, bem como Joo Pacheco de Oliveira Filho, analisam com
bastante propriedade e crtica o perodo de atuao do SPI na regio e o estabelecimento do regime
tutelar. Ambos sinalizam, por exemplo e de distintas maneiras, as estratgias organizadas do SPI no
intuito da integrao do ndio a sociedade nacional, de modo a forjar representaes polticas que
fomentassem e contribussem com os objetivos do rgo. Nesse quesito, afirmam:
Se em alguns casos o status atribudo de Capitocoincide com o status tribal de Cacique ou chefe, noutros, entretanto, o verdadeiro chefe tribal substitudo por algum que seja de real confiana do S.P.I., sem o menor respeito pelos mecanismos tradicionais, indgenas, de ascenso ao poder. Os Tukna constituem aqui um caso peculiar: sem possurem uma organizao poltica tribal, contam, no obstante com lderes capazes de ser empossados em funes de chefia relativa (Cardoso de Oliveira, 1969[1964]: 87)
Em geral os que foram escolhidos pelos patres como tuxawas eram ndios que dispunham de uma certa liderana sobre alguns grupos familiares, e que, embora tivessem influncia sobre os outros, no possuam qualquer ttulo, nome ou mandato especfico que no decorresse de sua vinculao com os brancos (Oliveira Filho, 1988: 126)
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20 Aqui cabe destacar que no somente indgenas eram explorados pelos patres, mas muitos outros trabalhadores nordestinos que ocuparam a regio em busca de trabalho nas seringas, chamados na regio por essa poca de arigs. Em grande medida, a libertao dos ndios representou por conseguinte a libertao dos demais trabalhadores.
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Por outro lado, parece haver consenso entre os autores que o perodo onde se percebeu
relaes mais positivas, por assim dizer, entre o rgo tutelar e os ndios, se deu especificamente na
administrao de Manuelo, muito em funo de seus projetos de fomentao da produo agrcola
indgena e nas denncias dos abusos cometidos pelos patres da borracha.
De qualquer forma, o que cabe destacar so os fatos que comprovam sociologicamente a
alterao do panorama das relaes entre brancos e ndios. Nesse sentido, essa ltima passagem
representa o incio de uma nova perspectiva dos ticunas frente aos brancos e frente a eles mesmos.
Mas, como dito anteriormente, esse s o incio desse processo, circunscrito que estava s terras do
Posto de Umariau. O sistema de explorao dos ticunas persiste poca, a partir de novos
empreendimentos levados a termo pelos herdeiros de Romualdo Mafra - um dos primeiros e mais
poderosos patres da borracha no Solimes -, conforme registrado por Roberto Cardoso de Oliveira
(1969[1964]) e Ari Pedro Oro (1978).
somente a partir dos anos 1980 que o panorama comea a se alterar significativamente,
muito em funo de uma reelaborao da conscincia tnica em termos de cidadania (no caso
brasileira) e direitos, expressa na organizao das lideranas indgenas em torno da demarcao das
terras indgenas e da criao de associaes que propiciassem a unio dos ticunas em torno de seus
direitos fundamentais entre eles, alm do territorial, pela sade e educao. nesse contexto que
surge o Conselho Geral da Tribo Ticuna (CGTT). Criada principalmente para congregar caciques e
lideranas tradicionais em torno da luta pela demarcao das terras indgenas ticunas, com a
ampliao de seu escopo de atuao, vo surgindo outras associaes vinculadas a ela, dentre elas a
Organizao Geral dos Professores Ticunas Bilngues (OGPTB), tambm no ano de 1986. preciso
destacar, tambm, que esse um perodo no qual houve significativo afluxo de pesquisadores,
principalmente do Museu Nacional do Rio de Janeiro e, um pouco antes, da Pontifcia Universidade
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Catlica do Rio Grande do Sul, por meio do Projeto Rondon21, que passaram a apoiar e assessorar
os ticunas tanto com a criao das associaes, como com cursos que problematizavam a realidade
local e promoviam o debate em torno dos projetos e reivindicaes futuras dos ndios (Paladino,
2006: 70-80). Uma das principais lideranas, Sr. Pedro Incio, Ngematc, chamou esse processo
de Ticunio, uma tentativa de aglutinar de modo centrpeto as foras polticas indgenas em torno de
objetivos comuns (Lpez Garcs, 2000: 212-236).
