CRIANÇAS ESCOLARES DO SÉCULO XXI: PARA SE PENSAR UMA INFÂNCIA PÓS-MODERNA

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  • 965Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, p.965-991, set./dez. 2010

    CRIANAS ESCOLARES DO SCULO XXI: PARA SE PENSAR UMA INFNCIA

    PS-MODERNA1

    MARIANGELA MOMOProfessora do Departamento de Educao da Universidade Federal do

    Rio Grande do Norte [email protected]

    MARISA VORRABER COSTA Professora do Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal do Rio

    Grande do Sul Porto Alegre e do Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Luterana do Brasil Canoas/RS

    [email protected]

    RESUMO

    O artigo apresenta um recorte de pesquisas realizadas sobre as conexes entre escola e cultura contempornea. Nele procuramos mostrar, interpretar e problematizar modos de ser de crianas pobres que frequentam escolas pblicas da periferia de uma capital brasileira. O estudo se inscreve em uma matriz de inteligibilidade que considera a infncia como uma construo cultural, social e histrica, sujeita a mudanas, e v a contemporaneidade marcada por condies imbricadas no que se conhece amplamente como cultura ps-moderna. Considera-se que esse estado da cultura, com implicaes contundentes da mdia e do consumo, tem produzido tipos peculiares de sujeitos infantis, consoantes s configuraes culturais do mundo contemporneo, em que visibilidade, efemeridade, ambivalncia, descartabilidade, superficialidade fazem parte da vida. So crianas que buscam infatigavelmente a fruio e o prazer; que procuram de modo incansvel inscrever-se na cultura globalmente reconhecida. So crianas que se tornam o que so vivendo sob a condio ps-moderna.INFNCIA ESCOLAS PBLICAS PS-MODERNISMO

    ABSTRACT

    SCHOOL CHILDREN IN THE XXI CENTURY: THINKING ABOUT A POST-MODERN CHILDHOOD. This article presents part of researches that we have carried out into the

    Uma primeira verso deste trabalho, oriundo de pesquisas realizadas pelas autoras, foi apre-sentada na 32a Reunio Anual da Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Edu-cao Anped , que se realizou de 4 a 7 de outubro de 2009 em Caxambu/MG. A verso, ora apresentada, foi ampliada e revisada.

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    connections between school and contemporary culture. We have attempted to show, interpret, and problematize ways of being poor children in public schools located in the outskirts of a Brazilian capital. This study is inscribed in an intelligibility matrix that both considers childhood as a cultural, social, historical construction that is subject to changes, and regards contemporaneity as marked by conditions intertwined in what has been widely known as post-modern culture. We have considered that this culture state, with incisive implications of media and consumption, has produced peculiar kinds of child subjects, in accordance with cultural configurations of the contemporary world. Visibility, ephemerality, ambivalence, disposability, and superficiality are part of those childrens lives. These children have relentlessly sought fruition and pleasure; they have tried to participate in the globally acknowledged culture. They become who they are by living under the post-modern condition.CHILDHOOD PUBLIC SCHOOL SYSTEMS POSTMODERNISM

    As crianas, esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres selvagens que no entendem nossa lngua.

    (Larrosa, 1998, p.229)

    No conhecido ensaio em que Fredric Jameson (2004) expe sua tese sobre o ps-modernismo como lgica cultural do capitalismo tardio, o ps--modernismo apresentado como uma dominante cultural que coordena novas formas de prtica e de hbitos sociais e mentais e novas formas de organizao e de produo econmica, forjadas em meio s mudanas do capitalismo (p.18). Ao fazer tal afirmao, o autor sublinha a aproximao de seu entendimento do que supe ser a concepo de Raymond Williams1 sobre uma nova estrutura do sentimento em constituio no sculo XX. Em outras palavras, para Jameson, o conceito de ps-modernismo diz respeito a uma movimentao que ultrapassa amplamente os domnios exclusivos da arte e da esttica, expandindo-se para as demais esferas da existncia contempornea; a uma cultura que pe em interao economia e vida social e individual em cons-

    1. Raymond Williams inscreve-se entre os autores que, na segunda metade do sculo XX, redirecionaram as anlises culturais, com contribuies inestimveis para a teoria cultural, para a histria cultural e para o estudo dos novos textos e prticas produzidos pela tele-viso, rdio, imprensa e publicidade. Suas principais obras Culture and society (1958) e The long revolution (1961) abordam a complexa e profunda transformao cultural em andamento ao longo do sculo XX, que teria implicado a constituio de uma nova estrutura do sentimento. Williams um dos pioneiros dos estudos culturais contemporneos e um dos fundadores do famoso Centre for Contemporary Cultural Studies, da Universidade de Birmingham.

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    tantes combinaes e recombinaes. Nesse sentido, o ps-modernismo no engendra apenas uma nova condio existencial, ele produz novos modos de ser e de viver, outros tipos de sujeitos, pessoas ps-modernas, e uma peque-na, porm notvel, amostra disso que nossos estudos tm nos proporcionado.

    Este artigo apresenta um recorte das pesquisas2 que vimos realizando sobre as conexes entre escola e cultura contempornea, e nele procuramos mostrar, interpretar e problematizar os modos de ser de crianas que vo escola no incio deste sculo. O que fazemos aqui uma seleo dentre um conjunto bem mais amplo de achados e reflexes de pesquisa de elementos que nos ajudam a esboar um panorama mais ou menos adequado e prprio ao nosso intento de vislumbrar uma infncia ps-moderna3 em nossas escolas.

    Entendemos que a infncia uma construo cultural, social e histrica, sujeita a mudanas. Os sujeitos humanos em seus anos iniciais de vida tm sido objeto de variados discursos, com distintos propsitos, que atribuem sig-nificados aos modos de ser e viver esse perodo da existncia. Nas sociedades ocidentais, cuja matriz cultural compartilhamos, a infncia e os sujeitos infantis, tal como os entendemos ainda hoje, so uma inveno do projeto de mundo moderno, produzidos discursivamente para seus desgnios. Outros tempos, essa e outras culturas, produziram e continuam a produzir variados sentidos para a infncia e para os modos de ser criana.

    Nossos estudos se inscrevem em uma matriz de inteligibilidade que v o mundo contemporneo marcado por condies peculiares, imbricadas e impli-cadas naquilo que tem sido amplamente conhecido como cultura ps-moderna. Grandes transformaes tm alterado substantivamente as formas de vivermos hoje, e entendemos que as condies culturais contemporneas produzem infncias distintas do que se convencionou chamar infncia moderna ingnua,

    2. Trata-se dos projetos desenvolvidos por Marisa Vorraber Costa, apoiados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico CNPq , intitulados Quando o ps-moderno invade a escola: um estudo sobre novos artefatos, identidades e prticas culturais (2004-2007) e Consumo, mdia e espetculo na cena pedaggica: investigando relaes entre escola e cultura contempornea (2007-2010), e da tese de doutorado de Mariangela Momo (2007).

    3. Empregamos o termo ps-moderno para designar uma condio cultural distinta daquela do mundo moderno. Entendemos que o ps-moderno implica um modo de a cultura contempornea apresentar-se e se dispor, como tambm uma proliferao de formas de viver nela. Da a expresso infncia ps-moderna.

