Contos Completos L. M. Schwarcz

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lima barreto

Contos completosOrganizao e introduo

Lilia Moritz Schwarcz

Copyright 2010 by Lilia Moritz Schwarcz Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Capa Jeff Fisher Preparao Clia Euvaldo Reviso Angela das Neves Mrcia Moura Ana Maria Barbosa Pesquisa e notas Lilia Moritz Schwarcz e Lcia Garcia Transcrio dos manuscritos Marcelly Pedra Rezende Agradecimentos Luiz Antonio de Souza (Biblioteca Acadmica Lcio de Mendona, Academia Brasileira de Letras) Vera Faillace (Seo de manuscritos, fbn)Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip) (Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Barreto, Lima, 1881-1922. Contos completos / Lima Barreto ; organizao e introduo Lilia Moritz Schwarcz. So Paulo : Companhia das Letras, 2010.isbn 978-85-359-1755-0

1. Contos brasileiros i. Schwarcz, Lilia Moritz. ii. Ttulo. cdd-869.93

10-09893 ndice para catlogo sistemtico: 1. Contos : Literatura brasileira 869.93

[2010] Todos os direitos desta edio reservados editora schwarcz ltda. Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32 04532-002 So Paulo sp Telefone (11) 3707-3500 Fax (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br

Sumrio

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nota sobre o texto

15 Introduo Lima Barreto: termmetro nervoso de uma frgil Repblica Lilia Moritz Schwarcz 55amplius!

pa rt e i c o n t o s p u b l i c a d o s , c o n f o r m e s e l e o d o au t o r , c o m o a p n d i c e da 1 a e d i o da o b r a t r i s t e f i m d e p o l i c a r p o q u a r e s m a , 1915

63 71 80 89 98 109 121

A nova Califrnia O homem que sabia javans Um e outro Um especialista O filho da Gabriela Miss Edith e seu tio Como o homem chegou

pa rt e i i c o n t o s p u b l i c a d o s , c o n f o r m e s e l e o d o au t o r , n a o b r a h i s t r i a s e s o n h o s , 1 a e d i o , 1 9 2 0 lt i m o l i v r o p u b l i c a d o e m v i da p o r l i m a b a r r e t o

141 152 162 166 177 188 198 202 207 212 218 226 230 246 256 260 267 272 275

O moleque Harakashy e as escolas de Java Congresso Pan-Planetrio Cl Hussein Ben-li Al-Blec e Miqueias Habacuc Agaricus auditae Adlia O feiticeiro e o deputado Uma noite no Lrico Um msico extraordinrio A biblioteca Lvia Mgoa que rala Clara dos Anjos Uma vagabunda A barganha Uma conversa vulgar Sua Excelncia A matemtica no falha

pa rt e i i i c o n t o s p u b l i c a d o s e m o u t r a s h i s t r i a s , q u e i n t e gram a 2a edio de histrias e sonhos, 1951

285 290 294 300 302 304 306 309 312

Por que no se matava Ele e suas ideias Numa e a ninfa Uma conversa A cartomante O cemitrio Na janela Despesa filantrpica O caador domstico

315 319 321 329 334 337 347

Uma academia da roa A mulher do Anacleto Dentes negros e cabelos azuis A doena do Antunes A indstria da caridade Casa de poetas (comdia em um ato) Os negros (esboo de uma pea)

pa rt e i v c o n t o s a r g e l i n o s q u e i n t e g r a m a h i s t r i a s e s o n h o s , 1 95 1

2a

edio de

355 358 361 363 365 367 369 371 373 375 377 380 383 385 387 390 393 395 397 399 401 403 405 407 409

S. A. I. Jan-Ghothe El-Kazenadji O juramento A firmeza de Al-Bandeirah O desconto A solidariedade de Al-Bandeirah O reconhecimento O orculo A chegada Um candidato Um bom diretor Os quatro filhos dAymon A consulta Que rua esta? Abertura do Congresso Medidas de Sua Excelncia Uma anedota A nova glria Era preciso... Faustino i O rico mendigo Projeto de lei Firmeza poltica Cincinato, o romano O ideal

411 413 416 418 420 422 424 426 428 430 432 435 438 441 443 445 449 451 453 454 456 458

