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CÂMARA DOS DEPUTADOS DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES TEXTO COM REDAÇÃO FINAL COMISSÃO DE RELAÇÃO EXTERIORES E DE DEFESA NACIONAL EVENTO: Seminário N°: 738/2002 DATA: 13/8/2002 INÍCIO: 14h16min TÉRMINO: 18h43min DURAÇÃO: 4h27min TEMPO DE GRAVAÇÃO: 4h27min PÁGINAS: 103 QUARTOS: 50 REVISÃO: Andréa Macedo, Anna Augusta, Cláudia Castro, Eliana, Lia, Liz, Marlúcia, Monica, Odilon, Paulo Domingos, Rosa Aragão SUPERVISÃO: Ana Maria, Cláudia Luíza, Estela, Graça, J. Carlos, Joel, Luci, Márcia, Maria Luíza CONCATENAÇÃO: Débora DEPOENTE/CONVIDADO – QUALIFICAÇÃO LUIS FERNANDES – Professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC), do Rio de Janeiro e Diretor-Científico da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ. OLIVEIROS S. FERREIRA – Professor de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC._ HÉLIO JAGUARIBE – Professor do Instituto de Estudos de Políticas Sociais – IEPES. ANTÕNIO CELSO ALVES PEREIRA - Professor da Universidade Veiga de Almeida. LUIZ AUGUSTO DE ARAÚJO CASTRO – Embaixador, Subsecretário-Geral de Assuntos Políticos Multilaterais do Ministério das Relações Exteriores. SUMÁRIO: Seminário Política Externa do Brasil para o Século XXI. Mesa 2. Tema: “A Reconfiguração da Ordem Mundial no Início do Século XXI.” Mesa 3. Tema: “Perspectivas das Relações do Brasil com as Organizações Internacionais.” OBSERVAÇÕES

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CÂMARA DOS DEPUTADOS

DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

TEXTO COM REDAÇÃO FINAL

COMISSÃO DE RELAÇÃO EXTERIORES E DE DEFESA NACIONALEVENTO: Seminário N°: 738/2002 DATA: 13/8/2002INÍCIO: 14h16min TÉRMINO: 18h43min DURAÇÃO: 4h27minTEMPO DE GRAVAÇÃO: 4h27min PÁGINAS: 103 QUARTOS: 50REVISÃO: Andréa Macedo, Anna Augusta, Cláudia Castro, Eliana, Lia, Liz, Marlúcia, Monica,Odilon, Paulo Domingos, Rosa AragãoSUPERVISÃO: Ana Maria, Cláudia Luíza, Estela, Graça, J. Carlos, Joel, Luci, Márcia, MariaLuízaCONCATENAÇÃO: Débora

DEPOENTE/CONVIDADO – QUALIFICAÇÃO

LUIS FERNANDES – Professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC), do Rio de Janeiro eDiretor-Científico da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Riode Janeiro – FAPERJ.OLIVEIROS S. FERREIRA – Professor de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católicade São Paulo – PUC._HÉLIO JAGUARIBE – Professor do Instituto de Estudos de Políticas Sociais – IEPES.ANTÕNIO CELSO ALVES PEREIRA - Professor da Universidade Veiga de Almeida.LUIZ AUGUSTO DE ARAÚJO CASTRO – Embaixador, Subsecretário-Geral de AssuntosPolíticos Multilaterais do Ministério das Relações Exteriores.

SUMÁRIO: Seminário Política Externa do Brasil para o Século XXI. Mesa 2. Tema: “AReconfiguração da Ordem Mundial no Início do Século XXI.” Mesa 3. Tema: “Perspectivas dasRelações do Brasil com as Organizações Internacionais.”

OBSERVAÇÕES

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CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINALNome: Comissão de Relação Exteriores e de Defesa Nacional - SeminárioNúmero: 0738/02 Data: 13/8/2002

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O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Solicito aos presentes que se

acomodem em seus lugares.

Antes de iniciarmos os nossos trabalhos, informo que a emissão do certificado

de participação neste seminário só será estendida aos que assinarem, durante todo

o período de sua realização, as listas de presenças pela manhã e pela tarde. Esta é

a decisão dos organizadores.

Informo ainda que há, na entrada do plenário, publicações do IPRI, da

Fundação Alexandre de Gusmão e de outras editoras universitárias. Solicito aos

presentes que mantenham seus celulares desligados.

Agradeço ao Brigadeiro Marco Antônio Oliveira, do Comando do Estado-Maior

da Aeronáutica, a presença.

O tema da tarde de hoje é “Reconfiguração da Ordem Mundial no Início do

Século XXI”, e serão abordados os impactos dos atentados de 11 de setembro sobre

a evolução das relações internacionais, a unipolaridade e os processos de

multipolarização na evolução do sistema internacional após o fim da Guerra Fria, as

perspectivas e os impasses do multilateralismo na nova ordem mundial e as

tendências da evolução da economia mundial.

Convido para tomar assento à mesa os expositores da tarde de hoje: Sr. Luis

Fernandes, professor da Pontifícia Universidade Católica — PUC, do Rio de Janeiro,

e Diretor-Científico da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do

Estado do Rio de Janeiro — FAPERJ; professor e escritor Oliveiros S. Ferreira, e

Hélio Jaguaribe, ex-Ministro, escritor, professor e estudioso do nosso País.

Abriremos os trabalhos da tarde de hoje com a intervenção do Prof. Luis

Fernandes. Em seguida, falará o Prof. Oliveiros S. Ferreira e, fechando, o Prof. Hélio

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Jaguaribe. Calculamos o tempo para cada uma das manifestações em

aproximadamente 20 minutos.

Agradecemos à FAPERJ o esforço e o apoio na promoção deste seminário,

possível graças à boa vontade do Prof. Renato Lessa, Diretor-Presidente, e ao

empenho do meu estimado amigo e Diretor-Científico da instituição, Prof. Luis

Fernandes.

Além deste, na próxima semana, a Comissão de Relações Exteriores e de

Defesa Nacional promoverá um seminário sobre política de defesa para o século XXI

e, no mês de outubro, também em conjunto com a FAPERJ, um outro sobre política

de inteligência, soberania e democracia no Brasil do século XXI.

Com a palavra o Prof. Luis Fernandes.

O SR. LUIS FERNANDES – Nobre Deputado Aldo Rebelo, Profs. Hélio

Jaguaribe e Oliveiros S. Ferreira, caros colegas, senhoras e senhores, deveria iniciar

agradecendo à Coordenação o convite, mas, como fui parte do desenho do evento,

não cabe fazê-lo. Quero, então, pelo menos manifestar a satisfação pela realização

deste seminário e pela oportunidade não só de ter ajudado a concebê-lo e organizá-

lo, mas também por ter a honra de participar desta Mesa que abordará o tema

“Reconfiguração da Ordem Mundial no Início do Século XXI”.

Quero dizer que, a exemplo do Prof. Hélio Jaguaribe, também fui disciplinado,

e entreguei à Mesa o disquete com o meu pronunciamento, que, aliás, está à

disposição dos senhores.

O próprio tema que abre as discussões desta tarde evoca a ordem no sistema

internacional, tema que é um clássico da filosofia política e da reflexão sobre as

relações internacionais.

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Na filosofia política, o tema da ordem está associado à problemática da

estabilidade geradora de condições para a sociabilidade e o convívio humanos, uma

problemática mais geral de ordem. O problema crucial da teoria política é justamente

como organizar politicamente essa convivência e como garantir as condições para a

convivência humana.

Neste seminário, porém, estamos analisando a problemática da ordem num

sentido um pouco mais restrito, que diz respeito às configurações das relações de

poder no sistema internacional, quer dizer, por esse ângulo, as ordens podem ser

definidas como determinadas configurações das relações de poder na evolução do

sistema internacional.

Nessa ótica, em um plano mais abstrato, podemos identificar na história da

evolução do sistema internacional três grandes ordens e uma em montagem, que é

a que estamos vivendo agora, no início do século XXI.

Uma primeira grande ordem — que, na verdade, caracteriza a evolução do

sistema internacional, desde o evento marcado como gênese do sistema

internacional moderno, a Paz de Westfália, até as guerras napoleônicas no início do

século XIX — era marcada por relativo equilíbrio de poder entre um punhado de

potências européias. O próprio sistema internacional era até então

fundamentalmente europeu.

Diante desse equilíbrio, a ordem era gerada pelos princípios e pela prática do

balanço de poder, com constantes movimentações no sentido de evitar que uma

entre essas poucas potências que dominavam o sistema internacional pudesse ter

predomínio completo no âmbito desse sistema.

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Essa ordem foi substituída, ao fim das guerras napoleônicas, por uma

segunda grande ordem que tem vários nomes possíveis e utilizados na literatura,

mas que resumiria com a seguinte formulação: uma espécie de era da hegemonia

britânica no sistema internacional. E essa segunda ordem foi caracterizada por

singular combinação, porque no cenário e no território europeus ela ainda praticava

política de balanço de poder, mas, para o restante do globo, o que se verificou foi,

por um lado, a dominação britânica dos mares, tanto por intermédio de sua marinha

de guerra como por intermédio de sua marinha mercante, combinada com a

expansão colonial para a incorporação de territórios não-europeus ao sistema

internacional que havia se originado na Europa. É o período da unificação

econômica e política do mundo, mas com esse formato básico de configuração de

poder: balanço de poder, ainda a prática predominante no território europeu, e

hegemonia britânica, tanto política como econômica, para o restante do sistema.

Essa ordem vigorou das guerras napoleônicas, início do século XIX, até o

advento da 1ª Guerra Mundial. Logo após, tivemos um breve interregno que

poderíamos caracterizar não propriamente como nova ordem, mas como o colapso

da tentativa de reconfiguração da ordem mundial com base nos princípios que

haviam dominado a evolução do sistema internacional no século XIX.

Com o advento da 2ª Guerra Mundial, e ao seu fim, constituiu-se nova

configuração de poder no sistema internacional, a chamada era da Guerra Fria,

terceira grande ordem na evolução do sistema internacional moderno. Era um

sistema marcado pela bipolaridade, como é sabido por todos, mas uma bipolaridade

particular e singular, não apenas de potências, países e poderes constituídos no e

através do sistema internacional, mas uma bipolaridade também desses sistemas

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mundiais antagônicos. Enfim, um tipo particular de bipolaridade, contrapondo um

mundo capitalista, liderado e hegemonizado pelos Estados Unidos, a um mundo

socialista, liderado e hegemonizado pela União Soviética. Como é do conhecimento

de todos, essa ordem entrou em colapso com o próprio colapso da União Soviética,

em 1991.

Portanto, estamos diante de uma nova ordem em gestação e consolidação: a

hegemonia americana no sistema internacional como um todo, marcada pelo triunfo

dos Estados Unidos na Guerra Fria e pelo amplo e exclusivo predomínio desse país

no sistema internacional, uma situação, na verdade, sem precedentes na evolução

do próprio sistema internacional. É a primeira vez em que se verifica o predomínio

amplo e quase que exclusivo de uma única potência, e essa singularidade evoca

temas cruciais para pensar a reconfiguração do sistema internacional no início do

século XXI. Até aqui, o predomínio exclusivo de uma única potência era atributo

próprio de formas imperiais de organização política; agora, temos sistema

formalmente estruturado no princípio da soberania da igualdade dos Estados, mas

com assimetria de poder político e econômico bastante acentuada na sua

configuração após o fim da Guerra Fria.

Portanto, ao pensar a reconfiguração da ordem mundial neste início do século

XXI, temos de fazê-lo diante do quadro no qual estamos inseridos. É diante desse

quadro que temos de nos posicionar. É esse quadro que temos de analisar e é nele

que devemos ver quais as tendências de consolidação, de desenvolvimento e de

desdobramento que anuncia para o mundo neste início do século XXI.

Vários autores, como é sabido, caracterizam essa nova ordem como unipolar,

seja pela unipolaridade referente à assimetria de poder de um Estado singular

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dentro do sistema, seja pela unipolaridade assumida por novas formas de império,

argumento de livro recente de Antonio Negri bastante badalado no mundo e no

Brasil.

Outros autores optam por fórmula que batizam de unimultipolaridade, uma

conjunção de tensão entre unipolaridade e multipolaridade no sistema internacional.

Um pouco na mesma linha, Joseph Nye formula a idéia de um tabuleiro

tridimensional no sistema internacional. Estaríamos diante de efetiva unipolaridade

na dimensão militar do sistema internacional contemporâneo. Essa unipolaridade

militar convive com multipolaridade na dimensão econômica, em que a economia

americana e o seu poderio econômico têm de conviver e negociar com vários outros

centros de poder na economia mundial.

Há uma terceira dimensão, que seria muito mais dispersa de poder,

característica das relações transnacionais, sejam elas econômicas, financeiras ou

até de interação da sociedade civil organizada em novos espaços de

encaminhamento de reivindicações. São formulações que tentam captar a

complexidade da nova ordem que se configura neste início de século.

Sou um tanto quanto crítico, talvez porque a minha área de competência

acadêmica dentro do estudo de relações internacionais seja de economia política

internacional, em relação a abordagens que segmentam a dimensão política e a

dimensão econômica e não analisam a interação crucial existente entre ambas,

mesmo porque elementos de poder político e militar estão presentes no poder e na

influência econômica. A dimensão financeira foi aquela em que todos os processos

de globalização foram mais adiante no mundo contemporâneo. Todos os mercados

internacionais de capital, sobretudo os monetários, operam tendo como referência

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moedas emitidas por Estados, sejam nacionais ou multinacionais, como o euro, na

Europa. Isso confere aos poderes políticos que emitem os valores que servem de

referência para o funcionamento desses mercados globalizados poder de

interferência efetiva e real na operação desses mercados. Sempre há uma interação

entre poder político, militar e econômico que deve ser incorporada a toda e qualquer

análise de evolução do sistema internacional.

Independente das diferentes classificações ou linhas de interpretação sobre a

reconfiguração de poder no sistema internacional, é consensual nas avaliações

atuais que estamos diante de quadro internacional marcado por profunda assimetria

de poder, tanto de poder econômico quanto político-militar.

Nessa assimetria, fruto do fim da Guerra Fria e do triunfo americano, a

agenda de poder dos Estados Unidos tem centralidade na reconfiguração da ordem

mundial do início do século XXI, dada a amplitude do predomínio que os Estados

Unidos alcançaram.

Parece-me lógico e coerente que qualquer análise da reconfiguração da

ordem mundial no início do século XXI tenha de analisar a evolução da agenda

externa de poder americano no período pós-Guerra Fria. E é sobre isso que

rapidamente vou falar.

De fato, se acompanharmos a evolução da agenda de política externa

americana pós-Guerra Fria, do início dos anos 90 até os dias de hoje, veremos que

houve importante flexão ao longo dos anos 90, sobretudo neste início do século XXI.

A derrota da União Soviética, o seu colapso e o do campo socialista ao fim da

Guerra Fria geraram proposição de agenda externa por parte dos Estado Unidos

centrada na criação do que então era chamado de nova ordem mundial, que

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substituiria a ordem bipolar da Guerra Fria. Esse conceito foi incorporado como eixo

estruturador da política externa americana pelo Presidente George Bush — o pai,

não o filho —, às vésperas da Guerra do Golfo, em 1990.

A proposição básica era a de que, finda a Guerra Fria e a bipolarização

sistêmica que a fundamentava, os variados fóruns multilaterais do sistema da ONU

poderiam e deveriam tornar-se o núcleo ordenador de uma nova ordem mais estável

no mundo, superando as tensões e os antagonismos que haviam marcado esses

fóruns durante a Guerra Fria.

Nessa perspectiva, o Conselho de Segurança da ONU assumiria nova

centralidade como fórum de negociação e resolução de todos os problemas

relacionados à paz e à segurança no sistema internacional, enquanto os organismos

econômicos do sistema da ONU, com destaque para o Fundo Monetário

Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio, exerceriam o

papel fundamental de indutores e guardiões de mercados abertos na economia

mundial.

Esse parecia ser o formato mais adequado para o exercício da hegemonia

americana no pós-Guerra Fria, e era um formato sintonizado com o movimento

então vitorioso de reconfiguração do exercício dessa hegemonia via agendas de

liberalização econômica, não só comercial, mas também financeira com uma agenda

macroeconômica dominante em praticamente todo o globo.

Essa agenda, por sua vez, correspondia à necessidade estrutural de os

Estados Unidos conquistarem e consolidarem novos mercados de exportação para

seus produtos e capitais, em função da brutal contenção de níveis de salário real

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que acompanhou o advento das inovações tecnológicas da chamada “era do

conhecimento” na sua economia.

Ao longo dos anos 90, a agenda externa dos Estados Unidos foi se afastando

progressivamente, tanto no discurso quanto na prática, dos princípios ordenadores

dessa nova ordem mundial anunciada no início da década. Os Estados Unidos

passaram, ao longo da década e crescentemente, a buscar impor pela força e de

forma unilateral os seus interesses em diferentes regiões do mundo.

Esse desenvolvimento já se fazia sentir no próprio Governo Clinton, embora

predominasse um discurso de defesa dos princípios multilaterais e da adesão a eles,

mas a ruptura entre discurso e prática se fez sentir em episódios como os ataques

ao Iraque, em 1998. Os ataques ao Iraque foram movidos, em ações conjuntas dos

Estados Unidos com a Inglaterra, no momento em que o Conselho de Segurança

estava discutindo o relatório das comissões de inspeção que voltavam do Iraque.

Tratou-se, portanto, de ação não sancionada por aquele Conselho, diferentemente

da Guerra do Golfo, em 1991. Os ataques desferidos contra a Iugoslávia, em 1999,

também conduzidos pela OTAN, foram totalmente à margem do Conselho de

Segurança da ONU.

Essa escalada de ações unilaterais ainda nos anos 90 refletia as crescentes

dificuldades enfrentadas pelo Estado americano para impor a sua agenda externa de

forma consensual via instrumentalização indireta dos mecanismos de poder

estrutural de que aquele país dispõe na economia mundial, entre os quais se

destaca o papel central da sua moeda na operação dos mercados internacionais de

capitais. Entra aqui o tema da interação entre poder político e poder econômico a

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que me referia antes, ao falar da crítica à segmentação dessas dimensões no

tabuleiro proposto pelo Joseph Nye.

Essa forma de exercício do poder hegemônico passou a enfrentar, ao longo

dos anos 90, crescente resistências tanto de outros blocos e potências centrais,

como a União Européia e o Japão, quanto de novos pólos regionais de poder no

antigo campo socialista e nos países em desenvolvimento, com destaque para a

China, a Rússia e a Índia. Em resposta à dificuldade da construção do consenso por

meio dos fóruns multilaterais, a agenda externa americana foi assumindo cada vez

mais essa feição abertamente unilateral e coercitiva.

Os atentados de 11 de setembro forneceram, na verdade, o ambiente de

consolidação dessa opção preferencial da agenda externa americana pelo

unilateralismo e pelo recurso a políticas mais abertas de força no sistema

internacional. No clima de pânico que se formou na sociedade americana após os

atentados, fruto da repentina e traumática constatação de que a ampla superioridade

tecnológica e militar que os Estados Unidos possuem não era garantia de

invulnerabilidade do seu território, o novo Governo Bush consagrou a busca da

segurança, com todas as suas implicações, como valor e objetivo supremo da

política doméstica e externa do Estado americano. Isso implicou conferir nova

centralidade para os mecanismos e instrumentos de exercício direto da dominação

pela força no sistema internacional, em detrimento da opção predominante anterior

pelo exercício da hegemonia via recursos indiretos de poder estrutural.

Com base nessa nova orientação, a guerra global contra o terrorismo foi

transformada no eixo estruturador da agenda externa dos Estados Unidos. A própria

guerra movida contra o regime dos talibãs e a força do Al Qaeda no Afeganistão

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definiram o perfil mais concreto dessa nova agenda intervencionista. Por mais que a

ameaça à segurança do território americano fosse creditada a uma força terrorista

transnacional, um espécie de rede terrorista transnacional, que opera globalmente,

os alvos da retaliação militar foram absolutamente “territorializados”, visando

desarticular as estruturas de poder que estariam alimentando as ações terroristas no

Afeganistão. Ou seja, objetivos geopolíticos de controle de território pela força

continuam ditando a agenda de segurança dos Estados Unidos, apesar de todas as

referências ao mundo organizado em redes da pós-modernidade.

Esses objetivos agora são perseguidos de forma unilateral e inteiramente à

margem do sistema de segurança consagrado na ONU. Sob a égide do discurso de

que “quem não está conosco está contra nós”, a construção de coalizões

internacionais em torno desses objetivos geopolíticos americanos vem assumindo

cada vez mais a forma de parcerias ad hoc, pontuais e seletivas, montadas via

acertos bilaterais segundo as prioridades variáveis da agenda externa americana,

em detrimento da consolidação de sistema multilateral de segurança coletiva no

mundo.

Coerentemente, os objetivos da guerra global contra o terrorismo são

definidos de forma deliberadamente aberta e imprecisa, para permitir a contínua

eleição de novos alvos nos territórios dos sessenta países que supostamente

abrigam núcleos terroristas, conforme a posição do próprio Governo americano.

Não surpreende, portanto, a insistência da atual administração norte-

americana em afirmar que se trata de uma guerra sem prazo determinado para

terminar e que tende a ser muito prolongada.

