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Conceitos de hermeneutica

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  • Hermenutica Filosfica

    Maria Lusa Portocarrero

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    Conceitos Fundamentais de Hermenutica Filosfica

    Maria Lusa Portocarrero Silva

    Aplicao

    Atestao

    Crculo Hermenutico

    Conflito

    Efeito histrico

    Explicao

    Fuso de Horizontes

    Hermenutica

    Hermenutica da Confiana

    Hermenutica da Suspeita

    Identidade Narrativa

    Jogo

    Mito

    Preconceito

    Smbolo

    Coimbra

    Desde 2010

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    Maria Lusa Portocarrero

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    Aplicao (2011)

    Conceito nuclear da Hermenutica Filosfica de H.-G. Gadamer, com o qual filsofo critica o modelo gnosiolgico e romntico da interpretao, entendida como cpia ou reconstruo da inteno do autor. Segundo o filsofo, a interpretao no tem apenas um sentido cognitivo ou histrico, mas tambm prtico e normativo, como muito bem o testemunham a hermenutica jurdica e a teolgica, de raiz protestante. Nos dois casos a compreenso no visa o reconhecimento gnosiolgico do tema do texto, o tomar posse dele mas parte, pelo contrrio, de uma outra atitude. Comea por corresponder exigncia de sentido do texto, aceita o carcter vinculativo do seu contedo, quer isto dizer, reconhece-o na sua validade de orientao essencial ao modo humano habitar o mundo.

    Compreender nesta perspectiva aplicar, no mecanicamente, como quem segue regras normalizadas para a produo de algo, mas traduzir o assunto do texto para a prpria linguagem da sua situao concreta. O procedimento seguido o do dilogo de horizontes diferentes, que exige que a aplicao no seja um momento ulterior e eventual da compreenso, mas justamente aquele que a determina, desde o princpio, na sua totalidade. Compreender realizar em acto o compreendido, aplicar. Este tipo de aplicao hermenutica nada tem a ver com a aplicao mecnica e automtica do saber fazer tcnico; com efeito, esta ltima nada acrescenta ao modo de ser e situao do intrprete, pura habilidade automtica e eficaz.

    Pelo contrrio, defende Gadamer, a aplicao hermenutica no consiste em relacionar algo de geral e prvio com uma situao particular, modelando esta maneira do tcnico ou do arteso. O intrprete, que se confronta com uma tradio, tenta aplic-la a si mesmo, e isto no significa que o texto transmitido seja por ele compreendido como algo de universal, que pudesse depois ser utilizado para uma aplicao particular. Pelo contrrio, o intrprete pretende apenas compreender o texto, isto , o que diz a tradio e o que constitui o seu sentido e significao. Mas, para o compreender, ele no pode ignorar-se a si mesmo, nem to pouco esquecer a situao hermenutica concreta em que se encontra. Precisa de relacionar o texto com a sua situao, se quer realmente entend-lo. Deve pois colocar em jogo os preconceitos prprios, abrindo-se ao dilogo que por eles proporcionado. O modelo terico deste tipo de racionalidade, presente desde sempre nas hermenuticas jurdica e protestante, vai Gadamer busc-lo fronsis aristotlica, encontrando toda a semelhana entre a aplicao hermenutica e a tarefa tica da deciso prudente.

    A aplicao, eixo fundamental da Hermenutica para Gadamer, no designa mais um modelo de apreenso terica, por exemplo, o mtodo das cincias do esprito; ela exprime, pelo contrrio, o modo como se processa a compreenso humana finita, na sua dialctica essencial entre um primeiro momento, o de ser afectado pela significao j transmitida e considerada essencial ao agir, e um segundo, o da sua apropriao crtica ou reflexiva. A aplicao representa o acto existencial de ser si prprio do ser humano, enquanto este no tempo e por isso, orientado no mundo a partir de uma antecipao da perfeio e de um horizonte de significaes, inevitavelmente j sempre recebidas e aceites como vlidas. O primado do recebido, o reconhecimento da sua validade prtica e a necessidade da sua traduo, ou construo de um anlogo na situao concreta do presente, eis os ncleos que nos permitem entender o

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    conceito gadameriano de aplicao. A tarefa hermenutica aplicao e no reconstruo, porque parte de uma implicao no sentido ou compreenso prvia que quer explicitar; est ao servio do texto, logo precisa de traduzir, fazendo ao mesmo tempo o luto da traduo absoluta. Toda a traduo responde a um apelo, deve criar o mesmo espao simblico que o texto pretendia criar, quando o esprito nele falou, mas toda a traduo exige, como a interpretao, um conjunto de decises tomadas e, deste modo, uma certa cegueira. No h traduo ideal. A aplicao sabe-o claramente.

    O que a hermenutica de Gadamer pretende no fundo, com o conceito de aplicao, questionar a ligao da compreenso do mundo do texto com os modelos da imagem pontual e da percepo objectivante. A Hermenutica no tem como objectivo a posse de conhecimentos e coisas, mas pretende simplesmente trazer considerao dos filsofos algo que foi esquecido: a necessidade de pensar a forma de mediao que efectuam os iderios comuns transmitidos pela tradio histrica e literria. Segundo Gadamer, uma tal mediao, porque faz pensar e transmite prticas de relacionamento e de comunicao, exige execuo criativa e pode ajudar a ultrapassar a reduo do homem ao agir mecnico dos dias de hoje.

    A Hermenutica representa uma forma de sabedoria prtica que, muito antes de exprimir o desempenho subjectivo de uma tarefa, em solilquio, traduz a receptividade originria da competncia poltica e comunicativa que o existir em comum. Ela requer pois uma particular finura de esprito: aquela que sabe considerar a experincia compreensiva bsica do Dasein, a temporalidade, como a razo da nossa solidariedade histrica. Isto , como aquilo que nos faz perceber de que modo todo o princpio para ns j sempre principiado, logo sempre segundo e como qualquer ltimo sempre penltimo. Outros viro que sublinharo linhas de sentido por ns no descobertas e nunca suspeitadas e vo destac-las daquelas que afirmmos.

    E isto quer dizer, em ltima anlise, que no h compreenso sem interesse, que a Hermenutica um saber implicado, que reconhece este seu envolvimento no sentido do texto e no da situao concreta, de que parte o intrprete, como o real motivo da interpretao. Esta unidade de compreenso implicao era j o motivo da hermenutica pr-filosfica. Foi no entanto esquecida pela converso epistemolgica da hermenutica moderna de F. Schleiermacher e W. Dilthey.

    Em clima de subjectivismo, o do romantismo e do historicismo, a Hermenutica s podia reduzir o texto a um contedo cognitivo disponvel e passvel de ser repetido por todos de forma exacta; interpretar significava neste horizonte, (ainda marcado pelo Ilustrao), uma reconstruo da inteno do autor ou das circunstncias originrias que deram origem ao texto, que perdeu assim todo e qualquer efeito histrico e retrico sobre a situao concreta do intrprete. Para esta concepo hermenutica a repercusso histrica do texto desconhecida, logo tambm toda a sua dimenso educadora, suscitadora de dilogos e formadora de universais poticos da condio humana.

    Com a recuperao da applicatio, Gadamer reafirma, na linha de Sto. Agostinho e Heidegger, a estrutura temporal de antecipao do existir humano e por isso retoma o tema da subtilitas applicandi, prprio da hermenutica pietista da Bblia; defende que uma compreenso do texto sem a sua aplicao vida concreta nada . a velha unidade de compreenso, interpretao e aplicao, aquela que j J. J. Rambach caracterizava como o eixo fundamental da antiga hermenutica, desenvolvida no mbito da teologia, da filologia e da jurisprudncia,

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    que Gadamer recupera para a hermenutica em geral, dizendo-nos que a principal tarefa desta iniciar um intercmbio de horizontes entre o texto e a nossa compreenso actual e no reproduzir a inteno do seu autor: A histria da antiga hermenutica ensina-nos que a par da Hermenutica filolgica existiu uma Hermenutica teolgica e outra jurdica que, conjuntamente com a hermenutica filolgica, preenchem o conceito pleno de Hermenutica. Ora, o que constitui quer a Hermenutica teolgica, quer a jurdica a tenso que, por um lado, existe entre o texto estabelecido a lei ou a revelao e o sentido que alcana a sua aplicao no momento concreto da interpretao, no juzo ou na prdica, por outro lado. Uma lei no quer ser entendida historicamente, a interpretao deve antes concretiz-la na sua validade jurdica. Do mesmo modo, o texto de uma mensagem religiosa no pretende ser compreendido como um mero documento histrico, mas sim de um modo tal que possa exercer, em cada situao, o seu efeito redentor. Isto implica, em ambos os casos, que, se o texto, a lei ou a mensagem da salvao devem ser adequadamente entendidos, isto , de acordo com as pretenses que eles mesmos mantm, tm de se compreender em cada momento e em cada situao concreta de uma maneira nova e diferente. Compreender tambm e sempre aplicar.

    Na raiz da teoria da interpretao, desenvolvida at ao sc. XIX, como arte (subtilitas) e no mtodo residia, de facto, uma forma de implicao que se traduzia pela aplicao que, por sua vez, nada tinha a ver com a aplicao rgida, conforme s regras do rigor e sentido logicamente unvoco. De cada vez que se aceita um modelo, lembra-nos Gadamer, entra em cena uma maneira de compreender que no deixa as coisas como esto, porque toma decises e sente-se obrigada. Por isso esta referncia a um modelo reveste sempre o carcter de um seguimento. Tal como o seguimento mais do que uma simples imitao, tambm a sua compreenso sempre uma forma renovada de encontro e reveste por si mesma o carcter de um acontecer, precisamente porque no deixa as coisas como esto mas implica aplicao.

    A interpretao como aplicao requer justamente a lgica da hospitalidade lingustica, a da traduo, que sempre parte de um universal com margens abertas ao anlogo, glosa e nova verso, aquela que sabe aproximar de forma plausvel e fecunda mas nunca definitiva. Neste mbito propriamente dito da experincia hermenutica (....) confirma-se, diz-nos Gadamer, o parentesco prximo da hermenutica com a filosofia prtica. E afirma-se o facto de a compreenso ser exactamente como a aco sempre um risco, uma construo finita do anlogo e no a aplicao segura de um saber geral de regras unvocas. Alm disso, uma vez alcanada, a compreenso significa uma modificao interior que penetra como uma experincia nova no todo da nossa prpria experincia espiritual

    1. Compreender uma aventura e, como toda a

    aventura, algo que nos modifica, logo uma aco perigosa: A compreenso muito mais do que a aplicao artificial de uma capacidade. ainda e sempre o alcanar de uma compreenso de si mais ampla. Ora, isto significa que a hermenutica filosofia e, enquanto filosofia, filosofia prtica.

