Classe trabalhadora e política de esquerda no Brasil Francisco … · 2017-11-01 · Classe...

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Classe trabalhadora e política de esquerda no Brasil Francisco Pereira de Farias 1 1. Partido e classe 2 A política de esquerda, na sociedade capitalista 3 , aparece como um conjunto de práticas partidárias, sindicais, mobilizadoras etc., cujo um dos elementos é a prática do partido de representação de classe. A nossa reflexão se inicia, pois, pela análise dessa forma de partido. A função mandatária do partido O partido de representação de classe distingue-se por reivindicar a si a identidade classista. Em geral, o partido político expressa concretamente interesses de classe, exceto aquele que se descola dos interesses sociais mais amplos, como o “partido de clientela” e o “partido-seita”. Pois sendo própria do partido político a busca de conquista da direção do aparelho de Estado, as políticas que o partido almeja se destinam a impactar os interesses sociais, em competição ou antagônicos, no interior da coletividade. Em outras palavras, o partido político tende a constituir-se em mandatário de uma classe social. Mas, por diversas razões, somente as correntes partidárias mandatárias da classe do salariado tendem a se apresentar na cena política com a nomeação dos interesses de classe enquanto tal. Em primeiro lugar, o grande número de membros da classe viabiliza o tipo de apelo eleitoral, uma vez que a posição de classe não se restringe aos trabalhadores da esfera da produção. O processo social de produção da mais-valia envolve a interdependência dos âmbitos de produção (capital industrial) e circulação (capital comercial). Pois, por um lado, o mais valor produzido na esfera industrial só se realiza na esfera comercial, pelo consumo; e, por outro, a demanda suscitada pela base monetária circulante só se efetiva com a produção de bens. Apesar de as frações do capital competirem pela cota de presença na taxa de exploração do trabalho, existe uma comunidade de interesses comuns das mesmas, oposta à comunidade dos interesses 1 Pós-doutorando em Sociologia Política (USP) e Professor em Ciência Política (UFPI). 2 Este item reproduz, em versão modificada, o conteúdo de meu artigo “A política de aliança de classes (I)”, Informe econômico (UFPI), v. 36, 2016. 3 Para noção de sociedade capitalista, ver Karl Marx, O capital: crítica da economia política. Vol. 1, São Paulo: Abril cultural, 1983.

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Classe trabalhadora e política de esquerda no Brasil

Francisco Pereira de Farias1

1. Partido e classe2

A política de esquerda, na sociedade capitalista3, aparece como um conjunto de

práticas partidárias, sindicais, mobilizadoras etc., cujo um dos elementos é a prática do

partido de representação de classe. A nossa reflexão se inicia, pois, pela análise dessa

forma de partido.

A função mandatária do partido

O partido de representação de classe distingue-se por reivindicar a si a

identidade classista. Em geral, o partido político expressa concretamente interesses de

classe, exceto aquele que se descola dos interesses sociais mais amplos, como o “partido

de clientela” e o “partido-seita”. Pois sendo própria do partido político a busca de

conquista da direção do aparelho de Estado, as políticas que o partido almeja se

destinam a impactar os interesses sociais, em competição ou antagônicos, no interior da

coletividade. Em outras palavras, o partido político tende a constituir-se em mandatário

de uma classe social.

Mas, por diversas razões, somente as correntes partidárias mandatárias da classe

do salariado tendem a se apresentar na cena política com a nomeação dos interesses de

classe enquanto tal. Em primeiro lugar, o grande número de membros da classe viabiliza

o tipo de apelo eleitoral, uma vez que a posição de classe não se restringe aos

trabalhadores da esfera da produção. O processo social de produção da mais-valia

envolve a interdependência dos âmbitos de produção (capital industrial) e circulação

(capital comercial). Pois, por um lado, o mais valor produzido na esfera industrial só se

realiza na esfera comercial, pelo consumo; e, por outro, a demanda suscitada pela base

monetária circulante só se efetiva com a produção de bens. Apesar de as frações do

capital competirem pela cota de presença na taxa de exploração do trabalho, existe uma

comunidade de interesses comuns das mesmas, oposta à comunidade dos interesses

1 Pós-doutorando em Sociologia Política (USP) e Professor em Ciência Política (UFPI). 2 Este item reproduz, em versão modificada, o conteúdo de meu artigo “A política de aliança de classes (I)”, Informe econômico (UFPI), v. 36, 2016. 3 Para noção de sociedade capitalista, ver Karl Marx, O capital: crítica da economia política. Vol. 1, São Paulo: Abril cultural, 1983.

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afins de assalariados dos circuitos do capital. Tais elementos – a interdependência e os

interesses comuns - de delimitação do agrupamento global constituem a base para que

os trabalhadores da circulação possam se reconhecer como membros da mesma classe

que os da produção.

Em segundo lugar, devido ao caráter coletivo do processo de trabalho na

Empresa Moderna, o trabalhador assalariado tende espontaneamente a valorizar o

associativismo, em suas expressões sindical e partidária, para a defesa de seus

interesses. Embora existam contratendências ao associativismo proletário - como o

sentimento de individuação produzido pela divisão e especialização de tarefas na

Empresa e o efeito personalizante do tipo de direito configurado no contrato de trabalho

assalariado -, elas não são suficientes para apagar as marcas do coletivismo. Quando o

trabalhador assalariado vai ao sindicato e ao partido, ele chega com o sentimento de que

os valores e interesses dessas organizações estão acima de suas projeções e carências

individuais.