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    dcil, dependente dos adultos e modificam as formas das crianas viverem e habitarem o mundo. Vivenciamos um estado da cultura com implicaes contundentes da mdia e do consumo que se tem configurado diferentemente daquele da modernidade e produzido sujeitos distintos dos sujeitos modernos.

    Um dos objetivos deste artigo dar visibilidade aos modos de ser de crianas pobres que frequentam algumas escolas da periferia de uma grande cidade do sul do Brasil neste incio de sculo. Fazemos uma das leituras possveis de como os sujeitos infantis dessas escolas vivem a infncia sob as condies culturais de hoje, e apontamos a produtividade dessa cultura na inveno de uma infncia que optamos por denominar infncia ps-moderna. Procuramos mostrar como tais crianas so produzidas, formatadas, fabricadas na cultura da mdia e do consumo, compondo novos modos de ser criana e de viver a infncia.

    Estudos de autores que tratam de descrever, interpretar e problematizar a condio cultural ps-moderna, entre eles Bauman (1999, 1999a, 2001, 2005, 2007, 2007a, 2008), Lipovetsky e Roux (2005), Dbord (1997), Jameson (2004), Harvey (1993), Sarlo (2000) e Ydice (2004), ajudam a compor as lentes tericas de nossas pesquisas, junto com aqueles que realizam anlises culturais sobre as infncias, como Steinberg e Kincheloe (2001), Bujes (2002, 2009), Schor (2004), Larrosa (1998) e sobre o consumo Baudrillard (1991), Klein (2003), Fontenelle (2002), entre outros.

    Em nosso caminho investigativo, realizamos visitas e observaes nas es-colas escolhidas para as pesquisas, conversamos regularmente com as crianas, e tambm informalmente com professoras, funcionrias e mes. Fotografamos, recolhemos trabalhos realizados em sala de aula e, paralelamente, ouvimos tambm muitos relatos de professoras de outras escolas. Tudo isso foi sendo registrado e reunido. Nosso propsito foi sempre o de fazer e deixar falar, de ouvir muitas vozes; de olhar no apenas o visvel nos modos de ser das crianas escolares, mas procurar perscrutar, por exemplo, as condies que produzem seus desejos de visibilizao, assim como os investimentos sobre si mesmas para se tornarem imagem. Nesse sentido, ao longo de nossas pesquisas temos mantido um estado de alerta sobre o que circula tanto na mdia impressa e televisiva como na internet, seja em novelas, shows, esportes e outros artefatos culturais, seja em campanhas publicitrias, noticirios etc. Algumas vezes, foi a partir de observaes nas escolas que nos lanamos procura da fonte de inspirao miditica de tal ou qual manifestao na sala

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    de aula. Isso ocorreu, por exemplo, quando inmeras redaes de crianas, aludindo ao sonho de desfrutar as delcias de um quarto decorado com um edredon de corao, nos remeteram a episdios de Malhao4 em que tal objeto despontava. Por sua vez, matrias e notcias publicadas em jornais e revistas sobre crianas, escolas, mdia e suas conexes corroboraram muitas das nossas observaes, contribuindo para que pensssemos na possibilidade de ampliar a abrangncia de nossos questionamentos e reflexes. Seminrios e sesses de estudos realizados nas universidades e em algumas escolas, assim como exposies em congressos, oportunizaram a discusso dos dados por variadas ticas e a consequente matizao das anlises.

    Ao focalizar, analisar e visibilizar as formas pelas quais as crianas das esco-las vivem a infncia e constituem alunos do nosso tempo, foi possvel perceber uma consonncia com as configuraes culturais do mundo contemporneo, recorrentemente apontadas pelos autores que nos oferecem as ferramentas conceituais e analticas. Ambivalncia, efemeridade, descartabilidade, individua-lismo, visibilidade, superficialidade, instabilidade, provisoriedade fazem parte das vidas das crianas de hoje. So crianas que procuram de modo incansvel se inscrever na cultura globalmente reconhecida e fazer parte de uma comu-nidade de consumidores de artefatos em voga na mdia do momento; que produzem seu corpo de forma a harmoniz-lo com o mundo das imagens e do espetculo; que se caracterizam por constantes e ininterruptos movimentos e mutaes. So crianas que buscam infatigavelmente a fruio e o prazer e, nessa busca, borram fronteiras de classe, gnero e gerao. So crianas que vo se tornando o que so, vivendo sob a condio ps-moderna.

    O CONSUMISMO COMO EIXO ORGANIZADOR DA VIDA CONTEMPORNEA

    Nos ltimos anos, as anlises de Bauman (1999, 1999a, 2001, 2005, 2007, 2007a, 2008) nos tm ajudado a refletir sobre as mudanas nos modos de vida nas sociedades do Ps-Guerra, especialmente aquelas verificadas nas dcadas finais do sculo XX e no incio do XXI. Em seu escrutnio minucioso, o

    4. Seriado produzido e exibido no Brasil, pela Rede Globo de Televiso, desde 1995 at os dias atuais, destinado ao pblico jovem.

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    autor nos oferece perspectivas, modos de ver e pensar que permitem distinguir contornos quase invisveis e tendncias incipientes de um futuro que se trans-forma rapidamente em um presente cada vez mais enigmtico e misterioso. O fecundo e pertinente recurso metfora dos lquidos mostrou-se til para que compreendssemos o carter voltil, provisrio e instvel dos mais variados domnios da existncia contempornea, incidindo sobre nossas concepes de liberdade, segurana e medo, como tambm de identidade, amor e sociedade. Isso nos ajuda a entender o tenso estado de incompletude e de constante desejar em que nos encontramos nesse tardio estgio do capitalismo em que, conforme nos alertou Jameson (2004), tudo foi transformado em mercadoria, da natureza ao nosso inconsciente. Contudo, o que nos faz recorrer a Bauman, neste recorte da pesquisa, o fato de que ele tem insistentemente chamado a ateno para a crescente proeminncia do fenmeno do consumo e para as transformaes nas formas de consumir. Para alm de admitir que vivemos em uma sociedade de consumo, o que esse autor tem ressaltado, aproximando--se da abordagem de Baudrillard (1991), que o consumo tornou-se central nas sociedades do presente, diferentemente daquela de nossos predecessores que se caracterizava pela produo. A sociedade que moldava seus membros como produtores foi substituda por essa que os molda como consumidores. E o consumidor em uma sociedade de consumo uma criatura acentuada-mente diferente dos consumidores de quaisquer outras sociedades at aqui (Bauman, 1999, p.88).

    Em Vida para consumo, Bauman (2008) dedica-se centralmente a esmiu-ar essa gradual transformao da sociedade moderna de produtores na atual sociedade de consumidores. O consumo deixou de ser uma prtica banal do dia a dia, com razes antigas, que atravessou os sculos, para se transformar no eixo organizador das sociedades de hoje, fonte emanadora de inspirao para a modelagem de uma enorme variedade de formas de vida e de padres de relaes entre as pessoas. Na sociedade de consumidores, as pessoas so ao mesmo tempo consumidoras e mercadorias. O ponto de virada seria a revoluo consumista, em que se passou do consumo para o consumismo. Enquanto o consumo uma ocupao das pessoas, consumismo um atributo da sociedade (p.41), um arranjo social que resulta da reciclagem de vonta-des, desejos e anseios humanos, a principal fora propulsora e operativa da

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    sociedade. O consumismo surge quando o consumo assume o papel central ocupado pelo trabalho na sociedade de produtores.

