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Corpos doentes: a cura para além do olhar disciplinar cartesiano
Valquiria da Silva Barros
Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em
Humanidades, Culturas e Artes da Universidade do Grande Rio
Rosane Cristina de Oliveira
Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em
Humanidades, Culturas e Artes da Universidade do Grande Rio
Renato da Silva
Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em
Humanidades, Culturas e Artes da Universidade do Grande Rio
Resumo:
A proposta deste trabalho é compreender a construção das noções de saúde e doença na
contemporaneidade, a partir do diálogo entre a lógica cartesiana e a perspectiva
culturalista de análise do processo de cura do corpo. Tal perspectiva é abordada em
relação à experiência não-cartesiana e suas influências no relacionamento entre
pacientes e a medicina. Esta discussão está alicerçada na reflexão do corpo humano
como condição ontológica e epistemológica essencial para os debates acadêmicos e para
as práticas sociais na atualidade, tendo em vista que, mesmo prevalecendo na tradição
ocidental a visão dualista, também existem linha de fuga que se contrapõem à
fragmentação do ser humano e do conhecimento. Neste sentido, argumentamos que os
olhares fragmentados sobre o corpo não são suficientes e as análises sobre o corpo estão
sujeitas, assim, a interrogações, pois encontram-se abertas e inacabadas. Portanto,
partimos do pressuposto de que para se pensar os processos de saúde e doença nos
corpos situados na contemporaneidade, se faz imprescindível localizar estes corpos no
espaço social e cultural em que vivem, bem como considerar a percepção e a
interpretação do processo de adoecimento e cura do sujeito, conforme sugeriu David Le
Breton (2008). Assim, para compreender os processos de saúde, doença e modos de
curar não- cartesianos, propõe-se a discussão interdisciplinar para embasar a relação
entre os processos de cura sob a perspectiva religiosa, situada no viés das curas
espirituais mediúnicas, e suscitar a discussão da prática médica com um olhar para além
daquilo que seja passível de mensuração, conforme postula a lógica cartesiana. Para
tanto, faz-se necessário o diálogo que transcenda sua própria especialidade e
determinado domínio homogêneo de estudo. Do ponto de vista conceitual, para a
discussão proposta, o conceito de interdisciplinaridade tem suas bases teóricas
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fundamentadas nas definições de autores como Ivani C. Arantes Fazenda (1991) e
Hilton Japiassu (1976).
Palavras-chave: Interdisciplinaridade; Saúde, doença e práticas de cuidar
Introdução
Refletir sobre o corpo humano como condição ontológica e epistemológica é
essencial para os debates acadêmicos e para as práticas sociais na contemporaneidade,
haja vista que mesmo prevalecendo na tradição ocidental a visão dualista, também
existem linhas de fuga que se contrapõem à fragmentação do ser humano e do
conhecimento. Os olhares fragmentados sobre o corpo não são suficientes e as análises
sobre o corpo estão sujeitas, assim, a interrogações, pois são abertas e inacabadas.