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A consolidação dessa nova agenda de política externa na administração

Bush se dá no contexto de um amplo debate sobre a redefinição de sua estratégia

de segurança nacional. A agenda de política externa e de defesa do Governo norte-

americano é cada vez mais dominada por um núcleo coeso de dirigentes e

assessores de perfil ideológico ultraconservador, o que, na nomenclatura curiosa do

espectro político norte-americano, eles chamam de hawks, falcões, que têm

especial predileção pelo recurso de ações de força.

Esse núcleo, como é sabido, cultiva laços estreitos de relacionamento com a

indústria armamentista e petrolífera. Dentre os principais expoentes desse grupo,

estão o Vice-Presidente Dick Cheney, o Secretário de Defesa Donald Rumsfeld e

assessores como Paul Wolfwitz, entre outros, além da equipe que hoje domina toda

a área da América Latina no próprio Departamento de Estado Norte-Americano. E é

este núcleo duro que vai definindo os contornos da nova estratégia de defesa

nacional que será apresentada ainda este ano ao Congresso dos Estados Unidos

pela Assessora de Segurança Nacional Condoleezza Rice. A lógica da nova

estratégia já se evidencia e materializa na própria condução da guerra global contra

o terrorismo.

O eixo estruturador da nova agenda é impedir a todo custo a consolidação de

centros de poder que possam vir a ameaçar a condição de única superpotência do

sistema internacional alcançado pelos Estados Unidos ao fim da Guerra Fria, ou

também impedir a consolidação de centros regionais de poder que se possam

constituir em obstáculos para a realização dos interesses norte-americanos em

distintas regiões do mundo.

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Segundo esta nova orientação estratégica, o Estado norte-americano deve

estar preparado para recorrer a todos os instrumentos de força à sua disposição

para a consecução desse objetivos, incluindo a opção da utilização ofensiva de

armas nucleares, o que contraria a compreensão predominante sobre esse tipo de

armamento que vigorou durante a Guerra Fria, que o concebia como fator de

dissuasão de conflitos. Refiro-me àquela sigla MAD — Mutual Assured Destruction,

Destruição Mútua Assegurada, que, pelo horror da destruição mútua, poderia servir

de elemento de dissuasão de conflitos. Na verdade, ela é substituída hoje por outra

sigla, que também é reveladora, SAD — Self-Assured Destruction, atacar com a

segurança de que o inimigo será destruído e que a força que inicia a ação não

sofrerá qualquer tipo de represália. De fato, é sad, tanto na sigla quanto nas

conseqüências que isso tem para o sistema internacional em termos de viabilizar

ações de guerra ofensiva, envolvendo a opção de utilização de armamento nuclear.

Colocado em operação plena a partir dos atentados de 11 de setembro, a

nova doutrina estratégica norte-americana aprofundou a opção unilateralista da sua

política externa, que já se havia tornado prevalente, sobretudo na segunda metade

dos anos 90, conforme mencionei anteriormente.

Para além da sua tradicional posição em relação à ratificação do Tribunal

Penal Internacional — tema que será tratado em seguida, em outra exposição —,

os Estados Unidos se recusaram a assinar o Protocolo de Kyoto, de proteção

ambiental, e se retiraram da conferência da ONU sobre racismo realizada na África

do Sul. No que concerne aos regimes internacionais de controle de armamentos, o

Governo Bush se negou a endossar um instrumento de verificação do Protocolo de

Armas Biológicas e do Protocolo sobre Minas Terrestres, além de romper com o

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Tratado de Mísseis Antibalísticos — ABM, que foi a espinha dorsal dos acordos de

contenção da corrida armamentista firmados com a União Soviética nos anos 70.

O período pós-atentados assistiu ainda a ações de forças sem precedentes

por parte do Governo norte-americano, para afastar personalidades consideradas

não-alinhadas com seus interesses e orientações na direção de organismos

multilaterais. O caso mais evidente foi a demissão do Presidente da Organização

para Proscrição de Armas Químicas — OPAQ, o diplomata brasileiro José Maurício

Bustani — estava prevista sua participação neste seminário, mas parece que

infelizmente isso não será possível —, pelo simples fato de ter aberto um canal de

negociação para incorporação pacífica do Iraque a esse organismo. Tal atitude se

contrapunha ao interesse dos Estados Unidos e da administração norte-americana

em fomentar um clima de guerra com aquele país, com base no argumento de que

ele não aderia — e não adere — ao regime internacional de controle e erradicação

de armas químicas.

A mesma doutrina estratégica que elevou o unilateralismo da frente externa

dos Estados Unidos a novo patamar alimentou o seu perfil belicista e

intervencionista. No período pós-atentado, o Estado norte-americano passou a se

envolver em múltiplas ações de forças, em diversas regiões do planeta

simultaneamente, em nome da guerra global contra o terrorismo.

A principal iniciativa foi sem dúvida a guerra deflagrada no Afeganistão, mais

uma vez conduzida totalmente à margem do Conselho de Segurança da ONU e que

resultou na derrubada do regime dos talibãs, embora o novo governo, como se sabe,

venha enfrentando enormes dificuldades para consolidar o seu controle em todo o

território do país.

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Esta ação vem sendo seguida pela preparação de novas ações militares de

grande envergadura contra os países identificados pelo Presidente Bush como

integrantes do chamado Eixo do Mal. Aqui se destaca, evidentemente, a preparação

de um ataque militar contra o regime de Saddam Hussein, no Iraque, que é uma

preparação tristemente em curso.

A lista de envo lvimentos seria bastante grande e ocuparia muito tempo da

exposição se eu me centrasse nela. Destaco, entretanto, pela sua proximidade e

importância estratégica para o Brasil, o crescente envolvimento militar norte-

americano nas ações de combate ao narcotráfico na região andina e o seu estímulo

em busca de uma solução militar para a crise colombiana, o boicote e a

inviabilização das tentativas de produção de uma solução negociada política para a

crise colombiana.

Não apresentarei outra parte desta exposição por causa da limitação de

tempo, mas saliento que, a essa agenda crescentemente intervencionista e

unilateralista da política externa norte-americana, soma-se uma agenda

crescentemente intervencionista na sua economia doméstica, tanto através de

medidas protecionistas várias, como da reinserção do Estado no controle de

diversas esferas da economia norte-americana. Por exemplo, o pacote de ajuda

para as companhias de transporte aéreo envolveu a compra de ações de empresas

por parte do Estado norte-americano que voltou a tornar-se um Estado proprietário e

produtor.

A sua política econômica tem sido crescentemente não liberal do ponto de

vista doméstico e também do ponto de vista das suas relações econômicas com os

demais países.

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Excluirei a exposição oral de parte da apresentação, que depois poderá ser

lida no texto escrito.

Quero concluir com duas observações que considero importantes para a

nossa definição da política externa brasileira para lidar com essa reconfiguração em

curso do sistema internacional e da ordem internacional.

A primeira reflexão é sobre como caracterizar essa agenda americana. O

debate tradicional na política externa norte-americana se deu em dois eixos. Por um

lado, opções isolacionistas versus opções mais intervencionistas no globo; de outro,

opções unilateralistas contrapostas a opções multilateralistas na agenda externa

norte-americana.

O que caracteriza a atual agenda norte-americana e que assume papel

central na reconfiguração da ordem mundial é um perfil simultaneamente

intervencionista e multilateralista. Espécie de agenda do unilateralismo e

intervencionismo no mundo é o que caracteriza essa agenda norte-americana que

está no coração da reconfiguração da ordem mundial em curso. Isso implica o

retorno a formas mais tradicionais do exercício político e econômico que se supunha

terem sido superadas pelo advento dos processos de globalização. Estamos

assistindo hoje no mundo a uma espécie de renascimento da geopolítica, que volta a

ocupar papel central na definição de agendas de política externa e agendas para

lidar com a evolução do sistema internacional.

O segundo ponto, para nós fundamental, é se essa ordem, configurada dessa

forma, tende a se consolidar e estabilizar ou se, pelo contrário, trata-se de uma

ordem que tende à instabilidade e à desagregação. A resposta a essa questão é

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absolutamente crucial para a definição de uma política externa brasileira, a fim de

definir como o Brasil deve-se relacionar com essa nova ordem em gestação.

Tal situação contrapõe duas visões no debate sobre a teoria internacional.

Uma fortemente presente nas teorias mais contemporâneas sobre a globalização,

expressas no livro, já citado, do Neri e do Hart, sobre império, que aponta para a

possibilidade da consolidação mais estável dessa ordem, dado o grau de

assimetria de poder que em se constitui o sistema internacional contemporâneo.

Contra essa avaliação e esse diagnóstico opera o senso comum das teorias

que predominaram no estudo das relações internacionais ao longo do século XX ,

seja na sua versão realista clássica, seja mesmo neo-realista. Por essa ótica,

qualquer movimento de constituição de poder unipolar, no sistema internacional,

inevitavelmente gera contramovimentos, no sentido de combater ou pelo menos

enfraquecer o poder unipolar constituído. Portanto, a tentativa de configuração de

uma ordem unipolar por essa agenda norte-americana tenderia a provocar, insuflar

e gerar múltiplos movimentos de resistência, que constituiriam movimentos de

multipolarização no mundo.

No trabalho desenvolvo mais um pouco a questão, mas essa é a última

perspectiva mais adequada, apesar dos grandes êxitos que a curto prazo essa

agenda norte-americana alcançou e conquistou, mesmo em relação à guerra do

Afeganistão, em que, por exemplo, eles conseguiram estabelecer uma presença em

regiões como a Ásia Central, onde os Estados Unidos historicamente sempre

tiveram muita dificuldade em consolidar a presença militar e/ou influência. Tem

havido uma aproximação da Índia, da Rússia e de países aliados da Rússia na Ásia

Central. A agenda norte-americana na guerra contra o terrorismo nesse primeiro

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momento tem sido importante triunfo, mas quero crer que se trata de um triunfo que

tem profundas contradições para se consolidar.

Concluindo, quero retomar o ponto de abertura sobre a evolução das grandes

ordens. Talvez a primeira grande ordem seja a do balanço do poder, que, de

maneira geral, durou em torno de duzentos anos; a era da hegemonia britânica, cem

anos; a era da Guerra Fria, cerca de cinqüenta anos. Parece-me que estamos diante

de um processo histórico de redução da expectativa de vida das ordens

internacionais e sempre pela metade. Se for isso, quem sabe o mundo não estará

vivendo em 2015 a transição para uma nova ordem em que os princípios da não-

ingerência, do respeito ao multilateralismo, da busca pela solução pacífica de

conflitos, dêem a tônica na evolução do sistema internacional.

Espero que o Brasil, por meio da sua política externa, possa dar a sua

contribuição para esse desfecho.

Agradeço a todos a atenção e peço perdão por me ter excedido no tempo.

(Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Muito obrigado pela sua

exposição, Prof. Luis Fernandes.

Passo de pronto a palavra, também agradecendo contribuição que dá ao

nosso seminário, ao Prof. Oliveiros S. Ferreira.

O SR. OLIVEIROS S. FERREIRA - Muito obrigado, Sr. Presidente. Embora

tenha agradecido pessoalmente o convite, faço-o mais uma vez.

Estou numa situação extremamente delicada, porque estou entre Silas e

Calípedes. (Risos.) Não sei bem o que vou dizer depois da exposição do Sr. Luis

Fernandes. Terei que bater à porta em algumas ocasiões e dizer: “Dá licença para

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eu entrar?” Outras vezes, vou dizer: “Desculpem-me, mas estou contornando”. Mas

creio que, no fim, como ele fez um elogio à geopolítica, terei alguma desculpa. Creio

que, somente a partir de considerações geopolíticas, é que se poderá responder à

afirmação de o Estado ter morrido ou não e atentar para a mudança — se é que de

fato existiu — na posição dos Estados Unidos e de sua participação no poder global.

Em outras palavras, dar uma resposta a uma pergunta simples: os Estados Unidos

são uma potência hegemônica ou um império? São realidades diferentes.

Carl Schmitt, em livro pouco conhecido e pouco divulgado, que se chama "El

Nomos de la Tierra", na tradução espanhola, apresenta uma visão não ortodoxa da

geopolítica, mas essencialmente geopolítica. Por isso, creio ser útil citar algumas

passagens suas, que nos permitirão apreciar sob outras luzes os fatos da vida

internacional.

Que mundo se construiu em 1648 com os Tratados de Westfália? O que se vê

são Estados soberanos, definidos pela porção de terra continental que ocupam. Isso

é importante em todo o raciocínio de Schmitt. A soberania decorre da ocupação da

terra. Essa ocupação dá ao príncipe títulos suficientes para governá-la sem

interferência estrangeira. Os tratados consagraram o princípio cujus regio, ejus

religio, “a religião é de quem tem é a região”, na feliz tradução de Paulo Rónai. Ao

fazê-lo, abriram caminho para que se lançassem as bases do Jus Publicum

Europaeum, que, consagrando o domínio incontrastável do senhor da terra, permitiu

que todos os soberanos se considerassem iguais. E, mais importante, que se

criassem as condições para que a guerra passasse a ser assunto de Estados e não

mais entre milícias privadas. Essa passagem do campo privado para o campo

público acabou por fazer que a guerra se tornasse como que regulamentada.

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Estabeleceu-se, entre outras coisas, que os civis, como particulares, não poderiam

ser molestados em represália a atos praticados pelo soberano. Mais importante

ainda: a agressão de um Estado contra outro não poderia ser vista como crime

passível de punição por normas do Direito Penal Interno. Esta é a tese de Carl

Schmitt. Para ele, a importância dos tratados radicaria neste aspecto: a partir deles a

terra passaria a ser um affaire de Estados e não privado — o que significa que a

guerra é travada entre soberanos, cada qual considerado pelo outro como um

justus hostis, um inimigo justo. Não apenas as soberanias consagradas pelos

Tratados de Westfália influem nas alterações que se dão no quadro europeu; a

descoberta do Novo Mundo terá capital importância da transformação, lenta, segura

e fatal para a Europa, do Jus Publicum Europaeum. É que, na realidade, o novo

horizonte de Colombo, Cortez ou Cabral permite que se veja o universo terrestre

como um globo, não à maneira de mito, mas, como diz Schmitt, "comportável como

fato científico e mensurável praticamente como espaço". Por estarem fora do

continente europeu, as novas terras não têm dono, exceto aqueles que delas se

apropriam, obedecendo às diretrizes papais ou simplesmente as ignorando, e

ignorando os ensinamentos de Vitoria, que negava legitimidade ao pretendido direito

de ocupação — como poderia ser válido esse princípio, se sua aceitação legitimaria

que os índios, se porventura chegassem à Europa, reclamassem também sua

posse? Disso tudo segue-se que a soberania sobre as colônias descobertas não

decorreu da ocupação da terra, mas é dada como um fato jurídico.

Delimitando a terra ocupada e convencionando o domínio de seu ocupante,

os Tratados de Westfália fizeram que a posse da terra reforçasse a idéia que

sustentou a política européia desde meados dos séculos XVI, afirmando-se no XVII:

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a idéia de equilíbrio, base da política da “balança de poder”. A noção de equilíbrio,

regendo as relações internacionais, não foi criada por nenhum cientista político

interessado em estabelecer regras para o comportamento dos homens de governo

ou de Estado. Morgenthau, por exemplo, data de 1553 o emprego da expressão. A

idéia tampouco é de um príncipe mais esclarecido sobre os negócios internacionais;

é difundida por todas as cabeças coroadas.

A balança de poder, assim, faz parte da história européia — que, convém

ressaltar, é desde Westfália uma história de Estados soberanos — e, como parte

dela, transmitiu-se de geração em geração, adaptando-se às situações criadas pela

descoberta do Novo Mundo e, depois, pela independência das colônias européias,

fossem inglesas, espanholas ou portuguesas. É sempre interessante observar como

o Novo Mundo, quando decide nascer e fazer parte do concerto das nações, cumpre

seu amargo destino e é considerado parte do sistema europeu — ainda que

contribua, mais tarde, para que os princípios mesmos do Jus Publicum Europaeum

sejam subvertidos, especialmente aquele que cuidava da guerra e de sua

inimputabilidade. Até o momento em que os Estados Unidos mostram seus caninos

e adquirem personalidade internacional, fazendo a guerra contra a Espanha, os

estadistas europeus, sobretudo aqueles de países que tinham o domínio dos mares,

os ingleses, tratam as Américas como um peso que pode ser usado para

restabelecer o equilíbrio europeu.

O Novo Mundo não podia ser mais colocado à parte, sobretudo depois da

entrada dos Estados Unidos, ou não podia ser mais colocado num dos pratos da

balança européia, porque nele se consolidara o “sistema americano”, expressão com

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que Jefferson fundamenta seu argumento a Monroe, auxiliando-o no enunciado de

sua doutrina — e cito Jefferson:

“A América, tanto a do Norte quanto a do Sul,

possui um conjunto de interesses distintos dos europeus e

inteiramente peculiares. Deveria ter, por conseguinte, um

sistema separado, próprio, distinto do da Europa.

Enquanto essa última trabalha para ser a sede do

despotismo, nossos esforços, indubitavelmente, deveriam

tender a fazer de nosso hemisfério um domicílio da

liberdade”.

Mais significativo da separação entre os dois sistemas e da impossibilidade

em que a Europa se encontrava de fazer o jogo da balança de poder contando com

os Estados Unidos, é o discurso de Wilson, em outubro de 1916:

“A guerra não foi provocada por nenhum fato

individual; no fundo, é todo o sistema europeu que tem a

responsabilidade pela guerra, sua combinação de

alianças e entendimentos, uma rede complicada de

intrigas e espionagens que certamente chegou a envolver

toda a família dos povos “.

A maioridade internacional dos Estados Unidos foi, sem dúvida, um dos

fatores que contribuíram para abalar o já fragilizado padrão da balança de poder. As

grandes transformações que se dão no Jus Publicum Europaeum, consagradas no

Tratado de Versalhes e na criação da Sociedade das Nações, não foram devidas

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apenas à longa duração do conflito. Mais importante foi a entrada dos Estados

Unidos na guerra.

A entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial significou, para a

Europa dos Tratados de Westfália, a irrupção do “sistema americano”, cujo princípio

constitutivo era antagônico àquele que se havia firmado, no “sistema europeu”,

desde 1648: a soberania não mais considerada em função da ocupação da terra,

que deixou de ser fator determinante da vida dos Estados, mas tida como função de

um ato jurídico, legitimado por um princípio político ou moral. Mais importante talvez

tenha sido a transformação da guerra, do conceito de guerra: pouco faltou para que

Wilson invocasse o Direito Natural do século XVIII para legitimar a cruzada que

travava para acabar com as guerras. Wilson não viveu a história da Europa;

negociará em Versalhes, visando realizar seu grande desejo de estabelecer uma

paz perpétua e liquidar com as pretensões expansionistas daqueles que

consideravam a guerra como um assunto normal nas relações entre os Estados.

Ao reclamar que Guilherme II fosse julgado “por violação suprema da

moralidade internacional e da natureza sagrada dos tratados”, art. 227 do Tratado

de Versalhes, as potências vencedoras deram um largo passo no caminho de fixar

as mudanças no Jus Publicum Europaeum que se vinham noticiando desde a

Conferência de Berlim sobre o Congo, em 1885. É de notar, nessa disposição de

espírito, que os vencedores em 1914 fizeram uma clara distinção entre ”crimes de

guerra” — crimes cometidos durante a guerra contra o jus in bello — e o” crime da

guerra”, isto é, o crime de ter começado uma guerra injusta, isto é, a guerra que não

atendia às formas estabelecidas e sobretudo não era travada em legítima defesa.

Schmitt aponta que os representantes norte-americanos na Comissão que estudava

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a “Responsabilidade dos autores da guerra” tiveram posições conflitantes ao

analisar os artigos 227 e 228. Na polêmica sobre o art. 228, que cuidava dos crimes

de guerra, na antiga acepção — aqueles cometidos contra o jus in bello, como, por

exemplo, as normas que regulavam a guerra marítima, os direitos dos prisioneiros e,

em linhas gerais, a Convenção de Haia sobre a Guerra Terrestre.

No que diz respeito ao art. 227, que inovou o sentido da guerra, a posição

era diferente, conforme se vê pelo texto de Schmitt, citando a posição dos norte-

americanos. E aqui leio uma parte do discurso norte-americano.

“Os supremos mandatários das potências centrais,

animados pelos desejos de apoderar-se de territórios e

direitos soberanos de outras potências, aventuraram-se

a uma guerra de conquista, uma guerra que, por sua

extensão, sua destruição desnecessária de vidas e

propriedades humanas suas crueldades implacáveis e os

sofrimentos insuportáveis que produziu, supera todas as

guerras dos tempos modernos. As provas desse delito

moral contra a humanidade são convincentes e

conclusivas. Moderadas pelo respeito ao Direito, que é

inseparável do sentimento de justiça, as nações que

sofreram tão cruelmente não teriam forças para castigar

adequadamente os culpados pelos meios legais. Mas os

que provocaram esta guerra vergonhosa não devem

passar à história sem ser marcados. Por isso deveriam

comparecer perante a opinião pública mundial para

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sofrerem a condenação que a humanidade decida contra

os autores do maior crime perpetrado contra o mundo”.

A indicação segura de que o antigo Direito das Gentes tinha sido

transformado está, segundo Schmitt, no fato de que no citado art. 217, que incrimina

Guilherme II, diz, no § 3º, que o tribunal que venha a julgar deverá guiar-se pelos

motivos mais elevados da política internacional e não da lei internacional.