A fraude eleitoral As teorias do dr. Caruru O anel de Perdicas O congraamento Ns! Hein? Um debate acadmico Coisas parlamentares Os Kalogheras Conservou o fez Arte de governar O destino do Chaves Uma opinio de peso O poderoso dr. Matamorros Um fiscal de jogo Boa medida Falar ingls Manifestaes polticas Na avenida Rocha, o guerreiro Um do povo Hspede ilustre Interesse pblico

pa rt e v

contos que integram a

4a

e d i o da o b r a v i d a e

m o rt e d e m . j . g o n z ag a d e s ,

19 49

463 472 477 480 486 492 495 499 502 507

O falso dom Henrique v Trs gnios da secretaria Manel Capineiro Milagre de Natal Foi buscar l... Um que vendeu a sua alma Carta de um defunto rico A sombra do Romariz Quase ela deu o sim, mas... O tal negcio de prestaes

510 513 521 524 527 532 537 546

O meu Carnaval Loureno, o Magnfico Fim de um sonho Eficincia militar O jornalista O nico assassinato de Cazuza O nmero da sepultura O pecado

pa rt e v i o u t r o s c o n t o s ( t e x t o s m a n u s c r i t o s c o m p l e t o s e i n c o m p l e t o s e c l a s s i f i c a d o s c o m o ta l )

551 556 560 563 566 567 569 570 572 574 576 578 580 583 584 586 589 590 592 593 594 596 597 599

Esta minha letra... Apologtica do Feio A nova classe de cirurgies Bab O peso da cincia Mambembes Meditaes na janela Histria de um soldado velho O paladino O diplomata dos smios O general A vingana (Histria de Carnaval) O profeta e o bloco Conversas As fachadas O jardim dos Caiporas O domingo O escravo Os pedaos Os subidas Os subidas [2a tira] No tronco O velho cdice A vida fluminense

600 602 604 607 610 615 619 630 632 635 636 638 643 648 649 652 654 656 658 660 663 667 669 673 709

O soneto Opinies do Gomensoro A nota A nota. A Caixa de Converso A conferncia do dr. Assis Brasil Dr. Fonseca Dr. Pio Macieira Manipolis O restaurant e os galees do Mxico A ave estranha A ave estranha [2a verso] O traidor O 1o atestado Lulu, mas no da Pomernia Bordejos O povoamento do solo e a simplificao da linguagem Um fato gravssimo Uma loteria com que sonho Dr. Laranjinha [Conto sem ttulo] Manoel de Oliveiraobras de lima barreto cronologia notas bibliografia

Amplius!

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Amplius! Amplius! Sim; sempre mais longe

omo me parecesse necessrio um prefcio para essa coletnea de contos e fantasias de vrias pocas e coisas de minha vida, julguei-me no direito de republicar, testa dela, as linhas que se seguem, com o ttulo acima, editadas poucos meses depois do aparecimento do meu livro Triste fim de Policarpo Quaresma. Apareceram em um jornal de grande circulao da cidade do Rio de Janeiro, A poca,70 e eu tive com elas o intuito de esclarecer o que poderia haver de obscuro em certas passagens dos meus humildes trabalhos. Trata-se agora de contos e coisas parecidas, mais do que nunca elas me parecem necessrias boa inteligncia do que a minha mo inbil quis dizer e no soube; e eu as transcrevo aqui, na suposio de que no so demais. Ei-las como saram em setembro de 1916: Tendo publicado h poucos meses um livro, poder parecer a alguns leitores que estas linhas se destinam a responder crticas feitas minha humilde obra. No h tal. J no sou mais menino e, desde que me meti nessas coisas de letras, foi com toda a deciso, sinceridade e firme desejo de ir at ao fim. Quem, como eu, logo ao nascer, est exposto crtica fcil de toda gente, entra logo na vida, se quer viver, disposto a no se incomodar com ela.amplius!