É diferente a condição do proprietário privado dos meios de produção, que tende

a valorizar o individualismo, vendo a sua empresa antes como competidora nas relações

do mercado. Embora os empreendimentos estejam interligados pela divisão social do

trabalho no conjunto da sociedade e pela imposição da taxa média de lucro, a inclinação

da classe capitalista é de adesão ao discurso do indivíduo, inclusive na esfera política.

Quando o empresário capitalista participa em associação patronal ou partido político,

ele o faz imbuído do sentimento de que seu ponto de vista e seu interesse estão acima

dessas organizações.

Uma condicionante mais profunda dessa diferença entre o proletariado e a

burguesia frente ao associativismo diz respeito à posição das classes sociais na

comunidade global. Na coletividade com Estado e dividida em classes antagônicas, as

classes sociais são as comunidades concretas, em torno dos interesses em comum de

cada uma delas. Nessas condições históricas, a coletividade tornou-se uma comunidade

abstrata, a memória da perda da comunidade concreta de uma coletividade onde não

havia divisão de classes e aparelho de Estado. Ora, cabe à classe dominada a aspiração

de reconquista da sociedade igualitária economicamente (sem classes sociais e Estado),

correspondente à comunidade concreta da coletividade. Por isso o proletariado

apresenta-se como o guardião do sentimento de coletividade originário.

Em terceiro lugar, os efeitos das políticas do Estado - ao implementar medidas

como salário-mínimo, previdência social, educação básica, saúde, habitação – induzem

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à agregação e a articulação de setores ou profissões da classe do trabalho rotineiro, em

torno de reivindicações comuns. Pois os resultados de tais políticas impactam

desfavoravelmente aos interesses da classe subordinada. A tendência é de os

trabalhadores “executores” se organizarem globalmente para se contrapor aos

desequilíbrios resultantes.

O discurso de classe, referidos aos polos do antagonismo social, não pode ser

direto, exceto em conjunturas revolucionárias. Pois o tipo de estrutura do Estado produz

efeitos de abstração dissolventes da identidade antagônica e, em consequência, faz

emergir na cena política cotidiana a relação de competição, dentro da ordem. O efeito de

pessoa, atributo conferido aos agentes sociais da capacidade subjetiva de agir

livremente, decorre da estrutura jurídica do Estado. É própria do aparecer da norma do

direito estatal a transformação de regras funcionais (imperativos hipotéticos), visando

disciplinar relações de reciprocidade, em leis incondicionais (imperativos categóricos),

cujos fundamentos remetem à crença da liberdade humana. O específico do direito

moderno é não apenas a atribuição da forma sujeito (livre) aos agentes da produção,

como também a relação de igualdade entre suas personalidades, através do direito de

propriedade privada (de meios de produção, por um lado, e de força de trabalho, por

outro) - o que viabiliza o contrato da compra e venda da força de trabalho, aparecendo

essa troca como uma relação de equivalência.

Por sua vez, a forma povo-nação é, em parte, decorrência da estrutura

burocrática do Estado moderno. (A estrutura econômica capitalista também contribui

para produzir o fetichismo do interesse nacional.) As normas burocráticas de acesso

universal às tarefas estatais e recrutamento com base no critério formal de competência,

compatíveis com a forma sujeito igualitário do tipo de direito, exigem a formação da

sociedade ilusória denominada povo-nação. Trata-se de associação imaginária (um falso

contrato) porque os papeis de empresário capitalista e trabalhador assalariado não estão

numa relação equitativa, uma vez que o salário não remunera todo o valor de troca

produzido pelo uso da força de trabalho, mas apenas a parte relativa à reprodução desta.

Essa sociedade do contrato falseado requer um sistema de fronteiras nacionais, por

causa de o encontro entre o governo profissionalizado e os cidadãos formalmente

igualados se dar num contexto histórico de distribuição desigual das forças produtivas

pelo espaço mundial. Então os capitais mais fracos no espaço territorial global

necessitam do Estado nacional para a defesa dos seus interesses frente aos capitais mais

fortes e resistem à formação de um Estado mundial. A busca de afastar a influência da

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propriedade fundiária tradicional no aparelho estatal levou à centralização do poder

político, instaurando mecanismos de controle sobre os poderes regionais e locais. A

burocracia do aparelho de Estado pôde, então, apresentar-se a si mesma com o papel de

representante do coletivo de indivíduos autônomos (povo) e habitantes de uma secção

territorial com centralização política (nação), o que induz a classe assalariada à

desconfiança em sua organização enquanto classe e a fidelidade em primeiro lugar ao

povo-nação.

A conjugação desses efeitos fetíchicos – sujeito, povo-nação – produzidos pelo

tipo de estrutura jurídico-burocrática do Estado impede que a nomeação do antagonismo

de classes (“burguesia e proletariado”) emerja na cena política. Em seu lugar,

dependendo da conjuntura concreta e das forças dos partidos de representação de classe,

outros termos do antagonismo, convertido em competição, apresentam-se na cena

aberta, tais como “ricos e pobres”, “elite e massa”, “patronato e empregados”.

O partido político contribui, pois, para a formatação da identidade da classe, se

adota um discurso compatível com a dinâmica da luta de classes, a competição ou o

antagonismo. A relação entre o partido político e a classe social torna-se de implicação

mútua. De um lado, o partido expressa os interesses de sua base social, embora não

necessariamente refletindo-os de forma sociográfica na composição dos seus quadros

dirigentes, uma vez que fatores como o programa partidário, a institucionalização

organizacional e as predisposições ideológicas dos dirigentes jogam um papel mais

importante na representação dos interesses sociais. De outro lado, o partido mobiliza,

organiza e educa a sua base de classe - tendo em conta a teoria política, o programa de

governo, a democracia partidária. Em outras palavras, o partido político exerce o seu

papel de dirigente ou vanguarda do grande número de membros da classe social.