Essa mudança no sentido da guerra e na tentativa de responsabilizar

penalmente o adversário derrotado, mesmo que não havendo leis penais ou

processuais internacionais que permitissem, à luz dos antigos princípios do Jus

Publicum Europaeum, apontar os perdedores como responsáveis pela deflagração

de conflito armado ou processá-los, essa mudança decorreu da transformação que

se vinha dando no Direito das Gentes. A dificuldade que, em 1945, os vencedores

tiveram para instalar o Tribunal de Nuremberg e encontrar as bases legais e

processuais que permitissem o julgamento dos que eram acusados de crimes de

guerra evidencia, por um lado, essa visão da guerra para consagrar-se capaz de

legitimar julgamentos formais por atentados contra a "política internacional". E

também evidencia, por outro, as profundas transformações que se registraram no

Direito das Gentes europeu, que desde os fins do século XIX acabaram por desligar

o Direito das Gentes, a ocupação da terra por Estados, como razão de seus direitos

soberanos sobre o solo ocupado.

As transformações verificadas no Jus Publicum Europaeum, alterando

posições acatadas no campo do Direito e na prática da política de poder, foram

acompanhadas por mudanças significativas na economia mundial. Schmitt — e o

livro dele é do fim dos anos 40, começo de 50 — resume tais alterações numa frase

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que espelha o sentido do processo que começou no século XIX e prossegue até

hoje sob outro nome que recobre idêntica realidade: não mais cujus regio ejus

religio, mas cujus regio eius economia, para não dizer, como acentua em outra

passagem, cujus economia, ejus regio , inversão que lhe parece “extremamente

moderna”. A análise que faz do processo que se iniciou em 1885, por ocasião do

Congresso de Berlim, é extremamente sedutora, assinalando a importância que teve

na formação de um novo Direito das Gentes a sua fragmentação em diversos

direitos “continentais” (o primeiro dos quais é o americano, cuja distinção do europeu

é apontada por latino-americanos), que depois se fundiram num Direito das Gentes

“universal”, e a transformação dos territórios africanos, excluídos do território

europeu, em “territórios estatais”, a igual título que o do Estado colonizador. Essa

mudança de status está relacionada a um tempo com o comércio e com a guerra,

pois nenhuma potência européia estava disposta a reconhecer “tecnicamente” como

“neutra” qualquer colônia africana de país europeu contra o qual lutasse. Assim,

Schmitt vê a evolução do Direito das Gentes ligada às transformações econômicas:

“...Desde o Tratado de Cobden, em 1860, entre França e

Inglaterra, a idéia de uma economia liberal e uma

globalidade comercial era natural para o pensamento

europeu e habitual para o modo geral de pensar. (...) Os

numerosos obstáculos e limitações à economia liberal que

já então se manifestavam, como os sistemas aduaneiros

e protecionismo de toda classe, eram considerados como

meras exceções que não punham em dúvida o progresso

permanente e seu resultado final. A posição predominante

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da Inglaterra e o interesse desse país num comércio

mundial livre e no tráfego marítimo livre representava uma

sólida garantia para uma semelhante imagem do mundo.

A cláusula de nação mais favorecida (...) parecia ser um

excelente veículo desta evolução econômica para um

mercado unificado. Em breves palavras: por cima, por

baixo e ao lado dos limites político-estatais de um Direito

das Gentes político de aparência puramente interestatal

se estendia, penetrando tudo, a área de uma economia

livre, ou seja, não-estatal, que era uma economia

mundial.”

O golpe final contra o Jus Publicum Europaeum foi dado pela ascensão do

hemisfério ocidental, vale dizer, dos Estados Unidos como potência dominante, cuja

política internacional atendia a princípios outros que os do “nomos” da terra que

tinha regido o Direito das Gentes europeu. Schmitt vê a predominância norte-

americana da perspectiva da ocupação da terra que tinha marcado a história

européia. O hemisfério ocidental nada tem a ver com a Europa. No entanto, são

pequenos países latino-americanos que decidem, na Sociedade das Nações, a

fragmentação do espaço europeu (Alemanha e Áustria-Hungria), seguindo a política

de Wilson de autodeterminação dos povos, princípio jurídico e moral não

determinado pela ocupação da terra por um soberano. Ausentes da Sociedade das

Nações, os Estados Unidos estão, todavia, presentes, influindo nos destinos da

Europa.

E diz Schmidt:

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“(...) A Liga de Genebra estava ausente da

América; em compensação, dezoito Estados americanos

estavam presentes em Genebra. A potência

preponderante na América, os Estados Unidos, não se

encontrava oficialmente presente em Genebra; porém,

onde se reconhece a Doutrina Monroe e se acham

presentes outros Estados americanos, os Estados Unidos

não podem estar, de fato, totalmente ausentes”.

Os Estados Unidos também terão presença na tentativa de solução da crise

financeira alemã e no conflito da Mandchuria, expressas na chamada doutrina

Stimson, formulada em nota dirigida ao Japão e à China com o mesmo texto em

janeiro de 1932.

Depois de analisar a nota, Schmidt conclui:

“A prática do Direito público europeu cuidava de

abordar os conflitos no marco de um sistema de equilíbrio;

agora, em troca, são universalizados em nome da

unidade do mundo. (...) Do novo ponto de vista (...)

estavam justificadas as intervenções que envolvem todas

as questões políticas, sociais e econômicas importantes

da terra”.

Ou, como disse o Presidente Hoover, em 1928: “Um ato de guerra, em

qualquer parte do mundo, é uma injúria aos interesses do meu país”.

A guerra de 1939 — uma guerra européia que se transformou, em 1941, na 2ª

Guerra Mundial — não tem mais o Direito das Gentes a regulá-la, visto que uma

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ação aérea de dimensão inimaginável, entre 1914 e 1918, tem papel preponderante

na condução das operações, transformando-a de fato em guerra total. As teorias de

Ludendorf sobre a guerra total ficam muito aquém da mobilização geral das

populações civis e da inversão nas relações entre a economia e a política

observadas. A guerra aérea é, essencialmente, uma guerra de destruição

(descartada enquanto predominou o Jus Publicum Europaeum) e seu objetivo não

é ocupar o território do inimigo, mas submetê-lo pelo terror.

Os últimos anos do século XX e o primeiro deste século evidenciam a nova

estrutura das relações internacionais, que já não são mais regidas por um Direito

Internacional fundamentado na ocupação da terra e na consideração de que a

guerra se trava entre “inimigos justos”, tal qual resultara dos Tratados de Westfália,

muito menos pelos princípios abstratos que tinham sido introduzidos após a 1ª

Guerra Mundial. Essa nova estrutura começa a alinhavar-se a partir da 2ª Guerra

Mundial. É um outro mundo que vem sendo construído depois de Ialta e que não

pôde mais ser compreendido à luz do Jus Publicum Europaeum ou do Direito

Público abstrato. Em primeiro lugar, porque o inimigo não será mais “justo”, mas sim

a encarnação do mal, qualquer que seja o governante que faça esse juízo prenhe de

conseqüências. Depois, porque a soberania não é mais definida pela ocupação da

terra ou por princípios abstratos do Direito Internacional. A Europa Oriental será um

conjunto de quase-Estados, reconhecidos como Estados porque o Exército

Vermelho garantia um novo Direito que assentava, como se verá em 1956 e 1968,

no princípio da “soberania limitada” que Brezhnev imporá à Checoslováquia, após

Kruchev ter sufocado a revolução húngara. A aceitação desse princípio em boa

medida decorreu também do fato de que o Direito do “sistema americano” tinha

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estabelecido situação bem próxima para parte do mundo não soviético. Finalmente,

esse mundo pós-Ialta também será novo porque o espaço recoberto pela economia

mundial que começara a se estabelecer antes de 1º de setembro de 1939 foi

diminuindo pela implantação do regime socialista na Europa Oriental e pelo triunfo

de Mao Tsé-Tung na China.

A Doutrina Truman e o Plano Marshall comprometeram para sempre a política

exterior dos Estados Unidos com um determinado tipo de ordem. Essa nova ordem

implica, tanto além quanto aquém Atlântico, adesão a um novo sistema internacional

erigido sob a guarda da dupla águia, cujo princípio imposto à Europa não era a

propriedade privada, embora o seja, a par do livre comércio, para a América Latina.

A águia conquistadora, convém lembrar, estivera presente nas “areias de

Montezuma e nas praias de Tripoli”, como se ouve no hino dos fuzileiros navais

norte-americanos, como que prenunciando intervenções futuras em defesa dos

interesses do Estado e assegurando a liberdade dos mares contra incursões de

piratas, hoje terroristas.

Recordemos a frase de Hoover: “Aquilo que em 1928 parecia ser uma bravata

(sobretudo porque logo depois veio 1929) expressava, no fundo, a idéia que o

Estado norte-americano fazia de como deveria se organizar o mundo e de qual

deveria ser, nele, a sua posição.” Essa idéia, uma verdadeira Weltanschauung, veio

se formando desde a Independência e se firmou, em 1823, com a Doutrina Monroe,

que não apenas afirmava o interesse norte-americano pelo controle das Américas —

ela sempre sinalizou para o fato de que a posse de um território não era mais

importante para que um Estado decidisse soberanamente sobre que política ali

deveria aplicar: a soberania não decorre mais da ocupação da terra.

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O conceito europeu de soberania, o domínio de um príncipe sobre um pedaço

de terra, já não vigorava na América. O novo império que se construiu lentamente a

partir do enunciado da Doutrina Monroe criava, de fato, uma associação de Estados

ligados por tratados de segurança mútua na qual o poder maior contava ter um

aliado certo e submisso em cada Estado considerado juridicamente como soberano.

A soberania passou a ser função do poder — e que assim era, demonstrou-se pelo

empenho de todas as administrações norte-americanas pós-Monroe em fazer com

que a comunidade internacional reconhecesse a Doutrina como parte integrante do

Direito Internacional, o que foi feito em Versalhes. Em Versalhes, a Europa cedeu

sem atentar para o que estava por trás da exigência de Wilson.

Foi em Versalhes que os Estados Unidos assumiram de fato a função de

Imperator com uma diferença sobre os costumes romanos: agora, o Imperator era

declarado tal não fora dos limites da cidade, mas, sim, nela, e tinha direito a seu

triunfo quando e como desejasse, sem necessidade de que Senatus Popolusque

Romanorum autorizassem a entrada das legiões. No que tange à América Latina,

talvez seja possível dizer que, mais que Imperator romano, os Estados Unidos

assumiam a função de rei de um império oriental, em que os outros Estados eram

vistos como meras satrapias. Houve mais, porém, em Versalhes: os Estados Unidos

também assumiram a condução da política e da governança mundiais, na medida

em que estabeleceram para o mundo o seu conceito de soberania, de Direito e,

sobretudo, de guerra. Tudo apoiado, por cima, por baixo e ao lado dos limites

político-estatais de um Direito das Gentes de aparência puramente interestatal, por

uma economia livre, ou seja, não estatal, uma economia mundial, como tinha

entrevisto Schmitt.

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A Guerra Fria, no contexto da preponderância norte-americana nos campos

militar e econômico, apenas reafirmou como realidade as palavras do Presidente

Hoover.

Os atentados de 11 de setembro de 2001 encerraram uma fase da história

diplomática em que o refinamento do diplomata (como diria Aron) apenas escondera

a rudeza do general. As posições do Governo George W. Bush não devem ser vistas

como gestos aleatórios e desconectados, expressos sob uma crise moral conjuntural

provocada pelo abalo da confiança na invulnerabilidade da fortaleza americana. O

relatório da Comissão Hart-Rudman, elaborado pelo Congresso dos Estados Unidos,

tinha advertido, meses antes dos atentados, da possibilidade de ataques contra

objetivos no solo norte-americano. Sucede, como assinala Paul Kennedy, que ele foi

alegremente ignorado pela população e pelo governo “obcecado por seu caprichoso

desejo de criar um escudo no céu contra ataques de mísseis”. Cabe refletir: se o

Congresso era capaz de prever um ataque contra o território norte-americano, pondo

fim à certeza da invulnerabilidade da fortaleza americana, seguramente estudos do

Estado Maior Combinado deveriam ter apontado para o mesmo risco, embora nem

um nem outro estudo pudesse prever como e onde se daria o ataque, como não se

sabe, ainda hoje, como e quando se dará o segundo ataque se vier a ser

desfechado.

O projeto de escudo antimísseis não foi abalado pelo que sucedeu em Nova

Iorque. Pelo contrário. Ao desfraldar a bandeira da luta contra o terrorismo, o

Governo George W. Bush conseguiu obter o apoio, ainda que com ressalvas, do

Governo Putin, que também concordou em ser admitido na OTAN numa condição de

menoridade estatutária, além de prestar ao Governo de Washington o apoio

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necessário na Ásia Central. Esse projeto antimíssil não pode ser visto isoladamente

como uma manifestação de teimosia da Casa Branca; ele se enquadra na nova

doutrina militar dos Estados Unidos, estudada pelo Estado Maior Combinado, a

pedido do Congresso. Um estudo dessa natureza, convém ter presente, não é um

brinquedo nas mãos de generais e almirantes: tende, por sua própria natureza, a ser

definidor da política externa do país. Não é este o momento de entrar na discussão

sobre o que seja uma política de Estado e uma política de Governo. O que importa

assinalar é que qualquer doutrina de defesa, que exige aprovação dos comandos

militares e do Presidente da República, revela-se em políticas de Estado, podendo

sofrer variações na sua execução, mas nunca um desvio de rota. No Governo

George Bush pai definiram-se objetivos nacionais que continuaram sendo os

mesmos no Governo Clinton e nada indica terem sido alterados no Governo George

W. Bush: estender mundialmente a noção de direitos humanos, o combate ao

narcotráfico, a democracia de mercado, descobrir nichos para aplicação de capitais

norte-americanos em vantagem sobre seus concorrentes — o que implica, no que a

nós, brasileiros, interessa, fazer com que a ALCA seja uma realidade o mais

rapidamente possível, a fim de reforçar a presença norte-americana nas Américas. O

atual Governo Bush pode ter relegado a plano secundário a efetivação de alguns

desses objetivos, como, por exemplo, a plena realização dos direitos humanos em

todo o mundo — não significa que tenha riscado esse item da pauta diplomática,

podendo voltar a ser preponderante quando e se o Governo norte-americano julgar

conveniente.

Não compreenderemos a política norte-americana se afastarmos de nossas

considerações aquilo que expus, tentando mostrar como nela existem certas

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constantes que não podem ser desprezadas. Não só não podem e não devem ser

desprezadas, mas devem ser examinadas lado a lado com a situação interna norte-

americana — porque assim foi sempre as dissensões entre imperialistas e não

imperialistas, traduzindo apenas divergências maiores no plano interno. Com isso,

quero dizer que, ao propugnar por uma política externa contrária ao multilateralismo

— e se arriscando a aparecer diante do mundo como um governo voluntarioso,

preocupado apenas com seus interesses —, o Governo George W. Bush está de

fato preocupado com sua continuidade política, vale dizer, com as eleições para

renovação da Câmara e parte do Senado, cujo resultado será sumamente

importante para o futuro político da atual administração.

Observo, no entanto, que a preocupação eleitoral não é a única determinante

desse comportamento: a inspirá-lo está, com certeza, a tentativa de um grupo

político de fazer da política externa norte-americana o instrumento capaz de permitir

que o Império, embora respeitando a aparência de soberania dos demais Estados,

imponha sua visão cultural ao mundo, custe o que custar, para que não haja nação

ou conjunto de nações que pretenda se lhe contrapor em influência e poder.

Quando falo em visão cultural, quero dizer uma concepção do mundo, uma

Weltanschauung mais do que uma ideologia, uma visão do que deve ser o mundo,

construída agora por intelectuais e homens de empresa de um Estado que tem em

seu ativo de realizações em defesa da civilização ocidental — signifique isso o que

signifique — ter decidido a 1ª Guerra Mundial, contra a barbárie guilhermina, a 2ª

Guerra Mundial, contra a barbárie nazista, e levado o comunismo, inimigo jurado da

civilização cristã (assim foi apresentado durante a Guerra Fria) ao desastre final sem

guerra.

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É esse ativo que fundamenta a nova doutrina militar fundada no emprego

seletivo da arma atômica quando e se for necessário a juízo dos Estados Unidos

para sua defesa e a de seus aliados contra ações de Estados irresponsáveis. O

problema subjacente a esse tipo de proposição militar e diplomática é que, ao decidir

que os Estados Unidos serão os defensores de seus aliados e amigos contra

ataques de Estados irresponsáveis, o Governo norte-americano passa a imaginar

que não lhe é necessário o apoio de outros governos, especialmente daqueles de

países que, econômica e politicamente, podem fazer face, ainda que dentro de anos,

ao Império. Quero dizer que a opinião dos outros não lhes interessa porque os

Estados Unidos são militarmente fortes o suficiente para decidir os destinos do

mundo e são a única potência que pode dar garantias — e cumpri-las — de

defender a Europa, Israel, Coréia do Sul e Taiwan contra ataques vindos de onde

vierem. A esse sentimento, junta-se um outro: o de que os governos desses países,

especialmente os europeus, acreditam que isso tudo é verdade.

Estes são os elementos que devem ser levados em consideração na análise

da atual situação mundial. Sem dúvida, outros poderão ser acrescentados e com

certeza o serão. Mas se pretendemos dar alguma contribuição para que se

compreenda o momento que vivemos, não podemos deixar de considerar que os

Estados Unidos, lentamente ao longo dos decênios, mudaram o sentido seiscentista

da soberania e construíram um Império que nada tem de romano — e nada tem de

romano porque reconhece a peculiaridade das culturas com as quais

necessariamente entra em contato apenas no discurso com viés antropológico,

discurso esse que colabora com a manutenção da estrutura hierárquica no sistema

internacional. Esse império também não pode consentir que surja no horizonte um

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Estado que, solidamente ancorado numa outra visão de cultura, possa oferecer

alternativa aos pretorianos do século XXI.

Muito obrigado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Agradeço ao Prof. Oliveiros

S. Ferreira a brilhante exposição.

Quero registrar a presença, desde a manhã de hoje, do amigo Embaixador da

Palestina no Brasil, Dr. Mussa Demes. Muito obrigado pela sua presença. E também

registro que o resultado deste seminário será publicado pelos organizadores e que o

Instituto de Pesquisa e Relações Internacionais — IPRI do Itamaraty, do prezado

amigo Cardin, cuidará da organização dessa publicação, que estará naturalmente

disponível para os que compareceram e para um público mais amplo, interessado no

tema.

Agradeço mais uma vez ao estimado Prof. Hélio Jaguaribe a presença, a

quem passo a palavra.

O SR. HÉLIO JAGUARIBE – Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados,

senhoras e senhores, vou procurar, com a brevidade que me foi recomendada,

discorrer sucintamente sobre o problema relacionado com a política externa

brasileira para o século XXI.

A intenção de abordar a política externa brasileira no quadro tão amplo de um

século só é viável se adotarmos imensas simplificações. O número de variáveis em

jogo é praticamente ilimitado e nenhuma consideração será possível se não se

adotarem simplificações muito estreitas. Essas simplificações serão

fundamentalmente no sentido, primeiro, de considerar o século XXI como tendendo

a se dividir em duas etapas. Uma primeira, na qual nos encontramos, uma etapa

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final e uma intermediária, de transição entre a primeira e a segunda. Seria insensato

querer prever os decênios que essas etapas vão conter. Pode ocorrer que esse

intervalo se situe em meados do século, um pouco antes ou um pouco depois, mas

creio que se pode afirmar, como razoável simplificação, que o século apresentará

duas etapas: a inicial e a final, e um período de transição.

Por outro lado, no que se refere à tecnologia, que vai ter desenvolvimentos

imprevisíveis, uma vez mais seria impossível dizer de que forma essa tecnologia vai

alterar as relações internacionais. É evidente que vai superprivilegiar os já

superprivilegiados. Assim mesmo, é razoável supor-se que entre importantes centros

de poder o desenvolvimento tecnológico se reparta com certo equilíbrio, ou seja,

quanto mais equilíbrio e poder venha a se configurar no mundo, mais a

probabilidade de equilíbrio ecológico se apresenta. Quanto mais assimétricas forem

as relações de poder, mais assimétrica igualmente será a repartição das inovações

tecnológicas.

No que diz respeito ao nosso País, estas opções se definirão com muito mais

serenidade do que a nova ordem mundial: se ele se encaminha numa direção de

autonomia ou para a inserção satelitizada dentro do sistema norte-americano. As

duas alternativas estão abertas. A segunda, parece-me, é mais poderosa, mas há

elementos importantes que preservam a viabilidade da primeira.

Finalmente, em relação à ordem mundial que se vai configurar no curso deste

século, como foi muito bem dito pelo primeiro orador, creio que se podem admitir

três grandes hipóteses, mais uma vez com uma simplificação que me parece

razoável. A primeira, já mencionada na primeira palestra desta tarde, é de que se

venha a consolidar e universalizar o predomínio do sistema americano. Essa

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hegemonia, como já foi mencionado, foi chamada por Samuel Hundington de

unimultipolar. É o unilateralismo, ainda contido por remanescentes de

multipolarismo, que se pode converter no curso do século XXI no unipolarismo total.

Pode haver uma longa paz americana, que começará a se consolidar no curso do

século e definirá um longo período histórico. Não será permanente, como nada na

história é, mas poderá facilmente ocupar a totalidade do século XXI.