    Sem esta motivao tica, pensa Gadamer, a hermenutica perde todo o seu sentido; ainda hoje interpretamos porque precisamos de nos orientar no mundo, logo partimos de um ser afectado por, de uma habitao ou familiaridade com certos horizontes contidos em textos e sabemos, no novo uso que deles fazemos, libertar novas perspectivas. Ento, o trabalho do intrprete no deve

    1 H.G-GADAMER, Vernunft im Zeitalter der Wissensshaft, Frankfurt, 1980, p.106

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    limitar-se a uma cognio erudita ou a uma reproduo do que diz o seu interlocutor. Procura, pelo contrrio, fazer valer a opinio deste, da maneira que lhe parea necessria, tendo em conta a verdadeira situao dialgica em que s ele se encontre, enquanto conhecedor da linguagem das duas partes. O intrprete criador de sentido no contexto do sentido transmitido. Faz acontecer a tradio, transmite-a, deixando a marca da sua situao.

    Concluindo: o interesse cognitivo da hermenutica de ndole existencial e tico: compreender concretizar em situao um sentido (a mensagem da salvao ou a legalidade da lei) que se pressupe orientar paradigmaticamente a aco. No h interpretao que no esteja simultaneamente marcada pela aplicao, expresso da condio finita da compreenso e do efeito histrico essencial da interpretao. Resultado da estrutura de antecipao do Dasein, a aplicao que no significa, de modo algum, que primeiro se compreende e depois se aplica procura tornar presente uma palavra, cujo valor universal num primeiro momento pressuposto e apenas se pode transformar em sentido verdadeiramente real e vinculativo, quando em cada situao concreta acontece a sua clarificao compreensiva.

    Compreender assim acontecer e no reconstruir; fazer com que o outro entenda o que a mediao dos smbolos nos transmite, em termos de organizao tica e social dos assuntos humanos. Mas tambm perceber que necessrio desistir de uma compreenso plena e total. S se interpreta, de facto, quando no existe uma compreenso imediata, um acordo claro e estabelecido e quando uma tarefa prtica est no horizonte. neste sentido que Gadamer considera que a hermenutica jurdica recorda por si mesma, de forma exemplar, o verdadeiro procedimento das cincias do esprito. Nela temos o modelo de relao de passado e de presente de que estvamos procura. Quando o juiz tenta aplicar a lei transmitida s necessidades do presente, tem claramente a inteno de resolver uma tarefa prtica. O que de modo nenhum quer dizer que a sua interpretao da lei seja arbitrria. Tambm no seu caso, compreender e interpretar significa conhecer e reconhecer um sentido vigente. O juiz tentar responder ideia jurdica da lei mediando-a com o presente. Esta evidentemente uma mediao jurdica. O que ele tenta reconhecer o significado jurdico da lei e no o significado histrico da sua promulgao ou uns casos especficos sua aplicao (....) A tarefa da interpretao consiste em concretizar a lei em cada caso, isto , na sua aplicao. Bibliografia: H- G. GADAMER, Gesammelte Werke 1. Hermeneutik 1 Wahrheit und Methode - 1.Grundzge einer philosophischen Hermeneutik, Tbingen, Mohr, 1986; IDEM., Gesammelte Werke. 2 Hermeneutik 2. Ergnzungen. Register, Tbingen, Mohr, 1986; K. O. APEL, Das Verstehen. Eine Problemgeschichte als Begriffsgeschichte, in Archiv fr Begriffsgeschichte, I, 1955, pp. 142- 149; E. CORETH, Cuestiones fundamentales de hermenutica, trad. Barcelona, Herder,1972.; G. EBELING, Hermeneutik in Religion in Geshichte und Gegenwart, 3 Bde, 1959, pp. 242-262; J., GREISCH, Lge hermneutique de la Raison, Paris, Cerf, 1985; J. GRONDIN, LUniversalit de lhermneutique, Paris, PUF, 1993; O., MARQUARD, Frage nach der Frage auf die die Hermeneutik Antwort ist, in Philosophisches Jahrbuch, 1981, pp. 1-19.

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    Atestao (2011)

    Conceito central da hermenutica ricoeuriana, com o qual o filsofo exprime o tipo de compreenso de si que tem a pessoa. Esta um ente que no pode reduzir-se mais ao modelo clssico da representao, logo que excede concepo soberana do cogito cartesiano e que recusa a humilhao nitzscheana da conscincia. Entre o cogito exaltado de Descartes e o cogito humilhado de Nietszche, a atestao ricoeuriana expressa a confiana na capacidade que tem o homem de poder fazer sentido no mundo; afirma o primado do agir e inscreve-se na via aberta pelas hermenuticas da suspeita.

    Para Ricoeur, a ideia de um cogito quebrado o resultado da apropriao da mensagem fundamental das hermenuticas de Nietszche e de Freud, e estas impem ao homem, que se assume como corpo finito movido por uma vontade, a dialctica de atestao, do testemunho e da interpretao. A atestao expressa a confiana que a pessoa tem no seu modo de ser capaz, isto , na sua capacidade de passar, por meio da vontade, da possibilidade do projecto realidade da aco. No h atestao que no seja atestao de si, enquanto atitude, iniciativa, compromisso. A atestao expressa a unidade da existncia e da aco, o movimento de afirmao de si que constitui a experincia da pessoa, enquanto nico ser que sabe que a sua natureza mais prpria reside no facto de ser capaz de falar, de agir de contar a histria da sua vida, de prometer e de ser imputvel.

    A atestao para cada pessoa uma forma de segurana, uma segurana sem qualquer garantia de certeza, a confiana que tem o novo sujeito de poder permanecer si prprio em todas as circunstncias da sua vida. Nela se traduz uma crena, uma esperana, muito mais forte do que toda a dvida, mas sem qualquer fundamentao segura; ela ento uma confiana vulnervel, a confiana que tenho no meu poder fazer, que exige por sua vez uma confirmao do outro, isto , um exerccio permanente do dar testemunho de si. A atestao, enquanto confiana no sentido do agir, descentra o sujeito na medida em que exige a mediao da interpretao de todos os seus testemunhos. Ela l-se justamente nos testemunhos daquele que sabe manter-se em si mesmo disponvel ou fiel a si prprio, apesar de todas as suas mudanas interiores e exteriores.

    Em suma, a atestao uma certeza prtica que, em Soi-mme comme un autre, Ricoeur eleva a conceito nuclear da investigao sobre a identidade e que define como a segurana de ser si mesmo agente e sofredor, ou por outras palavras, como a capacidade de prometer e de cumprir as suas promessas. Atestao de si e requisio pelo outro so agora os elementos de uma textura relacional, a do si mesmo que sabe que a alteridade faz parte da sua autenticidade praxstica. Com efeito, sem o outro no posso ser um si mesmo e pergunta o filsofo, na obra Soi-mme comme un autre (p. 393): se o outro no contasse comigo, seria eu capaz de manter a minha palavra e nisto manter-me a mim mesmo?

    Bibliografia: P. RICOEUR, Soi-mme comme un autre, Paris, Seuil, 1990; O. ABEL, J. PORE, Le vocabulaire de P.Ricoeur, Paris, Ellipses, 2007.

    Crculo Hermenutico (2010)

    Expresso frequente na discusso hermenutica actual, aparecendo simultaneamente no mbito filosfico e no teolgico. O crculo refere a lgica

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    interna da compreenso hermenutica, isto , a regra segundo a qual necessrio compreender o todo de um texto a partir das suas partes e estas a partir do todo. De acordo com H.-G. Gadamer, esta uma regra cuja origem remonta antiga retrica e que penetrou na hermenutica moderna atravs da problemtica protestante da defesa da legibilidade e inteligibilidade do texto bblico. Na raiz desta ideia de crculo hermenutico reside, de facto, a aplicao escrita do princpio da retrica clssica, segundo o qual todo o discurso tem princpio meio e fim. Na base deste princpio reside um pressuposto existencial, que a hermenutica clarifica e que se pode caracterizar do seguinte modo: compreender um texto poder ser por ele interpelado, de um modo tal que podemos dizer que uma antecipao de sentido conduz toda a nossa compreenso. Interpretar no partir de um grau zero mas, pelo contrrio, de uma prvia compreenso que envolve a nossa prpria relao com o todo do texto, embora ela apenas se torne numa compreenso explcita quando por sua vez as partes, que se definem a partir do todo, podem definir esse mesmo todo.

    O processo de compreenso distingue-se de outros processos de inteleco, nomeadamente da explicao, porque parte de um efeito da palavra na existncia, procede de acordo com um movimento circular que vai da prvia compreenso, difusa de um todo de sentido, compreenso das partes e da compreenso explcita destas at a um novo sentido do todo. A compreenso hermenutica alcana a sua justeza quando o seu primeiro critrio a concordncia de todos os detalhes com o todo e isto significa que a falta de congruncia acarreta necessariamente o fracasso da compreenso.

    Devolver ao texto o acento justo sempre foi a misso da hermenutica que nunca pretendeu confundir a sua tarefa com a de uma pura deteco de tipo lgico e tcnico do sentido, prescindindo de toda a verdade do dito. Da todo o seu esforo para alargar, segundo o modelo de crculos concntricos, a unidade do sentido compreendido, num vaivm contnuo do todo parte e da parte ao todo, rectificando, sempre que necessrio, a expectativa com que comea. Pela sua origem existencial, o crculo hermenutico distingue-se assim do crculo vicioso em sentido lgico.

    A ideia de crculo aparece, pela primeira vez, no contexto filosfico da hermenutica com F. Schleiermacher (1769-1834), que o recebe de F. Ast, e ao qual d uma orientao subjectivista que vai marcar a prpria hermenutica de W. Dilthey. Schleiermacher, pensador romntico e fundador da hermenutica filosfica, introduz algo de novo no mbito da tradio hermenutica uma ruptura histrica de mbito universal j que ao contrrio da primeira fase, no filosfica, da hermenutica no admite a recepo da tradio, como base slida de toda a necessidade de interpretao. O fio condutor desta ser doravante o pensamento singular de quem se exprime atravs de uma lngua comum.

    Neste novo contexto, claramente romntico, o crculo da parte e do todo adquire toda uma dupla vertente: subjectiva e objectiva. Sendo o texto o resultado da apropriao de uma lngua comum e da expresso de um pensamento singular, cada palavra pertence, claro, ao conjunto da frase, cada texto ao conjunto da obra do respectivo escritor e esta, por sua vez, ao conjunto do gnero literrio ou da literatura correspondente. Mas, por outro lado, enquanto manifestao de um momento criativo, o texto pertence ao conjunto da vida anmica do autor. S esta totalidade psquica permite realizar plenamente a compreenso.

    Neste mesmo sentido Dilthey falar de "estrutura" e de "convergncia segundo um ponto central", no qual a compreenso do todo encontra o seu real

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    fundamento. Institui-se, assim, a ideia da reconstruo da inteno mental como verdadeiro critrio hermenutico.