C

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A nica crtica que me aborrece a do silncio, mas esta determinada pelos invejosos impotentes que foram chamados a coisas de letras, para enriquecerem e imperarem. Deus os perdoe, pois afirma Carlyle71 que men of letters are a perpetual priesthood. De resto, todos os crticos s tiveram gabos para a minha modesta novela; e, se no fora alguns me serem quase desconhecidos, temeria que fossem inimigos disfarados que conspirassem para me matar de vaidade. A razo destas linhas outra, muito outra, e eu explico j. A emoo do recebimento de uma carta annima s me foi dado experimentar ultimamente. Muitas dessas coisas banais da vida tm-me chegado assim tardiamente e algumas, pouco corriqueiras, antes do tempo normal aos outros. A carta era annima, mas absolutamente no era injuriosa. Vinha escrita em linda letra e eu tenho pena em no acredit-la feminina, pois se fosse meteria uma inveja doida aos galantes dos cinemas e maxixes da moda, linda gente feita de pedacinhos de mulheres feias. No tive portanto a emoo da carta annima, pois a missiva era corts, fazendo, sobre o meu Policarpo, reparos sagazes e originais. Simpatizei tanto com o escrito que no pude furtar-me ao desejo de responder, de qualquer forma que pudesse, ao desconhecido autor. o que pretendo fazer aqui. Apesar de toda a inteligncia que ressuma das palavras que a epstola contm, no me parece que o autor estivesse, em certos quarteires, muito fora das modas de ver da nossa retrica usual. Percebi que tem de estilo a noo corrente entre leigos e... literatos, isto , uma forma excepcional de escrever, rica de vocbulos, cheia de nfase e arrebiques, e no como se o deve entender com o nico critrio justo e seguro: uma maneira permanente de dizer, de se exprimir o escritor, de acordo com o que quer comunicar e transmitir. Como no tocasse de frente em tal questo, deixo de parte semelhante ponto e reservo uma resposta mais ampla, detalhada para qualquer crtico ulterior. Veremos, ento, se Descartes tem ou no estilo; e se Bossuet72 ou no um estilo. O que, porm, me faz contestar o meu amvel correspondente annimo, a sua insistncia em me falar na Grcia, na Hlade sagrada etc., etc. Implico solenemente com a Grcia, ou melhor: implico solenemente com56contos completos de lima barreto

os nossos clorticos gregos da Barra da Corda e panudos helenos da praia do Flamengo (vide banhos e mar). Sainte-Beuve73 disse algures que, de cinquenta em cinquenta anos, fazamos da Grcia uma ideia nova. Tinha razo. Ainda h bem pouco o senhor Teodoro Reinach, que deve entender bem dessas coisas de Grcia, vinha dizer que Safo no era nada disso que ns dela pensamos; que era assim como Mme. Sevign.74 Devia-se interpretar a sua linguagem misturada de fogo, no dizer de Plutarco, como uma pura exaltao da mulher. A poesia sfica seria, em relao mulher, o que o dilogo de Plato em relao ao homem. Houve escndalo. No este o nico detalhe, entre muitos, para mostrar de que maneira podem variar as nossas ideias sobre a velha Grcia. Creio que, pela mesma poca em que o senhor T. Reinach lia, na sesso das cinco Academias reunidas, o resultado das suas investigaes sobre Safo, se representou na pera, de Paris, um drama lrico de Saint-Sens Djanira.75 Sabem os leitores como vinham vestidos os personagens? Sabem? Com o que ns chamamos nas casas das nossas famlias pobres colchas de retalhos. Li isto em um folhetim do senhor P. Lalo, no Temps. Esta modificao no trajar tradicional dos heris gregos, pois se tratava deles no drama, obedecia a injunes das ltimas descobertas arqueolgicas. O meu simptico missivista pode ver por a como a sua Grcia , para ns, instvel. Em matria de escultura grega, podia eu, com o muito pouco que sei sobre ela, epilogar bastamente. suficiente lembrar que era regra admitida pelos artistas da Renascena que, de acordo com os preceitos gregos, as obras esculturais no podiam ser pintadas. que eles tinham visto os mrmores gregos lavados pelas chuvas; entretanto, hoje, segundo Max Collignon,76 est admitido que as frisas do Partenon eram coloridas. A nossa Grcia varia muito e o que nos resta dela so ossos descarnados, insuficientes talvez para recomp-la como foi em vida, e totalmente incapazes para nos mostrar ela viva, a sua alma, as ideias que a animavam, os sonhos que queria ver realizados na Terra, segundo os seus pensamentos religiosos. Atermo-nos a eles, assim varivel e fugidia, impedir que realizemos o nosso ideal, aquele que est na nossa conscincia, vivo no fundo de ns mesmos, para procurar a beleza em uma carcaa cujos ossos j se fazem p.amplius!