    Bauman nos pe face a face com os indcios de uma verdadeira invaso e colonizao da vida humana por vises de mundo e padres de conduta inspirados e moldados pelo mercado5. O consumismo o eixo central da economia e de todo o convvio humano. Junto com outros autores que tm apontado na mesma direo e ressaltado as formas pelas quais o consumo se transformou no prprio ethos das sociedades atuais, Bauman sublinha a importncia de se recorrer a conceitos que permitam lidar com fenmenos e processos novos, entre outros, comodificao dos consumidores e como-dificao do trabalho6.

    Neste artigo, focalizamos o modo pelo qual as crianas que vivem em situao de pobreza se movimentam e se integram nesse mundo organizado no, sobre e pelo consumo. Procuramos mostrar como os sentimentos do que ser criana no mundo de hoje esto presentes tambm na vida das crianas pobres das escolas onde realizamos nossas pesquisas. Uma vez que possvel ser high tech sem ter computador em casa, ser consumidor praticamente sem dinheiro, experimentar a vida glamorizada das estrelas da mdia e da TV, sendo apenas espectador da telinha.

    Em um contexto em que a forma de nos tornarmos humanos tem sido radicalmente modificada, no qual as identidades e as subjetividades dos infan-tis so forjadas em um cenrio ps-moderno do consumo, do espetculo, das visibilidades, da efemeridade, da mdia, das tecnologias, dentre outras dimenses , pensar em como so as crianas que vo escola no incio deste sculo tem sido uma tarefa instigante e necessria, mas, em certa me-dida, quase irrealizvel. As crianas dos tempos ps-modernos esto sempre

    5. Estudos realizados em nosso grupo de pesquisa tm apontado para isso ao investigar a produtividade de alguns artefatos culturais, como o complexo Rebeldes (Flor, 2007), o seriado Trs espis demais (Igncio, 2007) e o complexo W.I.T.C.H (Prates, 2008).

    6. O termo comodificao advm da expresso commodity (palavra de origem latina cujo sentido inclui o de vantagem e convenincia), que significa bem de consumo. As expresses comodificao dos consumidores e comodificao do trabalho, empregadas por Bauman, referem-se transformao tanto dos consumidores como do trabalho em mercadorias, em bens de consumo.

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    a nos desafiar, elas nos escapam o tempo todo e falar delas lidar com suas ambivalncias e infinitas faces.

    INCANSVEIS MUTANTES

    Em um mundo que se caracteriza pela abundncia na oferta de produtos, nossa existncia depende do ritmo e da sucesso permanente dos objetos (Baudrillard, 1991). Pensamos que as crianas das escolas estudadas tm vi-vido efetivamente o tempo dos objetos. Nesse tempo, o que determina a aquisio, a obsolescncia e o descarte dos objetos so os significados a eles relacionados, aquilo que faz deles no simples objetos, mas artefatos cultu-rais. bom lembrar aqui os estudos de Klein (2003), demonstrando que a marca que d significado: ela no agrega valor ao produto, ela o valor. Da mesma forma, afirma essa autora, os produtos so mais do que isso, eles so um artefato e tambm um smbolo cultural, cones produtivos que operam sobre as subjetividades. No caso da infncia, mais do que as marcas, so os cones infantis mercantilizados que constituem o valor dos artefatos. Na medida em que esses cones se caracterizam pela provisoriedade, instantaneidade e efemeridade, as crianas que compem suas vidas, de algum modo, entre-meadas com eles tambm acabam inventando um modo de viver provisrio, instantneo, cambiante e efmero.

    Para nos referirmos s formas de vida dessas crianas, configuradas pelas incessantes e constantes mudanas entre elas as promovidas pelos artefatos culturais mercantilizados , escolhemos o termo mutantes. Embora em seu sentido e uso mais corrente ele remeta a mutaes genticas, o tomamos como uma metfora para pensar os modos de viver das crianas dentro das escolas, uma vez que mudana e movimento compem o seu cotidiano. H mudana, sempre mudana, nova mudana [] cada movimento vivido est prenhe de um novo comeo e de um novo final (Bauman, 2007a, p.88).

    Entendemos que as mutaes das crianas e seu contnuo estado de mudana envolvem movimentos. Sobre isso, Bauman (1999) comenta que, mesmo quando estamos fisicamente parados, estamos em movimento, como ao ver televiso, quando saltamos para dentro e para fora de espaos at ento desconhecidos com uma velocidade superior dos jatos supersnicos. Os corpos das crianas das escolas esto sempre em movimento, agitando-

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    -se e fazendo algum barulho. A sensao que se tem a de que vivem o que Sarlo (2000) denomina estado de televiso, um estado que no suporta o silncio e a imobilidade. A televiso compreende, cada vez mais, imagens em movimento, ritmo acelerado e ausncia de silncio7. A simultaneidade outro elemento constitutivo do movimento da televisibilidade na medida em que o zapping permite acessar vrios acontecimentos praticamente de forma instan-tnea. A simultaneidade e a instantaneidade constituem o prprio mundo das crianas, e elas fazem vrias coisas ao mesmo tempo, corroborando a ideia de Steinberg e Kincheloe (2001) de que a aprendizagem sequencial parece no mais funcionar em um tempo em que a saturao compe o cotidiano. O estado de televiso que as crianas experimentam inclui, alm da ausncia de silncio e da ininterrupta movimentao, falar constantemente de programas televisivos, cantar e danar os ltimos lanamentos de msicas e atuar com brinquedos amplamente divulgados pela mdia.

    importante sublinhar que a indstria cultural tem a uma contribuio significativa ao ampliar enormemente o acesso aos bens materiais e simblicos (neste caso CDs, DVDs e aparatos tecnolgicos de entretenimento e de lazer, como playstation, jogos eletrnicos, celulares, brinquedos, adereos etc.) me-diante oferta de verses baratas de quase todas as mercadorias desejadas. As meninas das escolas traziam suas Barbies para a sala de aula e se podia constatar que cpias de preo dez vezes menor circulavam junto com bonecas originais quase irreconhecveis pelo desgaste aps sucessivos descartes de parte de crianas consumidoras mais bem aquinhoadas. Quer dizer, o exemplar caro da boneca famosa, descartado pela filha da patroa, fazia feliz a menina pobre da escola pblica de periferia. O capital simblico conferido pela posse de uma Barbie parecia ter pouco a ver com a condio, estado ou procedncia da boneca. O que importa a conexo como cone que o sucesso na TV, no cinema, nas roupas, nas revistas. Evidncias semelhantes puderam ser ob-servadas relativamente a sucessos televisivos do mundo da msica. CDs em cpias piratas saltavam das mochilas da crianada para se ouvir e danar, nos

    7. Um exerccio de contrastar peas publicitrias televisivas veiculadas em 1960 e 1970 com as de anos recentes impressionou-nos pelo ritmo quase alucinante imprimido a estas ltimas. Igualmente, assistir desenhos infantis da programao atual das emissoras de televiso um desafio e um teste para nossa capacidade de acompanhar e compreender as tramas na rapidez com que se desenrolam.