A outra alternativa é que forças emergentes, algumas das quais já bastantes

visíveis, consigam desenvolver autonomias satisfatórias para um crescimento que as

conduza a formar centros autônomos de poder. Então, teríamos a possibilidade de

um mundo multipolar que tenderia a se definir em meados do século e caracterizaria

a segunda metade dele como um trânsito do relativo unipolarismo americano da fase

inicial para um novo multipolarismo, eventual, possível, que vamos discutir

brevemente, na segunda metade.

Finalmente, há uma terceira hipótese, que, embora não seja de alta

probabilidade, não pode ser descartada, que chamo de apocalíptica. Uma guerra de

extermínio nas condições nucleares atuais, que se tornam cada vez mais

sofisticadas, certamente não será planejada por ninguém. Nenhum país tomará a

iniciativa, mas ela pode ocorrer em escaladas em cascata que terminem conduzindo

a um apelo da arma nuclear. Uma guerra convencional pode converter-se em guerra

convencional generalizada; uma guerra convencional generalizada pode conduzir a

parte perdedora a ameaçar a outra com arma nuclear, se não houver um armistício

conveniente; esse armistício pode ser negado; e uma deflagração apocalíptica,

embora improvável, não é igual a zero.

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Outro ponto que quero ressaltar é o que considero o império americano, o

problema da possibilidade de um desfecho multipolar do mundo, e, finalmente, a

posição do Brasil. Comecemos pelo império americano, que foi muito bem

examinado pelo Sr. Oliveiros S. Ferreira, na brilhante conferência que acabamos de

ouvir.

O império americano se distingue, como ele bem salientou, dos impérios

precedentes, do romano ao britânico, porque não é um sistema de imposição de

soberanias formais sobre as áreas dependentes. Nesse sentido, o império

americano não é exatamente um império. Caberia talvez apelar para outra

denominação, que chamaria de campo, a exemplo do termo que empregamos

quando falamos de campo magnético, campo gravitacional, ou seja, uma área em

que condicionamentos diversos — econômicos, tecnológicos, inclusive militares —

compelem os atores situados dentro dessa área a atuar de forma compatível com a

vontade e com os interesses da potência hegemônica, sem, entretanto, furtar-lhes a

soberania formal. Apenas condiciona, de forma absolutamente adequada às suas

conveniências.

Já podemos assistir a esses tipos de constrangimentos irreversíveis, e isso

fica evidente no caso brasileiro, à medida que estamos experimentando sobretudo

constrangimentos financeiros, compelindo o País a adotar uma linha política com

poucas alternativas, embora continuemos com absoluta soberania formal no sentido

clássico. O problema, portanto, é precisamente este: é um sistema que se

caracteriza por uma redução das opções nas áreas sob seu predomínio.

Esse sistema tem limitações internas e externas. As limitações internas vêm

da própria natureza da sociedade americana, da sua cultura, das suas instituições,

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ou seja, trata-se de uma sociedade em que valores de procedência ocidental e

democrática impedem formas desinibidas e ostensivas de imposição imperial. Para a

intervenção militar, o estadista necessita em primeiro lugar criar perante sua própria

opinião pública a demonização do adversário. Uma vez demonizado o adversário,

torna-se legítimo, porque falamos de uma sociedade que mantém fundamentalmente

uma visão calvinista do mundo, da luta do bem contra o mal. No “eixo do mal”, um

dos próximos países com possibilidade de sofrer ataque é o Iraque.

Por outro lado, essa capacidade de exercício arbitrário de poder, além de

limitada internamente pela cultura, pelos valores e pelas instituições americanas,

também é limitada por fatores externos. Existe uma resistência européia que não

pode ser completamente ignorada; existe uma resistência chinesa que não pode ser

completamente ignorada; existe uma resistência russa menor, mas crescente; existe

uma resistência indiana menor, mas crescente; uma resistência de certos países

latino-americanos menor, mas crescente. Há resistências até do próprio sistema das

Nações Unidas, que também não podem ser completamente ignoradas. Então, esse

conjunto de resistências, embora nas condições atuais não chegue a gerar um

sistema multipolar, retém dentro de limites inferiores àqueles desejados pelos

Estados Unidos a unipolaridade.

Acrescentemos outro fator interessante na comparação entre a grande

experiência imperial que foi o Império Romano e essa nova experiência imperial que

se faz não mediante impérios formais, mas por intermédio de campos de

condicionamento, e esse é o regime das províncias. Um dos aspectos interessantes

da extraordinária experiência que foi o Império Romano é o fato de que ele se

constituiu por via militar. As legiões ocuparam a Gália, o Oriente Médio, o norte da

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África, em suma, ocuparam, mediante vitórias esmagadoras sobre seus adversários,

as áreas que viriam a compor o Império Romano.

O segundo momento da ocupação foi predatório. General romano não tinha

salário, tinha direito a predar a área que ocupava, e isso foi aplicado por todos os

generais. A apropriação de escravos e de tesouros e a escravização dos povos

eram a remuneração. A primeira fase da ocupação romana foi terrível, de implacável

espoliação das áreas vencidas. Passada essa fase, trocando-se um general por

outro, entravam a racionalidade e a eqüidade romanas, duas grandes distinções que

eram o jus gentium e o pretor peregrinum.

Depois de uma certa fase predatória, as províncias eram submetidas a uma

administração regular, pelo menos desejadamente honesta. Embora houvesse

corrupção, como sempre, ela era objetiva e institucionalmente honesta. As

províncias, depois de violentadas pelas legiões e espoliadas pelos generais,

aderiram ao Império Romano. O último bastião da defesa do Império Romano foi a

Gália, precisamente aquela em que César, quinhentos anos antes, fez milhares e

milhares de escravos. Entretanto, ali houve a resistência final do Império Romano.

Ele ruiu na hora em que deixou de ser favorável para as províncias, que o

sustentaram até o século IV.

Na área americana, a relação de hegemonia da empresa multinacional e da

superpotência sobre as áreas gera uma divisão que não se dava no Império

Romano. Era espoliativa sob certos aspectos, excludente de emprego sob outros,

mais dinamizadora sob outros. Ela não gera um consenso satisfatório de inserção no

sistema, e sim resistência. Uma das resistências ao unilateralismo norte-americano é

a que se faz sentir naqueles campos em que predomina sua influência.

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Bem, feita esta observação, que tipo de perspectivas se abrem para o mundo

no curso deste século? Volto a dizer: existe a possibilidade, bastante observável, de

que se consolide o sistema norte-americano com a eliminação completa de qualquer

foco de resistência possível, processo esse que está encontrando a primeira

modalidade operacional em nome da luta contra o terrorismo. A luta contra o

terrorismo, justificada pelo atentado de 11 de setembro, está levando a ocupações

militares, a alianças forçadas, à exclusão de personalidade. Em suma, em nome do

terrorismo, está-se criando um sistema eliminador de possíveis focos de resistência

contra o sistema norte-americano. Mas, dentro de limites, a luta contra o terrorismo

não está conduzindo a uma influência militar norte-americana na China, não está

conseguindo fazer isso na Índia, nem na Rússia, que adere taticamente à luta contra

o terrorismo em áreas externas, mas aumenta, cada vez mais, o comando do poder

central de Moscou sobre o sistema remanescente do império soviético — a nova

Rússia. A partir da gestão de Vladimir Putin, está havendo indícios de uma

significativa recuperação da economia russa; portanto, das capacidades de um país

que continua sendo uma grande potência nuclear.

O que se passa então? Há a possibilidade de que a China, continuando com

sua extraordinária capacidade de crescimento, depois de vinte anos crescendo à

base de mais de 10% ao ano e evitando uma ação preventiva norte-americana de

destruição de seus centros nucleares — o que não é impossível, mas é altamente

improvável, por muitas razões —, atinja, em meados do século, o que eu chamaria

de regime de eqüipolência. Isso o futuro vai dizer. A China não será uma potência

igual aos Estados Unidos, em inúmeros aspectos, mas disporá de condições de

sustentação econômica e tecnológica interna e de capacidade de retaliação

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suficiente para assegurar plena autonomia internacional dentro dos limites da

compatibilidade entre um grande poder e outro grande poder.

As indicações de que a Rússia recupere sua capacidade de superpotência

são numerosas. A população russa é extremamente educada, as condições naturais

da Rússia são extremamente favoráveis, há todo um substrato de poder que

permanece. Portanto, havendo uma boa administração, que estava faltando depois

daquela forma caótica pela qual o regime soviético se converteu numa capitania de

mercado, haverá possibilidade de crescimento russo, o que fará aumentar a

independência e a autonomia russa.

Algo se pode dizer também em relação à União Européia, que está vivendo

uma fase complexa, em que a conveniência ou mesmo o imperativo de absorver

novos países dentro do sistema atual dos quinze está enfraquecendo

significativamente a capacidade decisória do sistema.

Por outro lado, há que se notar a crescente demanda por parte dos países-

chaves, França e Alemanha, de maior autonomia internacional. Já criaram o sistema

de força internacional, que poderá se desenvolver, e há claramente dentro da

Europa um antagonismo, uma dialética, uma contradição, uma oposição entre a

Europa da Inglaterra e dos países nórdicos e a Europa dos países continentais. Uma

Europa atlanticista e uma Europa europeísta. O que vai predominar? É difícil dizer.

Mas sou levado a crer que haverá uma divisão política da Europa. A manutenção da

Europa como o mercado comum já consolidado, eventualmente com a adesão da

Inglaterra ao euro, não é fundamental. Mas é possível, embora não necessário, que

se forme uma separação significativa de posições de política externa e de política de

defesa, gerando-se um sistema que eu chamaria de latino-germânico, favorável a

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uma posição de autonomia externa e de defesa, bem como um sistema anglo-

saxônico, favorável a uma aliança firme — mas não um regime de deliberada

dependência — com os Estados Unidos.

Menciono en passant que há a possibilidade, bem mais recuada, de que se

forme um certo sistema autonômico na América do Sul. Discutirei o fato

posteriormente.

Vejamos então um pouco do que ocorre neste quadro com um país como o

Brasil. O Brasil se encontra, em prazo muito curto, diante da necessidade de

preservar as condições de sua autonomia ou de abdicar delas; encontra-se, num

prazo apenas ligeiramente menos curto, diante da possibilidade de atingir um

patamar satisfatório de desenvolvimento social e econômico-tecnológico, ou, ao

contrário, de continuar numa evolução muito lenta, em termos de crescimento

econômico, que quase corresponde apenas ao crescimento demográfico.

São alternativas muito importantes: a alternativa de preservação das

presentes margens de autonomia ou a abdicação delas. Isso vai se definir em prazo

extremamente curto. Por outro lado, há a perspectiva de se atingir — dentro de um

horizonte que não vai além de duas décadas, em virtude da crescente

impossibilidade de expansão que os países emergentes têm em virtude de pressões

internacionais — um patamar satisfatório de desenvolvimento.

O que vai acontecer, ninguém sabe, mas vai depender de muitos de nós. Na

medida em que se torne claro para a consciência pública brasileira o fato de que a

preservação da autonomia é requisito absolutamente fundamental para que este

País tenha um destino próprio, o Brasil poderá resistir às pressões para que se torne

um satélite dentro da ALCA. Poderá resistir a pressões para que continue com

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tratados totalmente alienadores da soberania, como o Tratado de Alcântara,

podendo, portanto, preservar condições para que, dentro de um prazo que

infelizmente não vai além de duas décadas, proceda ao seu desenvolvimento

acelerado.

O que o Brasil vai fazer em matéria de política externa é totalmente

dependente dessas duas alternativas. Se ele se converter num satélite dos Estados

Unidos, entrando na ALCA, aceitando a formalização de relações assimétricas, não

terá política externa nenhuma. A política externa norte-americana será apenas uma

forma pela qual pessoas brilhantes terão o direito de viver em Paris com o título de

embaixador. (Muito bem!)

Por outro lado, se, ao contrário, o Brasil preservar a margem de autonomia de

que ainda dispõe e empreender um vigoroso esforço de desenvolvimento que

supere sua terrível marginalidade social, se levar esses 50 milhões de miseráveis a

uma condição de cidadania plena, se atingir um patamar econômico-tecnológico

comparável, num horizonte do ano 2020, ao da Itália de hoje — não da Itália de

2020, mas da Itália de hoje —, ele adquirirá condições de preservar uma

personalidade histórica própria, um protagonismo próprio no mundo que se

desenhará na segunda metade do século XXI.

Se, como eu suponho mais provável, a segunda metade do século XXI

caminhar para uma nova modalidade de multipolaridade e multilateralismo, na

medida em que o Brasil preservar sua autonomia e lograr um patamar satisfatório de

desenvolvimento, ele terá um espaço significativo dentro deste mundo. E, mesmo

se, por acaso, vier a prevalecer a Pax Americana, a inserção dos vários centros

mundiais nessa Pax Americana não será de igual modo; haverá satélites de

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primeira, segunda e terceira classe. O Brasil, se mantiver o mais longamente

possível a sua autonomia e o seu grau de desenvolvimento, será um satélite de

primeira classe. A diferença é significativa. Basta ver a diferença que há hoje entre

os satélites disfarçados de primeira classe, os europeus, e os de segunda classe, os

latino-americanos. Essa comparação permite compreender qual será a diferença

entre satélites de primeira e de segunda classe, na hipótese de uma duradoura Pax

Americana.

O que fazer? Em que condições essa autonomia brasileira é possível? É

realizável essa expectativa de um desenvolvimento sustentável e satisfatório? Há

dois tipos de consideração a fazer. Em relação às medidas de prazo curto, o

problema é eminentemente de consciência nacional. É preciso desmistificar, de

maneira clara, todas as formas pelas quais se apresenta como de interesse

brasileiro a hipótese de nos tornarmos um satélite americano dentro da ALCA.

Dizem que é preciso negociar e negociar. Mas que tipo de negociação pode a ALCA

nos oferecer? A ALCA tem duas dimensões claras: a teórica, de que seria uma área

de livre comércio irrestrito entre todos os países da América, e a efetiva, com os

Estados Unidos valendo-se da legislação do seu Congresso, que estabeleceria em

lei não revogável por ato do Executivo restrições protecionistas de toda sorte. Muito

bem. Quando se fala em negociação, presume-se que o representante do Executivo

possa, em entendimento com o representante do Executivo norte-americano, gerar

condições satisfatórias de inserção do Brasil na ALCA, como se o Presidente norte-

americano — supondo que ele tivesse toda a boa vontade — pudesse, por iniciativa

própria, revogar leis aprovadas no Congresso. Ora, o Executivo não pode negociar

senão de acordo com as leis. Sim, a ALCA exige negociação, mas uma negociação

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do Sr. Bush com o seu Congresso. Esta é a negociação possível. Somente quando

o Sr. Bush obtiver do seu Congresso a supressão da legislação protecionista, aí

então será possível ao Brasil negociar com o Sr. Bush, porque o Presidente norte-

americano não estará constrangido por uma legislação protecionista que não

depende dele. A negociação possível é entre Bush e o Congresso norte-americano;

o resto é mistificação.

Em havendo essa negociação — que certamente não acontecerá —, a

entrada do Brasil na ALCA significaria nossa abertura para a supercompetitividade

americana e portas fechadas naqueles pequenos setores em que somos mais

competitivos que os americanos. Naquilo em que o Brasil é competitivo, mercado

fechado; naquilo em que o Brasil não é competitivo, entrada livre para os Estados

Unidos. Isto é a ALCA. Se seguirmos esse caminho, não teremos futuro; seremos

satélites de segunda classe. (Muito bem!)

Vencida essa barreira importantíssima, surge uma outra: como é possível

enfrentarmos os dois decênios, prazo máximo que a história nos dá para nos

tornarmos uma sociedade satisfatoriamente desenvolvida, se teremos de enfrentar

cinco quadriênios presidenciais, cada um deles com características próprias? Como,

num regime democrático, manter a coerência de um projeto desenvolvimentista que,

para obter êxito, depende de taxas de crescimento muito ambiciosas, da ordem de

7%, bem maiores do que as miseráveis taxas que registramos hoje, ente 1,5% e

2%?

A resposta é que não se pode alcançar tudo isso facilmente. Só há uma forma

de o Brasil lograr atingir um patamar de desenvolvimento satisfatório a despeito da

alternância de lideranças nos cinco quadriênios que temos pela frente: formar-se um

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amplo consenso nacional a respeito de metas básicas, as quais todos os grandes

partidos aceitem como fundamentais e se disponham a atingi-las, cada um com seu

discurso, à sua maneira. Não me refiro a um pensamento único quanto ao processo,

mas a um consenso quanto a metas fundamentais. Se esse consenso for alcançado,

a chance de o Brasil atravessar cinco quadriênios caminhando na direção correta é

bastante razoável.

Há um fator auspicioso a esse respeito. Acaba de ser assinado por alguns

dos mais eminentes Parlamentares de todos os partidos brasileiros uma proposta de

projeto de metas consensuais. O documento já foi submetido à apreciação do

Presidente da República e dos candidatos à Presidência. Será objeto de ampla de

divulgação pela imprensa a partir de agora.

A idéia do grupo que formou o Comitê de Consenso é fazer um grande debate

nacional sobre as idéias de consenso apresentadas pelo Comitê e, em seguida,

reformular seu projeto, para aproximá-lo das recomendações resultantes da

discussão com a sociedade. Se conseguirmos fazer isso — e as chances são

bastante razoáveis —, ficarei muito otimista quanto à possibilidade de o Brasil se

desenvolver.

Admitindo-se que consigamos passar no vestibular da “não-satelitização” a

curto prazo dentro da ALCA, julgo fundamental para a política externa brasileira que

ergamos sistemas internacionais de apoio. O Brasil não logrará sobreviver neste

mercado extremamente complicado, sobretudo no período em que será

predominante, particularmente nesta região do mundo onde estamos, com a

hegemonia e a Pax Americana, se não atentar para alguns pontos fundamentais.

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Antes de mais nada é preciso consolidar seriamente o MERCOSUL, para que

seja vantajoso integrá-lo e extremamente desvantajoso deixá-lo. O MERCOSUL não

será sustentado por tratados, por acordos, e sim pela efetiva convergência de

interesses. Se for absolutamente útil para a Argentina permanecer no MERCOSUL,

não haverá Cavallo que a tire do mercado.

O MERCOSUL depende do Brasil. Existem na história somente três tipos de

liderança. A liderança coercitiva encontra exemplo no Império Romano, no império

norte-americano etc. A liderança por sedução, uma forma fantástica de liderança,

pode ser constatada na Florença dos Médicis — uma pequena cidade italiana que

seduziu o mundo — ou na França de Luiz XV, que, embora tenha perdido todas as

guerras do século XVII, tornou-se, graças a nomes como Voltaire e Rousseau, o

berço da cultura universal. Mesmo os ingleses, que a odiavam, falavam francês no

meio aristocrático.

Nós temos um enorme instrumento de sedução, que são nossas lindas

mulheres, mas, infelizmente, isso não é o bastante. (Risos.)

A liderança que o Brasil pode exercer não é nenhuma das duas citadas, é a

terceira forma de liderança: por co-participação. Um regime precisar ser estabelecido

de tal maneira que a proposta brasileira seja extremamente útil para aqueles a quem

ela se dirige, de maneira que pertencer ao MERCOSUL seja bom e não pertencer

seja mau. Isso significa, de certo modo, um intercâmbio: alguns favores econômicos

são dados aos nossos parceiros em troca da vantagem política de formarmos um

sistema que tenha capacidade de resistência autonômica diante das grande

potências. Compramos autonomia com algumas concessões econômicas. Temos de

fazê-lo, ou perdemos também a nossa autonomia.

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Outro ponto fundamental é dar andamento àquela cúpula presidencial havida

em 2001 aqui em Brasília, quando todos os Presidentes de países sul-americanos, a

convite do Presidente Fernando Henrique Cardoso, reuniram-se e firmaram a

decisão de criar um sistema sul-americano de cooperação e livre comércio até 2002.

O ano 2002 já está adiantado e essa intenção ainda não saiu do papel. Mas eis que

também definiram o propósito de fazer a integração física do continente num prazo

de dez anos. E, aparentemente, essa segunda idéia está caminhando melhor que a

primeira.

Não haverá condições de resistirmos à ALCA se não tivermos um acordo de

livre comércio com os países andinos. Estes certamente farão parte da ALCA.

Portanto, já será uma grande vantagem se conseguirmos que o MERCOSUL não a

integre. Então, se os andinos estiverem na ALCA e o MERCOSUL estiver fora, com

o Brasil fazendo parte do MERCOSUL, os Estados Unidos terão favores na

exportação para os países andinos enquanto nós, não. Assim, vamos perder o

mercado andino, que é importante e crescente. Se, entretanto, fizermos um acordo

de livre comércio, ainda que os andinos façam parte da ALCA não ficaremos

prejudicados. O Brasil não é competitivo com os Estados Unidos em território de

influência norte-americana, mas é competitivo em território boliviano e em outros

territórios contíguos ao nosso, caso consigamos acertar um acordo de livre comércio

que não seja inferior ao que esses países deverão fazer com os Estados Unidos.

Isso está a nosso alcance. Depende de conseguirmos negociar o regime de

livre comércio em troca das enormes vantagens que podemos oferecer.

Outro aspecto a ressaltar é a conveniência de algumas alianças

extracontinentais. É preciso articular uma política de interesses comuns aos países

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de dimensões continentais, como Brasil, China, Índia e Rússia. Esses países podem

formar uma frente internacional para defender seus interesses. São todos países

emergentes que estão sofrendo terríveis pressões das grandes potências,

notadamente da superpotência.