Desta forma, para se pensar os processos de saúde e doença nos corpos situados
na sociedade contemporânea, se faz imprescindível localizar estes corpos no espaço
social e cultural em que vivem, bem como considerar a percepção e a interpretação do
processo de adoecimento e cura do sujeito, como bem postula Le Breton, em entrevista
publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 2008:
A condição humana é corporal. O corpo não é apenas um suporte. Ele
é a raiz identificadora do homem ou da mulher, o vetor de toda a
relação com o mundo, não só pelo que o corpo decifra através das
percepções sensoriais ou da sua afetividade, mas também pela maneira
como os outros nos interpretam diante dos diferentes significados que
lhes enviamos: sexo, idade, aparência, movimentos, mímicas, etc. Por
meio do corpo, o indivíduo assimila a substância da sua vida e a
traduz para os outros por meio de sistemas simbólicos que ele divide
com os membros de sua comunidade. (LE BRETON, 2008)
A presença corpórea é a que, em um primeiro momento, apresenta o sujeito ao
meio social e cultural. A própria forma de “enxergar” um corpo doente muda ao longo
do tempo, como podemos observar a ideia de “magreza” que pode significar, em alguns
espaços sociais, beleza (como no mundo da moda), ou uma doença quando atinge o
extremo, como é o caso dos corpos envoltos de anorexias. Ao mesmo tempo, nos
processos de cura há uma série de elementos simbólicos envolvidos na
contemporaneidade, o que sugere uma reconfiguração em relação à cura advinda
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somente dos espaços médicos oficiais. E é neste sentido que a proposta deste trabalho se
alicerça: compreender, para além do olhar disciplinar e envolto dos discursos
científicos, os corpos doentes e as experiências de cura pelas quais os sujeitos podem
passar envoltos de elementos culturais e simbólicos, cujas explicações típicas do saber
médico fragmentado, especializado e tecnicista não conseguem responder. A esta
constatação pode-se observar a dimensão “não material” ou “espiritual”.
Desde a Assembleia Mundial de Saúde de 1983, a inclusão desta dimensão ("não
material" ou "espiritual") de saúde veio modificar o conceito clássico de "saúde" da
Organização Mundial de Saúde para "um estado dinâmico de completo bem-estar físico,
mental, espiritual e social e não meramente a ausência de doença"
(WHO/MAS/MHP/98.2). A religiosidade e a espiritualidade sempre foram consideradas
importantes aliadas das pessoas que sofrem e/ou estão doentes. As definições das
facetas propostas pela OMS foram, de uma maneira geral, consideradas representativas
e adequadas para servir como diretrizes no desenvolvimento de questões válidas sobre
espiritualidade, religiosidade e crenças pessoais, muito embora, na medicina ocidental
não se observe, com regularidade, a busca pela integração de forma explícita das
dimensões religiosa e espiritual ao binômio saúde/doença. (FLECK et all, 2003)
Considerando que saúde é um processo continuado e interdependente de
preservação da vida, esta assume, então, uma dimensão social. (OMS, 1983). Para
compreender os processos de saúde, doença e modos de curar não-cartesianos, propõe-
se a discussão interdisciplinar para embasar a relação entre os processos de cura sob a
perspectiva religiosa, situada no viés das curas espirituais mediúnicas, e suscitar a
discussão da prática médica com um olhar para além daquilo que seja passível de
mensuração, como bem postula a lógica cartesiana. Para tanto, faz-se necessário o
diálogo que transcenda sua própria especialidade e determinado domínio homogêneo de
estudo.
Para discutir tal problema, o conceito de interdisciplinaridade tem suas bases
teóricas fundamentadas nas definições dos autores Japiassu e Fazenda. Além disso, a
prática médica para além do olhar cartesiano, pode ser observada tanto no campo do
diálogo interdisciplinar, como também, no âmbito das discussões sobre a humanização
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das práticas dos profissionais da área de saúde, que consiste em ações de saúde coletiva
e, também, na inserção e atenção aos aspetos sociais, culturais, psicológicos e
comportamentais no que tange as questões do cuidado com a saúde. E, ainda, na
incorporação de práticas típicas da cultura popular (como rezadeiras, benzedeiras e
manipulação de ervas para a cura) em lugares da medicina oficial, como ocorre em
postos de saúde em algumas regiões brasileiras.