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    recreios e intervalos, as msicas de Rebelde8 executadas pela Banda RDB. As mesmas melodias de sucesso podiam ser ouvidas nos corredores e ptios das escolas pblicas e particulares no fugaz perodo de fama de Rebelde. E o estado de televiso foi visvel por toda a parte em nossas pesquisas.

    Alm disso, ressaltamos que uma das formas de muitas crianas pobres, das escolas estudadas, participar da cultura da mdia e do consumo est relacio-nada sociedade do descarte. Ao mesmo tempo em que produz o excesso, em que rapidamente tudo se torna obsoleto, ela tambm gera os maiores ndices de falta, de privao e de pobreza. E os que se situam na condio de falta, como a maioria das crianas das escolas pesquisadas, tm oportunidade de fazer parte da cultura miditica e de consumo apropriando-se dos excessos que foram descartados. Pudemos observar em nossa pesquisa que a cultura do descartvel proporciona que meninas dessas escolas usem mochilas das princesas da Disney, sandlias da Sandy e camisetas das Superpoderosas, todos estes objetos encontrados no lixo9.

    Esses meninos e meninas no apenas imitam, mas incorporam tempo-rariamente trejeitos e adereos de top models, de astros da msica pop e de programas de televiso, de filmes, novelas, seriados e desenhos. Tais acon-tecimentos nos remetem a crianas que operam ativamente sobre a cultura miditica e, nessa ao, produzem determinadas verdades sobre si mesmas e sobre os modos de ser sujeito na contemporaneidade. E esse um fenmeno disseminado que ultrapassa as barreiras fixadas pela condio econmica. Crian-as pobres se reinventam e mudam constantemente, assim como aquelas de outras camadas da populao10.

    A utilizao da linguagem televisiva outro elemento frequente que com-pe essa mutao dos sujeitos. No perodo de nossas pesquisas, a expresso

    8. Novela produzida pela rede mexicana Televisa, exibida no Brasil pela emissora SBT durante 2005 e 2006.

    9. Muitos adultos das famlias dessas crianas, e elas prprias, trabalham como catadores de lixo nas ruas da cidade ou no processo de seleo de lixo em galpes de reciclagem situados na vila onde se localizam as escolas estudadas.

    10. Em outro artigo sobre essas pesquisas, Costa (2008) discute esse movimento dos eus que investem sobre si mesmos, aprimorando-se em exticas performances. Refere-se a estu-dantes estranhos [que] so, antes de tudo, consumidores-simulacros constitudos em um trnsito constante entre o desejo de ter e a possibilidade de parecer ter (p.285).

    Figura 157 Correntes 3

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    Vem c, eu te conheo? utilizada pela personagem Laura (atriz Maria Clara Gueiros) do programa Zorra total, transmitido pela Rede Globo, fazia parte do vocabulrio utilizado diariamente pelas crianas em distintas interaes sociais no ambiente escolar. Segundo Sarlo (2000), viver em um estado de televiso faz que o domnio e a utilizao cotidiana das ferramentas televisivas (as ma-neiras de falar, as piadas, as condutas dos cones etc.) assegurem certo tipo de pertencimento. As crianas pareciam viver em contnuo estado de ansiedade e movimento na busca por pertencer a uma cultura televisiva amplamente disseminada e compartilhada. Foram vrias as situaes registradas em que o domnio da linguagem da televiso fez parte do cotidiano de suas vidas. Ao mesmo tempo, cabe lembrar que a linguagem televisiva, os significados, cones infantis e artefatos que ela pe em circulao mudam o tempo todo, pois se caracterizam pela efemeridade, o que faz que as crianas tambm mudem constantemente o jeito de falar, os personagens que imitam, os assuntos e os desejos que expressam, os interesses que tm, os artefatos que portam, as pessoas s quais se vinculam e o prprio corpo, como discutiremos na conti-nuidade deste artigo. Fazem parte desse estado de movimento, velocidade e efemeridade prticas presentes j h algum tempo nas civilizaes ocidentais, como seguir modas ou tendncias do momento na forma de se vestir, de usar adereos, de cortar e/ou pintar os cabelos e as unhas.

    Montar lbum de figurinhas de personagens de programas televisivos ou de filmes, bem como ler e assistir as histrias correspondentes so prticas cotidianas das crianas dentro do espao escolar, e que tambm mudam o tempo todo. Como as demais, so como ondas avassaladoras e passageiras. H um enorme investimento no preenchimento do lbum, acontecimento central de um curtssimo espao temporal de suas vidas. Completado, ou nem isso, ele imediatamente descartado e, associado aos fenmenos miditicos, predominantemente os da televiso, facilmente substitudo por outro lbum ou por outra prtica acionada e coordenada pela cultura da mdia e do consumo. Nesse processo, as crianas compem pequenas sociedades, que tambm se caracterizam pela efemeridade, para compartilhar recursos financeiros. A necessidade de pertencimento a uma cultura global e mercantil faz que as crianas pobres das escolas estabeleam vnculos superficiais e temporrios com outras crianas, a fim de obter determinados artefatos. Associam-se para conquistar algo que lhes possibilite a visibilidade em relao ao que

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    considerado publicamente valioso. Esse foi o caso da sociedade de quatro crianas para conseguir comprar o lbum de figurinhas dos personagens da novela Rebelde; a cada dia, uma das crianas associadas levava o lbum para casa. A improvisao, a fabricao dos prprios artefatos desejados muitas vezes utilizando materiais disponveis na escola, como folhas de ofcio, tesou-ra, cola e fita adesiva , so outras formas utilizadas pelas crianas, alm de emprstimos ou disputas por meio dos jogos, para poderem fazer parte dos circuitos culturais de desejo e consumo instaurados pela mdia, e que tambm se caracterizam pela provisoriedade.

    As crianas que so visveis, valorizadas, credenciadas em seu universo so aquelas que conseguem portar determinados artefatos, cujos significados repercutem em escala global, com vigncia temporria no panorama cons-tantemente renovado da cultura do consumo. As crianas vivem o mundo das visibilidades no qual, mais do que ter, importante parecer: parecer ter, parecer ser. Radiofone nos ouvidos, mobies nas cinturas, celulares em cima das carteiras, calculadoras nas mos e relgios nos pulsos. Crianas rodeando os poratdores de tais objetos, propondo trocas e emprstimos podem ser observadas com grande frequncia. Objetos tecnolgicos geralmente propor-cionam prestgio para quem os carrega, bem como promovem a inscrio em uma cultura globalmente reconhecida. No entanto, nas vrias vezes em que nos aproximamos para dizer que gostaramos de fotografar tais artefatos, seus donos trataram de esclarecer que nem todos funcionavam. Poucos dos objetos que portavam haviam sido experimentados em funcionamento. A maioria das crianas s trazia consigo porque haviam sido descartados por algum e no funcionavam mais. Prestavam esses esclarecimentos somente quando indagadas; usualmente assumiam posturas de quem utiliza esses objetos em bom estado, colocando o rdio no ouvido como se estivessem ouvindo msica, digitando os nmeros na calculadora na hora de fazer as contas ou parecendo ter um celular que funciona.