    Ser com M. Heidegger que a problemtica hermenutica do crculo da compreenso adquirir todo um novo e importante significado, aquele que ainda hoje lhe damos. Em Ser e Tempo, o autor retoma a temtica do crculo hermenutico reconhecendo nela expressamente no s a lei fundamental da compreenso hermenutica como a estrutura bsica de toda a possibilidade de inteleco. Quer isto dizer que enquanto a teoria hermenutica do sc. XIX detectava no crculo a estrutura da compreenso histrica e literria, concebendo-a sempre no quadro da relao formal entre a parte e o todo do texto e tendo ainda em conta o seu reflexo subjectivo (a antecipao intuitiva do todo a que se segue a explicitao do detalhe) , para Heidegger a estrutura circular da compreenso hermenutica no pode, de maneira nenhuma, desembocar num acto puramente psicolgico ou adivinhatrio, que permita um acesso directo ao autor e a partir do qual se atinja uma plena compreenso dos textos. Pelo contrrio, o que agora acontece o seguinte: toda a compreenso humana est determinada, de um modo permanente, pelo movimento de antecipao prprio do ser marcado por uma prvia compreenso. O crculo hermenutico corresponde estrutura existencial do existir humano no mundo, que um ser simultaneamente encarnado, finito e inteligente, isto , sempre j marcado pela recepo de uma relao ao sentido.

    Para Heidegger e aqui reside a sua novidade o crculo no descreve apenas a estrutura metodolgica da compreenso hermenutica mas, pelo contrrio, a prpria natureza da inteligibilidade humana, isto , o que sempre acontece quando o homem - j no um sujeito omnipotente mas um ser finito e histrico - compreende. E o que que isto significa? O seguinte: porque a existncia humana inteligente, uma compreenso originria acompanha-a sempre em toda e qualquer compreenso particular que realize. esta a sua condio fctica inultrapassvel. E isto implica que uma tal compreenso - a estrutura ontolgica bsica do acto humano de ser - precede a prpria dualidade metodolgica clssica da compreenso dos textos e da explicao da natureza, sendo a prpria condio de possibilidade de toda a interpretao.

    Neste contexto, claramente no metodolgico, todo aquele que quer compreender um texto, antecipa sempre um esboo do conjunto assim que lhe aparece um primeiro desenho de sentido no texto. A sua compreenso consiste no prprio aperfeioamento deste projecto prvio, sempre falvel - porque finito - e sujeito a reviso, por um ulterior aprofundamento. Interpretar , assim, partir sempre de conceitos prvios que vo sendo substitudos por outros mais adequados. Heidegger sabe que, devido sua condio finita, quem tenta compreender expe-se sempre ao erro das opinies prvias que no se confirmam nas coisas. Logo, que a compreenso apenas se realiza verdadeiramente quando percebe que a sua primeira grande tarefa proteger-se da arbitrariedade das opinies particulares e dos hbitos de pensamento, que passam despercebidos, em ordem a poder dirigir o olhar para as coisas mesmas. Uma conscincia formada de modo hermenutico no pode entregar-se, de facto, desde o incio, ao acaso das suas prprias opinies prvias sobre o assunto. Deve, pelo contrrio, estar disposta a que o texto lhe diga algo de novo. Mas esta alteridade s pode surgir quando ela prpria pe em causa os pressupostos do intrprete, fazendo-os entrar em jogo. So, de facto, os pressupostos no percebidos aqueles que nos tornam surdos novidade do texto.

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    Desenvolvendo esta nova caracterizao ontolgica do sentido do crculo hermenutico, H.-G. Gadamer, discpulo de Heidegger e autor da conhecida obra Verdade e Mtodo, vai ainda mais longe e caracteriza a pressuposio de sentido que acompanha toda a compreenso como "antecipao da perfeio". que, segundo o autor, o homem s compreende o que constitui uma unidade acabada de sentido. Partimos deste pressuposto da perfeio sempre que lemos um texto. De outro modo nem sequer o lamos. E s quando este pressuposto acaba por no se sustentar no decurso da leitura, quando o texto no compreensvel, que o criticamos, duvidando da sua transmisso e procurando refazer o sentido do texto.

    Para o filsofo, isto significa fundamentalmente que o processo de compreenso no se reduz a uma misteriosa comunho de almas mas, pelo contrrio, participao num sentido comunitrio (o que hoje ainda me interpela), que o prprio presente ajuda a reconfigurar de um modo novo, segundo um processo histrico de contnua formao. A antecipao da perfeio, que guia a nossa compreenso, no neste caso apenas uma expectativa formal que pressuponha ser inerente ao texto uma unidade de sentido que orienta a compreenso do leitor mas est fundamentalmente determinada por expectativas de contedo. Pressupe-se, antes de mais o seguinte: o texto fala verdade, pode dizer-nos algo de vlido, entende mais do assunto, que nos preocupa, do que ns prprios.

    O que significa, em ltima anlise, que s quem tem uma prvia compreenso do assunto tratado no texto efectua a sua leitura. S quem confia no valor dos textos, porque tem expectativas marcadas pela abertura alteridade (e no apenas pela imanncia estreita da sua perspectiva singular), pode ser interpelado pela palavra e interpretar. A compreenso prvia, que deriva do ter que ver com o assunto abordado pelo texto, assim a primeira de todas as condies hermenuticas. Bibliografia: H.-G.GADAMER, Gesammelte Werke I. Hermeneutik I.Wahrheit und Methode I .Grundzge einer philosophischen Hermeneutik.Tbingen, Mohr, 1986; H-G..GADAMER, Gesammelte Werke 2. Hermeneutik II. Wahrheit und Methode- 2. Ergnzungen. Register.Tbingen, Mohr,1986;M.HEIDEGGER, Sein und Zeit, Tbingen, Max Niemeyer Verlag, 1979.

    Conflito (2010)

    Termo usado por P. Ricoeur para caracterizar a dupla motivao - vontade de escuta e atitude de desconstruo ou suspeita - que caracteriza a ambiguidade da Hermenutica contempornea. P. Ricoeur parte do seguinte dado de facto: a relao da interpretao com a linguagem comporta, depois de Nietszche, Freud e Marx, uma dupla possibilidade que no pode ser esquecida e origina no mbito da Hermenutica um conflito de interpretaes. So fundamentalmente duas, e radicalmente opostas, as possibilidades de interpretao que hoje se fazem da funo simblica da linguagem: a hermenutica da confiana que acredita no poder prospectivo e revelador dos smbolos; a hermenutica da suspeita que acentua o seu poder de dissimulao, efectuando uma interpretao redutora e arqueolgica de toda a simblica humana. , por isso, necessrio enfrentar a complexidade do conflito de interpretaes, em ordem a perceber os nveis da significao da prpria linguagem falada e ouvida pelos homens. A clarificao da mediao semntica de toda a hermenutica, tarefa em que Ricoeur concentra, alis, os seus esforos, nos anos sessenta do sc. XX, exige que se reflicta, nomeadamente, sobre a

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    ambiguidade ou paradoxo constitutivo da prpria estrutura significativa da linguagem, que no pura cpia mas funciona como smbolo. No smbolo existe, para Ricoeur, uma dupla intencionalidade do sentido literal que funciona como um enigma que tanto pode significar um novo modo de referncia como uma operao de pura dissimulao.

    Os signos simblicos so opacos, lembra-nos, constantemente o autor. Tm um sentido literal e outro existencial ou escondido; uma dimenso semntica e outra no semntica que absolutamente impossvel separar. So os testemunhos mais fidedignos da estrutura de antecipao prpria do humano. Exprimem o conflito originrio ("desejo de ser na falta do ser") que d origem ao prprio acto de significar e interpretar. Mergulham as suas razes na experincia trgica ou umbrosa do existir humano. Representam assim o vivido de algo poderoso, forte e eficaz, que exige ser dito, embora nunca ingresse completamente na linguagem. Revelam, em suma, a distncia em que radica a linguagem. Por isso mesmo, suscitam a interpretao, ou melhor, so o seu verdadeiro espao de experincia.

    justamente na opacidade do sentido que reside a profundidade da manifestao prpria do smbolo. Tudo o que o smbolo d que pensar, quer isto dizer, d-o por meio da interpretao, na transparncia opaca de um enigma que, longe de bloquear a compreenso, provoca-a indefinidamente. alis esta textura dupla do smbolo, que torna possvel todo o trabalho da interpretao. Este, por sua vez, torna manifesto o modo como o acto de significar ou o advento da linguagem pode tambm querer dizer distncia, narcisismo e dissimulao. Necessrio pois encarar o conflito de interpretaes a que a funo reveladora do smbolo d origem, quando realmente se pretende entender a natureza significativa ou hermenutica da prpria linguagem.

    hermenutica contempornea cabe, antes de mais, perceber como toda a interpretao singular finita; uma apropriao limitada do sentido simblico, que reduz por definio a determinao mltipla do sentido traduzindo-a numa grelha de leitura que lhe prpria. Cabe-lhe ainda revelar como reduzir no significa, no entanto, anular todo o significado potencial do smbolo. Apenas suspend-lo, isto , partir de pressupostos que determinam um ponto de vista especfico e a sua coerncia.

    A hermenutica integra assim o conflito das interpretaes. Este revela-nos como toda a interpretao uma leitura limitada e coerente no interior da sua prpria perspectiva que, por isso mesmo, pressupe, conceitos operatrios fundamentais que inscrevem, ao serem explicitados, numa das interpretaes a linha de sentido desenvolvida pela outra. E isto o que significa o seguinte: se a coerncia de toda a interpretao exige uma certa suspenso do conflito que a suscita, isto , uma reduo da polissemia inicial do smbolo, pela sua traduo para um determinado contexto, esse facto no implica que o conflito tenha sido anulado. Apenas foi perspectivado de acordo com uma determinada opo. Da que cada uma das interpretaes em conflito esteja inscrita, a ttulo potencial, nos conceitos no temticos da outra. Necessrio , pois, revelar a complementaridade das hermenuticas rivais como o verdadeiro corolrio do seu carcter de perspectiva.

    Tal o verdadeiro sentido do conflito das interpretaes em Ricoeur: a tenso originria no aquela que existe entre uma interpretao e a outra mas, pelo contrrio, aquela que tem razes no interior de cada uma. Toda a interpretao parte de uma situao de pertena originria linguagem que incapaz, de abarcar sozinha Deve, por isso, apoiar-se na outra perspectiva, em

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    ordem a evitar toda a cristalizao ideolgica e poder alargar o seu ponto de vista. A verdade hermenutica sempre relativa a uma situao. Logo, s a solidariedade no conflito permite evitar o narcisismo hermenutico. Apoiar-se no adversrio para poder prosseguir eis a condio de possibilidade de toda a interpretao que sabe reconhecer a abertura como corolrio essencial do seu carcter irremediavelmente limitado. A tenso do smbolo transmite-se interpretao. Logo, no existe hoje uma Hermenutica geral, apenas teorias diferentes e at contraditrias. O paradoxo a verdadeira lgica da hermenutica que, por isso, nunca pode cair em totalizaes apressadas. Ora, isto s se consegue quando o conflito das interpretaes levado a srio e se compreende que arbitr-lo , antes de mais, salientar, as suas diferenas para procurar, em seguida, todo aquele jogo de envios pelo qual cada interpretao remete, pelos seus prprios conceitos operatrios, para a outra.