A interdisciplinaridade no conceito de cura do saber médico popular
Faz parte da condição humana a busca ou, de certa forma, o reconhecimento do
sagrado. Em se tratando dos casos em que a medicina convencional e toda tecnologia
sob a qual o saber médico está inserido fracassa, é comum observarmos parte
significativa dos sujeitos na busca de outras formas de manutenção de esperança, para
que, assim, a dor e a morte possam ser observadas sob outros pontos de vista. E é neste
caminho que a chamada terapêutica espírita ou espiritualista, baseada em rituais
específicos (GEERTZ, 1989), tente a reorientar o sujeito em relação as práticas
médicas, incluindo no imaginário social a dimensão espiritual, tanto no que diz respeito
a causa da enfermidade / doença, como também, na terapêutica a ser adotada para o
alcance da cura. Considerando-se que as experiências de cura se dão no corpo, este
corpo constitui-se em um território privilegiado para a reflexão, a atuação e a crença,
tanto para a medicina academicista, como para experiências não-cartesianas nos
processos de saúde-doença-cura. É o corpo (individual e social) que delimita os espaços
teóricos e de atuação, evidencia similaridades e diferenças, e estabelece formas de sentir
e conceber o mundo.
O corpo, portanto, é modelado por um contexto social e cultural. O corpo, como
bem situou Le Breton (1992:31) “está no cruzamento de todas as instâncias de cultura,
funcionando como mediador privilegiado e pivô da presença humana no fundamento de
qualquer prática social. É o ponto de atribuição por excelência do campo simbólico”.
Para Mauss (2004), os corpos mostram-se como um relevante meio de compreender-se
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as diversas sociedades e culturas, uma vez que, estas estão cravadas nos sujeitos, em
seus modos de falar, andar, caminhar, orar etc. No entanto, o corpo não somente traduz
o que está exposto no âmbito social, como também produzem e reproduzem este espaço,
especialmente através do religioso, uma vez que é na experiência corpórea que o
aspecto do pertencimento religioso se instaura.
Neste sentido, chamamos a atenção para a questão da interdisciplinaridade, que
para alguns autores é concebida a partir da intensidade das trocas entre especialistas,
baseada no fato de que ela incorpora os resultados de várias disciplinas. Pode-se
considerar que a construção do conhecimento popular a cerca das concepções de saúde,
doença e cura, advém do intercâmbio entre as definições das práticas médicas oficiais e
não-oficiais, originando um saber cultural híbrido interpretado a partir da consideração
de um mundo simbólico específico, a saber, para esta pesquisa, as considerações
espíritas, que consideram intervenções espirituais, e, portanto, não-cartesianas
essenciais para a cura do corpo doente.
É fato que há uma série de dificuldades no que tange as tentativas de
conceituação do que vem a ser interdisciplinaridade. Para alguns autores, a execução de
trabalhos interdisciplinares se dá levando em consideração elementos culturais e da
comunicação intensa entre especialistas, para que, dessa forma, os resultados e análises
possam transcender a disciplinaridade, uma vez que o conhecimento produzido por uma
única área pode não dar conta da complexidade que se apresenta em relação ao objeto a
ser pesquisado. De acordo com Japiassu:
... se queremos precisar o sentido do termo interdisciplinaridade
devemos estabelecer, antes, o que vem a ser a disciplinaridade. Se
fizermos certas previsões de ordem epistemológica nesses termos,
chegaremos a uma diferenciação dos diversos tipos ou modalidades do
interdisciplinar. Assim, para nós, disciplina tem o mesmo sentido que
ciência. E, disciplinaridade significa a exploração científica
especializada de determinado domínio homogêneo de estudo, isto é, o
conjunto sistemático e organizado de conhecimentos que apresentam
características próprias nos planos do ensino, da formação, dos
métodos e das matérias; esta exploração consiste em fazer surgir
novos conhecimentos que se substituem aos antigos. (JAPIASSU,
1976, p.72).
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A exigência interdisciplinar, conforme Georges Gusdorf (Apud JAPIASSU,
1976), impõe a cada especialista que transcenda sua própria especialidade, tomando
consciência de seus próprios limites para acolher as contribuições das outras disciplinas.