O envolvimento dos ticunas em torno de uma nica organizao poltica no me aparenta ser
algo estrutural, mas reflete a conjuntura da poca, ou se se preferir, a situao histrica (Oliveira
Filho, 1988: 54-59) presenciada no alto Solimes. Ao contrrio, toda a bibliografia (ao menos a que
de meu conhecimento) enfatiza o carter relativamente autnomo das unidades tribais, nas suas
mais variadas situaes histricas, o que levou o etnlogo Curt Nimuendaju em sua clebre
monografia The Tukuna afirmar que There is absolutely no political organization today. The
Tukuna never had a supreme head, and a clan government could not obtain because the clans were
not localized (Nimuendaju, 1952:65). De fato, ouvi diversas vezes de vrios indgenas afirmaes
que remetem ao perodo da luta pela terra como o ltimo movimento ticuna em que teve um nico
chefe como principal protagonista, ou melhor dizendo, e parafraseando um professor: nosso ltimo
Cacique-Geral foi o Pedrinho (Pedro Incio) (depoimento do professor Constantino Ramos Lopes,
Fupeatc).
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21 O Projeto Rondon tratou-se de um Grupo de Trabalho vinculado diretamente ao Gabinete do Ministro do Interior, criado em 1967, integrado por representantes das Foras Armadas e por ncleos universitrios em torno dos objetivos de *Conhecimento da Realidade Nacional, *Integrao Nacional, Desenvolvimento, *Interiorizao. O ideal da integrao passaria a ser o fundamento bsico da organizao de todas as operaes do Projeto Rondon: deslocar os estudantes universitrios brasileiros a elite que governaria o pas no futuro por todas as regies, para que tivessem a oportunidade de vivenciar a Amaznia, o Nordeste, o Centro-Oeste, o Sul. Os ncleos universitrios que participaram mobilizaram estudantes universitrios voluntrios. Em 28 de junho de 1968, aps os bons resultados de uma primeira fase de implementao e o reconhecimento nacional, o Grupo de Trabalho Projeto Rondon institudo em carter permanente, vinculado ao Ministrio do Interior e, alm dos universitrios que o compunham, passa a ser integrado por representantes de todos os Ministrios e do Conselho de Reitores, este representando todas as Universidades (Decreto 62.927/68). Em 06 de novembro de 1970, pelo Decreto 67.505/70, o Grupo de Trabalho "Projeto Rondon" transformado em rgo da Administrao Direta, sempre subordinado ao Ministrio do Interior, tendo, alm de totalmente reformulada e ampliada a sua estrutura, passado a ter autonomia administrativa e financeira. Pouco a pouco, a Universidade, como instituio, assume uma parcela maior de participao nas atividades do Projeto Rondon. E o Campus Avanado a forma como se materializa esse maior envolvimento direto na problemtica do desenvolvimento e da integrao nacionais (Fonte: Ministrio de Defesa, 2006). (Paladino, 2006:59)
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O contexto das lutas pela demarcao das terras ticunas no foi pacfico do ponto de vista
das relaes com os regionais e a elite local. Como episdio mais marcante e trgico desse perodo
foi o Massacre do Capacete, ocorrido durante uma festividade no igarap de mesmo nome.