    Assim sendo, se de facto, a hermenutica da suspeita redutora e arqueolgica, porque apenas trabalha a dimenso regressiva do smbolo, o que preciso revelar a dialctica que ela mesma implica enquanto suspende a dimenso prospectiva dos smbolos. A tarefa da Hermenutica consiste em patentear o modo como, no seu princpio, cada tipo de interpretao comporta, segundo a linha da sua prpria coerncia, todo um jogo de referncias que s o encontro com a outra interpretao permite explicitar. So justamente os pontos fracos de uma os pontos fortes da outra, afirma Ricoeur. Neste sentido, arbitrar o conflito estar atento aos limites de cada interpretao, de modo a notar os pontos possveis de encontro. A esta tarefa consagra o autor a sua Hermenutica, lembrando-nos que se a sua particular simpatia e dependncia a da hermenutica da confiana, a verdadeira confiana s verdadeiramente douta quando reconhece os seus verdadeiros limites e sabe integrar a crtica abrindo-se simultaneamente lgica progressiva e regressiva do smbolo. Nas suas obras, De lInterprtation. Essai sur Freud e Le Conflit des Interprtations. Essais d`Hermneutique o autor dialoga respectivamente com a Psicanlise de Freud, que considera ser o modelo por excelncia da hermenutica da suspeita, e com o estruturalismo lingustico que desenvolve ao nvel da semntica do texto a atitude redutora de explicao do sentido dos smbolos. O objectivo duplo: pensar, em primeiro lugar, as condies no puramente subjectivas mas profundamente relacionais ou intersubjectivas da referncia simblica, desde sempre motivo de uma Hermenutica; descentrar, em segundo lugar, a subjectividade do intrprete por meio da lgica progressiva e regressiva do smbolo.

    Bibliografia.: P. RICOEUR, De lInterprtation. Essai sur Freud. Paris, Seuil, 1965; IDEM., Le conflit des interprtations. Essais dhermneutique, Paris, Seuil, 1969; IDEM., Du texte laction. Essais d hermneutique II, Paris, Seuil, 1986; IDEM., Du conflit la convergence des mthodes en exgse biblique in X. LON- DUFOUR, (Ed) Exgse et hermneutique. Parole de Dieu, Paris, Seuil, 1971, pp. 35-52.; P. GISEL, Le conflit des interprtations, in Esprit, 11, 1970, pp.776-784; IDEM., Paul Ricoeur ou le discours entre la parole et le langage, in Revue de Thologie et de Philosophie, 26, 1976, pp.98-110.; M. L. PORTOCARRERO SILVA, A Hermenutica do conflito em P. Ricoeur, Coimbra, Minerva, 1992; IDEM., Da fuso de horizontes ao conflito das interpretaes: a Hermenutica entre Gadamer e Ricoeur in Revista Filosfica de Coimbra, 1(1992), pp. 127-153.

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    Efeito histrico (2014) Com este importante conceito pretende H.-G. Gadamer libertar a

    Hermenutica filosfica dos pressupostos epistemolgicos da conscincia histrica

    e da tese por esta defendida da distncia entre passado e presente. Esta era

    concebida, maneira objetivista da cincia, como um abismo que o intrprete

    devia franquear, em ordem a reconstruir as circunstncias originais do autor. S

    assim se alcanaria a verdadeira compreenso.

    Para Gadamer, o historicismo ficou ainda limitado ao primado do mtodo,

    no podendo por isso compreender a eficcia do trabalho desempenhado pelo

    prprio processo da histria no fenmeno humano da compreenso. Quer dizer, a

    mentalidade historicista no percebeu as reais implicaes da historicidade de

    todo aquele que compreende a histria. Da que o modelo da hermenutica de W.

    Dilthey tenha continuado a ser dominado pelos ideais do objetivismo e do mtodo

    e no tenha sabido reconhecer o papel desempenhado pelo trabalho da histria no

    prprio modo de ser histrico da compreenso do intrprete Para Gadamer,

    discpulo de M. Heidegger e da sua defesa da temporalidade, como textura

    ontolgica do Dasein, a ideia historicista de abismo deve ser superada pela

    tomada de conscincia da influncia histrica das obras passadas na

    compreenso efetiva do presente. No pois possvel manter o ideal

    hermenutico do historicismo, o de horizontes fechados e separados e da

    interpretao como uma reconstruo da inteno do autor.

    De acordo com Gadamer a lgica hermenutica das cincias humanas no

    a da objetividade cientfica. O filsofo acredita que as cincias humanas tm uma

    outra misso: a transmisso de uma forma de saber que serve para nos configurar,

    mediante uma receo de valores humanos que no podem ser verificados ou

    previamente provados, de modo objetivo. Existem assim verdades que resistem

    metodologia cientfica e que so, no entanto, essenciais para a praxis humana e para formao

    da prpria humanidade.

    Na linha da esttica da receo, do sc. XIX, que defendia a tese segundo

    a qual h que ter claramente conscincia do facto de uma obra ter diferentes

    recees na histria, que tm por sua vez uma eficcia na posteridade, Gadamer

    quer ento mostrar-nos que todo o acontecimento histrico e todo o nosso

    horizonte de compreenso esto j submetidos a efeitos de sentido provocados

    pela repercusso das obras e dos acontecimentos passados, logo a circunstncias

    de receo que sempre enriquecem o seu sentido. Este mesmo facto acontece no

    seio da cincia, embora ela no queira dar-se conta disso. Mas preciso

    reconhecer que o nosso acesso finito aos textos do passado e aos acontecimentos

    originais mediado pelo tipo de recees ou pelo efeito exercido sobre ns pelo

    trabalho da prpria histria. A conscincia hermenutica no pode pois trabalhar

    com o modelo da certeza absoluta nem com a metodologia das cincias positivas

    que desconhecem o efeito da receo de um mundo, j sempre dito e significado

    por outros e singularmente apropriado.

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    Esta tese gadameriana da eficcia histrica do histrico constitui, segundo

    J. Grondin2, o ncleo central da hermenutica do filsofo, em volta do qual gira

    alis toda a obra Verdade e mtodo. O filsofo canadiano explica-nos ainda que

    com este conceito Gadamer quer conciliar na sua herana de M. Heidegger, seu

    mestre, nomeadamente, a experincia da Kehre e a hermenutica da facticidade

    de Ser e tempo , que como sabemos foi abandonada pelo ltimo Heidegger. Para

    Gadamer a experincia da Kehre pode ainda ser uma experincia hermenutica

    que deve entender-se como a experincia dos fundamentos ontolgicos da pr-

    compreenso. Isto acontece quando uma conscincia finita reconhece a sua

    pertena a uma tradio que a suporta. Deste modo, e mediante a sua traduo da

    Kehre heideggeriana, Gadamer consegue sustentar o primado do envio do Ser e

    do sentido sobre o da conscincia e ainda a ideia de que a compreenso no um

    comportamento metdico do sujeito, mas fundamentalmente uma pertena a um

    acontecer da tradio no qual se mediatizam constantemente o passado e o

    presente. A compreenso muito mais um acontecer do que um processo

    metdico.

    A histria da eficcia histrica da tradio significa ento que a conscincia

    humana sofre os efeitos do trabalho da histria e que deve assumir este facto, isto

    , tomar conscincia que nunca pode chegar origem absoluta do sentido. Com

    efeito, uma conscincia verdadeiramente histrica, quando compreende, traz

    consigo o seu prprio presente e f-lo vendo-se a si e ao que historicamente

    outro a partir das suas relaes recprocas. Assim enquanto o historicismo tinha

    grande confiana no objetivismo cientfico, com o qual pensava poder subtrair-se

    influncia histrica da receo das obras e acreditava que conseguiria isolar a

    situao original do texto, Gadamer sustenta que, dada a nossa finitude, no

    podemos proteger-nos do efeito do trabalho da histria. A atitude historicista

    claramente um sintoma de ingenuidade hermenutica. Segundo o filsofo, crer

    poder explicitar de forma plena e totalmente consciente o trabalho da histria,

    uma ideia em tudo comparvel pretenso hegeliana do saber absoluto. Ora, o

    que um facto que partimos sempre de preconceitos que marcam o nosso

    2 Jean Grondin, Lhorizon hermneutique de la pense contemporaine, Paris, Vrin, 1993, p.213.

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    enraizamento numa situao concreta de receo da tradio e que no so s

    pr categorias da perceo, mas conceitos operatrios da praxis.

    Relembremos ainda que o conceito de efeito histrico (do trabalho) da

    histria no uma criao de Gadamer, mas surgira j no sc. XIX, no mbito da

    crtica literria. E recordemo-lo, para que possamos entender o modelo de que se

    serve Gadamer para pensar o fenmeno da transmisso: o texto com a sua

    estrutura narrativa e dialgica que serve de veculo transmisso na medida em

    que os contedos de sentido, historicamente mediados, devem ser decifrados

    como textos, que se podem interpretar em contextos variados. Ento o sentido do

    transmitido inscrio e histria, isto , agora o efeito histrico o novo

    transcendental do pensamento histrico. O que quer dizer que a tradio para

    Gadamer, em vez de ser, como para o Iluminismo, um obstculo ao conhecimento

    uma abertura, pois o prprio trabalho da histria alimenta a nossa imaginao e

    capacidade de juzo, isto , abre-nos o campo ilimitado e interminvel do dilogo e

    interpretao do transmitido. Este no um dado pronto e acabado, uma vez que

    a nossa prpria traduo contribui para a sua retransmisso. Mesmo o horizonte

    do presente est num processo de contnua formao, na medida em que estamos

    obrigados a por constantemente prova os nossos preconceitos. Compreender

    sempre o processo de fuso destes horizontes que presumidamente existiriam por

    si mesmos3. o problema da aplicao que est contido na raiz de toda a

    compreenso.