Enquanto não houver comunicação entre as disciplinas não se
atingirá o contexto interdisciplinar. O que realmente importa, no
diálogo interdisciplinar, aquilo que não somente é desejável,
mas também indispensável, é que a autonomia de cada
disciplina seja assegurada como uma condição fundamental da
harmonia de suas relações com as demais. Onde não houver
interdependência disciplinar, não pode haver interdependência
das disciplinas (JAPIASSU, 1976, p.129).
Outra perspectiva de compreensão acerca do que é interdisciplinaridade, foi
apresentada por Francischett (2005), ao alocar a interdisciplinariadadem como uma
tipologia de estudo acima da disciplinaridade. Para a autora,
A interdisciplinaridade, por sua vez, compõe-se por um grupo de
disciplinas conexas e com objetivos comuns. Está em nível superior a
disciplina, ou área que coordena e define finalidades. Ocorre intensa
troca entre especialistas. O horizonte epistemológico deve ser o campo
unitário do conhecimento, a negação e a superação das fronteiras
disciplinares, a interação propriamente dita. (FRANCISCHETT, 2005,
p.3)
Embora a discussão conceitual sobre interdisciplinaridade seja extensa,
interessa-nos neste artigo, atentarmos para o fato de que em relação a temática
apresentada, os olhares sobre as experiências não cartesianas suplantam o saber
puramente disciplinar, justamente por incluir nas discussões elementos culturais,
sociais, econômicos, religiosos e recheados de simbologias. Esses elementos compõem
um complexo de conhecimentos tanto do sujeito e sua ressignificação em relação aos
processos de doença e cura pelo qual o corpo vivenciou, como pela busca de respostas
científicas, por exemplo, que atestem a cura.
Para Le Breton (2010), diante da multiplicidade de significados possíveis de
serem aplicados ao conceito corpo, o objetivo é compreender a corporeidade enquanto
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estrutura simbólica e, assim destacar representações, os imaginários, os desempenhos,
os limites que aparecem infinitamente variáveis conforme as sociedades. Enquanto que
no espiritismo o corpo (social e individual) são partes do mesmo universo, “as
representações do corpo são as representações da pessoa” (LE BRETON, 2010:26), na
medicina tradicional funciona a lógica inversa. Nela o corpo aparece separado da noção
de pessoa/sujeito, do cosmo. O homem no modelo biomédico é um indivíduo não
dotado de subjetividade. “O corpo é o elemento que interrompe, o elemento que marca
os limites da pessoa, isto é, lá onde começa e acaba a presença do indivíduo” (LE
BRETON, 2010:30).
Dessa forma, pensar a cura em relação ao saber médico popular, significa em
não olhar o corpo como uma experiência que separa pessoa e sujeito, mas sim o corpo
como um conjunto indissociável. Nessa perspectiva, a conceituação de
interdisciplinaridade apresentada por Fazenda (1995), aloca o homem e a realidade que
o envolve, bem como as representações que este promove acerca de sua própria
realidade, que tornam o saber objetivo e fundamental na discussão interdisciplinar. Para
Francischett (2005),
Falar de interdisciplinaridade é falar de interação de disciplinas. A
questão interdisciplinar tem como propósito superar a dicotomia entre:
teoria e prática; pedagogia e epistemologia; entre ensino e produção
de conhecimento científico; apresenta-se contra um saber
fragmentado, em migalhas, contra especialidades que se fecham;
presenta-se contra o divórcio crescente na universidade, cada vez mais
compartimentada, dividida, subdividida e contra o conformismo das
situações adquiridas e das ideias recebidas ou impostas.
(FRANCISCHETT, 2005, p. 5)
O saber médico oficial, portanto, alicerçado na fragmentação e, por conseguinte,
na máxima especialização, tenderia a encontrar nos estudos interdisciplinares uma
forma de integração. Esta integração é limitada ou não permitida pelo caráter tecnicista
típico da forma de construção do conhecimento na medicina oficial.