Obstáculos à função mandatária

Definimos acima a questão da representação de classe do partido político,

referenciando-a na relação entre o discurso do partido e a dinâmica da luta de classes.

Cabe agora nos reportarmos aos obstáculos - o personalismo, a burocratização, o

vanguardismo - que concorrem para distorcer a função mandatária de classe.

O personalismo de líderes tem existência quando parte dos adeptos ou

simpatizantes do partido passa a um comportamento de massas (sentimentos sensitivos,

irracionais - agindo por instinto, imitação ou contágio). O fenômeno da massificação

junto ao partido da classe trabalhadora se dá por fatores tanto materiais (acesso à

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informação) quanto culturais (escolaridade), em última instância remetidos à

desigualdade de condições na divisão social do trabalho. Assim, a exposição intensa aos

meios simplificadores de informação e comunicação, bem como a imposição de baixo

patamar de escolarização científica produzem predisposições discursivas que tendem a

naturalizar e superestimar as qualidades pessoais dos dirigentes políticos.

Porém, talvez mais importante que o personalismo dos líderes partidários é o

desvio de burocratização. O partido sofre em sua forma de organização os efeitos do

burocratismo do Estado. A especialização de funções (diretivas, parlamentares,

técnicas) e a profissionalização (aquisição do saber-fazer) para os seus exercícios

induzem a uma hierarquização entre, de um lado, quadros dirigentes e, de outro,

militantes de base, cujo relacionamento tende a reproduzir-se em termos de mérito. Isso

transfere para o partido os efeitos da representação no aparelho do Estado, quais sejam,

a apatia política dos representados e a independência dos mandatários.

Por fim, outro perigo para o partido de classe é o vanguardismo. Uma dimensão

do fenômeno se produz quando correntes partidárias passam a atuar estritamente

orientadas pelos objetivos estratégicos (revolucionários) de classe, num contexto de

ausência das condições da crise estrutural da formação social. Tais correntes se isolam

das lutas da classe por reformas e podem se transformar, na expressão de CERRONI

(1982), em partidos-seitas, voltados para o discurso doutrinário de auto-identificação.

O partido de classe ou socialista caracteriza-se por elaborar um programa com

“dupla armadura”, distinguindo o projeto “para o imediato” (proposições a discutir e a

adaptar na negociação com os outros) e o “para o futuro” (modelo antevisto e

intencional de sociedade).4 Uma razão disso advém das próprias condições de

constituição e emergência da classe social. Como indicou Nicos Poulantzas, as classes

sociais são e não são efeitos das estruturas da totalidade social, formulação que leva em

conta dois gêneros de agrupamento: a classe em luta por reformas (internas aos limites

impostos pela vigência das estruturas valorativas) e a classe antagônica (tendente a

transformar o modelo de sociedade).5 A classe social, em contextos de estabilidade

social, possui assim dois aspectos: um descritivo (a classe competitiva) e outro

prospectivo (a classe revolucionária).6 A greve por salário, por exemplo, torna-se

4 Prestipino, Giuseppe. Le socialisme en Occident. Actuel Marx, n. 3, 1988. 5 Poulantzas, Nicos. Pouvoir politique et classes sociales. Paris: Maspero, 1972. 6 Garo, Isabelle. La bourgeoisie de Marx: les héros du marché. In : Vários autores. Bourgeoisie: état d’une classe dominante. Paris : Syllepse, 2001.

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manifestação da prática competitiva e apenas potencialmente da revolucionária. Por isso

se pode dizer que a classe proletária assume um duplo estatuto, ao mesmo tempo

reformista e revolucionário. Como expressa Étienne Balibar, “em realidade, existem

sempre dois coletivos de trabalhadores, imbricado um no outro e formados dos mesmos

indivíduos (ou quase), entretanto incompatíveis.7

2. Sobre a esquerda socialista no Brasil8

O ciclo do PCB

A historiografia sobre o Partido Comunista Brasileiro (PCB) tem no trabalho de

Ronald Chilcote, Partido Comunista Brasileiro, um dos seus pontos elevados, pelo

efeito provocado de sua inserção na tradição de estudos sobre a vida partidária no

Brasil. Trata-se, para esse autor, de produzir um estudo sociográfico bem informado

sobre as principais controvérsias teóricas relativas ao objeto pesquisado.9 A nossa

exposição sobre a questão da política do PCB vem em parte apoiada neste trabalho de

R. Chilcote.

A importância do PCB como força política veio se dar na primeira metade da

década de 1930 por meio da sua influência no programa reivindicativo da Aliança

Nacional Libertadora (ANL). O projeto político delineado era de viabilizar o

desenvolvimento capitalista no Brasil – por meio da industrialização em bases privadas

e nacionais e de uma ampla reforma agrária contra o latifúndio semi-feudal – para

preparar a passagem ao “socialismo”. Em termos táticos, assim, o PCB lutava por uma

“revolução democrático-burguesa”; uma revolução não no sentido político, pois já havia

ocorrido uma transformação burguesa do tipo de estrutura jurídico-administrativa do

Estado brasileiro entre 1888-1891, com a abolição do direito escravista e a instauração

das regras administrativas com base no critério de mérito, e sim de caráter econômico: a

7 Balibar, Étienne. La philosophie de Marx. Paris : Découverte, 2001, p. 95. 8 Este item retoma em parte os conteúdos de dois artigos por mim escritos, “Classe social e partido de classe: o PCB na redemocratização de 1945”, Cadernos de Pesquisa (UFPI), v. 4, n. 1, 2015, e “A política de aliança de classes (II)”, Informe econômico (em publicação); e de um terceiro, escrito em parceria com Ferdinand Cavalcante Pereira, “Perspectivas da crise política no Estado democrático do Brasil”, Le Monde Diplomatique – Brasil, fevereiro de 2017, acesso em http://diplomatique.org.br/perspectivas-da-crise-politica-no-estado-democratico-do-brasil/. 9 Cf. Chilcote, R. Partido Comunista Brasileiro. Rio de Janeiro: Graal, 1982.