    Deste modo Gadamer pe em causa as pretenses da razo iluminista, que

    se volta sistematicamente contra a tradio, e apela necessidade da formao

    de uma nova atitude da conscincia humana que, sendo agora conscincia dos

    seus limites, sabe-se implicada e exposta ao jogo do trabalho da histria, no qual

    todos tomamos parte de uma forma que pode comparar-se participao no

    fenmeno do jogo. Claro que uma conceo de verdade diferente da iluminista,

    governada por critrios teorticos e cientficos, que Gadamer defende; a verdade

    hermenutica refere antes de mais a abertura de sentidos ao existir e novas

    possibilidades de interao no mundo. eminentemente prtica, da Gadamer vir

    a caraterizar a sua hermenutica como uma tarefa terica e prtica A verdade

    mais resultante da criatividade do trabalho da histria do que de um esprito

    subjetivo; derivada do encontro entre um ente ser j predisposto para a

    verdade4 e o trabalho da histria. Dissocia-se do modelo da adequao para

    realizar o sentido husserliano de preenchimento e encontra a sua finalidade na

    transformao da compreenso de si do humano, Neste sentido, a hermenutica

    de Gadamer antecipa j qualquer coisa da afirmao de Ricoeur, surgida mais

    tarde em Parcours de la reconnaisance5 e segundo a qual as filosofias tradicionais

    dedicaram-se muito tempo ao problema do conhecimento, esquecendo a

    3 H. G. Gadamer, Gesammelte Werke. Bd.1.Hermeneutik I .Wahrheit und methode. Grundzge einer

    philosophischen Hermeneutik, Tbingen, J.C.B.Mohr, 1986, .p. 311 4J.Grondin, op.cit., p.231

    5 P. Ricoeur,Parcours de la reconnaissance.Trois tudes, Paris, Stock,2004.

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    essencialidade do reconhecimento. A esta tarefa vai dedicar-se a hermenutica,

    por vezes de forma mais implcita como acontece em Gadamer que no escreve

    como Ricoeur uma obra sobre o fenmeno do reconhecimento.

    Bibliografia: H. G. Gadamer, Gesammelte Werke. Bd.1.Hermeneutik I .Wahrheit und methode. Grundzge einer philosophischen Hermeneutik, Tbingen, J.C.B.Mohr, 1986,.p. 311; Jean Grondin, Lhorizon hermneutique de la pense contemporaine, Paris, Vrin, 1993, p.213 ; A. Domingo Moratalla. El arte de poder no tener razn. La hermenutica dialgica de H.G.Gadamer, Salamanca, Publicaciones de la Universidad de Salamanca, 1991; P. Ricoeur, Parcours de la reconnaissance.Trois tudes, Paris, Stock,2004 ;M.L. Ferreira da Silva, O preconceito em Gadamer: sentido de uma reabilitao, Lisboa, FCT/FCG, 1995.

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    Explicao (2010)

    Conceito usado no mbito da hermenutica filosfica, a partir de Dilthey, com o significado metodolgico e cientista da modernidade, que desenvolvera uma forma matemtica, segura e certa de inteligibilidade do "livro da natureza". Nesta acepo, explicar reduzir factos e acontecimentos a leis universais, ditadas pelo sujeito, seguir as vias do ideal metdico do conhecer, formuladas por Descartes, em suma conhecer, para poder, prever e dominar com certezas.

    O modelo da explicao aparece, de facto, ligado, desde a modernidade europeia, reduo da ideia filosfica da verdade ao primado da verificao e da certeza. A explicao implica assim objectividade, processos hipotticos e dedutivos, critrios lgicos de verdade e de erro. Ora, justamente este sentido da compreenso humana do real que Dilthey recusa, como inadequado para o mbito das cincias do esprito. Nestas, a aproximao cognitiva outra: ela no pode obter nem certezas nem uma objectividade absoluta. Na verdade, tais cincias partem do carcter significativo e apelativo das expresses da vida humana, sejam estas signos fisionmicos ou significaes fixadas por escrito em documentos e em monumentos duradouros.

    clebre a oposio criada pelo filsofo compreende-se o homem, explica-se a natureza , que deu origem a ulteriores desenvolvimentos, todos eles marcados por dois tipos de dualismo: um ontolgico e outro epistemolgico. A ideia chave para que Dilthey aponta com esta oposio a seguinte: uma vez que, na sua prpria essncia, os objectos das cincias da natureza so distintos dos das cincias humanas, tambm os objectivos e vias do conhecimento devem ser diferentes, num caso e noutro. No mbito das cincias humanas a categoria central a da penetrao no sentido interior das aces, gestos, obras ou instituies , o que significa que a abordagem deve ser indirecta e no representativa. Isto , o modelo cognitivo das cincias do esprito, porque parte de sinais, s pode ser compreensivo ou hermenutico.

    O conceito de compreenso cunhado por Dilthey, como conceito que se deve entender por oposio explicao, marcou toda a hermenutica contempornea, apesar de Heidegger ter revelado, em Ser e Tempo que a explicao no significa, em sentido originrio, uma modificao da compreenso nem esta, por sua vez, diz apenas respeito ao mundo do esprito; H.-G. Gadamer, representante da principal corrente alem da hermenutica contempornea, entende por sua vez a compreenso hermenutica como algo que excede o modelo explicativo habitual, demasiado ligado concepo metdica da verdade ( da o ttulo da sua principal obra Verdade e Mtodo) e acepo puramente cientfica ou positivista da experincia humana. Mas, com Gadamer, a hermenutica corre o risco de perder a sua dimenso crtica, habitualmente ligada ideia de controlo e de verificao, prpria da explicao, e por esse facto P. Ricoeur representante da linha hermenutica da filosofia francesa, mais atenta ao momento propriamente lingustico de toda a compreenso prope-se pensar necessria articulao destes dois conceitos.

    A tese do filsofo francs a seguinte: a oposio entre explicar e compreender, instituda por Dilthey, na base da oposio entre natureza e esprito, deve ser substituda por uma articulao dialctica entre as duas atitudes fundamentais do pensar. Para isso necessrio entender como a prpria hermenutica pode em si mesma fazer a mediao das duas atitudes. A hermenutica parte de signos, textos e, depois do movimento estrutural, toda a ateno aos signos, em que se inscreve a compreenso, exige que se d ateno

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    s leis e estruturas que governam o universo semitico. Assim surge um conceito de explicao estritamente ligado ao mbito das cincias humanas, isto , ao universo dos seus signos. Numa hermenutica, preciso ento partir no s do primado ontolgico da compreenso, como atender ao momento propriamente semntico desta e nele perceber a indicao de que a compreenso realmente um modo de ser. Por outras palavras, a ideia de existncia, como um ser que se d mediante a interpretao, deve ser enriquecida a partir de uma elucidao semntica dos sinais do existir e do modo como estes remetem para alm deles.

    O autor substitui assim via curta da analtica do Dasein, instituda por Heidegger e retomada por Gadamer, aquilo a que chama uma via longa da hermenutica, proporcionada pelas anlises contemporneas da linguagem. Pensa, com isto, abrir a hermenutica ao contacto com as disciplinas que praticam a interpretao de maneira metdica, resistindo tentao de separar a verdade, prpria da compreenso, enquanto revelao, do mtodo ligado explicao. A necessidade de compreender o n semntico de toda a interpretao, geral ou particular, permite que a hermenutica encontre novos modelos de explicao, j no derivados do mbito das cincias da natureza mas, pelo contrrio, resultantes do prprio domnio da linguagem e da sua anlise semiolgica. O objectivo de Ricoeur chegar a um conceito de interpretao que envolva em si a compreenso e a explicao. E trabalhando aquilo a que chama uma teoria da leitura, centrada na noo de texto e na sua autonomia em relao ao discurso, que o autor consegue pensar a dialctica da compreenso e da explicao, enquanto fases de um mesmo processo; isto , como um movimento que comea pela compreenso, como conjectura e chega explicao como validao, voltando desta compreenso como apropriao, j mediada pela anlise estrutural da semntica profunda do texto.

    Neste novo contexto, preparado pelas anlises estruturais contemporneas, a compreenso acaba por explicitar o sentido especfico da sua forma de apropriao, ao entrar em confronto com um modelo de inteligibilidade suscitado pelo prprio mbito das cincias humanas, nomeadamente, por uma cincia considerada de ponta neste domnio: a lingustica. A explicao e a compreenso aparecem finalmente situadas no mesmo terreno: a esfera da linguagem com a qual a hermenutica filosfica sempre lidou, sem prestar grande ateno sua autonomia prpria.

    A vantagem do estruturalismo reside, segundo Ricoeur, no modo como explicita e analisa o fundo semntico sempre implicado em toda a compreenso. A explicao estrutural analisa o texto segundo a perspectiva da ordenao interna dos seus elementos e das organizaes sistemticas que nele so inteligveis; destaca a sua estrutura, isto , as relaes de dependncia interna que constituem a esttica do texto. A tradicional metodologia das cincias humanas, ainda ligada ao primado tradicional do sujeito e da sua inteno mental assim mediada e enriquecida por uma anlise lgica das relaes internas em que se exprime a objectividade de qualquer texto. O resultado deste processo , segundo Ricoeur, o seguinte: a compreenso, como apropriao da inteno de significado do texto, aparece finalmente mediada pelo espao no psicolgico mas lgico e ideal do dizer do texto. Pode assim tomar o caminho de pensamento aberto pelo mundo do texto, dirigir-se para o seu oriente.

    Neste sentido, a explicao estrutural do texto ou das grandes narrativas, que fundam a dimenso simblica e ontolgica do existir, hoje a etapa necessria pela qual deve passar toda a compreenso hermenutica. O procedimento da explicao estrutural, dos elementos mnimos que constituem e

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    permitem o funcionamento da lngua, a verdadeira condio que permite concretizar, no texto, a instaurao do real distanciamento do dito face ao sujeito e s suas intenes, j procurado pela viragem ontolgica das hermenuticas de M. Heidegger e H-G. Gadamer.

    A passagem pelo ponto de vista objectivo e sistmico da semitica torna-se pois, segundo Ricoeur, uma etapa obrigatria de toda hermenutica que queira passar de uma inteligncia ingnua a uma inteligncia madura, por meio da disciplina da objectividade. S este tipo de hermenutica poder levar a uma apropriao que deixe de surgir como uma espcie de posse do sentido do texto e que implique, pelo contrrio, o despojamento e enriquecimento do ego do intrprete pelo contedo simblico do dito. A compreenso do texto afasta-se definitivamente de toda a pretensa confuso ou fuso emocional da conscincia. Passa a reportar-se s operaes formadoras investidas no texto e, finalmente, leitura ou execuo da sua inteno de significar. definitivamente proibido identificar a compreenso com uma espcie de apreenso intuitiva da inteno mental subjacente ao texto, j que o sentido deste surge como um desafio, uma espcie de convite a um novo modo de olhar as coisas.

    Explicao e compreenso so ento dois estdios diferentes de um mesmo "arco hermenutico", aquele que permite passar de uma referncia demasiado apressada a referncia inteno e circunstncias originais do autor ao mundo aberto e possibilitado pelo acto de narrar. A interpretao do texto encontra agora a sua verdadeira realizao "na interpretao de si mesmo de um sujeito, que doravante se compreende melhor a si mesmo compreendendo-se de outro modo" que agora a interpretao o prprio acto do texto antes de ser o acto do intrprete. Este, quando aparece, est j mediado por toda a srie de interpretaes que pertencem ao efeito histrico do prprio texto. Bibliografia: W. DILTHEY, Le monde de lesprit II, trad.Paris, Aubier Montaigne,1947; P. RICOEUR, Le Conflit des interprtations. Essais dhermneutique, Paris Seuil,1969; IDEM., Lectures, 2 .La contre des philosophes, Paris, Seuil, 1992; IDEM., Du texte Laction. Essais dhermneutique, II. Paris, Seuil, 1986; IDEM., Teoria da Interpretao, trad. Lisboa, ed, 70, 1976.