Transcrevo alguns trechos das palavras de Pedro Incio Pinheiro, ento presidente do CGTT,
No dia 28 de maro de 1988, s 12 horas de dia aconteceu uma grande tristeza para o povo ticuna, at hojes ns no esquecemos, essa massacre dia doloroso para o povo ticuna. Que 20 homens civilizados mataram 14 pessoas adultos e tambm crianas que pularam no Rio Solimes perto de Benjamin Constant, no escaparam, mais foram morto e o corpo jogado no Rio Solimes, escaparam aquele que correram para dentro do mato (...)Agora em 99 completou 11 anos do massacre do ticuna e os culpados no ainda foram punidos (...) Um do assassino, Valderei Nascimento Penha, agora ele professor, dando aula no municpio de Benjamin Constant (...) Agora est rindo da nossa cara do ndio Ticuna porque nunca ficaram preso. (Jornal Magta, CGTT, 1999. Em Povos Indgenas no Brasil: 1996-2000. Instituto Socioambiental.)
Em outubro de 1999, seis executores foram presos e dois estavam foragidos e, alguns anos
mais tarde, o mandante dos assassinatos, Oscar Castelo Branco, poderoso empresrio e poltico
local, vinculado indstria madeireira, foi condenado a cumprir priso domiciliar, em virtude de
sua idade avanada. Um dos sobreviventes, natural da rea de So Leopoldo, onde situa-se o
igarap Capacete, Constantino Ramos Lopes, se transformou em importante liderana na rea da
educao escolar indgena, exercendo a presidncia da OGPTB entre 2007 a 2010 (alm de vrias
funes diretivas antes disso).
fato tambm que a situao por mim presenciada no alto Solimes em pouco tem a ver
com o que nos acostumamos a perceber em outros contextos indgenas, onde a figura de um head
constitutivo da identidade social e poltica do grupo como um todo. Tampouco as organizaes
conseguem cumprir esse papel no meu entendimento e, talvez, nunca tenham cumprido, salvo nos
casos de excepcionalidade, como o descrito acima. Voltarei mais a esse ponto no prximo captulo,
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quando tratarei das relaes entre as organizaes ticunas e a insero dos antroplogos nesse
contexto.
Ainda sobre esse ponto, de suma importncia destacar a criao do Centro Magta de
Documentao e Pesquisa, fundado em 1991 na avenida Castelo Branco em Benjamin Constant,
que por alguns anos congregou algumas das principais associaes supralocais dos ticunas, dentre
elas, alm da j referida CGTT, tambm a Organizao dos Monitores de Sade do Povo Ticuna
(OMSPT), a Organizao dos Agentes Indgenas de Sade do Povo Ticuna (OASPT) e a OGPTB.
J no ano de 1996, a OGPTB forosamente desligada do Centro Magta que passa a ter uma
administrao centralizada em mos de liderana do CGTT, Sr. Nino Fernandes, num episdio
marcado por muitas controvrsias e que culminou no fechamento do Centro (conhecido mais como
Museu Magta), na j referida expulso da OGPTB e dispensa sumria dos profissionais mais
diretamente ligados a essa instituio (sem haver, inclusive, pagamento dos direitos trabalhistas), na
destituio de Pedro Incio da chefia do CGTT um ano depois e na inusitada reabertura do Museu
logo em seguida, concomitante transferncia do patrimnio da instituio para o CGTT (ISA,
1996: 415-417). Por outro lado, o perodo no qual se intensifica ainda mais o vnculo desta
associao indgena com pesquisadores do Museu Nacional, tendo inclusive como vice-presidente o
antroplogo Joo Pacheco de Oliveira Filho e o historiador Paulo Roberto Abreu Bruno como
tesoureiro, esse ltimo vinculado a Universidade Federal Fluminense, mas tambm um agente
poltico de muita atividade na regio (ISA, 2000: 415-417). De acordo com este ltimo, ento 1
secretrio do Centro Magta, a prpria organizao foi fundada por iniciativa de pesquisadores do
Museu Nacional, que tinham frente o antroplogo Joo Pacheco de Oliveira Filho,