A interdisciplinaridade e a construção do saber médico oficial
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Observa-se na atualidade um modelo fragmentado de organização do trabalho
em saúde, em que cada profissional realiza parcelas do trabalho sem integração com as
demais áreas envolvidas. A visão tecnicista das práticas de saúde, a estrutura cartesiana
e positivista da assistência e os modos de produção originaram a chamada medicina de
órgãos, em prejuízo de uma abordagem holística. Ao tentar reduzir o mundo a equações
e algoritmos, a ciência se distanciou da vida, gerando uma medicina tecnicista e
informatizada, que enxerga coisas em vez de semblantes.
É preciso reconhecer que, no ambiente hospitalar, o desenvolvimento histórico
da própria instituição gerou três paradigmas concorrentes: o técnico-científico, o
comercial-empresarial e o ético-humanitário, para compreender-se o caminho
percorrido até hoje pela medicina e os processos de assistência a saúde.
Embora sejam inevitáveis os conflitos resultantes da confrontação desses
paradigmas, seria apropriado colocar que o científico e o econômico deveriam estar a
serviço do ser humano e não ao contrário. Na relação médico/paciente com dor,
ressalta-se a importância de um relacionamento sujeito/sujeito e não sujeito/objeto. Para
Drummond (2011),
... a medicalização da saúde, a colonização médica da vida,
segundo Illich, cria ao paciente situações de subordinação e
trans- forma o aparelho biomédico do sistema industrial em
instituição quase autocrática. Evidentemente, existem outras
maneiras de cura fora do campo médico, embora a hegemonia
da medicina, invadindo toda a área do cuidado e, em
consequência, todo o espaço da saúde, engendre um processo de
medicalização dos problemas sociais. Assim, inúmeros aspectos
da experiência humana, inclusive a dor e o sofrimento, foram
subtraídos ao reino do autoconhecimento para serem
transferidos ao império da medicina, com a aura que lhe
conferem a tecnologia e o determinismo biológico. (DRUMMOND, 2011, p. 33)
Retomando Japiassu, muitas são ainda as implicações que repercutem na prática:
“O especialista é aquele que possui um conhecimento cada vez mais extenso relativo a
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um domínio cada vez mais restrito. O triunfo da especialização consiste em saber tudo
sobre nada” (JAPIASSU, 1976, p.08).
A ciência é a consciência do mundo. A doença do mundo moderno corresponde
a um fracasso, a uma demissão do saber. Semelhante propósito pode surpreender, se
pensamos na multidão dos ‘sábios’ ou pretensos sábios que povoam as universidades,
os laboratórios, os institutos de pesquisa em toda a face da Terra (JAPIASSU, 1976,
p.11). O autor faz um comparativo entre o câncer, como uma proliferação das células
vivas e a proliferação de disciplinas que se multiplicam em áreas do conhecimento,
diversificando-se, perdendo cada vez mais o contato com a realidade humana.
O médico ocupa-se com a doença, não com o doente. Seu olhar criterioso
procura sinais que indiquem um diagnóstico. Uma vez identificada a doença, o mesmo
olhar acompanha a reação desta à medicação em seus mínimos detalhes. A resistência
da doença é o prelúdio do fracasso. A doença incansável e resistente anuncia a epifania
da impotência do saber médico, cartesiano, organicista. A morte é a única derrota.
Enquanto existir doença, existe esperança. A doença, desde que se renda, é perdoada.
Ao doente restam a invisibilidade e o anonimato. O sistema capitalista de produção não
reserva lugar ao doente, este é execrado, perde sua identidade. Para o doente não há
perdão. O estigma o acompanha. A fragilidade decorrente da doença rotula, marca. Ao
doente reservam-se olhares de desconfiança. Seu corpo rompeu com a ordem
mecanicista. O corpo-máquina defeituoso transforma-se em sucata, é descartado,
substituído. A lógica capitalista que observa, com bons olhos, o corpo-máquina
saudável, assim, observa também a doença, como que ratificando a relação
capital/trabalho através do contrassenso na relação saúde/doença. Em relação ao corpo
doente, a doença sempre vence, pois, o corpo doente representa a fraqueza da
engrenagem que dá movimento à produção capitalista.