Também temos interesses comuns com a Europa. Embora os europeus

adotem uma postura econômica ainda mais mesquinha que a americana,

importantes setores daquela economia, especialmente os que defendem a

autonomia européia, sentem a necessidade política de aumentar sua capacidade

autonômica através do apoio sul-americano. Essa troca de vantagens políticas

permite certos tipos de negociação, independentemente de outras considerações. É

importante estabelecer com a Europa não um acordo econômico, mas um acordo

político que consolide as condições brasileiras de sustentação da sua autonomia.

Meus caros, a política externa brasileira ou será uma política própria, na

medida em que o País preserve e amplie sua margem de economia e consolide seu

desenvolvimento, ou simplesmente não será nada. Muito obrigado! (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Cumprimento o Prof. Hélio

Jaguaribe por sua brilhante exposição.

Solicito a quem tiver perguntas escritas a fazer que as encaminhe para a

Mesa. (Pausa.)

Acabamos de receber uma, endereçada ao Prof. Oliveiros S. Ferreira.

O SR. OLIVEIROS S. FERREIRA - A rigor, a resposta cabe ao Prof. Hélio,

porque eu só falei em ALCA en passant.

Hélio, eu pediria a você que respondesse a esta pergunta: “A ALCA pode ser

uma realidade a fim de aumentar a presença americana na América. Como o senhor

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definiria o contorno que pode tomar essa presença? O que seria a ALCA nesse

contexto — um instrumento de dominação americana?”

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Como eu já tive a oportunidade de dizer, a

ALCA apresenta um aspecto retórico de liberdade de comércio incondicionada e um

aspecto real de liberdade de comércio de mão única. Os setores mais débeis da

economia norte-americana são protegidos por uma legislação do Congresso que

não pode ser revogada por ato meramente executivo, mas que depende de nova

legislação que revogue a norma vigente. Portanto, nesse quadro já de grande

desequilíbrio entre a alta produtividade e competitividade norte-americana e a nossa

muito mais modesta condição, a relação aberta fica absolutamente inviável caso

aqueles poucos setores em que teríamos privilégios nos sejam vedados.

Recordemos, estimados amigos, que os Estados Unidos, hoje defensores do

livre comércio, foram os mais consistentes adeptos da proteção tarifária. A

independência norte-americana começa com a adoção da Tarifa de Hamilton e

segue com uma série de outras tarifas praticadas durante todo o século XIX.

Enquanto a competitividade americana foi inferior à européia, a tarifa praticada nos

Estados Unidos protegia o crescimento da indústria nacional; no momento em que a

competitividade americana se tornou superior, os Estados Unidos passaram a ser

favoráveis ao livre comércio. A mesma mudança pode ser notada em outros países,

em diferentes períodos históricos. A Inglaterra, por exemplo, foi protecionista até o

momento em que, derrotada a Holanda, tornou-se o maior país mercador do mundo,

passando a ser livre-cambista. Ou seja, os países inteligentes são protecionistas

enquanto precisam crescer, mas livre-cambistas quando já são grandes. E o Brasil

ainda é pequeno.

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O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Muito obrigado, Prof.

Jaguaribe.

Tem a palavra o Prof. Luis Fernandes.

O SR. LUÍS FERNANDES - A pergunta feita é a seguinte: “O que acham da

coincidência de os países correspondentes ao 'Eixo do Mal' serem ricos em petróleo

no seu subsolo?”

Respondo: não há coincidência. Essa pergunta está inserida numa discussão

que todos os integrantes da Mesa levantaram: o retorno da centralização de

objetivos geopolíticos, num sentido mais amplo, na agenda externa norte-americana.

A partir da Guerra do Golfo, os Estados Unidos conseguiram estabelecer uma

presença militar permanente em área que sempre foi desfavorável à sua influência.

Com a guerra no Afeganistão, os Estados Unidos aumentaram sua presença militar

e sua influência numa região próxima ao Mar Cáspio, que é também uma área

riquíssima em produção de petróleo. Não há coincidência. Também não é

coincidência a composição do duro núcleo que responde pela formulação da política

externa norte-americana, que consagra relações históricas com a indústria do

petróleo.

O controle dessas fontes energéticas não é um problema conjuntural. É algo

mais amplo. No entanto, isso não diz respeito unicamente a uma eventual

necessidade de a economia norte-americana descobrir e controlar novas fontes de

petróleo no futuro próximo, mas também ao propósito que têm os Estados Unidos de

manter o controle estratégico dessas fontes de abastecimento com relação aos seus

rivais — que figuram na lista do Prof. Hélio Jaguaribe —, profundamente

dependentes dessas regiões. Refiro-me em particular à Europa e à Ásia, e,

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sobretudo, ao Japão. Por meio do controle dessas fontes energéticas, aumenta o

controle estratégico dos Estados Unidos sobre eventuais forças de resistência, de

contramovimento à sua agenda de dominação.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Podemos acrescentar que,

não por acaso, nas cercanias de países como Colômbia, Venezuela, Bolívia e

Equador existem grandes reservas de petróleo, ainda sob toda a confusão que se

arma.

Acho que já recebemos todas as perguntas. Vou passar a palavra ao Prof.

Oliveiros S. Ferreira e ao Prof. Hélio Jaguaribe, para as respostas.

Tem a palavra primeiramente o Prof. Oliveiros S. Ferreira.

O SR. OLIVEIROS S. FERREIRA – Há a seguinte pergunta: “Considerando-

se que numa tríplice fronteira Brasil-Argentina-Paraguai existiriam células terroristas,

e não tendo o Brasil, supostamente, condições de enfrentamento, qual seria o

cenário em que o Brasil seria incluído no 'Eixo do Mal'?''

Bem, o cenário está traçado. Por ocasião dos atentados a Nova Iorque e da

guerra no Afeganistão, vocês devem ter observado que houve uma pressão da

imprensa, sobretudo da televisão, no sentido de colocar o Brasil em má situação.

Eu ouvi e vou tentar reproduzir uma informação veiculada pelo Jornal

Nacional. Dizia-se que no Paraguai havia sido descoberta uma célula terrorista. Há,

porém, um corte na edição. Mostram um delegado da Polícia Federal em Foz do

Iguaçu dizendo que não havia nada daquilo. Segue-se outro corte. O Serviço

Secreto do Exército argentino afirmava que existia. Depois da guerra no

Afeganistão, vocês devem ter observado isso. De repente, descobriram a fotografia

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de uma catarata no lugar onde estava a tal célula da organização Al Qaeda. Eram as

Catarata do Iguaçu...

Quando o Presidente Fernando Henrique Cardoso estava — não me recordo

bem — na Europa ou nos Estados Unidos, uma jornalista norte-americana

perguntou-lhe de que recursos dispunha o Brasil para combater a célula terrorista na

tríplice fronteira. Criou-se uma situação, um cenário. Até prenderam libaneses que

moravam no Paraguai só porque eles tinham contribuído para um partido político

legal do Líbano que, por sua vez, tem ligações foncier com a causa palestina. Estão

agora presos por terrorismo. O cenário está traçado.

Vou tomar outra pergunta dirigida ao Prof. Hélio Jaguaribe, e assim dou-lhe

tempo para pensar nas muitas que recebeu.

Pela manhã, foi dito pelo Ministro das Relações Exteriores que a ALCA, em

algum momento, terá de ser negociada. Isso é um sinal de que estamos optando por

ser um satélite de segunda categoria? A autonomia e a representatividade a serem

obedecidas nas próximas décadas podem prescindir de boa estrutura militar?

Começo pelo fim. Acho que perdemos a autonomia decisória na política

externa quando resolvemos abandonar todo o esforço militar. Por sorte, ainda

conseguimos manter, sob nosso controle, o domínio do átomo. Mas cometemos, a

meu ver, o equívoco fundamental: assinar o TNP. Antes, havíamos cometido alguns

equívocos nas relações com a Argentina ao colocar toda a nossa pesquisa nuclear

sob o controle daquele país para que pudéssemos submeter todos esses acordos à

Agência Nacional de Energia Atômica.

Ao aderir ao TNP, reconhecemos que há uma divisão do mundo entre os

bem-intencionados e os mal-intencionados; reconhecemos o congelamento de

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poder, que condenamos durante o período de 1964 em diante; assinamos acordos

que nos proíbem, de certa maneira, de fazer pesquisas para foguetes.

Estamos sem expressão militar. Nossa expressão militar é de forças

convencionais, de armamentos que não são de primeira linha. Agora, ter armamento

de primeira linha significa que a sociedade o deseja.

Quanto à questão de nos prepararmos para ser satélite de segunda categoria,

acho que conscientemente ninguém quer ser satélite de segunda categoria, mas há

tantas novas fragrâncias no meio do caminho que acabamos por descobrir que

somos pais de uma criança que não queríamos. (Risos.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Prof. Hélio Jaguaribe, quero

apenas esclarecer sobre essa foto da cachoeira de Foz do Iguaçu. Perguntei ao

General Alberto Cardoso, Ministro responsável pela ABIN. S.Exa. disse que cuidou

de fazer a comparação, e a foto apontada nunca foi nem será de Foz do Iguaçu.

Pode ser de outra cachoeira de qualquer lugar do mundo. (Risos.)

Prof. Hélio Jaguaribe, V.Sa. tem a palavra.

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Infelizmente, vou ter de me retirar às 16h30min,

mas ainda disponho de mais um pouco de tempo para responder às perguntas.

Entre as interessantes questões que me foram dirigidas está a seguinte: “Em

que medida a criação do Estado da Palestina teria efeitos favoráveis na redução do

terrorismo?”

É indiscutível o fato de o terrorismo islâmico ter profunda conexão com as

relações alarmantemente assimétricas que ocorrem entre israelenses e palestinos.

Não creio que a simples construção do Estado palestino, dotado de condições

apropriadas — o que ainda me parece um objetivo longínquo —, eliminasse

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totalmente o terrorismo, mas certamente eliminaria a principal justificativa de dar um

sentido nobre ao terrorismo: defesa nacional, resistência do povo ocupante.

O terrorismo não desapareceria com o Estado da Palestina, mas ficariam

muito reduzidas as motivações mais nobres, ou seja, o Estado da Palestina acabaria

com os homens-bomba, com o suicídio da juventude que, de forma impressionante,

está se matando para protestar contra a ocupação do seu território. Nisso eu creio.

Há várias perguntas a respeito de como posso pretender que o Brasil

disponha de condições, relativamente de curto prazo, para assegurar sua margem

de autonomia, quando o País tem extraordinária dependência do sistema financeiro

internacional e é obrigado a recorrer ao Fundo Monetário Internacional para reforçar

sua capacidade de divisas diante da corrida ao dólar, que está sendo exagerada

pelas perspectivas de eleições, interpretadas por muitos como desfavorável ao

capital estrangeiro. Concordo totalmente.

Considero que o nó górdio brasileiro é a dependência externa, em geral, e

financeira, em particular. Tudo o mais decorre disso. E se trata de algo que exige

resposta extremamente séria.

A respeito desse assunto, a opinião técnica brasileira está dividida, talvez, em

dois campos. O campo representado por pessoas extremamente competentes,

como o Ministro Pedro Malan, o atual Presidente do Banco Central, enfim, a equipe

econômica que está dirigindo o País, formada por pessoas de absoluta competência

e seriedade.

Essas pessoas acham que, se o Brasil administrar sua posição externa com

cautela e obtiver satisfatório apoio internacional, vai aumentar a margem de

superávit da balança comercial, que já está apresentando, pela primeira vez, um

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saldo de perspectivas favoráveis — 6 bilhões de dólares — para este exercício. À

medida que o saldo da balança comercial for crescendo, a dependência externa vai

decrescendo e a dependência de altos juros também. Em suma, haveria uma

solução gradualista, ortodoxa, que permitiria, mediante o incremento da exportação

e a moderação das importações, gerar um futuro equilíbrio nas nossas transações

correntes.

Uma tese respeitável. Apenas confesso que tenho dúvidas a respeito dela,

porque me parece que a probabilidade de formamos, nas condições atuais, saldos

de balança comercial satisfatórios para compensar déficit das transações correntes

ainda é muito baixa.

Por outro lado, há aspectos de que algo está para estourar relativamente em

curto prazo. O problema social brasileiro está ficando gravíssimo; a criminalidade

está ficando gravíssima; outros problemas estão ficando gravíssimos, porque o

Estado brasileiro está completamente engessado pela dependência externa e pela

incapacidade de gerar superávit em moeda nacional. Exemplo: os altos juros estão

correspondendo a 36% da arrecadação federal, que representa 16% do PIB — 1%

do PIB é consumido pelo débito da Previdência Social.

A União, embora esteja arrecadando perto de 100 bilhões de dólares, não tem

um centavo livre, porque está completamente manietada pela dependência externa.

Sem resolver o problema da dependência externa, não há autonomia

possível. Haverá possibilidade de resolvê-la gradualmente? Sim, vamos ver. Creio

que, nesse assunto, deve-se tentar, na medida do possível, as soluções ortodoxas,

mas deve-se ter realismo suficiente para dizer que essas soluções ortodoxas não

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estão dando certo, vamos apelar para o quantum satis de ortodoxia para

superá-las.

Daí entra uma série de medidas não ortodoxas, das quais a mais notória é o

controle total do câmbio pelo Banco Central. A partir do momento em que houver

controle total do câmbio pelo Banco Central, o Banco alocará as divisas de acordo

com prioridades nacionais. Evidentemente, uma das conseqüências será alocar

divisas para compensar déficit de conta corrente, com significativa redução da

margem de divisas destinadas às importações.

As importações vão subir, tudo bem. É melhor que subam e a nossa

independência seja preservada do que continuar a haver importação fácil e, cada

vez mais, perda de autonomia.

Vamos tentar resolver a crise da dependência ortodoxamente e, em ficando

claro que o timing da solução é inferior ao desejável, vamos apelar para as medidas

heterodoxas. Que salvem a República, salus rei publicae, suprema lex esto.

Novamente vou resumir o que me parece ser fundamental a respeito da

ALCA.

O projeto da ALCA, como disse, é abstratamente de livre comércio e

efetivamente de redução de proteção de certas áreas sensíveis.

Os lobistas americanos têm capacidade de influenciar o Congresso, e o

Congresso promulga leis que o Presidente é obrigado a seguir. O próprio Presidente

não pode contrariar frontalmente esse lobby. Não nos olvidemos de que, nos

Estados Unidos, a diferença entre democracy e presidência é muito pequena, de

forma que a mobilização de lobistas a favor de um partido e de um candidato é

decisiva. Por isso o lobby americano é tão poderoso.

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De certa maneira, pode-se dizer que, contrariando as idéias de Rousseau, o

Congresso americano não tem nada a ver com a volonté générale, e sim com a

volonté spécifique. Na verdade, é uma assembléia de lobistas. E, dentro do

lobismo, é ingênuo pensar que o Brasil vai poder motivar o Congresso americano a

abdicar, em detrimento do lobby, de proteções que são, para os lobistas,

fundamentais.

Diante disso, se o Brasil entrar na ALCA, significa aceitar uma dupla

inferioridade: a inferioridade genérica diante da supercompetitividade americana e

nossa menor competitividade geral e especificamente àqueles poucos setores em

que somos mais competitivos, que nos são vedados. Evidentemente, é suicídio

nacional.

Depois de clara exposição da opinião pública brasileira do que representa a

ALCA, este País pode formar uma gigantesca rede de opinião pública que inviabilize

a adesão ao respectivo acordo. Não creio que o futuro Governo assine o acordo

sobre a ALCA, nem que o Presidente Fernando Henrique Cardoso o faça antes do

término de seu mandato.

Creio que esse documento não será assinado pelo Brasil, mas volto a dizer

que a séria decisão de resistirmos à superpotência nos furtando de entrar num

sistema em que somos necessariamente perdedores tem de ser compensada por

algumas outras coisas, senão ficaremos com nossa posição muito vulnerável a

agressões externas.

O Brasil tem de se acostumar à idéia de que sua autonomia nacional se fará

com contínua pressão contrária dos Estados Unidos. Não se trata de relação

antagônica, mas contraditória. É preciso ressaltar essa diferença. Não há razão para

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sermos antiamericanos, mas também não há razão para termos ilusões com o fato

de que a superpotência não deseja que se estabeleça um núcleo satisfatório de

autonomia num país semicontinental como o Brasil. Será sempre com oposição

americana que vamos edificar nossa autonomia.

Para esse efeito, temos de adotar medidas de compensação adequadas.

Refiro-me principalmente a MERCOSUL e América do Sul. É necessário fazer do

MERCOSUL algo fundamental. E como se pode fazer isso? Quando o MERCOSUL

foi constituído, a idéia básica era a de que se criaria um sistema que, com o tempo,

se converteria num mercado comum e se caracterizaria pela otimização da

economia dos participantes; contudo, à medida que o Brasil, a Argentina e a

América Latina como um todo começaram a ser invadidos pela ideologia neoliberal

que assolou o mundo no curso da década de 90, o MERCOSUL foi se convertendo

num sistema de trocas mercantis.

Esse sistema não é satisfatório para os países membros. É deficitário para o

Brasil e insatisfatório para a Argentina, embora ela seja ocasionalmente

superavitária nas trocas com o nosso País.

É preciso criar uma política industrial comum, estabelecer um projeto

industrial que assegure áreas de produção argentina para o mercado do Brasil e, se

a Argentina sair do MERCOSUL, excluí-la do mercado brasileiro. Ou se tem acesso

ao MERCOSUL, industrializando-se muito mais rapidamente, em virtude desse

mercado e de inversões do Brasil na indústria brasileira destinada à exportação

geral, o que vai permitir a reindustrialização desse país vizinho a curto prazo, ou

então a Argentina, não querendo sair do MERCOSUL, paga o preço de perder o

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nosso mercado. Isso é suficiente para garantir sua adesão ao MERCOSUL. Esta é a

primeira jogada fundamental: o MERCOSUL não integra a ALCA.

A segunda jogada, como tenho insistido, é o estabelecimento de um acordo

de livre comércio com os países andinos. Mais uma vez temos a dar a eles o nosso

gigantesco mercado em troca de um acordo de livre comércio. É perfeitamente

negociável. Tanto isso é verdade que os Presidentes andinos que estiveram em

Brasília concordaram com a idéia. É o caso de implementar uma idéia que já tem

acordo firmado com os países andinos. Entretanto, por razões que não são do meu

conhecimento, esse projeto ficou parado.

Creio que se deveria utilizar esse final de governo do Presidente Fernando

Henrique Cardoso, o homem que teve a iniciativa de convocar os Presidentes

andinos para que viessem a esta cidade, para implementar esse projeto. Seria dado

um passo adiante e o próximo Governo continuaria a caminhada.

Era o que tinha a dizer.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Creio, aliás, Prof. Hélio

Jaguaribe, que esse foi um dos objetivos da reunião de Guaiaquil, no Equador. Se o

Brasil entrar para a ALCA, aceitará uma dupla inferioridade. E menciono a

inferioridade genérica de retomar em alguns aspectos essa proposta da reunião de

Brasília, principalmente no que se refere à aceleração da área de infra-estrutura.

Para uma última resposta, concedo a palavra ao Prof. Luis Fernandes.

O SR. LUIS FERNANDES - Tenho duas perguntas. Uma é sobre a relação

entre ALCA e MERCOSUL, que foi amplamente respondida pelo Prof. Hélio

Jaguaribe. Só quero destacar um ponto: em última instância, temos dois projetos —

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nesse caso, sim, antagônicos — de integração regional materializados na ALCA e

no MERCOSUL.

O antagonismo não é com os Estados Unidos ou com a sociedade americana.

Mas há dois projetos. Se vingar a ALCA, aquilo que hoje estrutura debilmente o

MERCOSUL, que é a Tarifa Externa Comum, terá de ser desarticulado. Então,

inviabiliza-se o MERCOSUL.

Cabe verificar qual é o interesse do Brasil nessa integração. O MERCOSUL

nos possibilita uma integração menos assimétrica que pode servir de embrião para

uma integração sul-americana e, quiçá, mais ampla, atraindo outros setores da

América Latina. Quanto a isso, é a aceitação de uma integração absolutamente

assimétrica que inviabiliza nosso desenvolvimento e inclusive nossa voz no cenário

internacional.

Outra questão: como resistir? Há o problema da negociação. O Brasil, a partir

de novembro, estará na presidência das comissões de negociação. Taticamente,

pode ser uma boa posição, para o Governo atual e para o que vier a ser eleito,

participar das negociações de forma firme e expor as exigências do Brasil — no

mínimo, eqüidade.

Como disse o Prof. Hélio Jaguaribe, para conceder o Trade Promotion

Authority, a autoridade de negociação, o Congresso norte-americano, impôs

condições que inviabilizam a agenda brasileira na negociação com a ALCA.

A tendência é que não se concluam as negociações por absoluta

incapacidade do próprio Poder Executivo americano fazer qualquer concessão séria

às demandas não só do Brasil, mas também de boa parte dos países

sul-americanos.

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Foram feitos aqui interessantes questionamentos. Existe um movimento

terrorista internacional? Qual é o seu eixo de comando? Quais são os objetivos?

Essas perguntas mostram o embuste da estruturação da política externa

norte-americana em torno deste antagonismo: guerra global contra terrorismo. O

terrorismo é uma forma de luta abjeta, porque envolve a vitimização da população

civil em decorrência de objetivos políticos, mas é utilizado por inúmeros movimentos

em inúmeros Estados.