    Fuso de Horizontes (2010)

    Expresso cunhada por H.-G. Gadamer para caracterizar, contra a ideia romntica e historicista de uma distncia rgida entre o horizonte do passado e o do intrprete, o nexo de compreenso e efectuao que caracteriza o procedimento hermenutico.

    Para este filsofo, discpulo de Heidegger e da sua hermenutica da facticidade do existir, todo aquele que quer compreender, por exemplo, um texto ou um documento do passado, parte j do efeito histrico exercido por esse mesmo texto ou tradio, sobre a sua situao temporal. O tradicional ponto de vista dos horizontes fechados que limitam, encerando-as, as culturas e as pocas histricas, uma abstraco. A mobilidade histrica da existncia humana, diz-nos, reside justamente no facto de no haver um vnculo absoluto a uma determinada posio e, neste sentido, tambm de no haver horizontes realmente fechados. O horizonte antes algo no qual fazemos o nosso caminho e que connosco caminha (...), tambm o horizonte do passado, a partir do qual vive toda a vida humana e que est a segundo a forma de tradio, se encontra em perptuo movimento. O passado prprio, tal como o alheio, faz parte do horizonte mvel em que vivemos e que nos determina como tradio.

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    Tradio significa justamente transmisso de algo, isto , um acontecer de sentido que implica uma recepo no puramente passiva, mas sempre mediada por uma traduo, logo por todo um efeito histrico de sentido, efeito que no tem aqui uma natureza no determinista nem causal.

    Na aparente ingenuidade com que pensamos compreender, quando guiados por padres de objectividade, acontece que o outro, aquilo que queremos entender, se nos mostra j luz do prprio, de tal modo que nem o prprio nem o outro se chegam a distinguir enquanto tais. A tradio actua sempre no meu modo de entender, de uma forma que no controlo, e compreendo sempre a partir dos efeitos histricos que uma obra ou narrativa (histrica ou de fico) foi tendo ao longo da histria. Por isso, a verdadeira tarefa da hermenutica deve ser a de tomar conscincia do poder exercido por esta eficcia histrica da tradio em toda a compreenso; o que dizer que necessrio perceber, antes de mais, que no existe para o intrprete a possibilidade de uma inteleco pura, sem pressupostos. Isto , que a meta de uma reconstruo objectiva e exacta da mentalidade e circunstncias do autor lhe vedada.

    Esta iluso foi o logro da tradio romntica da hermenutica que, partilhando do modelo ilustrado da viso sem pressupostos, acreditou no ideal da co-genialidade como verdadeiro princpio hermenutico. Esqueceu que toda a situao hermenutica est marcada pelos seus prprios prejuzos, aqueles assinalam o horizonte do presente, a partir do qual cada intrprete se abre a outros horizontes ou possibilidades de ser, figurados pelos textos e documentos vrios da tradio. Obliterou-se, neste tipo de viso romntica, que o que parece ser uma reconstruo do sentido passado se funde sempre com o que nos atrai directamente, isto , com as nossas expectativas e que o nosso ponto de vista se mistura com o do texto, fazendo-o assim acontecer num verdadeiro processo de mistura de horizontes.

    O conhecimento histrico ou literrio , alis, um exemplo claro de que a compreenso no nunca uma pura actualizao de contedos mortos, depositados em obras escritas. Compreender um texto ou um fragmento do passado , de facto, entend-lo a partir da questo que ele hoje ainda ele consegue suscitar-nos: um processo de contnua fuso ou alargamento de horizontes, pelo qual todo o intrprete participa com outros no longo e rduo caminho do sentido. Neste modelo de compreenso, aceita-se por fim aquilo que para o ponto de vista ilustrado, romntico e historicista era inaceitvel: o papel configurador da linguagem simblica e plural, prpria da semntica narrativa, na nossa ordenao das coisas humanas.

    Para Gadamer, uma hermenutica filosfica deve reconhecer na condio finita do homem o seu motivo fundamental. Logo, deve saber que para este no existe j a possibilidade de uma coincidncia com o real. Toda a compreenso humana mediada pela linguagem e toda a linguagem , como o dizia j Aristteles, uma hermeneia originria do real. Quer isto dizer que a compreenso uma apreenso do real por meio de expresses significativas e nunca um puro extracto de impresses vindas das coisas.

    Da que toda a verdade seja absolutamente solidria do poder e efeito da palavra e revele o seu sentido atravs da solicitao que sempre dirige a todo e cada intrprete, que a queira apropriar. Da, tambm, a necessidade sentida por toda a interpretao de se deixar fecundar pela abertura a outros horizontes: porque o homem finito, s na linguagem, e seu poder dialgico fundamental, as coisas podem realmente alcanar a sua objectividade (idealidade prpria). S aqui deixam de pertencer ao ponto de vista egosta de cada sujeito particular, para se

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    elevarem dimenso da referncia comum dos homens concretos que, atingidos na sua condio concreta pela palavra que descentra e interpela, sabem colocar a alteridade do dito, e a da sua perspectiva, no horizonte de uma procura comum, nunca acabada.

    Alcanar um horizonte, lembra-nos Gadamer, quer dizer aprender a ver para alm do que nos prximo, sem o desprezar, encarando-o de outra forma, pelo simples facto de o conseguirmos integrar num todo maior e em padres mais envolventes. Esta uma tarefa difcil, claro, que requer a mediao do outro enquanto um tu, isto , o processo do destacar-se do outro, que ao fim e ao cabo o que requer a aco de diferenciao recproca. O reconhecimento do outro como tu e no como coisa , para a hermenutica gadameriana, o mediador fundamental da compreenso. Compreender sempre o processo de fuso dos horizontes aparentemente isolados.

    O ideal da compreenso por meio de um entrelaamento dos horizontes diferentes, substitui pois o modelo metodolgico clssico da compreenso explicativa das coisas. Este novo ideal revela ao homem, que aceita a sua condio de ser finito, histrico e situado, que para ele tudo o que existe, existe apenas na e pela relao com o outro homem. Logo, que a compreenso hermenutica exige a substituio do modelo clssico da pura presena da coisa pelo da sua percepo narrativa e constante interpretao.

    Neste sentido, a hermenutica gadameriana da historicidade do compreender revela, na raiz de toda a reflexividade hermenutica, algo que a tradio da filosofia reflexiva para a qual no existia a questo do texto ou mesmo a da condio linguageira de todo o entendimento humano no pde pensar: a relao do Ser ou da Verdade com a problemtica da existncia concreta, da histria, da escrita e da interpretao. Dito de outro modo, a pertena a uma tradio e horizonte histrico que determina a condio verdadeiramente simblica de toda a compreenso humana.

    O ideal de uma fuso de horizontes, enquanto modelo da inteleco hermenutica, pois um ideal crtico do modelo da conscincia reflexiva moderna e do seu voto de uma compreenso neutra e exacta. Ele procura devolver, hoje ao sujeito, que compreende, a verdadeira dimenso da sua distncia, indicando-lhe o caminho da relao ao outro como nica via de superar a usura narcsica da verdade e, com ela, de evitar a converso ideolgica do pensar. No consenso ou " fuso" alcanado, ou ainda sempre por alcanar, exprime-se ento toda uma nova maneira de compreender, que no representa, j e apenas a verdade de um ou a de outro mas, pelo contrrio, uma sntese aberta a novas glosas e comentrios. Isto quer dizer que verdade hermenutica no subjectiva mas intersubjectiva, exige reconhecimento e est sempre ligada condio de perspectiva do ser humano. Ela a referncia a um sentido excessivo que, desenhando-se para alm do tempo em que narrado, se repete nos diferentes horizontes da sua compreenso como smbolo de um envio, j sempre recebido, mas nunca totalizado.

    Em concluso, na perspectiva de Gadamer, a ideia de fuso de horizontes conduzida deste modo pelo processo dialctico da palavra visa revelar-nos toda a diferena que existe entre uma compreenso hermenutica e uma compreenso totalitria. A objectividade hermenutica inseparvel das categorias da comunicao e da implicao no sentido e sabe que o encontro ou fuso de horizontes distintos no nunca equivalente ao fenmeno da mediao total. Sempre acontecer em todo o processo de interpretao, diz-nos o filsofo, que a linha de sentido que se revela no decurso da leitura acaba necessariamente

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    numa indeterminao aberta. O leitor pode e deve reconhecer que geraes futuras compreendero de um modo novo o que ele leu neste texto. O mbito da Hermenutica no homogneo nem to pouco regulvel a priori. , pelo contrrio, percorrido por interpretaes diferentes e, por vezes, at concorrentes. No entanto, a interpretao, que se sabe finita, reconhece que ou se abre a outras interpretaes ou no faz mais sentido. porque no pode haver um saber absoluto do todo da histria e dos textos, que do testemunho do sentido do existir, que no podemos renunciar forma de aproximao caracterstica do entrelaamento ou fuso de horizontes.

    Bibliografia: H.- G. GADAMER, Gesammelte Werke 1. Hermeneutik I. Wahrheit und Methode-1. Grundzge einer philosophischen Hermeneutik, Tbingen, Mohr, 1986.; IDEM., Gesammelte Werke, 2. Hermeneutik II. Wahrheit und Methode- 2. Ergnzungen. Register, Tbingen, Mohr, 1986.M. L. PORTOCARRERO SILVA, O Preconceito em Gadamer: Sentido de uma Reabilitao, Lisboa, FCG/ JNICT, 1995; IDEM., Da fuso de horizontes ao conflito das interpretaes: a hermenutica entre Gadamer e Ricoeur in Revista Filosfica de Coimbra, vol. 1, n1 (1992), pp. 127- 153.

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    Hermenutica (2010)

    Palavra que aparece, pela primeira vez, no sc. XVII, como ttulo do livro de J.C. Dannhauer: Hermenutica sacra sive methodus exponendarum sacrarum litterarum. No entanto, as suas formas semnticas preliminares, o verbo hermeneuein e os seus derivados, os substantivos hermenes e hermeneia cobrem na lngua grega um mbito muito extenso. A expresso "hermenutica", diz-nos Heidegger, deriva do verbo grego hermeneuein. Este refere-se, por sua vez, ao substantivo hermeneus, que poder ser aproximado sem o rigor da cincia, do nome do deus Hermes. Hermes era o mensageiro dos Deuses; anunciava o destino. Hermeneuein significava a revelao que levava, aquele que estivesse em condies de ouvir uma mensagem, ao conhecimento. Este tipo de revelao tornava-se, em seguida, exegese de aquilo que foi dito pelos poetas que, segundo as palavras de Scrates no dilogo Ion de Plato, so os mensageiros dos Deuses.