A cura para além do olhar disciplinar cartesiano...
Na contramão desta discussão, a bioética aparece como um elemento
fundamental para romper com a noção, por exemplo, da preocupação médica
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exclusivamente com a doença e não com o sujeito. A bioética, definida como “o estudo
sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, enquanto esta
conduta é examinada à luz de valores e princípios morais” (Drummond, 2011, p. 32),
apresenta uma definição que, por si só, nos remete à necessidade de pensar a doença (no
caso específico abordado pelo autor, a dor e o sofrimento), para além de causas
biológicas, mas também em relação a outras causas, sejam pessoais, culturais ou
comportamentais. O princípio da autonomia seria, segundo o autor, fundamental, pois
está atrelado ao conceito de pessoa.
A definição de pessoa supõe a afirmação da atitude de conscientização
e a negação dos instrumentos de manipulação. Excede a noção do
indivíduo por seu aspecto relacional, por sua inserção social. Embora
possam haver aspectos conflitantes, de natureza histórico-cultural,
ético-jurídica e biopsíquica, entende-se, geralmente, por pessoa o ser
humano consciente, dotado de corpo, razão e vontade, autônomo e
responsável. Todavia, a definição de pessoa não é ainda uma questão
de fato ou mesmo de direito, mas uma tarefa humana que urge se
construir ou desvendar. (DRUMMOND, 2011, p. 34)
Entretanto, a interdisciplinaridade oferece caminhos que possibilitam a
modificação da forma fragmentada e desarticulada de agir, buscando a integração das
práticas em saúde. As práticas interdisciplinares no âmbito do ensino são fundamentais
para a formação do profissional em saúde, e, por conseguinte, servem para modificar as
práticas desarticuladas e individualista, típicas da disciplinaridade cartesiana. (SAUPE,
2005).
Se, por um lado o processo de fragmentação e a desarticulação do agir em saúde
são processos observáveis no cotidiano nos espaços de exercício da saúde, nota-se a
necessidade e urgência em pensarmos as alternativas positivas que a
interdisciplinaridade pode e deve oferecer. Além disso, uma temática altamente
relevante diz respeito à “humanização do atendimento em saúde”. É interessante
destacarmos que ao longo dos séculos XIX e XX, os avanços tecnológicos passaram a
ser amplamente utilizados para controlar ou reabilitar os sujeitos diante de determinada
enfermidade. Entretanto, tais avanços tecnológicos também contribuíram para que a
doença e, por conseguinte, a busca da cura, sugerem princípios simples: busca-se a
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causa e o efeito, tendo o corpo comparado a uma máquina e, desta forma, é comum
observarmos a negligencia em relação aos aspectos culturais, sociais, comportamentais,
psicológicos.