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difusão do trabalho assalariado no conjunto da formação social e a transformação das

relações semi-servis no campo.

Em consonância com esse projeto para o imediato, o posicionamento do partido

em boa parte das questões de política econômica divergia dos pontos de vista da

burocracia estatal. Enquanto os dirigentes estatais tendiam, por exemplo, a enfocar os

problemas da inflação e do déficit externo a partir da relação com o desempenho da

balança comercial do país, os Comunistas enfatizavam a falta de controles pelo Estado

especialmente sobre as remessas de lucro e o bloqueio do mercado interno pela ausência

de uma reforma agrária e pela cooptação e a repressão à luta sindical. A prática do PCB,

no pós-1930, estava polarizada pelas temáticas da política salarial, da questão agrária e

do imperialismo – cujas diretrizes comporão o programa da ALN de oposição ao

governo.

A tentativa do PCB em depor o governo pelas armas em 1935 deveu-se em boa

medida à presença do grupo de ex-tenentes, sob a liderança de Prestes, que aderira ao

Partido. A visão militarista de Prestes, já como principal liderança do partido,

subavaliou o apoio que os Comunistas tinham junto à maioria social para adotar essa

forma de luta.

Após a derrota desta tentativa insurrecional, o PCB reorientou seu método de

luta para linha constitucionalista, engajando-se no processo de redemocratização de

1945. O partido passara a defender, desde 1943, no contexto de participação do governo

brasileiro na guerra contra o eixo Nazi-Fascista, a política de “União Nacional”. O

apoio ao governo Vargas em sua intervenção no conflito internacional tinha como

contrapartida as reivindicações da volta da democracia e a anistia aos presos políticos,

incluindo o líder do partido, Luiz Carlos Prestes.

Com a volta da legalidade dos partidos políticos em 1945, após a ditadura do

Estado Novo (1937-45), o PCB lançou candidato próprio à eleição de Presidente da

República, obtendo cerca de 10% dos votos, e conquistou uma expressiva bancada na

Assembleia Constituinte de 1946. Na Constituinte, a bancada Comunista debateu os

temas que polarizavam a classe trabalhadora, mas estava em posição minoritária; a

avaliação de um analista é de que, na Carta do Pós-Guerra, os parlamentares

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majoritários que a redigiram “foram fortemente influenciados pelas ideias do

liberalismo econômico, das quais o Estado Novo se havia desviado”.10

A força eleitoral dos Comunistas deveu-se, em parte, a sua inserção no

movimento de trabalhadores. Vários são os índices dessa inserção; primeiro, nas

eleições de 1945, a maioria dos trabalhadores manuais da cidade de São Paulo votou no

PCB; segundo, dos 14 deputados Comunistas eleitos à Assembleia Nacional

Constituinte, 09 seriam identificados de origem na classe trabalhadora; terceiro, o PCB

tinha influência preponderante na Confederação Nacional dos Trabalhadores da

Indústria e na Confederação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Crédito;

quarto, os militantes Comunistas controlavam o maior sindicato no Brasil - o Sindicato

dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de São

Paulo; quinto, a imprensa e os meios de propaganda do PCB, diferentemente de seus

opositores não-comunistas nas grandes cidades, dedicavam-se à causa do movimento de

trabalhadores.

Os trabalhadores jogaram um papel ativo na conjuntura da redemocratização de

1945, em especial com a greve nacional dos bancários como ponto alto do movimento

trabalhista. Os bancários tinham conseguido desencadear uma greve para pressionar os

patrões e o Estado, e obtiveram que o PCB assumisse uma posição mais combativa. O

partido surgia “para milhares de trabalhadores, não como o partido que mandava

‘apertar os cintos’, mas como o partido que desafiava a exploração econômica, a

miséria”.11

Com isso, “um novo padrão de relacionamento entre o Estado e o

movimento sindical foi sendo paulatinamente estabelecido, à medida que os sindicatos,

a maioria deles sob a influência do PCB, foram se colocando na direção das lutas

econômicas dos trabalhadores”.12

A força eleitoral dos Comunistas explica-se também pela sua política de “União

Nacional”. A coligação PCB-Vargas significava uma aliança da classe trabalhadora com

o projeto de industrialização da burocracia do Estado, projeto que não era inteiramente

coincidente com o da burguesia industrial. Enquanto os agentes governamentais

sustentavam um modelo industrial centrado na participação da empresa estatal

10 Giovanetti Neto, Evaristo. O PCB na Assembleia Constituinte de 1946. São Paulo: Novos Rumos, 1986, p. 80. 11 Frank Alem, Silvio. Os trabalhadores e a “Redemocratização”. Dissertação de Mestrado, IFCH-Unicamp, 1981, p. 195. 12 Idem, ibidem, p. 231.