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Ela no nos pode mais falar, talvez nem mesmo balbuciar, e o que nos tinha a dar j nos deu e vive em ns inconscientemente. Como se v, o meu correspondente est preso a ideias mortas; e, em matria de novela, por certas notaes que faz, minha, se no est jungida a um pensamento morto, deixou-se prender por uma generalizao que a experincia do gnero no legitima. Estranha o meu inesperado correspondente que o meu modesto livro fuja questo de amor; no seja ela o eixo do livro. Mas, caro senhor, essa questo nunca foi primordial no romance. Nem os antigos, nem os modernos. Nem nos franceses, nem nos espanhis. Se o senhor me cita Dfnis e Clo, eu cito o Satiricon; se o senhor me cita a Princesse de Clves, eu lhe apresento Lazarillo de Tormes.77 Nos grandes mestres modernos, Balzac, Tolsti, Turguniev, Dostoivski, quase sempre o amor levado para o segundo plano; e essa sua generalizao de que o primordial do romance, e seu caracterstico, por assim dizer, tratar de uma aventura de amor, to verdadeira e necessria como aquela regra das trs unidades, em matria de drama e tragdia, de que os crticos antigos faziam tanta questo, citando Aristteles, que nunca a tinha estabelecido. Parece-me que o nosso dever de escritores sinceros e honestos deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gneros, e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspirao prpria, para tentar reformar certas usanas, sugerir dvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoes em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelao das almas individuais e do que elas tm em comum e dependente entre si. A literatura do nosso tempo vem sendo isso nas suas maiores manifestaes, e possa ela realizar, pela virtude da forma, no mais a tal beleza perfeita da falecida Grcia, que j foi realizada; no mais a exaltao do amor que nunca esteve a perecer; mas a comunho dos homens de todas as raas e classes, fazendo que todos se compreendam, na infinita dor de serem homens, e se entendam sob o aoite da vida, para maior glria e perfeio da humanidade. ideal dos nossos dias que ainda beleza a palpitar nas suas mais altas manifestaes espirituais; e no, como o meu correspondente pensa, o ressurgimento de concepes desaparecidas, de que s conhecemos poucas e raras manifesta58contos completos de lima barreto

es exteriores, que s podem entorpecer a marcha da nossa triste humanidade para uma exata e mais perfeita compreenso dela mesma. No desejamos mais uma literatura contemplativa, o que raramente ela foi; no mais uma literatura plstica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava j se evolou com a morte dos que os adoravam. No isso que os nossos dias pedem; mas uma literatura militante para maior glria da nossa espcie na terra e mesmo no Cu. O meu correspondente acusa-me tambm de empregar processos de jornalismo nos meus romances, principalmente no primeiro. Poderia responder-lhe que, em geral, os chamados processos do jornalismo vieram do romance; mas mesmo que, nos meus, se d o contrrio, no lhes vejo mal algum, desde que eles contribuam por menos que seja para comunicar o que observo; desde que possam concorrer para diminuir os motivos de desinteligncia entre os homens que me cercam. Se conseguirem isso, por pouco que seja, dou-me por satisfeito, pois todos os meios so bons quando o fim alto; e j Brunetire78 me disse que o era, ao sonhar em esforar-me, na medida das minhas foras, para fazer entrar no patrimnio comum do esprito dos meus contemporneos, consolidando pela virtude da forma tudo o que interessa o uso da vida, a direo da conduta e o problema do nosso destino. E, como ele queria, assim como querem todos os mestres, eu tento tambm executar esse ideal em uma lngua inteligvel a todos, para que todos possam chegar facilmente compreenso daquilo a que cheguei atravs de tantas angstias. No mundo, no h certezas, nem mesmo em geometria; e, se alguma h, aquela que est nos Evangelhos: amai-vos uns aos outros. Para atingir to alto escopo, tudo serve; e, como so Francisco Xavier, todos ns, que andamos em misso entre hindus, separados em castas hostis, entre malaios ferozes e prfidos, entre japoneses que se guerreiam feudalmente; todos ns, dizia eu, s devemos ter a divisa do Santo: Amplius! Amplius!. Sim; sempre mais longe!

amplius!

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pa rt e i contos publicados, conforme seleo do au t o r , c o m o a p n d i c e da 1 a e d i o da o b r a t r i s t e f i m d e p o l i c a r p o q u a r e s m a , 19 1 5

A nova Califrnia

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iingum sabia donde viera aquele homem. O agente do Correio pudera apenas informar que acudia ao nome de Raimundo Flamel, pois assim era subscrita a correspondncia que recebia. E era grande. Quase diariamente, o carteiro l ia a um dos extremos da cidade, onde morava o desconhecido, sopesando um mao alentado de cartas vindas do mundo inteiro, grossas revistas em lnguas arrevesadas, livros, pacotes... Quando Fabrcio, o pedreiro, voltou de um servio em casa do novo habitante, todos na venda perguntaram-lhe que trabalho lhe tinha sido determinado. Vou fazer um forno, disse o preto, na sala de jantar. Imaginem o espanto da pequena cidade de Tubiacanga, ao saber de to extravagante construo: um forno na sala de jantar! E, pelos dias seguintes, Fabrcio pde contar que vira bales de vidro, facas sem corte, copos como os da farmcia um rol de coisas esquisitas a se mostrarem pelas mesas e prateleiras como utenslios de uma bateria de cozinha em que o prprio diabo cozinhasse. O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante de moeda falsa; para outros, os crentes e simples, um tipo que tinha parte com o tinhoso.a n ova c a l i f r n i a