Assim, o discurso comum entre vários grupos sociais acerca do tratamento (tanto
em relação ao processo de busca das causas de determinada enfermidade, como na
relação entre médico e paciente), observa-se em inúmeros casos, a insatisfação do
paciente em relação ao tratamento “distante” e impessoal do profissional de saúde. Tal
constatação pode levar-nos a reflexão de que a busca por métodos / práticas alternativas
de cuidados com a saúde de caráter humanizado, aloca nos estudos acadêmicos sua
importância. De acordo com Goulart & Chiari (2010),
A temática ligada à humanização do atendimento em saúde
mostra-se relevante no contexto atual, uma vez que a atenção e o
atendimento no setor saúde, calcados em princípios como a
integralidade da assistência, a equidade e a participação social
do usuário, dentre outros, demandam a revisão das práticas
cotidianas com ênfase na criação de espaços de trabalho menos
alienantes que valorizem a dignidade do trabalhador e do
usuário. (GOULART & CHIARI, 2010, p. 257)
Embora a discussão das autoras esteja vinculada à ideia de política de
humanização da saúde, um ponto interessante na análise diz respeito a formação do
profissional de saúde. Portanto,
Dois desafios se apresentam à construção de um modelo de
atenção humanizado e, ao mesmo tempo, humanizador: a
produção de um cuidado orientado pelo reconhecimento de
pessoa (o sentido de ser membro, de pertencimento a um ethos,
a uma cultura, a um grupo que define os próprios significados
do “eu”) e de sujeito (o sentido de uma identidade a partir de
uma biografia singular, articulada a uma cultura, capaz de dotar
de legitimidade a autonomia de cada um). (GOULART &
CHIARI, 2010, p. 257)
Além da formação do profissional de saúde, tendo como canal norteador a
humanização, a inserção de conhecimentos de medicina alternativa, elementos culturais
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e religiosidade que possam se relacionar com as práticas médicas tem aparecido como
fonte de discussão. Em algumas regiões brasileiras, por exemplo, constata-se uma
“dupla” forma de cuidado com o corpo e busca da cura. Trata-se da inserção de
“benzedeiras”, “tratamento com ervas”, entre outros, praticados dentro de postos de
saúde, em conjunto com médicos.
Outro aspecto importante que trata das práticas de cura / saúde está posto no
universo espiritualista e espírita (kardecista). Aqui, mais especificamente, os processos
se dão através de atividades mediúnicas, mas que, em geral, assemelham-se à praticas
médicas uma vez que são os chamados “médicos espirituais” ou “médiuns de cura” que
as realizam. De acordo com Souza (2014),
Os médiuns de cura, conforme afirmam os próprios adeptos do
espiritismo, estão presentes nas diversas vertentes religiosas e mesmo
fora delas. São os tradicionais curandeiros, rezadores e benzedores
que fazem uso de amuletos, plantas, pedaços de animais, gestos,
palavras mágicas e orações... os “médiuns cirurgiões” constituem um
fenômeno mais urbano, sendo procurados por indivíduos de maior
renda e escolaridade que os demais, inclusive pessoas vindas de países
ricos. (SOUZA, 2014, p. 3)
No Brasil existem muitos espaços cujas as práticas de cura espiritual, seja
através de terapias alternativas, ou as chamadas cirurgias espirituais, ocorrem. Um dos
lugares mais famosos situa-se em Abadiânia, a Casa Dom Inácio de Loyola, cuja
atuação famosa do Médium João de Deus foi alvo de pesquisas, reportagens e tem um
número imenso de procura por pessoas de várias partes do mundo. Um aspecto a ser
destacado é a recomendação de continuidade de qualquer tratamento tradicional sob o
qual o sujeito esteja sendo submetido. (SOUZA, 2014).
Obviamente, o campo interdisciplinar tem nas discussões sobre as experiências
de cura dos corpos doentes, que passam por processos não cartesianos, um universo de
possibilidades de análises, que perpassam pela Antropologia, Sociologia, Biologia, Área
Médica, Ciências da Religião. Daí a proposição fundamental de, desde a graduação, o
futuro profissional de saúde ter acesso ao conhecimento interdisciplinar, humanizado e
pautado em pressupostos para além da ciência cartesiana e disciplinar.
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Considerações finais
Neste trabalho, procuramos compreender a relação entre interdisciplinaridade,
práticas médicas e processos de cura dos corpos doentes tendo em vista a multiplicidade
e complexidade que acompanham os estudos cujas abordagens não se encerram no
aspecto disciplinar.