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(siderurgia, petróleo, energia elétrica), no controle da presença do capital estrangeiro

(remessa de lucros, exploração dos recursos naturais, dívida externa) e na

regulamentação das relações de trabalho (salário-mínimo, assistência à saúde, férias,

aposentadoria); os representantes industriais se posicionavam contrários ao monopólio

estatal na indústria de bens de produção, à regulamentação do investimento estrangeiro

no setor produtivo e à implementação das leis trabalhistas. Assim, no contexto das

décadas de 1930/1940, o Estado brasileiro representava não a hegemonia da burguesia

industrial, mas sim os interesses institucionais globais (centralização política,

intervencionismo econômico) da burguesia; ao mesmo tempo que esse Estado exigia

sacrifícios de interesses específicos das frações (industrial, mercantil) dessa classe. O

partido, quando se coligou a Vargas, tratava como aliado o conjunto da burguesia

brasileira. Um sinal da autonomia do partido nessa aliança era que ele não adotava, em

questões importantes (inflação, déficit externo, salário, questão agrária, imperialismo), a

visão econômica do nacional-desenvolvimentismo, dominante no aparelho de Estado.

A posição do PCB frente aos primeiros anos do governo Dutra (1946-47) não

podia deixar de ser crítica, apesar da linha política do partido de União Nacional.

Embora tivesse o cuidado de evitar um ataque sistemático ao governo do general Dutra,

eleito com o apoio de Vargas, estava presente no discurso Comunista a preocupação

com os enclaves liberais e conservadores no governo. A III Conferência do PCB, em

julho de 1946, expressava sua linha constitucional-aliancista: “acatar as decisões das

autoridades e lutar pela solução pacífica dos problemas nacionais, não significa ficar de

braços cruzados nem se conformar oportunisticamente, sem protesto, com as

arbitrariedades e violências”.13

Em 1947, a pretexto de o PCB estar atrelado aos

interesses da URSS, o governo Dutra aprovou a cassação dos direitos políticos do

partido e recrudesceu a repressão ao movimento sindical sob sua influência, a exemplo

das categorias dos portuários e bancários - como formas de concretizar a visão liberal

governista em matéria de política salarial.

Enfim, a política do PCB durante o processo da redemocratização de 1945-46

significou que uma parte da classe trabalhadora não se encontrava subordinada ao bloco

no poder, apesar de buscar uma aliança com os seus representantes, em favor da

ampliação de reformas políticas e econômicas. Movendo-se no campo político sem opor

a independência e a aliança, o PCB teve uma prática marcada pelos “sinais da

13 Carone, Edgard. O PCB (1943-1964). São Paulo: Difel, 1982, p.67.

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dissidência” em relação aos governos de Vargas e de Dutra, posicionamento distinto de

uma política “colaboracionista” ou política de apoio.

O ciclo do PT

O trabalho de André Singer, Os sentidos do lulismo, procura decifrar os

significados das práticas do Partido dos Trabalhadores (PT) e do governo Lula (2003-

2010) a partir das relações de classes. A sua análise da relação do governo Lula e a

classe dominante privilegia os conflitos entre, de um lado, a ‘coalizão rentista’ (capital

‘financeiro’ nacional e internacional) e, de outro, a ‘coalizão produtivista’ (capital

industrial e classe trabalhadora). Por sua vez, a análise da relação do governo Lula e a

classe dominada destaca o papel do “subproletariado” no realinhamento eleitoral que

possibilitou a ascensão da coalisão de esquerda ou centro-esquerda liderada pelo PT.14

A nossa indagação sobre a política do PT referenciar-se-á, em parte, nessa análise de A.

Singer.

Durante a transição ao capitalismo industrial no Brasil (1930-1964), o campo da

esquerda socialista havia sido liderado pelo PCB, que surgira filiado à IIIª Internacional

Comunista, sob a liderança do PC da URSS. No modelo soviético, o Estado era

encarregado de controlar a propriedade dos meios de produção e de planificar a

economia. Havia a predominância dos planos centralizados, que se referiam à economia

e a cultura. A divisão do trabalho técnico e social foi intensificada. E o partido único

tornou-se o órgão supremo do Estado. Assim, a Internacional Comunista estava

comprometida com uma concepção estratégica que, intervertendo o programa socialista,

passou a defender os interesses, por assim dizer, de uma nova classe dominante, a

burguesia de Estado.

No entanto, o PCB manteve uma coerência de objetivos táticos, sustentando, nas

condições históricas da sociedade brasileira, o programa de caráter nacional-

democrático, não ainda “socialista”, embora tenha mudado de método quanto à

perseguição destes fins imediatos, adotando em função da conjuntura política ora a

prática insurrecional, ora a legalista. O programa político era o de viabilizar o

desenvolvimento capitalista no país por meio da industrialização em bases privadas e

nacionais e de realizar uma ampla reforma agrária contra o latifúndio tradicional.

14 Singer, A. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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Mas, no processo da industrialização, a burguesia industrial não se mostrou

favorável à aliança com a classe assalariada. Dada sua condição ambígua em dispor de

uma base de acumulação própria e ao mesmo tempo depender monetariamente do

capital agromercantil, a fração industrial preferiu voltar as costas à tese do capitalismo

nacional-democrático. Como não tinha força para subordinar no interior do bloco no

poder os interesses da economia agromercantil, a liderança industrial aderiu, não sem

momentos de hesitação, como na Guerra de 1932 e na deposição do Presidente Getúlio

Vargas em 1954, ao compromisso de equilíbrio político que sustentava os governos

nacional-desenvolvimentistas. Porém, com o avanço do processo de industrialização, a

burguesia industrial passou a organizar-se para a conquista da hegemonia política,

viabilizada com o golpe civil-militar de 1964.