N

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Chico da Tirana, o carreiro, quando passava em frente da casa do homem misterioso, ao lado do carro a chiar, e olhava a chamin da sala de jantar a fumegar, no deixava de persignar-se e rezar um credo em voz baixa; e, no fora a interveno do farmacutico, o subdelegado teria ido dar um cerco casa daquele indivduo suspeito, que inquietava a imaginao de toda uma populao. Tomando em considerao as informaes de Fabrcio, o boticrio Bastos conclura que o desconhecido devia ser um sbio, um grande qumico, refugiado ali para mais sossegadamente levar avante os seus trabalhos cientficos. Homem formado e respeitado na cidade, vereador, mdico tambm, porque o doutor Jernimo no gostava de receitar e se fizera scio da farmcia para mais em paz viver, a opinio de Bastos levou tranquilidade a todas as conscincias e fez com que a populao cercasse de uma silenciosa admirao pessoa do grande qumico, que viera habitar a cidade. De tarde, se o viam a passear pela margem do Tubiacanga, sentando-se aqui e ali, olhando perdidamente as guas claras do riacho, cismando diante da penetrante melancolia do crespsculo, todos se descobriam e no era raro que s boas noites acrescentassem doutor. E tocava muito o corao daquela gente a profunda simpatia com que ele tratava as crianas, a maneira pela qual as contemplava, parecendo apiedar-se de que elas tivessem nascido para sofrer e morrer. Na verdade, era de ver-se, sob a doura suave da tarde, a bondade de Messias com que ele afagava aquelas crianas pretas, to lisas de pele e to tristes de modos, mergulhadas no seu cativeiro moral, e tambm as brancas, de pele baa, gretada e spera, vivendo amparadas na necessria caquexia dos trpicos. Por vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual a razo de ter Bernardin de Saint-Pierre gasto toda a sua ternura com Paulo e Virgnia e esquecer-se dos escravos que os cercavam... Em poucos dias a admirao pelo sbio era quase geral, e no o era unicamente porque havia algum que no tinha em grande conta os mritos do novo habitante. Capito Pelino, mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, rgo local e filiado ao partido situacionista, embirrava com o sbio. Vocs ho de ver, dizia ele, quem esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez um ladro fugido do Rio. A sua opinio em nada se baseava, ou antes, baseava-se no seu oculto des64contos completos de lima barreto

peito vendo na terra um rival para a fama de sbio de que gozava. No que Pelino fosse qumico, longe disso; mas era sbio, era gramtico. Ningum escrevia em Tubiacanga que no levasse bordoada do capito Pelino, e mesmo quando se falava em algum homem notvel l no Rio, ele no deixava de dizer: No h dvida! O homem tem talento, mas escreve: um outro, de resto.... E contraa os lbios como se tivesse engolido alguma coisa amarga. Toda a vila de Tubiacanga acostumou-se a respeitar o solene Pelino, que corrigia e emendava as maiores glrias nacionais. Um sbio... Ao entardecer, depois de ler um pouco o Sotero, o Cndido de Figueiredo ou o Castro Lopes, e de ter passado mais uma vez a tintura nos cabelos, o velho mestre-escola saa vagarosamente de casa, muito abotoado no seu palet de brim mineiro, e encaminhava-se para a botica do Bastos a dar dois dedos de prosa. Conversar um modo de dizer, porque era Pelino avaro de palavras, limitando-se to somente a ouvir. Quando, porm, dos lbios de algum escapava a menor incorreo de linguagem, intervinha e emendava. Eu asseguro, dizia o agente do Correio, que... Por a, o mestre-escola intervinha com mansuetude evanglica: No diga asseguro, senhor Bernardes; em portugus garanto. E a conversa continuava depois da emenda, para ser de novo interrompida por uma outra. Por essas e outras, houve muitos palestradores que se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro dos seus deveres, continuava o seu apostolado de vernaculismo. A chegada do sbio veio distra-lo um pouco da sua misso. Todo o seu esforo voltava-se agora para combater aquele rival, que surgia to inopinadamente. Foram vs as suas palavras e a sua eloquncia: no s Raimundo Flamel pagava em dia as suas contas, como era generoso pai da pobreza e o farmacutico vira numa revista de especficos seu nome citado como qumico de valor.

iiHavia j anos que o qumico vivia em Tubiacanga, quando, uma bela manh, Bastos o viu entrar pela botica adentro. O prazer do farmacutico foi imenso. O sbio no se dignara at a visitar fosse quem fosse e, certo dia, quando o sacristo Orestes ousou penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma esmola para aa n ova c a l i f r n i a

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