    Observamos que mesmo uma criana que no tem saneamento bsico em casa capaz de saber detalhes sobre o uso e o funcionamento de note-books, celulares e iPods tanto quanto adultos ou quanto crianas de condies econmicas previlegiadas. Aprendem na mdia (principalmente televisiva) e na vida pelas metrpoles a dominar uma certa gramtica da cultura tecnolgica que empregam para pensar e viver. So crianas high tech por um certo tipo

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    de impregnao cultural. Esto sempre obtendo novas informaes sobre o universo tecnolgico, o que marca seu modo de viver por uma constante mutao. Muitas delas ofereciam-se e desejavam permanecer o tempo todo como monitoras voluntrias do uso dos computadores existentes em labora-trios de informtica de algumas escolas pblicas. Outras se familiarizam com a tecnologia sendo frequentadoras assduas das lan houses singelas dos bairro e vilas perifricas que habitam.

    A sociedade de consumo capacita todos, inclusive as crianas pobres investigadas em nossas pesquisas, para que sejam consumidores. Parece que as crianas desenvolvem prontido para o consumo. Elas sabem dos ltimos lanamentos de brinquedos, das ltimas invenes tecnolgicas, de filmes que passaro no cinema, dos ltimos produtos postos venda (de alimentos a vesturio). Uma das nossas surpresas foi a rapidez com que a paixo pelo grupo Rebeldes e as imitaes de suas performances foram substitudas pelo fascnio despertado pelo novo sucesso miditico Tropa de elite. Em poucos dias, simulacros dos novos cones, agora no mais cantores e msicos, mas policiais de elite, comearam a se multiplicar nos ptios e salas de aula. Uma nova onda perpassa com fugacidade o espao escolar.

    Isso faz pensar a respeito de uma das caractersticas do consumidor apontada por Bauman (1999): a capacidade de esquecimento, de no manter o interesse em um determinado artefato ou prtica por muito tempo. Nas escolas as crianas procuram usufruir ao mximo, da forma que podem, que conseguem, o que o momento presente oferece. Nessas prticas cambiantes, juntamente com objetos, desejos e identidades, as crianas parecem ser o prprio vrus mutante. Uma criana vai contaminando outra com prticas aprendidas na mdia (como cantar msicas de sucesso, consumir determinados cones, alimentos ou produtos, praticar certos jogos, completar lbuns etc.). nesse sentido que elas so o prprio vrus que provocaria a mutao nelas mesmas e em seus colegas.

    Bauman chama ateno para esse contnuo estado de mudana, re-correndo metfora dos lquidos para se referir ao mundo e s sociedades lquido-modernas. Ela tambm se aplica vida das crianas contemporneas.

    Os fluidos se movem facilmente. Eles fluem, escorrem, esvaem-se,

    respingam, transbordam, vazam, inundam, borrifam, pingam; so

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    filtrados, destilados; diferentemente dos slidos, no so facilmente conti-

    dos contornam certos obstculos, dissolvem outros e invadem ou inundam

    seu caminho. (2001, p.8)

    Ele argumenta ainda que as descries dos lquidos so como fotos instantneas e que por isso mesmo precisam ser datadas (Bauman, 2001). Se os lquidos assumem uma forma em um determinado momento e em outro j configuram uma outra, isso tambm parece acontecer com muitas das crian-as das escolas estudadas. Em alguma medida, elas parecem possuir algumas caractersticas dos fluidos, como essa de se metamorfosear os corpos, os desejos, as condutas. Para isso, sem dvida, contribui um fantstico e inexau-rvel repertrio cultural de possibilidades. Pensando com Deleuze e Guattari (1995/1997), poderamos dizer que suas prticas de vida so expresses de mltiplos e incessantes agenciamentos.

    UMA IMAGEM PARA EXISTIR NO MUNDO DA VISIBILIDADE E NO PALCO ESCOLAR

    Em um mundo nomeado e entendido por Dbord (1997) como socie-dade do espetculo, as crianas das escolas que investigamos produzem os corpos para serem vistos no palco escolar. Pensamos que a escola tem sido mais um dos lugares, como a internet e tantos outros, em que possvel se tornar visvel. para a escola que as crianas ps-modernas vo diariamente, e para expor nesse palco que elas produzem seus corpos espetacularizados. Um dos elementos que compem o espetculo o pblico, e para que o espetculo acontea necessrio ser visto, apreciado ou criticado. A escola parece ser um local privilegiado para isso, pois l circulam variados pblicos, os pares (outros corpos-espetculo), os professores e professoras, os pais de alunos, os funcionrios. Como argumenta Mirzoeff (2003), observar imagens (no caso o corpo das crianas) uma experincia coletiva, como o cinema, e no uma atividade individual. Esse fenmeno peculiar em que as crianas procuram compor imagens de si mesmas produto desse universo. Refora o argumento da escola como palco, a forma pela qual ela tem sido crescen-temente utilizada para visibilizar determinados projetos e marcas de grandes corporaes, tornando-se cada vez mais um espao de referncia para inicia-

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    tivas da sociedade civil articuladas com grandes empresas desejosas por aliar sua imagem a aes de cunho social11.

    Esse funcionamento da escola como um palco est tambm relacionado s condies culturais do mundo de hoje, um mundo, conforme temos argu-mentado, cada vez mais espetacularizado e povoado por imagens, compondo nossas experincias cotidianas com vivncias de uma cultura intensamente visual (Mirzoeff, 2003). De acordo com Fontenelle (2002), em uma sociedade que se tornou miditica, as imagens destinam-se a ser consumidas e no apenas contempladas, como era o caso, por exemplo, das imagens sacras. Consu-mimos as imagens que nos so oferecidas para construirmos a nossa prpria imagem, pois sabemos que estar na imagem existir (p.23). As imagens que passam por ns, e pelas quais passamos, atuam tanto na produo como na articulao e negociao de significados. Elas produzem identidades, instauram verdades e constituem sujeitos. Nesse sentido, a escola tem funcionado tanto como palco por onde desfilam inmeras imagens que compem uma cultura altamente miditica e de consumo, como por onde desfilam corpos-espetculo. Parece que a escola, usualmente centrada em pedagogias da escrita e da ora-lidade, aos poucos se constitui como mais um lugar em que operam pedago-gias visuais, ensinando sobre imagens desejveis, sobre o que in e o que out nos modos de produzir o prprio corpo. Prestar ateno aos corpos das crianas pode fornecer elementos sobre como elas se esto tornando sujeitos e de como esto consumindo o mundo que a est, e sendo consumidas por ele. Mirzoeff (2003) defende que a cultura visual uma maneira de estudar a vida cotidiana ps-moderna por meio da perspectiva do consumidor mais do que por meio da perspectiva do produtor. Destacamos que o consumo aqui entendido no apenas como relativo obteno de bens materiais, mas tambm, e principalmente, de significados e representaes que promovem desejos e processos de identificao.