No processo de abertura democrática do final dos anos 1970, vários fatores

convergiram para formação do PT como expressão da interdependência entre

organização partidária e classe social; primeiro, a emergência do sindicalismo menos

subordinado à institucionalidade do Estado; segundo, a mobilização dos movimentos

sociais urbanos; terceiro, a renovação do catolicismo tradicional com a Teologia da

Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base; quarto, a reorganização da militância

dos agrupamentos de esquerda socialista. Mas talvez possamos dizer que o elemento

determinante, em última instância, do surgimento desta nova força partidária de

esquerda foram as consequências da hegemonia do empresariado industrial, que elevou

as taxas de crescimento econômico, mas sem possibilitar a reprodução ampliada da

força de trabalho, ao beneficiar-se do regime repressivo do Estado.

O PT nasceu no Brasil como manifestação da nova esquerda socialista.

Reivindicava uma visão crítica da experiência chamada socialista, contrapondo a essa

experiência o controle dos meios de produção pelos trabalhadores, o planejamento

descentralizado, o pluralismo partidário; e propunha a conquista da direção do Estado

burguês com base no programa “democrático-popular”, impulsionado pelos

movimentos sindicais e sociais. No intervalo de uma década veio tornar-se a principal

força partidária no campo da esquerda brasileira, em razão, em parte, da crise do PCB,

provocada pelo golpe civil-militar de 1964, que fez desacreditar o programa “nacional-

democrático”; e, outra parte, pela ascensão das lutas reivindicativas e de oposição ao

regime militar.

As aspirações da maioria eleitoral que deu vitória à candidatura de Lula na

Presidência da República em 2002 foram apresentadas nos documentos (1)

12

“Concepções e diretrizes do programa de governo do PT para o Brasil – Lula 2002”; (2)

“Carta ao Povo Brasileiro”; (3) “Programa de Governo 2002 – Coligação Lula

Presidente – Brasil para todos”. O teor das diretrizes de política econômica e social

apontava para medidas tais como: honrar os contratos e preservar o superávit primário;

proteção à produção nacional, reduzindo as altas taxas de juros e empreendendo uma

reforma tributária; regulação da entrada de capital estrangeiro; incentivo às exportações;

proteção ao emprego; ampliação das políticas sociais.15

A política econômica no primeiro ano do governo Lula assumiu um perfil de

transição, combinando a manutenção de medidas de estabilidade monetária com

iniciativas na área social. Sob a pressão do chamado “risco Lula” (a expectativa de

agentes do mercado monetário que continuasse o ataque especulativo da fuga de capitais

iniciado durante a campanha eleitoral, mesmo após ter exposto a suas intenções de

governo na Carta aos Brasileiros), o Presidente Lula nomeou uma equipe econômica

que tomou medidas conservadoras, como o ajuste fiscal e a reforma da previdência, sob

a alegação de evitar os riscos inflacionários. Paralelamente, os investimentos em

programas sociais começaram a trazer para a base de apoio ao governo os setores mais

pobres. Em seguida, a mudança da equipe econômica, abandonando a orientação

conservadora da política econômica, substituindo-a por um modelo de desenvolvimento

que articulava crescimento econômico com políticas de distribuição de renda e

estabilidade monetária, mostrou a “intuição” e o “pragmatismo” do Presidente Lula.16

(Cf. SADER, 2013.)

Os dados apontam um desempenho positivo nos indicadores econômicos e

sociais do país. A taxa de inflação decresceu, registrando os índices de 9,3%, em 2003,

e 3,1%, em 2006. Ao mesmo tempo, o governo conseguiu reduzir os juros em quase

metade; a taxa Selic, que atingiu em maio de 2003 o índice de 26,3%, chegou ao final

de 2006 com o índice de 13,2%. Por sua vez, deu-se o aumento gradual do salário

mínimo, que passou de R$ 302 para R$ 402 no período. Embora os gastos com saúde e

educação não tenham progredido na mesma proporção, houve uma ampliação

significativa na área de proteção social, que passou do patamar de 13,7% para 20,5%,

entre 2003-2006.

15 Martuscelli, D. Crises políticas e capitalismo neoliberal no Brasil. Curitiba: CRV, 2015. 16 Sader, E. A construção da hegemonia pós-neoliberal. In SADER, E. (org.). Dez anos de governos pós-neoliberais no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013.

13

Esses resultados foram, em boa parte, produtos da frente de forças sociais e

políticas, que conseguiu reverter o padrão de desenvolvimento socioeconômico dos

governos anteriores sob a orientação do pensamento neoliberal. Por um lado, a

coligação PT (Lula) e PL (José de Alencar) induzia a um acordo tácito das lideranças de

trabalhadores – CUT, MST – e setores empresarias nacionais – FIESP, FEBRABAN –

em torno de uma nova política de desenvolvimento econômico e social. Por outro lado,

iniciativas conjuntas das lideranças empresariais e dos trabalhadores repercutiam no

interior do aparelho governamental, como o Conselho de Desenvolvimento Econômico

e Social, cujo funcionamento envolvia a negociação de patrões e empregados.

A vitória dessa coalisão política pressupunha dois condicionantes. Primeiro, o

condomínio de interesses no sistema hegemônico entre a fração dos bancos e a fração

industrial; tal equilíbrio de posição deveria se chocar com as diretrizes da política

neoliberal – desregulamentação monetária, taxas de juros elevadas –, que privilegiavam

os interesses dos bancos dentro do grande capital. Segundo, os setores empresariais

hegemônicos deveriam conceder de fato ganhos para as classes trabalhadoras; isso

implicava um novo padrão de política trabalhista e social, que possibilitasse a

reprodução ampliada da classe assalariada. Como declarou um dirigente sindical, “era

preciso romper flancos no campo adversário e construir alianças. Em reunião do CDES

defendi o emprego e o salário para fortalecer o mercado interno como forma de

enfrentamento da crise”.17

Em síntese, o PT e a CUT praticaram uma política de aliança de classe, cujos

resultados no global foram de ganhos reais para os interesses da maioria social, sem