Então, erigir a luta contra o terrorismo como eixo da política externa é um

embuste, porque, na verdade, em meio a tudo isso se encobre uma predisposição

crescente ao uso da força para imposição de objetivos geopolíticos daquele Estado,

em nome da guerra global contra o terrorismo.

No caso específico do movimento terrorista que atingiu os Estados Unidos em

11 de setembro, se formos procurar seus financiadores, treinadores, estimuladores,

vamos bater na sede da CIA, porque esse grupo foi treinado, financiado, estimulado

pela política externa norte-americana na época da Guerra Fria para combater

regimes seculares que sofriam influência da União Soviética na região da Ásia

Central, em particular no Afeganistão.

O próprio Estado norte-americano tem responsabilidade no estímulo a esse

tipo de ação terrorista. Então, erigir a luta contra o terrorismo como eixo global de

política externa é um embuste que encobre outros objetivos. A aceitação desse

embuste é absolutamente criminosa, porque retira da agenda de discussão

internacional temas que são prioritários: desenvolvimento, defesa dos direitos

humanos, eqüidade no sistema internacional. Eles são retirados de pauta por essa

agenda que quer impor uma luta global contra o terrorismo, cabendo ao Estado

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norte-americano determinar que alvos serão atacados no mundo e quando. Isso

representa a perda completa de autonomia e de respeito aos princípios multilaterais

no sistema internacional.

Eram esses os dois pontos sobre os quais eu queria falar. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Muito obrigado, professor.

Concedo a palavra ao Prof. Oliveiros S. Ferreira.

O SR. OLIVEIROS S. FERREIRA - Como estamos encerrando, eu gostaria

de deixar uma provocação ao Presidente no sentido de que agendasse um

seminário. Falou-se muito em ampliar o MERCOSUL. Pergunto: por que não temos

a coragem política de propor a Confederação do Prata?

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Muito bem, professor, bela

provocação.

Agradeço mais uma vez aos Profs. Luis Fernandes, Oliveiros S. Ferreira e

Hélio Jaguaribe, que demonstraram como valeu a pena o esforço para organizar

este seminário. Deram-nos grande contribuição para clarear não só o presente, mas

os horizontes da política externa do nosso País.

Suspenderemos a reunião por dez minutos, após o que abordaremos o

próximo tema.

Agradeço, mais uma vez, aos conferencistas. (Palmas.)

(É suspensa a reunião.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Recebemos a cobrança de

que a Mesa dos trabalhos não providenciou uma apresentação mais rigorosa dos

nossos conferencistas. De fato, registramos essa falha.

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Com atraso, apresentamos muito sucintamente os conferencistas da manhã:

o Ministro de Estado das Relações Exteriores, Celso Lafer, que fez a conferência de

abertura; Profa. Letícia Pinheiro, do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro; Profa. Maria Regina Soares de Lima, do

IUPERJ; Prof. Hélio Jaguaribe, que trabalhou no ISEB nos anos 60, foi Ministro de

Estado e é professor do Instituto de Estudos de Políticas Sociais; Prof. Luis

Fernandes, do Instituto de Relações Internacionais da PUC do Rio de Janeiro e

Diretor da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio

de Janeiro; e o escritor Oliveiros S. Ferreira, professor da Faculdade de Ciências

Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Vamos compor a Mesa para a realização do painel “Perspectivas das

Relações do Brasil com as Organizações Internacionais”, que engloba os seguintes

temas: as relações do Brasil com o sistema de segurança internacional da ONU,

com o Conselho de Segurança das Nações Unidas e organismos de

não-proliferação; o Brasil e as alianças militares internacionais; e o Brasil e as

organizações reguladoras da economia internacional, como a Organização Mundial

do Comércio, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.

Registramos que estava presente até há pouco o Prof. Renato Lessa,

Diretor-Presidente da FAPERJ, uma das instituições organizadoras deste seminário.

O Prof. Luis Fernandes, diretor da mencionada fundação, continua presente, assim

como o Ministro Carlos Henrique Cardim, Diretor do Instituto de Pesquisa de

Relações Internacionais — IPRI, do Itamaraty.

Convidamos para integrar a Mesa o Prof. Antônio Celso Alves Pereira, da

Universidade Veiga de Almeida, e o embaixador Luiz Augusto de Araújo Castro,

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Subsecretário-Geral de Assuntos Políticos Multilaterais do Ministério das Relações

Exteriores. (Palmas.)

Registramos que a Profa. Mônica Herz, por motivo de saúde, não pôde

comparecer, assim como o embaixador José Maurício Bustani. Mas temos absoluta

convicção de que o Prof. Antônio Celso Alves Pereira e o embaixador Luiz Augusto

de Araújo Castro atenderão as expectativas sobre o painel desta tarde.

Inicialmente, passo a palavra ao Prof. Antônio Celso Alves Pereira pelo tempo

de vinte minutos, agradecendo a prontidão com que atendeu o convite da Comissão

de Relações Exteriores, do IEPES e da FAPERJ.

O SR. ANTÔNIO CELSO ALVES PEREIRA - Sr. Presidente, Deputado Aldo

Rebelo; Sr. Embaixador Araújo Castro, senhoras e senhores, abordaremos nesta

palestra o Tribunal Penal Internacional, um tema polêmico principalmente

considerando-se as reações da superpotência hegemônica, que não aceita, de

forma alguma, os termos de seu estatuto.

Inicialmente, abordarei a posição brasileira sobre a criação de uma jurisdição

internacional para tratar de determinados crimes graves, sobretudo contra a

humanidade, genocídios, etc., que são objeto do estatuto do Tribunal Penal

Internacional. Falarei ainda sobre como se deu a constituição desse tribunal e as

reações a ele, principalmente a norte-americana.

Em julho deste ano, o Brasil ratificou o estatuto do Tribunal Penal

Internacional. Foi um passo importantíssimo da política externa brasileira, porque

sinaliza para o mundo que estamos preocupados com o assunto e aceitamos a

existência de mecanismos de controle, o monitoramento dos direitos humanos por

organismos internacionais.

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Há algum tempo o Brasil vem reformulando velhos conceitos, mudando

velhas posições, o que, ao longo do nosso processo de transição democrática, vem

se consolidando. Hoje podemos dizer que o Brasil tem uma posição bastante segura

nessa matéria, na medida em que já ratificou as convenções internacionais mais

importantes. Conseqüentemente, estamos dentro do corpus juris constituído a

partir da criação das Nações Unidas, principalmente a partir de 1948, com a entrada

em vigor da Carta Internacional dos Direitos Humanos, que compreende,

obviamente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e os Pactos

Internacionais sobre Direitos Políticos e Civis e o sobre Direitos Econômicos, Sociais

e Culturais.

O art. 4º, inciso II, da nossa Constituição estabelece que a República

Federativa do Brasil rege-se, nas suas relações internacionais, pela prevalência dos

direitos humanos.

Foi exatamente em cumprimento a essa diretriz constitucional que o Brasil,

com uma delegação bastante ativa e importante, chefiada pelo Embaixador Gilberto

Saboia, na Conferência de Roma de 1998, somou-se aos Estados que votaram

favoravelmente à adoção do Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal

Internacional.

É importante salientar que essa ação do Brasil foi tão coerente que no art. 7º

do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da nossa Constituição está

escrito: “O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos

humanos”. Essa foi uma diretriz para a política externa brasileira, ou seja, apoiar a

criação de um tribunal penal internacional.

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Para assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, nossa Carta

Magna também determina, no art. 5º, inciso XLI, que “a lei punirá qualquer

discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.

A ratificação da criação do tribunal se deu no dia 12 de junho de 2002.

Estamos vivendo hoje processo de consolidação da democracia em nosso País. Em

1992, já no processo de transição democrática, o Brasil tornou-se parte da

Convenção Americana de Direitos Humanos, também muito importante para o País.

O documento foi adotado em 1969. Vejam como estamos defasados, em

decorrência de questões políticas internas. Em 1998, um passo muito importante foi

dado: o Brasil declarou à OEA que a partir daquela data passaria a aceitar a

jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em pleno

funcionamento apesar de pouco conhecida aqui. Ela é presidida por um ilustre jurista

brasileiro da Universidade de Brasília, o Prof. Antônio Augusto Cançado Trindade,

que dá uma contribuição jurisprudencial muito importante sobre direitos humanos em

âmbito regional e internacional.

O Brasil tem tradição nessa área. Já em 1948, na IX Conferência

Internacional Americana, realizada em Bogotá, o Brasil fez aprovar moção de

criação da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ela foi criada, e quase vinte

anos depois o Brasil passou a aceitar a sua jurisdição.

Temos alguns problemas, sobre os quais falarei rapidamente. Por exemplo:

prospera ainda no País a cultura de pouco conhecimento dos órgãos multilaterais,

principalmente os que tratam dos direitos humanos. Ilustres membros da

magistratura brasileira ainda vêem os tribunais internacionais, como a Corte

Interamericana de Direitos Humanos e o Tribunal Penal Internacional, de forma

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bastante desconfiada, aferrados à idéia de que aceitar a jurisdição internacional

seria permitir interferência indébita, capitis diminutio para a soberania nacional.

Isso ocorre porque não estão atualizados com a melhor doutrina sobre direitos

humanos que prospera em todo o mundo.

Na medida em que o homem é reconhecido como pessoa internacional; que a

sua subjetividade internacional é acatada pela doutrina e, hoje, pelas convenções

internacionais; que passa a ter não só direitos, mas também deveres com a ordem

pública internacional em relação aos direitos humanos, é preciso, obviamente, criar

cortes que julguem as violações aos direitos humanos praticadas por Estados e

indivíduos.

Logo após a Primeira Guerra Mundial, na década de 20, ao ser criada a Corte

Internacional de Justiça — na época chamada de Corte Permanente de Justiça

Internacional —, pensou-se em criar uma câmara para julgar o indivíduo. Mas

àquela época ainda prosperava, fruto da arraigada filiação aos princípios hegelianos

do positivismo voluntarista do século XIX, muito forte ainda ao término da Primeira

Guerra Mundial, a idéia de que só o Estado era pessoa internacional e podia ter

subjetividade internacional; de que o homem só poderia buscar apoio dos tribunais

internacionais pelo mecanismo tradicional do apoio diplomático, por intermédio do

seu Estado. Não se concebia o homem individualmente perante os tribunais

internacionais.

Hoje estão em vigor no mundo duas cortes de direitos humanos regionais: a

Corte Interamericana de Direitos Humanos com sede em São José, Capital da Costa

Rica, que tem como função exatamente monitorar a violação dos direitos humanos

de acordo com a Convenção Americana dos Direitos Humanos; e a Corte Européia

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de Direitos Humanos. E agora o Tribunal Penal Internacional. As duas cortes ad hoc

funcionarão enquanto todos os criminosos não forem julgados e foram criadas à

imagem e semelhança dos Tribunais de Tóquio, principalmente do Tribunal de

Nuremberg, e sua legalidade é bastante questionável. Elas estão em pleno

funcionamento, mas seria importante criar jurisdição internacional permanente, não

ad hoc como essas duas cortes regionais, para julgar violações individuais, a fim de

ser julgada a responsabilidade penal individual por violações aos direitos humanos e

por crimes capitulados no Estatuto de Roma de 1998.

O Estatuto foi ratificado pelo Brasil, mas alguns problemas constitucionais

colocados em pauta para criar obstáculos não foram de todo superados. Nesta

palestra não poderei entrar em detalhes sobre as relações e conflitos entre o Direito

interno e o Direito internacional ou sobre as brigas entre as correntes dualistas e

monistas em torno dessa questão porque o tempo não permite.

Mas o Brasil simplesmente ratificou o Estatuto, sem entrar em maiores

detalhes principalmente em relação à entrega do nacional e à prisão perpétua.

Tramita emenda constitucional sobre o assunto, e no Ministério da Justiça uma

comissão está tratando do processo de implementação do Tribunal Penal

Internacional.

A nossa magistratura pode ficar absolutamente tranqüila porque a

implantação dessa corte não significará invasão da soberania e da jurisdição

nacional. A ratificação do Estatuto de Roma, pelo Brasil, foi uma afirmação de

soberania e se deu segundo a sua vontade; não houve qualquer pressão. Pelo

contrário: hoje, as pressões são no sentido de que ele não seja ratificado.

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Este País deverá manter a necessária autonomia, mencionada há pouco pelo

professor, para ter maior margem de manobra na política externa. O Brasil

autonomamente ratificou-a e agora trata de sua implementação, aguardando a

Conferência dos Estados Partes, da qual participará, em novembro. À ocasião,

serão discutidos o funcionamento do tribunal, previsto para entrar em funcionamento

em 2003, e a escolha dos juízes. O princípio da jurisdição é universal, originou-se do

esforço dos Estados para combater a pirataria, reprimir o corso e depois o tráfico de

escravos.

Na ata final do Congresso de Viena, em 1815, em nome dos princípios

universais da moralidade e da humanidade, as potências participantes resolveram

declarar ilegal o tráfico de escravos, estendendo obviamente aos traficantes uma

jurisdição internacional. Eis parte da ata do Congresso de Viena:

“Quem apanhasse poderia punir, para pôr termo a um

flagelo que durante tanto tempo desolou a África,

degradou a Europa e afligiu a humanidade”.

Documentos anexos apontam que, de 1650 a 1800, 12 milhões de africanos

foram aprisionados e transportados de forma desumana para o Ocidente.

Posteriormente, no Ato de Berlim, de 1890, e no Ato Geral de Bruxelas,

antiescravagista, do mesmo ano, a ilicitude do tráfico também foi confirmada. O

princípio de jurisdição universal está lá.

Nos primórdios do Direito Internacional, na obra de Hugo Grotius, um de seus

fundadores, vamos encontrar a seguinte afirmação: “De jure belli ac pacis”, ou seja,

era necessário punir quem cometia o crime de pirataria. Diz o texto de Hugo Grotius

que, quem cometer crime de pirataria longe de terra ferma ou de terra firme, não

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terá proteção de qualquer Estado. A segurança das comunicações marítimas é,

obviamente, um bem jurídico por excelência. Elas não podem correr perigo.

Hoje, na tentativa de construção de uma cidadania universal, diante da

realidade da transnacionalização das atividades humanas lícitas e ilícitas, de um

mundo que se dinamiza em redes transnacionais de toda a natureza, precisamos

obviamente repensar a vinculação do direito ao espaço. Não podemos mais apelar

para a soberania absoluta do modelo westfaliano, no qual vigorou, até o final do

século XIX e praticamente até a Primeira Guerra Mundial, o princípio de que apenas

se podia aceitar a exclusividade nacional de jurisdição; jamais a interferência de

jurisdição internacional ou externa nos assuntos do Estado.

A Primeira Guerra Mundial foi importante ponto de partida. Já foi mencionado

pelo Prof. Oliveiros S. Ferreira o kaiser Guilherme II, que, ao término da guerra,

refugiou-se na Holanda. De acordo com o art. 277 do Tratado de Versalhes, o

imperador alemão deveria prestar contas pelos crimes que cometera, ou seja, ser

submetido a julgamento. Conseqüentemente, os arts. 228 e 229 determinavam a

criação de um tribunal para julgar os criminosos de guerra alemães da Primeira

Guerra Mundial.

A Holanda, como se sabe, não extraditou o kaiser nem disse o motivo.

Àquela altura não seria realmente de estranhar o fato de a Holanda não extraditá-lo.

Fracassaram todas as tentativas de criação desse tribunal internacional para julgar

os criminosos alemães. Lei alemã concedeu à Suprema Corte daquele país

competência para julgar 21 mil alemães acusados de crimes de guerra. Esse

número foi reduzido, depois, para 895 e posteriormente para 45. Somente 21 foram

de fato julgados e 13 foram condenados a 3 anos de cadeia, uma pena leve.

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Isso mostra como as jurisdições nacionais não cumprem seu papel. É

inconcebível que, de um rol de 21 mil criminosos de guerra, ninguém tenha sido

absolutamente apenado.

Para não repetir o fracasso da tentativa de criar esse tribunal, em 1943, na

Declaração de Moscou, os aliados resolveram criar um tribunal ad hoc, depois do

acordo firmado em Londres, em 8 de agosto de 1945. Trata-se do Tribunal de

Nuremberg e do Tribunal de Tóquio, criado por iniciativa do general norte-americano

procônsul no Japão para julgar os criminosos de guerra japoneses.

Há muitas críticas contra o Tribunal de Nuremberg, mas ele foi um tribunal de

vencedores. Apenas foram julgados os perdedores de guerra. Os vencedores

fizeram o julgamento, criaram o tribunal e só julgaram quem quiseram. Questão

bastante duvidosa. Alguns dos ilícitos pelos quais os criminosos alemães foram

condenados à época não eram considerados pelas normas do Direito Internacional

comum. Há, portanto, mais esse problema. A consciência daquele momento mundial

era de tal ordem que esses criminosos precisavam ser punidos. O holocausto não

estava apenas na mente das pessoas, mas também estampado em todos os jornais

e noticiários de todo o mundo. E assim permanece até hoje; não nos podemos

esquecer dele. Os criminosos nazistas precisavam de imediata punição. Todas as

questões legais mais sofisticadas foram esquecidas. O tribunal entrou em ação e

desempenhou seu papel.

Atualmente, estamos diante de dois tribunais ad hoc: um para a ex-

Ioguslávia, para julgar os crimes cometidos naquela nação, ou seja, o desrespeito às

leis de guerra, às normas do Direito Humanitário, principalmente os chamados

crimes de genocídio e contra a humanidade; e outro para Ruanda. Esses dois

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tribunais, obviamente, logo que completarem seu papel, vão ser encerrados,

liquidados, assim como foram os Tribunais de Tóquio e de Nuremberg.

Precisava manter-se viva a idéia de uma jurisdição internacional. Voltou-se a

pensar, então, na criação de um tribunal internacional. Foi imediatamente instalada

conferência para tratar do assunto. Pensou-se em criar, inicialmente, esse tribunal

numa reforma da Carta da ONU, principalmente do art. 108, mas haveria

desvantagem, porque teria a mesma natureza jurídica da Corte Internacional de

Justiça, que apenas julga ações entre Estados. Essa Corte julgaria indivíduos, mas

ficaria dentro do sistema das Nações Unidas, numa dependência direta, podendo

sofrer interferência maior ainda do que o tribunal pode sofrer do Conselho de

Segurança. Pensou-se também em criar o tribunal por resolução da Assembléia

Geral, o que seria mais plausível, porque ela reúne todos os 189 países membros da

ONU. Dessa forma, o tribunal teria mais legitimidade.

Planejou-se, então, criar tribunal semelhante aos dois tribunais ad hoc, por

resolução do Conselho de Segurança. Optou-se pelo melhor caminho: tratado

mutilateral que dotasse o tribunal de autonomia absoluta e transformasse a

instituição, por força do seu estatuto, a sua carta constituidora, em organização

internacional com total independência para cumprir seus objetivos.

Cento e vinte Estados votaram favoravelmente, inclusive o Brasil. Estados

Unidos, Filipinas, China, Índia, Israel, Turquia e Sri Lanka votaram contra e 21

países se abstiveram. Estados Unidos — ao apagar das luzes do Governo Clinton —

e Israel assinaram o Estatuto de Roma. Apenas isso. Esperava-se que

posteriormente viessem a retificá-lo, o que seria uma grande vitória porque foram

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dois dos países que mais se opuseram e criaram as maiores dificuldades durante a

conferência.

O Presidente Bush começou o seu governo manifestando ferrenha oposição à

matéria, tratando-a de forma diferente. Agora tentou praticar ato inusitado no que se

refere ao Direito Internacional. Ele queria apagar a assinatura, quer dizer, a doutrina,

com liquid paper. Isso é inédito. Nunca se ouviu falar de algo assim. Simplesmente

resolveu não ratificar o acordo. Não precisava apagar a assinatura. A oposição à

criação do tribunal é de tal ordem que simplesmente passaram a borracha no

assunto.

O tribunal está sediado em Haia, Holanda, e tem jurisdição sobre os crimes

de extrema gravidade que ameacem a paz, a segurança e o bem-estar da

humanidade. De acordo com o art. 5º do Estatuto de Roma, os crimes que estão na

mira desse tribunal são o genocídio, os crimes contra a humanidade, os de guerra e

a agressão.

O Estatuto pode ser facilmente adquirido. Nele os senhores verão cada uma

dessas categorias de crime detalhadamente explicadas e conceituadas. O crime de

agressão depende ainda da aprovação de dispositivo que venha a defini-lo

exatamente. Isso será feito ao longo do processo de implantação do tribunal.

O art. 12 é muito importante e resultou, obviamente, em compromisso

possível. Mas deu muito trabalho aprová-lo durante a conferência, porque levanta

questões relativas à forma segundo a qual os Estados podem se eximir durante o

período da jurisdição do tribunal. Refiro-me ao sistema opt out contido no art. 124,

combinado com o art. 12. Durante sete anos, qualquer Estado pode declarar que

não aceita a jurisdição do tribunal para crimes de guerra, quando alegadamente

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tenham sido cometidos por seus nacionais ou em seu território. É uma tentativa de

aplacar o ânimo dos Estados Unidos, que declararam não aceitar, durante sete

anos, a jurisdição do tribunal.

É importante salientar que os princípios do Direito Penal são todos

respeitados pelo tribunal. O Estatuto aplica-se a todos os indivíduos, por igual, não

importando o grau da função oficial exercida. Ou seja, qualquer autoridade do

Estado que violar um dos direitos capitulados no art. 5º estará sujeita à jurisdição do

tribunal.