    Observamos que as crianas ps-modernas desejam incessantemente fazer parte do mundo das visibilidades, querem aparecer, para poder ser. Na sociedade de consumidores, cada sujeito est engajado em prticas de empreendedorismo dedicadas a transformar a si prprio em uma mercadoria vendvel, consumvel. No difcil, assim, entender por que a maior parte

    11. Abordamos essa questo no artigo A convenincia da escola (Costa, Momo, 2009).

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    das crianas ambiciona ser famosa, que significa ser notada, comentada, desejada. Quer dizer, algo para ser consumido, mais uma commodity da sociedade de consumidores, como analisa Bauman (2008). A produo do prprio corpo de acordo com os parmetros de beleza e juventude postos em circulao pela mdia e pelo consumo parece ser uma das possibilidades para tornar-se um bem a ser consumido. Assim, o que est em voga na mdia do momento e na cultura do consumo parece ser indissocivel dos corpos das crianas das escolas, que incansavelmente tentam a transformao de si prprios em algo vendvel, consumvel e desejvel. Registramos, inclusive, discusses entre as crianas, que demonstram o quanto o corpo central para a possibilidade de se ter dinheiro, ser visvel e ser feliz. Em uma atividade observada na Educao Infantil, a professora props que as crianas desenhas-sem o que gostariam de ser quando crescessem. Um menino desenhou-se como modelo, desfilando de sunga em uma passarela. Quando questionado por outros meninos se desfilaria s de sunga, ele respondeu: claro que sim, se eu desfilar de sunga, eu vou ganhar mais dinheiro, e a discusso seguiu acalorada entre os meninos que queriam saber quem mais desfilaria de sunga.

    Quando Sarlo (2000) considera que, na contemporaneidade, o consumo se organiza em torno da valorizao da juventude, destaca em relao ao corpo para o qual diariamente so lanados produtos e procedimentos que preten-dem intervir nele para, por um lado, adiar a velhice dos adultos e, por outro, antecipar a juventude das crianas. Tais produtos e procedimentos pretendem realizar no corpo uma metamorfose programada, prevista, desejada, produzi-da e imposta. Diferentemente do passado, quando o corpo era considerado como algo dado por Deus, atualmente os corpos so planejados a partir dos desejos expressos em uma tela de computador (vale lembrar o polmico caso de Michael Jackson). Tais desejos so construdos para que sonhemos com as inmeras possibilidades de projetar e transformar nossos corpos. Vivemos em um mundo em que as novidades de consumo relativas ao corpo so dirias. Artefatos e procedimentos so descartados quase sem uso e imediatamente substitudos pelas prximas novidades, tambm efmeras, causando a sensa-o de que nunca estamos suficientemente atualizados quando o assunto o corpo. Quer dizer, em relao ao corpo experimentamos a mesma sensao de incompletude e vertigem que temos em relao s incessantes novidades tecnolgicas. O apelo miditico e comercial institui modas relativas ao corpo

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    que o percorrem e exploram de ponta a ponta (anis para os dedos dos ps e cabelos multicoloridos, recortados e esculturados so exemplos disso), apro-veitando todo o espao comercial do corpo (Sarlo, 2000).

    Em nossas pesquisas, registramos inmeras situaes que evidenciam o quanto as crianas esto ininterruptamente no apenas interessadas mas de-dicadas e aplicadas s novidades relativas ao corpo postas em circulao pela indstria cultural. Prticas como tatuar-se, usar piercings, correntes e pulseiras de silicone, colorir ou descolorir os cabelos, cort-los de modo a inscrever na cabea signos de cones da mdia como o Homem-Aranha ou a Nike , aplicar purpurina nas plpebras, pintar as unhas com cores vibrantes, maquiar--se, usar roupas, calados e acessrios que exponham heris miditicos so uma constante em suas vidas, assim como mudam com uma velocidade verti-ginosa. Elas realizam uma verdadeira proeza desfazendo-se de um corpo e providenciando outro. Demonstram uma fantstica habilidade para reprojetar constantemente sua imagem, assim como o modo de estar e viver no mundo, descartando o que j no est em voga e se embrenhando na aquisio de novas possibilidades para o corpo, to intensas quanto fugazes.

    As habilidades para se inscrever neste universo tambm dizem respeito forma pela qual adquirem o aparato para compor o corpo desejado. Esse foi o caso de uma criana que tirou a corrente do cachorro para coloc-la no pescoo a fim de estar de acordo com o visual de pagodeiro que vigorava na poca, e outro que solicitou que a av doasse uma corrente antiga que possua para que ele pudesse exibi-la incorporada ao visual de seu corpo. Alm desses, registramos situaes em que a escola parecia ser o templo do consumo que forneceu o material necessrio para a composio do visual desejado para as crianas que no podiam compr-lo. Como evidncia disso, uma criana pediu para levar um pedao de papel crepom para extrair em casa a tinta que permitiria pintar o cabelo; outra criana pegou um brinco de argola da caixa de fantasias para colocar no nariz e fazer de conta que era piercing; e meninas que pintavam as unhas de vrias cores com canetas hidrocor ou tinta tmpera.

    As tatuagens mesmo sendo adesivas so utilizadas pelas crianas para promoverem espectadores, pois todos querem ver a imagem do Batman ou dos Rebeldes. Do mesmo modo uma camisa de Homem-Aranha, muito colorida e exibida em movimentos que imitam o personagem do filme, pode

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    convocar espectadores no ambiente escolar. SantAnna, ao abordar a produo dos corpos contemporneos, diz que uma tendncia :

    transformar todas as partes do corpo em imagens de marca e num marketing

    privilegiado do eu. Por conseguinte, o desejo de investir nas imagens corporais

    torna-se proporcional vontade de criar para si um corpo inteiramente pronto

    para ser filmado, fotografado, em suma, visto e admirado (2002, p.106)

    Em nossas pesquisas, os corpos das crianas pareciam estar sempre prontos para se tornarem visveis, para se transformarem em uma imagem espetacular. Tais crianas vivem no imprio das imagens e se constituem como uma imagem composta por determinadas marcas, determinados cones de corporaes do entretenimento, assim como propagam tudo isso, tornando-se outdooors ambulantes (Bujes, 2009). Corpos que so superfcies de inscrio, como diz Santos (2007), onde as marcas remetem a significados desejveis que as afastam de um universo de pobreza, carncia, dor e tristeza. Tambm concordamos em nossa anlise com o estudo de Schor (2004), no qual a autora chama a ateno para o fato de que a maioria das crianas americanas acredita que suas roupas e as marcas correspondentes dizem quem elas so.

    Crianas ainda muito pequenas manifestam preocupaes com seus corpos que seriam impensveis ou inaceitveis em outros tempos. Como no caso observado da menina de 5 anos, de uma das escolas, que ficou quase 15 minutos em dvida entre comer uma necessidade vital ou ficar com os lbios pintados uma necessidade esttica. Batons, esmaltes, perfumes e acessrios como brincos, anis, colares, pulseiras, culos de sol e presilhas para cabelo so uma constante entre as meninas das escolas. Como no so todas que possuem esses objetos to valiosos, a dona do esmalte, por exem-plo, rodeada por vrias colegas na hora do recreio, no refeitrio e durante o perodo de aula. Tais artefatos so constantemente negociados, na forma de trocas Vamos trocar, tu me d a sandlia da Barbie e eu te dou o chinelo das Poderosas? , emprstimos e compartilhamentos Se tu no me emprestar o batom, eu no sou mais tua amiga , ou at mesmo roubos: Sora, eu deixei o meu batom na mochila e algum roubou.