deixar de privilegiar os interesses hegemônicos do capital; todos ganharam, embora não

na mesma proporção. Afinal, o governo de esquerda ou centro-esquerda se instalou sem

revolucionar as estruturas do Estado burguês, que, pelos seus valores e pela sua

institucionalidade limitada a tais valores, impõe invariavelmente a convergência da

política estatal aos interesses da classe dominante ou da sua fração hegemônica. Mais

concretamente, as alianças Lula-Alencar e CUT-FIESP produziram efeitos que

ampliaram de fato o bem-estar da maioria social, num contexto em que frações da

burguesia (multinacionais, grande comércio, bancos estrangeiros) patrocinavam a

17 Henrique, A. Um olhar dos trabalhadores: um balanço positivo, uma disputa cotidiana e muitos desafios pela frente. In SADER, E. (org.). Dez anos de governos pós-neoliberais no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013.

14

adoção de políticas regressivas dos direitos sociais; ao mesmo tempo, essas alianças

ensejaram a estabilidade política para consecução de um programa

neodesenvolvimentista.

A crise política de 2016

A política governamental de alavancar o investimento produtivo por meio do

financiamento estatal provocou a reação dos bancos privados, que se opuseram em

especial às medidas de redução da taxa de juros; e não obteve o apoio ativo da fração

industrial, pelo receio de o governo vir a implementar medidas “populistas”

(bonapartistas). O governo viu-se então em dificuldades, pois, por um lado, as altas

taxas consomem boa parte do orçamento estatal com o pagamento dos juros da dívida

pública e, por outro, os novos investimentos produtivos tornam-se menos atrativos,

induzindo as empresas industriais a aplicarem os recursos no sistema monetário, cuja

rentabilidade vem elevada.

Como então expandir a empregabilidade produtiva, aumentar a capacidade

extrativa do Estado e ampliar os serviços governamentais à reprodução da força de

trabalho? Ficou difícil diante da resistência política do capital-dinheiro. Assim, o

sistema monetário gerará mais dinheiro de modo fictício, fazendo a economia da

materialização do circuito produtivo. Torna-se compreensível que o excesso em

dinheiro-moeda provocará sua subvalorização.

O enfoque dos representantes políticos do capitalismo financeiro com dominante

monetária será o de resolver o problema da instabilidade do dinheiro-moeda por meio

de uma política de redução de custos das empresas, como forma de elevar a

produtividade dos capitais, buscando readequar a defasagem de esfera monetária e base

material da economia. A receita para o grande capital serão as medidas de combinar a

inovação técnica com a desregulamentação das relações de trabalho; privatizar as

empresas estatais lucrativas; desregulamentar a circulação de mercadorias e de dinheiro.

Cabe então apontar que em boa medida as pressões do capital financeiro com

dominante monetária e seus principais representantes partidários (PSDB e parte do

PMDB) induziram o Governo Dilma, no início do segundo mandato em 2015, a adotar a

política do ajuste fiscal, numa tentativa de recuo provisório em sua linha política mais

geral do intervencionismo estatal. A concretização dessa política de “um passo atrás e

dois passos à frente”, ficou a cargo do Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, um

representante direto dos bancos privados.

15

Disso decorreram tensões no interior da coalizão governante sobre os custos

regressivos desse desvio na política do crescimento econômico. Setores empresariais e

sindicais, bem como lideranças partidárias passaram a manifestar os descontentamentos

com os efeitos das medidas contencionistas dos gastos governamentais e os riscos de

uma recessão econômica. A associação patronal dos industriais, FIESP, passou à

posição de ruptura com a coalisão governante. A representação sindical dos

trabalhadores, CUT, adotou a postura de aliada crítica do governo. A mudança do

Ministro da Fazenda, de Joaquim Levy (orientação liberal) para Nelson Barbosa

(pensamento desenvolvimentista), não foi suficiente para produzir um conjunto de

medidas reaglutinadoras da frente social e política neodesenvolvimentista.

Por sua vez, a coalizão de oposição tomou a iniciativa de combinar a tática do

desgaste político das forças governantes por meio do tema da “corrupção” (clientelismo

político) com a proposta de impedimento da Presidente do Executivo Dilma Rousseff a

pretexto de desvios administrativos. Ter encontrado dentro do PMDB um grupo que,

por motivações partidárias (carreiras políticas) ou pessoais (envolvimentos ilícitos),

estava disposto a romper com a coligação governante foi o catalizador do golpe

palaciano.

Em 2016, a cena política veio marcado pelas tensões entre os segmentos do

grande capital, competidores pela influência política, e também pela disputa dos

partidos principais no seio da coalisão governante, visando a ocupação do aparelho de

Estado. Este segundo aspecto da competição política vem expresso por meio da

rivalidade entre Presidência da República e Presidência da Câmara dos Deputados,

quando um ramo estatal passou a acusar o outro de práticas desviantes face às regras

administrativas e eleitorais.

O ápice da crise será de a Presidente Dilma Roussef (PT), ex-guerrilheira, presa

e torturada no período do regime militar, sofrer impeachment em 31 de Agosto de 2016,

sob a acusação de desvio administrativo, num processo movido pelo Presidente da

Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), político profissional carreirista, que semanas depois

terá o seu mandato suspenso por investigação de crime de desvio pessoal de recursos,

em tese, partidários. Mas o ponto máximo da encenação macunaímica desta crise

política foi a Presidente da República ter sido condenada, sob a audiência de rede

nacional de televisão, por desvio de responsabilidade administrativa e, em seguida, ver

assegurados os seus direitos políticos.