Actione tempus. O tribunal só julgará crimes a partir da sua entrada em

funcionamento, em respeito ao princípio da não-retroatividade. Ou seja, só vai julgar

os fatos daqui para a frente.

Ratione personae. Apenas pessoas com idade acima de 18 anos serão

julgadas pelo tribunal.

Outro ponto bastante interessante: ele inova em matéria de Direito Processual

Internacional. Até agora, todas as normas, procedimentos e provas do tribunais

internacionais têm sido criados pelos próprios juízes. Pelo Estatuto de Roma,

apenas a Assembléia dos Estados Parte vai determinar a mudança da forma de

apresentação de provas e dos procedimentos do tribunal. Isso é interessante,

porque no tribunal ad hoc da Iugoslávia são constantemente mudadas as regras, o

que dá instabilidade processual ao andamento do processo. As normas

estabelecidas pelo Tribunal de Ruanda não foram mudadas até hoje. O Tribunal

Penal Internacional só poderá mudar qualquer norma ou procedimento de produção

de provas com a aprovação dos Estados Parte.

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Ainda persistem muitas objeções e críticas ao Tribunal Penal Internacional,

apresentadas, durante a Conferência de Roma, por vários Estados. O ponto

fundamental, meus amigos, é soberania. A jurisdição internacional do tribunal

ameaça a exclusividade das jurisdições nacionais, o que é absolutamente

improcedente. Está amplamente consagrado que não cabe a nenhum Estado

invocar direitos soberanos para justificar descumprimento de compromissos

internacionais em matéria de direitos humanos.

Os Estados Unidos, por exemplo, têm cometido algumas arbitrariedades por

causa do exercício de seu incontrastável poder hegemônico e, por razões mais do

que conhecidas, acabam por exercer enorme controle sobre os organismos

multilaterais com os quais mantêm relações bastante difíceis, principalmente agora,

com sua política unilateral, seu globalismo unidetalhista e sua política de intervenção

em todos os organismos multilaterais que não puderam controlar de forma

absolutamente rigorosa. Daqui a pouco vamos mencionar algumas arbitrariedades

cometidas pelos Estados Unidos. A situação radicalizou-se em relação aos órgãos

multilaterais depois do atentado terrorista de 11 de setembro.

Ora, o Tribunal Penal Internacional é um órgão multilateral, um organismo

internacional semelhante a qualquer outro. Como o Governo Bush não aceita essas

leis, conseqüentemente, a política externa americana procura violá-las de todas as

formas. Não vou entrar em detalhes. Havia escrito algo, para comentar, mas deixo

de fazê-lo, uma vez que o assunto já foi bastante explorado.

O Governo Bush ainda não conseguiu chegar a uma maior integração, que

possibilite relações mais razoáveis com os órgãos multilaterais. Um professor da

Kennedy School, da Universidade de Harvard, fez recente declaração, publicada no

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jornal O Globo, de 3 de julho de 2002, explicando por que os Estados Unidos

rejeitam o Tribunal Penal Internacional. Com “sutileza” — entre aspas —, criou

imagem que reproduz a alma troglodita do Governo Bush: “um gorila de 350 quilos

não gosta de nada que restrinja sua liberdade de ação, a menos que ache que

possa controlar isso”.

Em relação ao tratamento dispensado aos órgãos multilaterais pelos Estados

Unidos, que não aceitam qualquer interferência em sua soberania, devemos nos

lembrar do que aconteceu na Organização para a Proibição de Armas Químicas —

OPAQ. É uma pena que o Embaixador José Maurício Bustani não esteja presente,

pois eu queria render a S.Exa. minhas homenagens pelo trabalho realizado à frente

daquela organização. Sabemos que o Embaixador foi afastado exatamente por

contrariar os interesses dos Estados Unidos, já que administrava o órgão de forma

correta, digna e independente.

Da mesma forma, os americanos investiram contra a permanência da Sra.

Mary Robson, Comissária para Direitos Humanos da ONU. A antiga Presidenta da

Irlanda caiu em desgraça, em razão de críticas ao tratamento dado pelos Estados

Unidos a prisioneiros talibãs e a membros da Al Qaeda encarcerados na Base de

Guantánamo, em Cuba, que não têm os direitos consagrados na Convenção de

Genebra sobre direitos humanos.

Pressionado pelos conservadores, o Governo Bush suspendeu a verba de 34

milhões de dólares que o Congresso destinara ao Programa de Planejamento

Familiar da ONU e repassou-a à Agência de Desenvolvimento Internacional do

Departamento de Estado. O superpoder hegemônico tem profunda dificuldade em

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aceitar que determinadas situações sejam resolvidas com apelo a mecanismos

legais internacionais.

Acadêmicos e políticos mais conservadores — já citei um deles — não

admitem a existência de justiça internacional autônoma, fora do controle dos

Estados Unidos.

Henry Kissinger, em artigo sobre jurisdição universal publicado na revista

Foreign Affairs, alerta para o fato de que tal justiça ameaça os processos nacionais

de reconciliação e transição democrática, porque os tribunais internacionais são

palco para a atuação interesseira e politizada de promotores inescrupulosos, que os

transformam em instrumento de instabilidade política. Kissinger é frontalmente

contra os poderes concedidos ao promotor para instaurar processos tanto no

Tribunal Penal Internacional, quanto nos dois tribunais ad hoc criados pelos próprios

Estados Unidos.

Lembro ponto importante: o Tribunal Penal Internacional não é concorrente

das jurisdições nacionais. Ele atuará apenas nos casos de violação dos crimes

previstos no art. 5º — genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e

crimes de agressão —, quando a jurisdição nacional deliberadamente deixar de

reconhecê-los ou agir de forma irresponsável durante o processo, enfim, quando

falhar de todo.

Se isso ocorrer, o Tribunal vai complementar a ação da jurisdição nacional,

baseado no princípio da complementaridade. Se os países não agirem corretamente

ou se um tribunal penal brasileiro, por exemplo, violar qualquer princípio

estabelecido pelo art. 5º, basta que nosso Governo prenda, julgue, absolva ou

condene o culpado. Entretanto, é fundamental que o faça corretamente, seguindo o

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devido processo legal, de acordo com o Direito Internacional e com as normas

internas. Dessa forma, não haverá qualquer problema.

Se, amanhã, um soldado dos Estados Unidos vier a cometer grave crime

contra o Direito Internacional — seja crime de guerra, seja outra categoria —, basta

que o julguem. Mas não se admite, em hipótese alguma, que ele seja julgado por

tribunais não nacionais, ou seja, por jurisdição internacional.

O ex-Secretário de Estado dos Estados Unidos pede revisão do Estatuto do

Tribunal Penal Internacional e propõe ao Conselho de Segurança da ONU —

inclusive no artigo publicado na Foreign Affairs — a criação de tribunais regionais,

que substituam aquele. Dessa forma, os Estados Unidos, mediante poder de veto no

Conselho de Segurança, poderiam controlá-los e impedir que prosperassem, caso

viessem a ser criados.

O Tribunal Penal Internacional, apesar da oposição norte-americana, obteve

mais de setenta ratificações, o que surpreendeu o mundo. Conseqüentemente, o

órgão não está fadado ao fracasso, mas terá de superar muitas dificuldades para se

consolidar.

Outro professor americano, da Universidade de Stanford, acusa o Tribunal

Penal Internacional de incapacidade para fazer a avaliação política das situações em

que se veja envolvido. Afirma ele que o Tribunal representa alto risco e que é

ingênuo acreditar que as relações internacionais possam ser regidas por processos

legais.

Não concordo com essa afirmação. É utopia querer basear essas relações

apenas em aspectos legais, diante da hegemonia dos Estados Unidos e da natureza

do sistema internacional em que vivemos. A política externa norte-americana

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volta-se agora, exclusivamente, para o combate ao terrorismo, conforme muito bem

explicado pelo Prof. Luis Fernandes. Aquela seria uma filiação irresponsável a uma

escola idealista à qual não pertenço, mesmo sabendo que é importante que as

normas internacionais sejam respeitadas.

O Direito pode integrar-se à política, de forma que se estabeleçam limites

civilizados de ação. Basta que os senhores atentem para o que acontece na União

Européia, cujo sucesso foi assegurado exatamente por normas do Direito

Comunitário e do Direito Regional Europeu. Houve importante casamento da ação

política com a legal, com o objetivo de se constituir aquela comunidade.

Podemos ter um sistema internacional norteado por normas, principalmente

no campo dos direitos humanos. Diante da atual sociedade de informação, ligada

em rede e transnacionalizada, é inconcebível que qualquer país viva de forma

autárquica e isolada, aferrado a normas jurídicas inaplicáveis ou a posições políticas

indefensáveis.

O Tribunal é realidade e funcionará a partir de 2003. O Brasil fez belo papel

na Conferência, ao ratificar soberanamente o órgão. Dessa forma, mostramos que

nossa política externa está afinada com a manutenção dos direitos humanos, a

única ideologia legítima neste início de milênio.

Muito obrigado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Muito obrigado, Prof. Antônio

Celso.

Passamos a palavra ao Embaixador Luiz Augusto de Araújo Castro,

Subsecretário-Geral de Assuntos Multilaterais do Ministério das Relações Exteriores,

a quem agradecemos a presença.

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O SR. LUIZ AUGUSTO DE ARAÚJO CASTRO – Em primeiro lugar,

agradeço a V.Exa., Deputado Aldo Rebelo, Presidente da Comissão de Relações

Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, a oportunidade de

dialogar com o Parlamento sobre temas de interesse da sociedade brasileira.

Para nós, diplomatas profissionais, é gratificante debater temas centrais para

a política exterior nos próximos anos. Esse intercâmbio será valioso para o Itamaraty

em reuniões com organismos internacionais, inclusive os da Organização das

Nações Unidas.

A palestra que acaba de ser feita pelo Prof. Antônio Celso é importante,

porque aborda a questão do Tribunal Penal Internacional. O Itamaraty, o Ministério

da Justiça, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal tiveram profícua

inter-relação ao tratar o tema. Julgou-se, de um lado, a conveniência de se criar

instância para julgar crimes de guerra e, de outro, a necessidade de se preservarem

normas constitucionais vinculadas às liberdades e aos direitos fundamentais.

Esse debate não ocorreu apenas no Brasil, mas em diversos países. A

grande maioria chegou à conclusão de que o bem maior seria a criação do Tribunal,

que não afetaria as liberdades internas.

Em nome do Itamaraty, agradeço ao Congresso Nacional a cooperação,

exemplo de que, ao trabalhar juntos, podemos chegar a boas conclusões.

É com grande satisfação que o Brasil, na qualidade de ratificante do Estatuto

de Roma, participará da Primeira Conferência dos Estados-Partes, que terá lugar em

Nova Iorque, a partir de 3 de setembro.

Foi-me solicitado comentário sobre o tema “O Brasil e o Sistema de

Segurança Internacional das Nações Unidas, do Conselho de Segurança e dos

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Organismos de Não-Proliferação”. Prometo ser breve, para que haja tempo

suficiente para perguntas e respostas.

É fundamental para a política externa brasileira a inserção do País no

sistema internacional. Refiro-me, obviamente, ao Sistema das Nações Unidas, ao

Sistema Interamericano — criado no final do século passado — e a diversas outras

organizações. A Liga das Nações foi um ensaio para a criação da política central da

ONU e das agências especializadas, inclusive das áreas econômica e financeira,

instaladas sobretudo a partir do final da 2ª Guerra Mundial.

A participação do Brasil em organismos multilaterais tem sido vetor essencial

da política externa ao longo dos anos, independentemente de mudanças de

governo, ideologia ou orientação política. Esses organismos oferecem dois valores

fundamentais para um país com as características e as dimensões do nosso. Eles

vêm confirmando-se e foram consagrados, inclusive, na Constituição.

O primeiro é o fato de que a Carta das Nações Unidas e a Carta da OEA

asseguram o respeito às normas básicas de Direito Internacional. São princípios

essenciais o não-uso da força e a não-ameaça quanto a esse uso. Parece óbvio,

mas não é. Nos termos das duas Cartas, a solução de controvérsias exige formas

pacíficas conhecidas.

Segundo, todos os Estados têm de ser respeitados como unidades

soberanas, com igualdade de direitos, apesar de diferenças econômicas, políticas e

outras. É o princípio da não-intervenção nos assuntos que pertencem à esfera de

decisão interna do Estado, assim como nas relações externas.

É claro que, com o passar do tempo, uma série de acordos soberanamente

concluídos pelos Estados foram redefinidos no contexto cooperativo internacional,

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em benefício da maior proteção de certos direitos. Um caso clássico é o dos direitos

humanos, que evoluiu desde a adoção da vaga e decorativa Declaração Universal

dos Direitos Humanos até os dias atuais, em que há mecanismos precisos e, em

muitos casos, intrusivos dos relatores especiais da Comissão Interamericana de

Direitos Humanos, entre outros, o que é muito bom.

Não admitíamos interferência externa sobre esses pontos de soberania

nacional até meados da década de 80, época da redemocratização. Entretanto,

passamos a aceitar a jurisdição de órgãos internacionais e fomos um dos primeiros

países a fazerem o chamado convite permanente aos organismos de fiscalização de

direitos humanos da Organização das Nações Unidas em casos de tortura,

desaparecimento forçado e violência contra a criança. Os relatores especiais da

entidade estão convidados a vir ao Brasil a qualquer hora. Basta agendar a visita,

para que organizemos o programa. Essa iniciativa foi tomada apenas por quatro

países latino-americanos e alguns europeus.

Voltando ao tema do seminário, a participação no sistema multilateral visava,

de um lado, fornecer garantias à atuação da Organização das Nações Unidas, da

OEA e de outras instâncias multilaterais. Refiro-me a todos os países que ganhavam

prestígio internacional e respeitavam as normas básicas de Direito Internacional já

consagradas em suas Constituições. Se eles perdessem credibilidade, aquelas

instâncias, que defendem as normas básicas de convívio internacional, também a

perderiam.

Um país de dimensões continentais como o Brasil, como dizia o Ministro

Celso Lafer, tem reflexão especial a fazer. Nosso poder de influência poderia

levar-nos a menosprezar os vizinhos menores. Entretanto, ao longo do século —

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sobretudo nas últimas décadas —, o País tem escrupulosamente respeitado os

princípios do não-uso da força e da solução pacífica de controvérsias.

Tal procedimento remonta, no caso da diplomacia, ao Barão do Rio Branco,

Ministro das Relações Exteriores entre 1902 e 1912, quando faleceu. Em 2002,

portanto, comemoramos o centenário do início de sua extraordinária gestão, que se

pautou, essencialmente, pela consolidação do relacionamento pacífico e confiável

com os dez países vizinhos. Nenhum apresentava real ameaça, mas o Barão

entendeu que, para se desenvolver em paz e ter credenciais para se inserir no

contexto internacional, era fundamental que o Brasil primeiro consolidasse suas

fronteiras. Assim foi feito. Portanto, é com toda justiça que celebramos o centenário

da gestão desse excepcional diplomata, respeitado em toda a América Latina.

Quando Embaixador no Uruguai, observei, num lugar de grande destaque em

Montevidéu, monumento que celebra o acordo promovido pelo Barão do Rio Branco,

definindo, de uma vez por todas, a divisão das águas da Lagoa Mirim e do Rio

Jaguarão. É curioso ver um diplomata nosso homenageado em país vizinho. Muito

menor que o Brasil, o Uruguai jamais representou ameaça militar, mas o Barão

percebeu que era importante manter com ele relação de confiança e que, para isso,

era necessário resolver aquela pendência, que poderia ser fator de constante atrito.

Voltando aos dias de hoje, o Brasil respeita as normas de Direito

Internacional, consagradas no art. 4º da Constituição, não por defender valores

éticos superiores aos de outros países, mas por convicção intrínseca à natureza do

nosso povo.

Os princípios das Cartas da ONU e da OEA estão também consagrados. Na

medida em que o Brasil é visto como país que respeita o Direito Internacional, são

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maiores nossas credenciais para exigir o mesmo tratamento de outros países. Ao

cumprir as normas dos organismos multilaterais, procurando aperfeiçoar os

mecanismos existentes e promover negociações sobre temas de interesse comum,

sentimo-nos no direito de exigir o mesmo respeito.

Outro ponto importante é que os organismos internacionais servem como foro

para deliberação, negociação e adoção de acordos, tratados, convenções e normas

que afetam as mais diversas áreas. Estas incluem o desarmamento — cerne da

política internacional — e outras como saúde, comunicação, comércio internacional,

finanças, direitos humanos, proteção ao meio ambiente e promoção do

desenvolvimento sustentável.

O papel regulador também é essencial no contexto das Nações Unidas,

principal órgão do sistema internacional. O Brasil sempre atribuiu grande importância

ao Conselho de Segurança da ONU, que tem como principal responsabilidade a

preservação da paz e da segurança internacionais. Por isso, ao adotar a Carta das

Nações Unidas, em São Francisco, os Estados-membros decidiram atribuir poderes

extraordinários àquele órgão.

Não pretendo expor a evolução histórica do Conselho de Segurança, mas é

importante refletir sobre seu atual papel, que evoluiu muito. Chamo a atenção dos

senhores para o fato de que, sobretudo na última década, após a queda do Muro de

Berlim e o fim da Guerra Fria, tem havido processo de auto-ampliação dos já

enormes poderes do órgão. Esse fato é preocupante para muitos.

O Conselho tem sucessivamente redefinido seu papel, adotando caráter

mandatório. Do ponto de vista jurídico, é curioso que a Carta da ONU tenha

estabelecido os poderes do Conselho no capítulo VII e, ao mesmo tempo, tenha-lhe

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dado ilimitado poder de decisão quando se tratar de ameaça à paz e à segurança

internacional.

Ao longo da última década, o Conselho interveio em conflitos internos de

vários países. A Carta deixa claro que seu poder para usar meios coercitivos se

restringe a casos em que um país é ameaçado ou agredido por outro. É evidente

que ele não pode intervir em situações internas, mas isso ocorreu diversas vezes.

Um dos exemplos mais evidentes é o da Somália, que não era ameaçada por

outro país, mas vivia pavoroso conflito interno. A violação dos direitos humanos era

aberrante e insustentável. A CNN mostrava, diariamente, o assassinato de crianças

e o trucidamento entre bandos. Enfim, uma situação absolutamente insustentável.

Técnica ou juridicamente, seria muito difícil argumentar que na Somália havia

ameaça à paz e à segurança internacional.

Sem invocar o Capítulo VII, não poderia haver intervenção militar legítima,

com a bandeira das Nações Unidas ou não. Como o caso era gritantemente

aterrador e exigia ação da comunidade internacional, houve o entendimento de que

realmente era necessário ação internacional, o que justificaria uma interpretação

flexível e generosa dos termos da Carta. Estou citando acontecimentos da primeira

metade dos anos 90, mas há exemplos bastante recentes.

No caso do desmoronamento da antiga Iugoslávia, também houve redefinição

das atribuições das Nações Unidas pelo fato de ter havido intervenção, primeiro,

dentro de um de seus Estados-membros, já que a própria Iugoslávia começava a se

desfazer. A Eslovênia e outras antigas Repúblicas da Iugoslávia — Repúblicas no

sentido de Estados federados, como qualquer Estado federado brasileiro; só que lá

chamavam-se Repúblicas — foram-se desgarrando ou proclamando a sua

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independência. Alguns países reconheciam a independência dessas ex-repúblicas,

começando pela Eslovênia, que foi prontamente reconhecida por dois ou três

Estados da Europa Ocidental, o que provocou uma série de ações no sentido de

procurar qualificar como conflito internacional o que estava acontecendo. Quer dizer,

quando o Governo Central da Iugoslávia atuou militarmente para procurar impedir a

secessão da Eslovênia, como alguns países já haviam reconhecido a independência

daquela República, foi caracterizado um conflito internacional com ameaça à paz e à

segurança internacional.

Quanto à atuação no Kosovo, a ação militar não foi feita pelas Nações

Unidas, pelo Conselho de Segurança, mas pela OTAN. É importante notar que, ao

longo dos anos 90, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, em suas reuniões

de cúpula ou de chanceleres, fez sucessivas reinterpretações do seu tratado

constitutivo. Elas também ampliam os casos de atuação da OTAN, que era

essencialmente uma aliança militar defensiva voltada contra o bloco soviético.

Claramente, o propósito era ter um mecanismo militar de aliança para fazer face ao

Pacto de Varsóvia.

Terminados o Pacto de Varsóvia e a ameaça soviética, a OTAN se redefiniu

como aliança militar, mas com outras funções. Por exemplo, no caso do Kosovo, em

que novamente não havia ameaça militar a nenhum país membro daquela

Organização, foi tomada a decisão de acordo com as novas reinterpretações da

OTAN, que resultaram nas ações militares a que nós todos assistimos pela

televisão, inclusive com ataques a Belgrado etc. Isso também é preocupante, na

medida em que uma seqüência de eventos dessa natureza amplia os poderes do

principal órgão responsável pela paz e pela segurança internacional.