    De acordo ainda com G. Ebeling, representante da Hermenutica evanglica contempornea, a origem etimolgica de hermeneuo e dos seus derivados duvidosa, mas enraza no significado de falar, dizer. O vocbulo tem trs orientaes de sentido: afirmar (exprimir), interpretar (explicitar) e traduzir (servir de intrprete). Uma linha comum se expressa neles: a ideia de que algo, no totalmente claro, deve ser tornado inteligvel, isto , de que devemos conseguir que ele seja entendido. A prpria ideia segundo a qual a linguagem j hermeneia originria do real ou interpretatio nasce no mundo grego com a obra Organon de Aristteles, onde numa das partes, Peri Hermeneias (De Interpretatione), se discutem os diferentes modos do falar.

    A palavra hermenutica cobre, pois, j desde o mundo grego vrios nveis de reflexo. Designa, fundamentalmente uma techn (e no uma cincia), a arte de interpretar e apropriar o sentido dos grandes textos que fundavam, pela sua dimenso simblica e normativa uma determinada comunidade humana ou ainda a arte de compreender o significado latente e obscuro de mensagens que reclamavam ser entendidas. A palavra indicava, alis, o lugar-comum da formao do homem culto greco-romano e medieval. Representava uma forma da compreenso ou experincia humana do sentido que dizia respeito praxis da orientao no mundo ou melhor formao da nossa capacidade de escolha por um conjunto de valores, de costumes, de usos, e crenas tradies, mediados por tradies.

    Interpretavam-se, assim os textos, clssico, bblico e jurdico, por motivos de orientao num mundo estruturado pela linguagem narrativa e vivido em comunidade. A temtica hermenutica adquire, alis, relevncia, neste seu primeiro perodo no teortico nem filosfico, em momentos de crise da tradio, nomeadamente aquando: da campanha platnica contra os deuses dos mitos e dos poetas a favor do deus divino dos filsofos; da reconciliao da herana de Homero com o mundo helenstico; da polmica entre a "allegorese" helenstica e a interpretao histrica, prpria do mbito judaico cristo; do conflito entre as escolas de Antioquia e Alexandria quanto interpretao literal ou simblica e alegrica; da necessidade que a concepo latina do mundo teve de apropriar e traduzir o que era importante na cultura grega; dos esforos feitos pelo direito romano para transmitir ao Ocidente a poesia e a filosofia gregas, tal como a palavra da Sagrada Escritura; do impulso da Reforma para interpretar a Bblia por si mesma.

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    At ao sc. XIX, a Hermenutica desenvolveu-se como disciplina auxiliar das cincias que se orientavam, de forma normativa, para os antigos clssicos e para a Bblia. Logo, significou apenas o processo de tornar o mundo da praxis compreensvel por meio da palavra viva, e nunca significou uma qualquer forma de cincia ou saber no qual se expressasse uma razo conceptual rigorosa. At aos sculos XVIII e XIX, lembra-nos mesmo Gadamer, a Hermenutica desenvolvida mais como uma arte do que como uma cincia, estava primordialmente ligada s artes prticas, que tornam possvel a conduta bsica do existir no mundo, como a Gramtica, a Retrica e a Dialctica. Pertencia ao mbito da scientia practica. Designava uma capacidade natural do homem, a capacidade para ser e se compreender nas relaes plenamente significativas com os outros homens. Era a arte de compreender os outros e de com eles se entender pela palavra. Partilhava com a Retrica o processo de tornar compreensvel pela palavra viva que interliga, mas no subsume, fosse esta representada pelo dilogo vivo ou pelos grandes textos e narraes que fundam, pela sua transmisso de ideais, uma determinada pertena vivida em comunidade.

    Momento decisivo desta Hermenutica no filosfica nem teortica, marcada pelo efeito da palavra na vida humana, nomeadamente da palavra bblica, foi a Reforma Protestante e sua defesa do primado do texto contra os ataques da Contra-Reforma. Surge, neste momento, a primeira forma significativa da Hermenutica que no ainda filosfica. Marca-a no a preocupao metodolgica com o texto mas a necessidade de explicitar a efectividade de uma palavra, que deve atingir quem nela cr, levando a uma aco e a uma converso de vida. A palavra bblica letra morta, pensava Lutero, se no for experimentada como um incitamento a uma metamorfose ou transformao espiritual. Para este telogo, fundador do movimento da Reforma, a palavra da Bblia no pode ser letra morta. Espera uma resposta, isto , orienta-se para uma apropriao pessoal do crente.

    na verdade, no contexto polmico da Reforma Protestante e da sua defesa da legibilidade do texto bblico, contra o princpio de autoridade da tradio catlica tarefa em que coincidem na altura Hermenutica e Retrica que a Hermenutica alcana, com Mathias Flacius Illyricus, a sua primeira configurao importante. Impe-se numa poca em que se simultaneamente surge a inveno da imprensa e a enorme difuso da leitura e da escrita, justamente como o modelo de uma leitura implicada, isto , feita pela necessidade que o crente tinha de se compreender a si mesmo luz do texto. A Hermenutica integra-se, nesta altura, no contexto humanista mais amplo de retorno aos clssicos como reaco contra o estilo de ensino da escolstica e contra seu apoio nas autoridades eclesisticas. Ela pressupe um conceito de verdade que nada tem de metdico ou desinteressado, pois parte de uma pr- compreenso e est por sua vez relacionada com o efeito praxiolgico da palavra e com o problema existencial da orientao do homem no mundo.

    A ideia de fundo de toda esta Hermenutica protestante que se desenvolve em clima humanista e que vai desaparecer com o Romantismo a seguinte: o homem um ser capaz de ser tocado e modificado pelo poder e efeito de palavra. Logo, os textos contm a verdade sobre as coisas: uma verdade que no implica certeza nem verificao pois , antes de mais nada, linguagem, abertura, isto , uma proposta fundamental de sentido que s chega realmente a acontecer, se apropriada por algum que na sua leitura ou interpretao saiba fazer sentido.

    A partir do sc. XIX, com F. Schleiermacher (1769-1834), a Hermenutica adquire toda uma nova dimenso, filosfica e epistemolgica que a desliga,

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    enquanto teoria universal da compreenso e interpretao, de todos os momentos praxiolgicos e normativos da hermenutica anterior. Preocupado em defender com a sua teoria hermenutica o carcter cientfico da teologia e formado filosoficamente no modelo moderno do conhecimento transcendental, Schleiermacher, romntico, coloca o centro de gravidade da Hermenutica na anlise da operao gnosiolgica comum a toda a interpretao. o contedo cognitivo do discurso e no o seu efeito existencial ou mesmo uma qualquer anlise dos seus signos, o nico objecto da interpretao que, onde quer que se exera nos mbitos bblico, jurdico ou filolgico procura sempre vencer um mal-entendido. Este , na opinio de Schleiermacher, provocado pela compreenso da linguagem, na medida em que ela a expresso de um pensamento individual. Conciliada com a lgica e metodologia da cincia e com o seu problema fundamental o do conhecimento a hermenutica torna-se agora universal, isto unifica as vrias prticas de interpretao at ento existentes, por meio de uma reflexo sobre o tipo de acto cognitivo ( a compreenso) implicado na interpretao dos textos .

    a apropriao romntica do modelo moderno da subjectividade transcendental que permite a Schleiermacher afastar a Hermenutica do seu local originrio a transmisso de prticas comunicativas que possibilitam a convivncia dos seres humanos e descobrir a operao comum a toda a actividade de interpretao. O filsofo identifica-a como a compreenso do outro que se exprime linguisticamente e que, por essa mesma razo, provoca a tenso entre pensamento individual e linguagem comum, gerando a incompreenso e o mal-entendido (agora universais). Hermenutica, como arte de evitar o mal-entendido, interessa fundamentalmente meditar a estranha relao que existe entre falar e pensar. A sua principal tarefa reside numa reflexo sobre as condies que permitem ultrapassar o mal-entendido em ordem a poder compreender o outro, que se exprime no texto, melhor do que ele se compreendeu a si mesmo. Com a sua clebre introduo de uma interpretao psicolgica, necessria para completar a interpretao gramatical tradicional, Schleiermacher desloca o verbo interior do texto para o mbito meramente psicolgico do seu criador, consagrando a ideia de que compreender um texto reconstruir a inteno mental do seu autor.

    Esta interpretao psicolgica, apoiada na teoria romntica da criao inconsciente do gnio, passou a ser depois de Schleiermacher a base terica cada vez mais relevante das cincias do esprito. Com W. Dilthey (1833-1911) o autor do pacto entre Hermenutica e cincias do esprito so os problemas lgicos e gnosiolgicos, relativos fundamentao do conhecimento histrico o ncleo de uma Hermenutica, que tem como principal tarefa o conhecimento e descrio das leis da vida espiritual, que constituem o fundamento comum das diferentes cincias humanas. Profundamente preocupado com a complexa questo da objectividade do historicamente condicionado, Dilthey, representante da conscincia histrica e das filosofias da vida, recusa a lgica explicativa das cincias da natureza como via de acesso ao mundo histrico. No quer, no entanto, cair no relativismo histrico. Parte assim da relao essencial entre vida humana, expresso e sua significao, afirmando a dimenso compreensiva ou hermenutica desta relao. Compreende-se o homem, explica-se a natureza tal a clebre oposio que marca o desenvolvimento da sua Hermenutica. O mundo histrico escapa pela sua estrutura semntica categoria do dado. Nele a ideia de sinal e sentido (nexo estruturado) como que faz parte da prpria natureza da coisa. O mundo do esprito o mundo vivido, algo que se revela

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    indirectamente, isto , apenas por meio dos seus sinais (textos, obras) ou exteriorizaes, que desde logo nos remetem para um todo global de sentido. Este ultrapassa qualquer modelo explicativo. Da a necessidade de uma Hermenutica que, procurando chegar ao conjunto da vida psquica, se transforme no modelo metodolgico apropriado para as cincias humanas.

    A Hermenutica transforma-se assim na teoria universal da compreenso e interpretao das objectivaes significativas da vida histrica. O seu ncleo fundamental reside agora na possibilidade que tem a conscincia histrica de reconstruir, a partir das significaes da vida fixadas de modo duradouro, a inteno e as circunstncias originrias do autor. Interpretar , na linha de Schleiermacher, reconstruir uma construo cuja chave deve ser procurada na inteno do autor.

    Ser com M. Heidegger que vir a ser ultrapassada esta orientao epistemolgica da Hermenutica diltheyana da vida. Interessado, como Dilthey, na temtica da histria e da historicidade da vida, Heidegger escreve uma obra, Ser e Tempo (1927), onde a compreenso hermenutica aparece ligada exigncia urgente de uma reposio da questo do sentido do ser. que Heidegger sabe que a questo da historicidade hermenutica, porque abriga em si uma outra questo de fundo: o mistrio da temporalidade. E este no um problema gnosiolgico qualquer, mas algo que diz essencialmente respeito ao modo de ser desse ser-a que o humano. Esta uma questo fundamental esquecida pela tradio e que implica antes de mais toda uma nova ideia de fundamentao.