Num primeiro momento, discutimos a questão do corpo na condição daquele que
apresenta o sujeito para o meio social e cultural a partir dos estudos de Le Breton, cujos
estudos sobre o corpo como elemento primordial da existência humana, pois é o
principal fundamento de práticas sociais. Em seguida, passamos para a tentativa de
conceituação de interdisciplinaridade, perpassando pelas discussões teóricas de Japiassu
(1976), Francischett (2005) e Fazenda (1995). Para Japiassu (1976), a discussão
fundamental está em compreender primeiro o que é disciplinaridade, para em seguida,
tentar construir elementos que possam unir ou agregar conhecimento de vários
disciplinares, e, assim, ter uma formulação interdisciplinar do conhecimento. Já para
Francischett (2005), a interdisciplinaridade deveria sobrepor-se à disciplinaridade,
constituindo-se, assim, como um conjunto de disciplinas correlatas que se
transformariam em estudos interdisciplinares, ou seja, a interação de fato.
A partir dessas conceituações e a problematização acerca do estudo proposto,
afirmamos que em se tratando de experiências não cartesianas nos processos de cura de
corpos doentes, o saber puramente disciplinar não teria condições de construir respostas
(ainda que passíveis de uma série de indagações) que possam dar conta da
complexidade em torno da temática. Portanto, o saber médico popular encontraria no
conceito de interdisciplinariadade, elementos subjetivos e objetivos de discussão,
justamente para, de certa forma, contrapor-se ao saber médico oficial.
Quanto aos objetivos do projeto interdisciplinar na área da saúde, buscou-se a
construção coletiva de um novo conhecimento prático ou teórico para os problemas da
formação de profissionais da área médica visando a integração dos saberes médicos.
Falar de interdisciplinaridade é falar de interação de disciplinas.
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Com o propósito de diminuir a distancia entre médico e paciente, as tensões
advindas da dificuldade de comunicação/interação no processo de cuidar, e permitir um
diálogo em que os discursos de médico e paciente façam sentido e tenham significado
para ambos, faz-se necessário considerar a relevância da reformulação e reorganização
de práticas pedagógicas, de acordo com o postula Japiassu (1976), a partir da
perspectiva interdisciplinar, estimular trocas entre os especialistas e promover
integração real das disciplinas para a formação de médicos e profissionais de saúde
visando ampliar as fronteiras do olhar médico, a partir do incentivo da geração e
transmissão de um saber interdisciplinar, capaz de manter a abordagem técnico-
científica da medicina e seu diálogo com os saberes populares, visando a compreensão
do mundo simbólico do paciente como um contributo para a prática da diagnose;
introduzir a complexidade histórica e social do conhecimento na área da saúde e sua
função ética no alívio do sofrimento. Ao mesmo tempo, problematizar a ideológica
naturalização do saber e da prática médica e relativizar certas “verdades”, reconhecendo
outros saberes que importam na prática social da medicina.
E, por fim, em relação acerca da cura para além do olhar cartesiano, procuramos
discutir três elementos: a) a questão da bioética, mais precisamente, a importância do
princípio da autonomia, baseado no conceito de pessoa. Este conceito, observa a pessoa
como um ser humano “consciente, dotado de corpo, razão e vontade, autônomo e
responsável”; b) outra discussão importante no nosso trabalho é a chamada
“humanização do atendimento em saúde”, cuja está na realidade que apresenta o avanço
tecnológico, infelizmente, não contribui para a humanização nos espaços de exercício
das práticas de saúde, pois o corpo é concebido na condição de máquina e, portanto, são
negligenciados os aspectos culturais, sociais, comportamentais e psicológicos do
sujeito; c) e, além da bioética e da humanização, as práticas de cura / saúde também está
alicerçada no universo espiritualista e espírita. Os espaços que praticam as chamadas
“curas espirituais” são em quantidade expressiva e, nestes, observa-se inúmeros rituais,
ações e simbologias, que a multiplicidade e necessidade de saberes em diversas áreas do
conhecimento. Isto se dá, justamente, por ser difícil a compreensão de fenômenos cujas
explicações estão distantes do universo científico cartesiano.
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