Nos seus primeiros anos de existncia at 1992 o Centro Magta tinha a sua diretoria composta apenas por no-ndios. A partir das eleies daquele ano, passou a ter uma diretoria mista, composta por Ticuna e no-ndios e, finalmente, em 1996, passou a ter como presidente o ticuna Pedro Incio Pinheiro e incorporou sua estrutura poltico-
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administrativa um conselho com carter consultivo e deliberativo Comit Indgena composto por lideranas de diversas aldeias. Aps passar por srias crises financeiras a partir de 1996, o Centro Magta foi extinto em 1997, aps deciso nesse sentido, tomada pelos capites ticuna que estiveram reunidos em assemblia geral na aldeia Vendaval (municpio de So Paulo de Olivena). Na assemblia foi aprovada a doao de todo o patrimnio constitudo pela entidade para o CGTT. Essa deciso est na raiz da divergncia entre o CGTT e a OGPTB, j que interessava organizao dos professores e sua assessora a manuteno do controle sobre o Museu Magta (Bruno, 2002, p.12, apud Paladino, 2006: 83, rodap n113)
A verso narrada a minha pessoa difere substancialmente dessa. De acordo com professores
vinculados a OGPTB e tambm ao Magta na poca, principalmente os lotados em Benjamin
Constant, a reunio de Vendaval teria sido realizada secretamente e que eles foram pegos de
surpresa com o fechamento do Museu, inclusive com a troca das fechaduras dos portes e portas de
acesso e a dispensa do acervo documental e dos livros da OGPTB no meio da avenida Castelo
Branco. E acusam o prprio pesquisador de ser o executor dessa ao.
Um aspecto interessante do contexto no qual ocorre esse episdio que boa parte das terras
indgenas (13 ao todo; ISA, 2001) foram homologadas justamente no perodo compreendido entre
1991 e 1996. Em outros termos, as distenes do movimento indgena - do prprio fazer poltica
ticuna -, podem ter ressurgido aps o perodo crtico das demarcaes de considervel parte das
terras indgenas ticunas, reabrindo espaos para manifestaes de seu faccionalismo constitutivo.
tambm de se ressaltar que o ano de 1993 marca o incio dos cursos de formao de professores da
OGPTB e, um ano aps, do surgimento de uma associao dissidente da CGTT, a Federao das
Organizaes Caciques e Comunidades da Tribo Ticuna (FOCCITT), cuja primeira assembleia
ocorre em 1998. Na dcada seguinte a vez de Pedro Incio - aps perodo de recluso em sua
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comunidade de origem, Morro da Formiga no alto do igarap Eware22 -, criar uma nova associao
de caciques, denominada Associao dos Caciques Indgenas de So Paulo de Olivena (ACISPO).
Esse brevssimo histrico das relaes polticas no alto Solimes, teve como finalidade
chegar ao ponto no qual nos encontramos. Os ltimos eventos descritos, por sua vez, tm como
finalidade fornecer uma perspectiva das aes polticas protagonizadas pelos ticunas no mbito de
suas organizaes representativas. A seguir, pretendo me ater um pouco mais a essa questo, a partir
de um dilogo principalmente com duas antroplogas, Mariana Paladino, autora de tese de
doutorado de 2006 sobre as incurses cidade de Benjamin Constant por parte de estudantes
ticunas, com o objetivo de prosseguimento em seus respectivos processos formativos; e com
Claudia Leonor Lpez Garcs, cuja tese de doutorado problematiza as relaes entre etnicidade e
nacionalidade na conformao da identidade tnica ticuna, sob uma perspectiva transfronteiria.
Sobre o primeiro trabalho, me interessa em especial as contribuies da autora no que diz respeito
ao processo de luta pela educao. Com respeito a tese de Lpez Garcs, pretendo trazer
contribuies a sua anlise a respeito das organizaes ticunas do lado brasileiro propriamente dito,
enfatizando nesse contexto as aes polticas de sua organizao de professores. Naturalmente,
outros textos e documentos tambm serviro de apoio e referncia, mas o destaque aos dois
trabalhos s