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O professor mencionou a criação dos tribunais especiais para a antiga

Iugoslávia e para Ruanda. Nesses dois casos, o Brasil, entre outros países,

expressou preocupação, porque não cabia ao Conselho de Segurança, nos termos

da Carta das Nações Unidas, criar tribunais ad hoc. Sempre entendemos que a

idéia da jurisdição internacional para áreas específicas ou para áreas mais gerais

deveria nascer de um tratado, de uma convenção, em que os Estados livremente,

abdicando em parte da sua soberania, criassem uma nova instância penal que

permitisse julgar os crimes mais horrorosos, os crimes de guerra, os crimes contra a

humanidade, o que efetivamente ocorreu. Daí a importância do que foi feito com o

Estatuto de Roma, no sentido de abrir caminho para o processamento desses

crimes mais detestáveis.

Tem sido, e deve continuar a ser, sobretudo nos dias atuais, uma das

diretrizes centrais da nossa política externa, da inserção do Brasil no mundo, da

visão que o País tem de si no mundo a insistência em participar das principais

instâncias internacionais e intergovernamentais, nas quais são deliberadas as

grandes questões políticas, econômicas, financeiras e comerciais de nosso legítimo

interesse. Um país como o Brasil tem de ser ouvido, tem de participar. Isso é reflexo

da necessidade de democratização das relações internacionais.

Muitos outros países têm feito um grande esforço, desde a redemocratização

do Brasil, na década de 80, no sentido de consolidar as suas instituições

democráticas e garantir o respeito à lei, o império do Direito internamente no País.

Sentimo-nos titulados a exigir a democratização das relações internacionais e o

respeito internacional às normas do Direito.

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A democratização das relações internacionais, a abertura das instâncias

decisórias à participação de países como o Brasil, para nós, é essencial e se coloca

em diferentes instâncias, desde a área financeira, em que apoiamos a criação do

novo mecanismo do G-20, que inclui, além do G-7 — os sete países mais prósperos

do mundo —, um grupo de treze países em desenvolvimento, entre os quais o

Brasil, e que se refere especificamente à agenda financeira internacional de grande

importância. O País ajudou nessa nova criação, da qual temos participado

ativamente.

Por outro lado, no caso do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o

Brasil foi um dos primeiros a propor a ampliação do número de seus membros

permanentes e não-permanentes tanto a países desenvolvidos como a países em

desenvolvimento. O País tem indicado sua disposição e seu vivo interesse de vir a

ser um dos novos membros permanentes do Conselho de Segurança.

Estamos plenamente conscientes da extrema dificuldade desse processo.

Não temos ilusão de que isso venha a ser decidido de um dia para outro, porque são

muito grandes os interesses envolvidos e bastante delicadas as situações regionais

de alguns países do mundo. O Brasil entende que reúne as condições e está

disposto a assumir a responsabilidade de membro permanente do Conselho de

Segurança. Enquanto isso não acontece, temos participado ativamente do trabalho

das Nações Unidas e do Conselho de Segurança.

Fomos membros não-permanentes — os mandatos são de dois anos — em

1988 e 1989; depois, novamente, de 1993 a 1994 e de 1998 a 1999. Se tudo der

certo, vamos ser eleitos no ano que vem para o mandato de 2004 a 2005. O Brasil é

o país que mais tem participado dos trabalhos do Conselho de Segurança como

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membro não-permanente. Creio que estamos atualmente empatados com o Japão.

Há uma disputa. Quando o Brasil é eleito, passa à frente do Japão. Depois o Japão

novamente se equipara ao Brasil. Brasil e Japão são dois países muito cotados

como possíveis novos membros permanentes do Conselho de Segurança. A

Alemanha vem atrás, pois demorou a ser admitida como membro das Nações

Unidas. Havia duas Alemanhas, a Ocidental e a RDA, enfim, diversas dificuldades.

O Brasil tem participado de operações de paz das Nações Unidas desde a

sua criação e ultimamente tem dado prioridade às operações nos países de língua

portuguesa. Estivemos presentes, com importantes contigentes, em Angola, em

Moçambique e mais recentemente em Timor Leste.

Discursando na Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados,

que tem papel importante no processo de relações exteriores e defesa nacional,

creio que num futuro próximo precisamos encontrar meios orçamentários e

financeiros que permitam uma participação mais intensa do Brasil nas operações de

paz das Nações Unidas. No caso do Timor Leste, houve um debate interno sobre a

significativa presença brasileira nas operações das Nações Unidas.

Há restrições orçamentárias em praticamente todas as áreas de atividade do

Governo, mas creio que a própria projeção internacional do Brasil e o nosso

interesse em exercer papel positivo e construtivo no mundo justificariam um esforço

especial de encontrar soluções para as dificuldades orçamentárias nessa área.

A vontade política de participar existe. Estão todos de acordo em relação a

isso. Não há uma discrepância entre Governo, Congresso, diferentes áreas

governamentais, Forças Armadas e Itamaraty. Eu sei que o Congresso gostaria de

participar, mas precisamos encontrar soluções.

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Preocupa-nos, no contexto atual, a importância de fortalecer as instâncias

multilaterais, a importância dessa dimensão, das relações. Há sinais negativos

quanto ao multilateralismo, que parecem indicar uma tendência a recorrer a

soluções unilaterais. Isso é preocupante nas áreas política, comercial e em outras.

Os sinais não são sempre muito claros; às vezes, são contraditórios.

Por exemplo, a Conferência da OMC em Doha, em novembro de 2001,

produziu resultados muito positivos. Não são os ideais, mas houve forte presença e

a participação do Brasil e de países em desenvolvimento. Foi possível chegar a

entendimentos com os países europeus, os Estados Unidos, o Canadá e outros e se

conseguiu adotar um conjunto de decisões em Doha que fortalece muito esse

processo. O mesmo ocorreu na Conferência de Monterrey sobre financiamento para

o desenvolvimento. Estamos preocupados com a Conferência de Johanesburgo, que

se realizará daqui a duas semanas na África do Sul. Não estão muito claras as

perspectivas de êxito, mas, ao lado de Doha e de Monterrey, ela seria a terceira

grande conferência desse tripé de esforço cooperativo internacional em áreas de

interesse dos países em geral e dos países em desenvolvimento de forma muito

particular.

Tem havido, como já foi mencionado, sinais negativos de tendências

unilaterais ou de rejeição a soluções multilaterais. O caso do TPI já foi amplamente

mencionado. Eu citaria dois ou três casos recentes, ligados ao desarmamento, que

foram motivo de grande preocupação para nós. Essa área mexe com o próprio

poder básico, o poder militar, as questões de segurança. Por isso é um tema

extremamente sensível, e o Brasil, ao longo dos anos, de forma muito coerente, com

bastante seriedade e credibilidade, tem atuado de forma positiva.

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No início dos anos 60, em 1962 ou 1963 — hoje as pessoas se esquecem

disso — , o Brasil foi um dos primeiros a propor o que finalmente veio a ser o

Tratado de Proibição de Armas Nucleares na América Latina, o Tratado de

Tlatelolco, e o próprio Tratado de Não-Proliferação Nuclear. O Brasil, junto com um

pequeno grupo de países não alinhados, originalmente propôs as diretrizes daquilo

que achávamos que seria um TNP não discriminatório, que criasse direitos e

obrigações equilibradas tanto para potências nucleares quanto para potências não

nucleares.

No caso de Tlatelolco, o resultado foi positivo. Associamo-nos ao processo de

Tlatelolco, muito embora ele só tenha entrado em vigor, para o Brasil, em 1994. É

uma história longa. Não sei se terei tempo de comentá-la.

No caso do TNP, perdemos a negociação. Finalmente, em 1968 foi imposta a

solução a partir dos co-presidentes, que eram os Estados Unidos da América e a

União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, que impuseram uma solução, o texto

que finalmente foi adotado depois de um processo de deliberação — é até difícil

dizer essa palavra. Fomos muito ativos e um dos responsáveis, por exemplo, pelo

art. 6º do TNP, que contrabalança todas as outras obrigações e cria também a

obrigação de promover o desarmamento nuclear.

Menciono também que finalmente, em 1998, o Brasil aderiu ao TNP, depois

de um longo e muito interessante intercâmbio com o Congresso Nacional, em que

diferentes partidos tinham diferentes posições. Não foi um processo simples, mas

extremamente importante no sentido de dialogar com a classe política, com todos os

partidos diferentes. O Congresso Nacional adotou posições muito claras em relação

ao tema, inclusive aprovando o Tratado de Não-Proliferação, mas com uma ressalva

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— não uma emenda —, no entendimento de que o art. 6º, que fala no

desarmamento nuclear, tem de ser cumprido. O Brasil deve trabalhar nesse sentido.

Além disso, para terminar, porque já passei um pouco dos meus quinze

minutos, mencionaria outras instâncias referentes ao desarmamento, nas quais tem

havido manifestações unilaterais. Uma foi a questão das armas biológicas. Como

todo mundo sabe, criamos a Organização para a Proibição de Armas Químicas —

OPAQ, nos anos 90.

A OPAQ nos parece um exemplo muito bem acabado de como deve ser uma

organização não discriminatória e democrática, que cria obrigações para todos e é

eficaz e séria no seu processo de verificação do cumprimento das obrigações

contidas na convenção.

Tentou-se fazer a mesma coisa no campo das armas biológicas, mas, ao final

de um processo de negociação, ou quando já muito adiantado, a delegação dos

Estados Unidos opôs-se à proposta de criar uma organização parecida com a

OPAQ. Mutatis mutandis, armas químicas têm natureza diferente. Mas, enfim, a

idéia era criar um mecanismo desse tipo.

O caso do CTBT, que é o Tratado para a Proibição Completa dos Testes

Nucleares, desde o Tratado de Moscou, entre Kennedy e Kruchev, já era um

elemento central. Quando daquele tratado que proibia as explosões nucleares na

atmosfera, começou-se a discutir a proibição das explosões subterrâneas.

Finalmente, nos anos 90, chega-se à conclusão quanto a esse tratado. Ele é

aprovado por uma grande maioria de países, mas nos Estados Unidos, que são a

maior potência nuclear e um país essencial para a viabilidade do sistema criado pelo

Tratado para a Proibição Completa dos Testes Nucleares, há uma objeção total,

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uma decisão do próprio Senado americano de rejeitar e outra do novo governo

americano de reiterar e de nem tentar reabrir a questão.

Finalmente, no caso da OPAC, tivemos a retirada, por iniciativa dos Estados

Unidos e de alguns outros poucos países, do Embaixador José Maurício Bustani das

suas funções como Diretor-Geral da organização. Nós reagimos a isso, afirmando e

reafirmando nossa defesa em relação ao Embaixador Bustani e à sua gestão,

porque nos parecia que as acusações e as críticas feitas não tinham nenhum

fundamento. Isso foi dito objetivamente, como Estado-membro, e sabíamos que

essa posição era compartilhada por muitos países.

Ao mesmo tempo, nós víamos, nessa tentativa de destituição de um diretor-

geral eleito e reeleito de uma organização multilateral de grande responsabilidade na

área do desarmamento, um fator que poderia afetar a própria credibilidade do

sistema multilateral de não-proliferação de armas de destruição em massa. O

resultado os senhores conhecem: foram feitas as gestões, e eu mesmo chefiei a

delegação do Brasil nas reuniões de 21 e 22 de abril, em Haia, em que fomos

derrotados por grande maioria de votos, que asseguraram a derrubada do meu

colega José Maurício Bustani.

Mais recentemente houve a notícia de que foi eleito um novo diretor para a

organização, o diplomata argentino Rogelio Pfirter. Na ocasião, o Brasil fez uma

breve declaração, para deixar claro que não apoiava esse ou qualquer outro

candidato, tendo em vista as circunstâncias em que se havia dado o afastamento do

anterior diretor-geral.

Menciono isso para dar um pouquinho de tempo — se é que nós o temos

sobrando — para perguntas e respostas. Haveria muitos outros temas para

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apresentar. A temática, na minha opinião, foi fascinante. Como faltaram um ou dois

oradores, achei que poderia estender-me um pouco. Mas não incorrerei na ira do

ilustre Deputado Aldo Rebelo.

Muito obrigado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Obrigado, Embaixador Araújo

de Castro.

Sem delonga, solicito que as perguntas porventura existentes sejam

encaminhadas à Mesa, para que os nossos expositores possam respondê-las.

Confirmo para amanhã o painel sobre as perspectivas das relações do Brasil

com os Estados Unidos e os países do NAFTA, com a presença do Embaixador

Samuel Pinheiro Guimarães, ex-Presidente do Instituto de Pesquisa de Relações

Internacionais do Itamaraty — IPRI, e do Embaixador Clodoaldo Hugueney, nosso

Subsecretário-Geral de Assuntos de Integração, Econômicos e de Comércio

Exterior, do Ministério das Relações Exteriores. O Embaixador Clodoaldo, aliás,

passou boa parte do dia conosco.

Já temos as primeiras perguntas. O Prof. Antônio Celso e o Embaixador

Araújo Castro já podem respondê-las, se assim o desejarem.

O SR. ANTÔNIO CELSO ALVES PEREIRA – A pergunta é a seguinte: uma

vez que os Estados Unidos não aceitam a jurisdição do Tribunal Penal Internacional,

ao cometerem qualquer crime contra os direitos humanos — quer dizer, deve ser

algum cidadão americano —, como genocídio, crime de guerra etc., teria o tribunal

força para obrigá-los a responder por esses atos?

O grande problema está exatamente no seguinte: os Estados Unidos não

ratificaram isso e não vão ratificar, pelo menos por ora, a não ser que mude a

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política externa americana, que amanhã surja um novo presidente, enfim, que as

diretrizes de política externa daquele país mudem radicalmente. Pelo menos é o que

se pode antever, diante dos acontecimentos.

Os Estados Unidos estão agora pressionando os países com os quais têm

acordo de ajuda militar, por meio de ameaças e chantagens, dizendo que

suspenderão as ajudas militares caso esses países não assinem com eles tratados

bilaterais que permitam ao cidadão americano que comete crime tipificado no art. 5º

do estatuto — crime de guerra, genocídio, crime contra a humanidade —, no

território de um país membro, ser entregue por esse país ao Tribunal. As Filipinas

inclusive botaram a boca no mundo, porque a ajuda militar de 30 milhões de dólares

que recebem é importantíssima por causa das questões que lá existem, como

guerrilhas e tudo o mais. Os jornais estão estampando todos os dias esse episódio,

que é mais uma investida do governo americano contra os países que ratificaram ou

que poderão vir a ratificar o estatuto. Mas o Tribunal não tem condições de impor

nada aos Estados Unidos. Primeiro, porque os Estados Unidos não fazem parte e,

segundo, porque a potência hegemônica dificilmente se curvará diante de um órgão

mutilateral da estatura de um tribunal, na medida em que hoje eles estão tendo uma

política de completa hostilidade a qualquer decisão de qualquer órgão mutilateral

que contrarie seus projetos e sua política externa.

Portanto, não vejo como forçar os Estados Unidos, a não ser no caso em que

um cidadão seu cometa um crime, ou os seus soldados, por exemplo — é uma

grande discussão também —, que podem provocar prejuízos para as tropas de paz

da ONU. Os Estados Unidos querem que seja dado um estatuto especial que proteja

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ou que tire do alcance da jurisdição do Tribunal os seus soldados que fazem parte

das tropas de paz das Nações Unidas.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Obrigado, professor.

A Comissão de Relações Exteriores recebeu informações de que a Câmara

dos Deputados dos Estados Unidos teria aprovado projeto de lei — não sei se já em

caráter terminativo — que diz que os Estados Unidos usarão da força em qualquer

circunstância para impedir que qualquer cidadão americano seja submetido ao

Tribunal Penal Internacional. Essa foi a resposta legislativa mais imediata adotada

em relação à iniciativa do TPI.

Concedo a palavra ao Embaixador Araújo Castro.

O SR. LUIZ AUGUSTO DE ARAÚJO CASTRO – Sobre esse mesmo ponto,

efetivamente, o Presidente Bush assinou, na semana passada, uma lei que se

chama American Service Members Protection Act, a lei de proteção ao militar

americano, exatamente sobre isso. Ela contém uma cláusula que está causando

grande constrangimento, inclusive na Europa, porque autoriza o presidente dos

Estados Unidos a usar todos os meios necessários e apropriados para resgatar

qualquer norte-americano que venha a ser detido pelo Tribunal Penal Internacional

ou em nome desse Tribunal.

Estou citando a lei oficialmente adotada com o título de Ato de Proteção do

Militar Norte-Americano, que a imprensa americana ironicamente está definindo

como a lei de invasão da Holanda — obviamente não é o caso —, porque está

causando certo constrangimento entre os países que são parte do Tribunal, que tem

inclusive o próprio governo holandês como sede.

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Estou com uma pergunta aqui. Quais são as condições para um país tornar-

se membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas? Por que

países como Japão e Brasil, tão ativos, não são ainda membros permanentes do

Conselho?

Eles ainda não são membros permanentes do Conselho porque o processo é

longo. A idéia foi lançada inicialmente no final da década de 80. O Presidente

Sarney, no último discurso que fez no plenário da Assembléia Geral das Nações

Unidas, já lançava a idéia de que era preciso ampliar o número de membros

permanentes do Conselho de Segurança e que o Brasil se achava em condições de

ser um desses membros. Foi a primeira vez que o tema foi mencionado formalmente

em um discurso, em um debate no plenário das Nações Unidas. Em 1993, foi criado

um grupo de trabalho da Assembléia Geral das Nações Unidas, que está há nove

anos discutindo essa questão.

Há basicamente dois grupos de países: o dos que são a favor da ampliação e

encontram diferentes fórmulas, buscam saber quantos países seriam. O Conselho

hoje tem 15 membros. Fala-se que a solução mais viável seria ampliá-lo para 24 ou

25 membros, que incluiria cinco ou seis novos membros permanentes e o resto seria

de novos membros não-permanentes, para dar oportunidade a quem não entrar

como membro permanente de poder concorrer — como o Brasil tem feito até hoje —

a um desses assentos não-permanentes. Há clara idéia de que essa ampliação deve

incluir um ou dois nomes e sobrenomes de países altamente desenvolvidos — fala-

se sempre no Japão e na Alemanha — e pelo menos um país da América Latina, da

África e da Ásia. Nada disso está definido. É mais ou menos o entendimento, pois há

dúvida de quantos seriam por região, mas a idéia é essa. E sempre que se fala de

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um país da América Latina, praticamente todos vêem o Brasil como o nome natural

para preencher isso, o que não quer dizer que está todo mundo de acordo. Há

outros países que prefeririam manter essa situação. O outro grupo de países prefere

que não haja nada, que tudo seja mantido como está.

Os próprios cinco membros permanentes do Conselho de Segurança — e é

importante notar que qualquer emenda da Carta depende da sua ratificação por

parte desses cinco países; portanto, eles têm direito de veto, não adianta negociar

um acordo que não será aprovado pelos cinco atuais membros permanentes —, no

início, tinham atitude de que possuíam um privilégio que não estavam dispostos a

diluir atribuindo a outros países, mas, com o passar do tempo, todos evoluíram e

reconhecem que é necessária uma reforma do Conselho de Segurança. Todos

reconhecem que o Conselho precisa ser ampliado, as fórmulas são diferentes.

Dos atuais cinco membros do Conselho, os países que publicamente utilizam

um discurso mais parecido com o brasileiro são a Rússia, o Reino Unido e a França.

Todos dizem o que acabei de dizer: tem de haver novos membros desenvolvidos,

em desenvolvimento, novos não-permanentes, um resultado final mais ou menos por

volta de 24, 25 membros. A China tem sido muito discreta, tem feito poucos

pronunciamentos, é muito cautelosa, tem milênios de prudência e de boa

diplomacia. Respeitamos muito a diplomacia chinesa nesse e em vários campos,

mas temos um diálogo constante com eles.

E os Estados Unidos, que tinham inicialmente um pouco a atitude de que já

que está funcionando, melhor não mudar, às vezes, dão a indicação de que estariam

dispostos a flexibilizar sua posição.

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Para o caso do Brasil, é importante lembrar que em janeiro deste ano, quando

o Presidente Fernando Henrique esteve em Moscou, assinou com o Presidente

Vladimir Putin uma declaração conjunta, na qual o Governo russo dá seu respaldo

ao Brasil como um novo membro permanente do Conselho de Segurança. Em

março ou abril, quando esteve aqui o Chanceler Schröeder, da Alemanha, assinou

com o Presidente da República um documento, um plano de ação, no qual os dois

países, que são candidatos, respaldam-se reciprocamente. Quer dizer, a Alemanha

apóia o Brasil e o Brasil apóia a Alemanha. São evoluções recentes.

Reconhecemos que o processo é difícil e um pouco complicado,

principalmente após o atentado de 11 de setembro, que criou novas prioridades,

novas realidades na agenda internacional, retirando esse tema da primeira fileira das

grandes preocupações nessa área, mas continua a deliberação. Há algumas idéias.

Os japoneses têm falado na possibilidade de se fazer, em 2003, uma grande

reunião, talvez em âmbito ministerial, para tentar dar impulso ao processo decisório.

Muito obrigado.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Não havendo mais perguntas,

renovo os agradecimentos ao Prof. Antônio Celso Alves Pereira e ao Embaixador

Araújo Castro pelas exposições que fizeram em nosso seminário, bem como a todos

os presentes.

Convido todos a participar da reunião de amanhã, a partir das 9h, com o

tema: “Perspectivas das Relações do Brasil com os Estados Unidos e os Países do

NAFTA”, que contará com a presença dos Embaixadores Samuel Pinheiro

Guimarães e Clodoaldo Hugueney.

Nossos trabalhos serão realizados no Auditório nº 2.

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Até amanhã e muito obrigado.

Está encerrada a presente reunião. (Palmas.)