    Com Heidegger, a Hermenutica alcana todo um novo sentido. Deixa definitivamente o registo psicolgico e epistemolgico e converte-se na questo ontolgica central do filosofar. A novidade de Heidegger reside justamente nesta descoberta do problema metafsico e hermenutico implicado na questo da historicidade, sempre esquecida por toda a tradio e que no pode determinar-se mais por privao a partir de uma ideia de ser absoluto ou eterno. Exige para ser tratada uma "hermenutica da facticidade" do existir, isto , uma analtica da prpria essncia finita do existir humano.

    O fio condutor desta nova concepo de hermenutica, para a qual a compreenso , antes de mais, o modo prprio de ser do humano, o seguinte: a problemtica da finitude ou historicidade do existir, levada a srio, obriga a pensar o humano como a ambiguidade fundamental da experincia do limite (mortalidade) e simultaneamente de uma exigncia de abertura incondicional que se expressa na prpria interrogao que todo o homem faz sobre o sentido do ser. Isto significa que a experincia da temporalidade radical a experincia do ser ou do sentido, uma experincia hermenutica de contraste, que resiste ao tradicional modelo da objectividade (a que Dilthey ficara ainda ligado).

    A analtica da existencialidade da existncia deve assim revelar a textura ontolgica e hermenutica do modo de ser finito do existir descobrindo, desde logo, a sua fundamental pertena a uma situao no mundo. O Dasein, porque temporal, hermeneia originria. No se concebe mais como um sujeito transcendental e desenraizado. Toma conscincia de si como sentimento da situao, que implica toda uma prvia compreenso a partir da qual surge a compreenso, no como comportamento terico e desinteressado, mas como a revelao de um saber e poder ser j sempre exercidos e do que h ainda por exercer. compreenso enquanto "projecto lanado" pertence a possibilidade de se explicitar, interpretando ou configurando tal ou tal ncleo de possibilidades. Surge assim a interpretao como uma explicitao ou apropriao da compreenso que s possvel sobre o pano de fundo do futuro e da totalidade

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    compreendida previamente. A interpretao explicita agora o que j foi previamente entendido, desenhando-se assim o crculo da compreenso e da interpretao, que corresponde natureza temporal e antecipadora do existir. Ela a primeira forma de articulao do estar no mundo. Parte sempre de pressupostos (de todo o previamente visto e compreendido pelo sentimento da situao) e nunca de um qualquer grau zero. Corresponde a uma forma no predicativa de articulao o horizonte do sentido relativamente qual a lgica predicativa clssica aparece como derivada e pobre.

    Para Heidegger, s depois da revelao das coisas o homem finito pode falar sobre elas e o crculo da compreenso e da interpretao assinala o lugar originrio do des-velamento e da articulao originariamente pr-predicativa. Da a distino que o autor estabelece em Ser e Tempo entre enunciado e discurso. Tal distino visa revelar como a compreenso, que sempre se exprime no discurso (um existencial to originrio como o sentimento da situao, a compreenso e a interpretao), ultrapassa a reduo clssica do dizer ao enunciar. O mbito hermenutico do dizer, do enunciar e do comunicar tem agora razes ontolgicas profundas, que desmontam a reduo psicolgica da hermenutica moderna e abrem Hermenutica todo um novo e importante horizonte.

    neste novo contexto marcado pelo primado da questo ontolgica da temporalidade do existir que se situa H.-G. Gadamer com a sua conhecida obra Verdade e Mtodo. Elementos de uma Hermenutica Filosfica. Assumindo como decisiva a herana de Heidegger, com quem diz ter aprendido o essencial, o filsofo de Heidelberg retoma a problemtica hermenutica das cincias do esprito, interrogando-se sobre as consequncias que decorrem para esta temtica do facto de Heidegger ter derivado a estrutura de antecipao da compreenso da temporalidade do existir. O objectivo mostrar que Hermenutica no interessam tanto os mtodos ou os princpios de interpretao, que intervm no mundo do esprito, mas fundamentalmente esclarecer o fenmeno ontolgico da compreenso que caracteriza, desde Ser e Tempo, o modo de ser do existir

    De acordo com Gadamer, a Hermenutica de Dilthey pressupunha j algo que este autor no soube tratar e que hoje, depois de Heidegger, se revela como o verdadeiro ncleo suscitador de toda a compreenso. o facto de a existncia humana no se limitar a um puro estar dado mas ser em si mesma temporalidade, distncia de si a si, questo, linguagem, que suscita no mundo o problema da compreenso. Ser compreenso e no puro bios instintivo, tal a essncia do nico ser que historicidade, abertura, isto , um ser para o qual ser compreender. A compreenso, modo de ser do humano, manifesta-se ento, de forma originria, como um acontecer de sentido no qual todo o existir de rosto humano se encontra j sempre mergulhado, mesmo sem disso ter conscincia, para o qual contribui com a sua apropriao ou interpretao particular e cujas razes remontam ao prprio fenmeno da tradio (transmisso).

    hermenutica cabe ento, e antes de mais, examinar as condies em que acontece o fenmeno da compreenso. Na anlise destas condies Verdade e Mtodo recusa o moderno primado do mtodo, que considera derivado, desenvolvendo, pelo contrrio, a estrutura de antecipao de todo o compreender como o ncleo de uma pertena a costumes, a pressupostos, e a usos lingusticos, que no podem ser esquecidos, pois determinam sempre modo hermenutico de ser do humano. A compreenso, afirma o autor, no pode pensar-se como uma aco da subjectividade mas como um processo no seio do prprio acontecer da tradio. Toda a interpretao, se desenvolve no mbito do acontecer da linguagem ou transmisso, parte de pressupostos que marcam o enraizamento do

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    sujeito num mundo j sempre dito ou significado. Logo, "s o reconhecimento do carcter essencialmente marcado por preconceitos de toda a compreenso confere ao problema hermenutico a sua real agudeza". O modelo da hermenutica agora o do dilogo implicado, suscitado pelo modo como as questes do texto pem em jogo os pressupostos e motivaes de cada intrprete. A tradio, identificada pelo autor como o conjunto de preconceitos, no subjectivos, que orientam a interpretao, funciona aqui de um modo decisivo, mas no dogmtico, como o horizonte que permite a suscitao de novas questes e dos problemas em aberto desenhados pelo texto. Constitui-se como um acontecer ou processo histrico, a partir do modelo dialgico da fuso ou entrelaamento de horizontes.

    Compreender agora traduzir e questionar o processo de transmisso espiritual que constitui a humanidade do humano (baseada em textos, smbolos, obras de arte), de acordo com uma lgica dialctica a que o autor chama apropriao ou aplicao. Interpretar no j reconstruir ou coincidir, chegar apenas dimenso cognitiva do dito, como pensava a hermenutica romntica, mas compreender-se a si mesmo luz do texto, isto , traduzir para o horizonte do presente o sentido das questes a que responde o texto e responder-lhes com os conceitos do presente. S interpretamos um texto ou obra de arte, se ele ainda nos diz algo hoje isto se ajuda a configurao do nosso prprio presente. De outro modo nem sequer o interpretamos. Na raiz da compreenso hermenutica est uma exigncia tica de auto -formao, suscitada pelo facto de o homem ser um ser finito, de existir a partir de uma pertena a tradies e, ainda, pelo facto de ser uma capacidade fundamental de questionamento. Tal a grande novidade da hermenutica de H.-G. Gadamer, cujos temas centrais so os conceitos de efeito histrico, preconceito, fuso de horizontes, dilogo e jogo .

    Com P. Ricoeur, a Hermenutica entra numa nova fase, mais crtica, dada a importncia que este autor atribui ao fenmeno da linguagem e ao seu tratamento especfico pelas chamadas cincias da linguagem. Herdeiro da mudana introduzida por Heidegger e Gadamer, Ricoeur prope hermenutica tradicional que considera partir de uma atitude de confiana, ainda no fundada uma via longa, isto , todo o chamado desvio pelos signos em que se manifesta o acto caracterstico de existir ou compreenso. Temas fundamentais desta sua nova atitude so as noes de conflito (hermenutico), explicao, smbolo, hermenutica da confiana e hermenutica da suspeita. Bibliografia: H- G. GADAMER, Gesammelte Werke 1.Hermeneutik 1 Wahrheit und Methode- 1.Grundzge einer philosophischen Hermeneutik, Tbingen, Mohr, 1986; IDEM.,Gesammelte Werke 2 Hermeneutik 2 . Ergnzungen. Register, Tubingen, Mohr, 1986. K. O. APEL, Das Verstehen. Eine Problemgeschichte als Begriffsgeschichte , in Archiv fr Begriffsgeschichte, I, 1955, pp.142- 149; E. CORETH, Cuestiones fundamentales de hermenutica, trad. Barcelona, Herder, 1972.; G. EBELING, Hermeneutik in Religion in Geshichte und Gegenwart, 3 Bde, 1959, pp.242-262; J., GREISCH, Lge hermneutique de la raison, Paris, Cerf,1985; J. Grondin, Luniversalit de lhermneutique, Paris, PUF, 1993; O., MARQUARD, Frage nach der Frage auf die die Hermeneutik Antwort ist, in Philosophisches Jahrbuch, 1981, pp. 1-19.

    Hermenutica da confiana (2010)

    Expresso criada por P. Ricoeur para designar a atitude existencial que est simultaneamente na base: a) de toda a hermenutica, que se desenvolveu na

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    tradio, como ars interpretandi; b) daquela que aparece no sc. XIX como compreenso da vida que se exprime atravs dos seus sinais (obras, textos significativos); c) da concepo heideggeriana de interpretao concebida como modo especfico de ser do existir.

    Estas trs acepes da hermenutica caracterizam-se pelo facto de partirem de uma atitude de confiana, ou boa vontade, isto , pelo facto de acreditarem fundamentalmente no poder revelador da palavra. Trata-se, nos trs casos, de uma interpretao que pressupe a ideia de que existe uma verdade da linguagem, que deve ser explicitada, uma vez que a funo do smbolo sempre a de apresentao, e nunca a de dissimulao aquela que com Nietszche e Freud e Marx deu origem a uma hermenutica da suspeita, ou reduo de iluses.

    Para Ricoeur o modelo tpico desta hermenutica da confiana ou interpretao pela palavra o da fenomenologia da religio, para a qual existe inegavelmente uma verdade dos smbolos que s o trabalho da interpretao permite revelar. Neste contexto de plena confiana na linguagem, esta aparece fundamentalmente ligada a algo que a transcende e, que no entanto, apenas se diz por meio do duplo sentido simblico. O pano de fundo deste tipo de hermenutica o seguinte: o homem um ser capaz de ser tocado pela palavra significativa. Precisa de crer para compreender e de compreender para crer. Logo, compreender , em primeiro lugar, aceitar o desafio do texto, poder ser interpelado pela sua palavra para, finalmente, clarificar o seu sentido. A confiana bsica do homem na linguagem e no seu poder revelador o verdadeiro ponto de partida deste tipo de hermenutica, que adopta assi