    E convm ressaltar que os cuidados com o corpo no so preocupao exclusivamente das meninas. Os garotos so igualmente caprichosos quanto a

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    isso, sendo usual encontr-los com piercings e outros adereos como anis, pul-seiras e correntes, alm de unhas coloridas, cortes, estilos e tinturas nos cabelos.

    So os corpos-espetculo circulando no mundo das visibilidades, satura-do de imagens, compondo a cultura de consumo altamente visual e, de certa forma, levando esse mundo para dentro da escola. So corpos que parecem experimentar a vida glamorizada das estrelas da TV, corpos que desfilam espetacularmente pelos espaos da escola, quando cantam e danam para o pblico composto por seus pares.

    UMA INFNCIA SEM FRONTEIRAS

    Demarcar fronteiras algo que requer estabelecer diferenas. No en-tanto, como discute Cohen (2000), as diferenas so arbitrrias e flutuantes, mutveis e no essenciais. Nesse ponto importante considerar os argumentos de Bauman (1999a) ao afirmar que a busca da ordem estabelecer diferenas, classificar, nomear prpria do mundo moderno. A modernidade, argumenta o autor, significa o horror mistura (porque a mistura no forneceria subsdios para prever como ir adiante) e a obsesso por separar. E essa constante busca por separar, nomear, classificar, estabelecer diferenas que gera a ambivaln-cia. Dito de outra forma, por mais que se procure encontrar um lugar para cada coisa, sempre h algo que fica fora de lugar, que no se encaixa em lugar algum ou que se encaixa em vrios lugares ao mesmo tempo. Por essa razo, argumenta o autor, a ambivalncia a principal angstia da modernidade e o cuidado mais preocupante. Portanto, se a ambivalncia o prprio refugo da modernidade (Bauman, 1999a, p.23), pode-se dizer que vivemos um tempo em que tem sido produzido muito mais refugo, j que muito mais coisas tm ficado de fora dos sistemas classificatrios.

    Se pensarmos em relao infncia, observamos que h mais crianas que no se enquadram nos sistemas classificatrios modernos, que no cabem em lugar algum na ordem estabelecida, ou cabem em vrios lugares ao mesmo tempo, do que crianas que se encaixam perfeitamente nas ordens vigentes, nas cartografias conhecidas. Consideramos que a infncia ps-moderna se instala na ambivalncia na medida em que polivalente, plurifacetada , minando o pensamento binrio do isto ou aquilo e podendo ser isto, aquilo e mais aquele outro

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    Ainda em relao a essa condio ambivalente, Lipovestsky e Roux (2005), ao estudarem as modificaes que ocorreram com gastos em artigos de luxo, diz que na modernidade o luxo pretendia principalmente demarcar as diferenas de classe, e que na contemporaneidade, embora em certa medida ainda estabelea tais distines, ele est mais relacionado ao deleite, satisfa-o, ao cuidado de si, fruio e ao prazer. Desse modo, o luxo muitas vezes mistura estilos de diferentes grupos, diferentes categorias de objetos (peas carssimas com outras muito baratas), e se caracteriza pela mobilidade. Isso nos remete novamente para o consumo que se organiza muito mais em torno da busca por emoo, por sensaes pessoais, por usufruir as delcias da vida, do que um consumo que pretende marcar a distino social hierrquica ou outras diferenas. Nesse sentido, vivemos, em certa medida, o borramento entre as fronteiras do que se convencionou denominar classe social, e a infncia tambm vivida nessa dissoluo de fronteiras. O que nos permite comear a pens-la como uma infncia global, embora saibamos que os riscos dessa afirmao sejam imensos e demandem uma consistente e complexa argumentao que no pretendemos desenvolver nos limites deste texto12.

    Encontramos puxando mochilas de rodinhas da Barbie, das Meninas Superpoderosas e do Homem-Aranha tanto crianas de uma escola particular renomada, frequentada por estudantes de elevado poder aquisitivo, quanto crianas de escolas da vila, mesmo que tais mochilas provavelmente sejam artigos com preos bem distintos. Ou seja, a fruio uma das dimenses que caracteriza a cultura ps-moderna uma das condies que possibilita que as fronteiras sejam esmaecidas, borradas, ultrapassadas. Parece que cada vez mais a maior parte das pessoas, entre elas as crianas pobres das escolas, busca o prazer, o gozo, o deleite, a fruio, e essa busca no respeita fronteiras. O argumento de Bauman (2005) que, em uma sociedade na qual a norma consumir, os no consumidores so vistos como seres que estragam a paisa-gem, causam medo, porque seriam infelizes, perigosos e marginais. Pensamos que se pode afirmar que muitas das crianas ao conseguir, de alguma forma, portar os mesmos cones do consumo, compartilhar os mesmos significados, desejos e anseios de vida das crianas de outros grupos da hierarquia social

    12. Abordamos essa questo no artigo Para se pensar a globalizao da infncia e da juventude escolar: um olhar sobre o consumo (Costa, Momo, 2009a).

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    deixam, em alguma medida, de ser o outro, o diferente, o amedrontador, o anormal. A produo massificada da indstria cultural traz como consequncia certo tipo de incluso.

    E importante destacar que esse borramento das fronteiras da estratifi-cao social (mesmo que tal borramento no configure mais do que o tempo de uma performance) ocorre em duplo sentido, uma vez que a busca pela fruio que prevalece. Tanto as crianas das classes populares passam a ter acesso a bens e mensagens que antes eram especficos de integrantes de grupos economicamente privilegiados, quanto esses grupos passam a compartilhar os bens, mensagens e significados que antes eram tomados como prprios desses outros pobres.

    Em anos recentes, quando o funk foi um dos estilos musicais mais can-tados e danados pelas crianas e jovens das escolas, circulou tambm pelas camadas economicamente mais privilegiadas da populao brasileira. Como diz a letra O funk do meu Rio se espalhou pelo Brasil/At quem no gostava, quando viu, no resistiu13.

    Em um mundo em que tudo muda muito rapidamente, em que artefatos, sentimentos e relacionamentos pessoais so fugazes, fruir, ter prazer, algo que se quer para hoje, para agora. Resistir a um estilo musical, por exemplo, pode significar a perda da oportunidade de viver momentos fulgurantes de extremo prazer porque, em poucos instantes, esse estilo pode j no mais estar associado aos significados que faziam dele algo especial, e as pessoas que o danam podem j estar fazendo outras coisas, movimentando-se em outras cadncias e sob novas inspiraes.

    Embora concordemos com Ydice (2004) que a diferena e no a homogeneizao que difunde a lgica prevalecente da acumulao (p.50), e que as estratgias de mercado se utilizam das diferenas para promover o consumo, pensamos que cada vez mais a explorao comercial (no caso o funk) do que era uma diferena acaba por promover uma espcie de homoge-neizao cultural e a prpria dissoluo da diferena inicialmente explorada.

    No que se refere ao consumo infantil, so muito comuns os investi-mentos no sentido de promover/explorar as diferenas relativas a gnero

    13. Msica Glamurosa (disponvel em: http://www.allthelyrics.com/forum/lyrics-translation/11424--help-please-translate-in-german-or-englisch.html; acesso em: 18 maio 2007).

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    sexual. No caso das escolas que investigamos, tambm muito frequente a distino dos gneros por meio do consumo de determinados cones e artefatos. Os corpos das crianas so compostos, em sua grande maioria, por artefatos que promovem a identificao com o masculino ou com o feminino. Ao mesmo tempo, porm, as infinitas possibilidades de consumo que o mundo contemporneo oferece comeam a promover a utilizao de artefatos que eram usualmente associados a um gnero anis para me-ninas, por exemplo pelo gnero oposto no caso, meninos com anis, brincos, cabelos pintados etc.

    De acordo com Louro (2001), pensar o gnero implica entend-lo como um processo que no diferencia apenas homens de mulheres, mas tambm homens de homens e mulheres de mulheres. Nesse sentido, observamos que artefatos e prticas que eram tidos como correspondentes ao gnero feminino passam a ser apropriados pelos meninos, justamente no intuito de se diferenciar de outros meninos e de se inscrever nas ondas da mdia. Isso acaba, em alguma medida, por borrar as fronteiras entre os gneros. Meninos que usam anis em vrios dedos, correntes e brincos, pintam as unhas e o cabelo produzem uma outra forma de ser menino em que as preocupaes e os cuidados com o corpo so centrais. De certa maneira, esses meninos esto em sintonia com o mundo em que a centralidade do consumo se expressa e organiza em torno da esttica, da beleza, do estilo e da visibilidade.

    Uma outra dissoluo de fronteiras que tem constitudo a infncia das crianas que vo escola no mundo contemporneo diz respeito gerao. At agora temos tratado de infncia e de crianas sem definir a idade dos sujeitos aos quais nos referimos. Nossa opo por no demarcar a faixa--etria do que chamamos de infncia ps-moderna diz respeito a vrios fatores. Um deles que, como argumenta Sarlo (2000), o que pode ser entendido por juventude (ou infncia) em uma poca histrica pode j no ser considerado juventude (ou infncia) em outro momento histrico. No a idade que define a infncia, mas os entendimentos, os significados, as prticas que esto a ela relacionadas. Dessa forma, pensamos que um dos modos de entender a infncia ps-moderna justamente considerando o borramento das fronteiras de gerao.

    Em um certo perodo de nossas pesquisas, as pulseirinhas de silicone tiveram tamanha disseminao que podamos encontrar crianas muito peque-

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    nas, bem como jovens e at mesmo seus pais, usando-as. Essa uma cultura do consumo (no apenas de bens materiais, mas especialmente de significados) que opera de tal forma que no mais possvel dizer o que seria especfico de uma gerao ou de outra. As fronteiras entre o que seria ou no prprio da infncia e prprio do mundo adulto se desvanecem. Parece-nos que cada vez mais as crianas esto se confundindo com adultos, e os adultos se con-fundindo com crianas nas infinitas possibilidades de consumo que o mundo contemporneo nos oferece.

    Essa dissoluo de fronteiras de gerao tambm diz respeito ao modo de falar e manifestar emoes. As crianas das nossas escolas, inclusive as que frequentavam a Educao Infantil, em vrias situaes empregaram uma lingua-gem cheia de grias, inclusive pornogrficas, usualmente tidas como prprias de jovens e adultos, e no do universo infantil.

    Costa e Born (2009), com base em dados de pesquisa sobre o uso do celular por crianas, afirmam que o artefato tem promovido o desaparecimento da infncia como uma fase de dependncia, de insegurana e de ignorncia, aproximando as crianas do mundo adulto. A maior parte delas considera-se dependente do celular por ser este a melhor forma de ter e manter amigos, com os quais se aconselham, desabafam e compartilham o cotidiano. Grande parte delas declara usar celulares para informar-se, jogar, assistir vdeos e ouvir suas bandas favoritas, livres da interferncia dos adultos. Os meninos, por sua vez, a partir dos 6 anos j usam os celulares para ampliar informaes relativa-mente quele espao privativo dos adultos e interdito infncia moderna o da sexualidade.

    Cada vez mais crianas muito pequenas comportam-se como se fossem adolescentes ou jovens. Segundo Sarlo (2000), esse desejo de ser jovem, ou parecer jovem, diz respeito ao fato de que a infncia j no proporcionaria uma base adequada para a felicidade, e a juventude comportaria a vantagem de trazer cena a sexualidade ao mesmo tempo em que no preciso arcar com as responsabilidades de uma vida adulta. A infncia quase desapareceu, encurralada por uma adolescncia precocssima. A primeira juventude se pro-longa at depois dos 30 anos. Um tero da vida se desenvolve sob o rtulo de juventude, to convencional quanto quaisquer outros rtulos (Sarlo, 2000, p.30).

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    CRIANAS ESCOLARES PS-MODERNAS: UMA CARTOGRAFIA IMPOSSVEL

    Se um mundo ordeiro um mundo no qual a gente sabe como ir adiante (ou, o que vem a dar no mesmo, um mundo no qual sabemos como descobrir com toda certeza de que modo prosseguir) (Bauman, 1999a, p.10), o mundo ps-moderno parece ser o oposto disso, o imprio da desordem. No existe uma nica ordem, mas muitas, infindveis; prevalece a ambivalncia, a polivalncia, e cada vez mais difcil estabelecer uma ordem onde parece j no haver fronteiras. Cada vez mais crianas, constitudas por novas e variadas prticas culturais, adentram nossas escolas, causando inquieta-es, desestabilizando e incomodando, porque, de certa forma, j no mais possvel classific-las e enquadr-las em uma cartografia. Sem essa garantia de ordem e estabilidade, por longo tempo assegurada pelos esquadrinhamentos pedaggicos modernos, educadores dos tempos ps-modernos esto insegu-ros, sem rumo, confusos, quase imobilizados.

    Nesse ponto conveniente relembrarmos a afirmao de Jameson, mencionada no incio do artigo, de que o mundo ps-moderno est forjando pessoas ps-modernas. As novas tecnologias tm sido cruciais nos arranjos inusitados que se esboam entre economia, vida social e vida privada, em-baralhando esses domnios em infindveis circuitos de realimentao. Muitos autores tm sublinhado a centralidade das tecnologias na reconfigurao da vida e dos sentimentos da nova era. Elas esto compondo novas formas de cognio infantil e produzindo uma sofisticada compreenso e codificao da experincia humana em novas linguagens. Mas aqui convm lembrar a afirmao de Deleuze (1992) de que fcil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de mquina, no porque as mquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as formas sociais capazes de lhes darem nascimento e utiliz--las (p.223). O numeroso e sempre crescente contingente de crianas ps--modernas que circula por nossas escolas composto de seres aptos a operar com essa nova gramtica cultural que para ns adultos ainda difcil decifrar. Seres estranhos, ameaadores e incompreendidos nos olham nos ptios, cor-redores e salas de aula. A infncia como a fase da inocncia, da dependncia, da insegurana e da ignorncia dos segredos do mundo e da vida parece que est desaparecendo rapidamente. No lugar dela instalam-se as infncias dos

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    tempos ps-modernos, insondveis, mltiplas, instveis, paradoxais, selvagens, incontrolveis, enigmticas.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    Recebido em: julho 2009

    Aprovado para publicao em: junho 2010