16

3. Uma análise crítica do programa do 6º Congresso Nacional do PT

I. Diretriz estratégica

“Esse mundo não pode ser compreendido e nem superado, se não

empreendermos a crítica radical do capitalismo e a defesa do socialismo democrático,

recolocando essa perspectiva como motor de nossas ações”. 18

Encontra-se a assertiva, com a qual concordaremos, de que o objetivo de

socialismo democrático é o produto da análise crítica do capitalismo. Por um lado, essa

crítica se apoia no discurso filosófico, a filosofia materialista da história ou

materialismo histórico. Se a classe dominante, a burguesia, precisa da crença na

filosofia idealista (o direito da forma sujeito, etc.) para reproduzir a sua dominação (o

contrato de trabalho assalariado), resta à classe dominada, o proletariado, adotar a

filosofia materialista (a liberdade como ilusão, etc.), a fim de confrontar os valores e os

interesses de seu oponente antagônico. Não basta à classe do trabalho assalariado

avançar em direção aos valores do idealismo na forma humanista (racional),

abandonando as formas místicas (revelação); pois o interesse em abolir a sua sujeição a

uma minoria social leva essa classe a uma exigência radical de ruptura valorativa. Uma

consequência dessa exigência na formação da classe proletária foi a publicação do

Manifesto Comunista na primeira metade do século XIX.

Enquanto fundamentado nos axiomas do materialismo, histórico e dialético, o

socialismo democrático deixa de ser, portanto, um ideal para se converter numa

aspiração realista. Mas, de outro lado, o conhecimento sobre a sociedade capitalista se

constrói também a partir do discurso científico, ou seja, de demonstrações não

filosóficas ou não axiomáticas. Até o momento, pouco se reconheceu a diferença entre

filosofia materialista e ciência crítica ou não axiomática; como a fração mais poderosa

do capital tende a se alinhar com o discurso na forma mística, pois produz efeitos mais

estáveis nas instituições políticas, as frações subordinadas inclinam-se ao discurso na

forma racional. A tarefa progressista tem sido, assim, a de secularizar (separar do

misticismo) o campo da política. Entretanto, passados 150 anos da publicação de O

capital, em que Karl Marx estabelece a ciência do processo histórico, e passado um

século de política secularizada de esquerda (progressista), simbolizada pela Revolução

Russa de 1917, soou talvez a hora de a esquerda socialista desenvolver o seu programa

18 Partido dos Trabalhadores. Caderno de Resoluções do 6º Congresso Nacional. Brasília, junho de 2017, p. 9. Disponível em http://www.pt.org.br/wp-content/uploads/2017/07/6-congresso-pt.pdf.

17

com base não apenas na filosofia materialista (distinta do humanismo liberal), como

também na ciência da história (diversa da filosofia da história). Este último aspecto foi

um dos mais agudos temas apontados por Louis Althusser em Ler O capital: o a-

humanismo teórico. Esta foi também uma sugestão das mais incisivas de Ruy Fausto em

Caminhos da esquerda: “é assim, respeitando uma antropologia nem humanista nem

anti-humanista, que se deve construir uma política para esquerda”.19

II. Situação nacional

1) “O governo Michel Temer está refazendo a Constituição e, sem legitimidade,

efetiva um programa antipopular e antinacional derrotado nas urnas desde 2003, visando

ampliar a lucratividade do capital”.

A classe do capital se divide internamente segundo várias linhas de conflito em

torno da disputa pela participação na massa de lucros; temos a indústria em competição

com os bancos; o banco nacional, com o banco estrangeiro; o capital estatal, com o

capital privado etc. O fator de aglutinação de um sistema de frações ou outro é o

impacto da política econômica do Estado; o resultado da intervenção do Estado

concretiza os conflitos potenciais das frações enraizadas na esfera econômica, pois as

frações se mobilizam para defender ou rejeitar certas medidas estatais. Em outras

palavras, certos grupos diferenciados na esfera econômica não se concretizam de

imediato no plano político, eles têm antes um caráter potencial; outros grupos,

diferenciados por outros critérios, é que se manifestam. A política do Estado vem ser,

assim, o fator de emergência de um sistema de fracionamento ou outro, ou ainda de

vários sistemas combinados.20

Está cada vez mais claro que o programa antipopular e antinacional do governo

Michel Temer (PMDB) vem de encontro aos interesses do anel de frações composto

pelo capital bancário, capital estrangeiro e capital privado. O governo aprovou a PEC

55, que promove o ajuste fiscal e congela por 20 anos os investimentos estatais, e

retomou a linha de privatizar áreas estratégicas da economia nacional, bem como de

conceder ao capital estrangeiro a exploração de recursos naturais no país.

19 Ruy Fausto. Caminhos da esquerda: elementos para uma reconstrução. São Paulo: Companhia da Letras, 2017, p. 105. 20 Cf. Décio Saes, República do capital: capitalismo e processo político no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2001.

18

2) “De inspiração antineoliberal, nossos governos implementaram não apenas

políticas públicas de inclusão social e transferência de renda, mas principalmente de

ampliação de direitos”.

A hegemonia do capital mercantil não possibilitava sequer a reprodução normal

da força de trabalho, impondo à classe trabalhadora uma jornada de trabalho extenuante

e condições de trabalho degradantes. Com a ascensão do capital industrial, os

trabalhadores conquistaram os direitos do trabalho e o acesso às condições mínimas,

materiais e culturais, da civilização moderna. Finalmente, a formação do capital

financeiro (a coexistência de indústria e banco no seio de um conglomerado econômico)

levou o capital produtivo (indústria) a adotar uma política de alianças com a classe

trabalhadora organizada, afim de defender a sua lucratividade contra o poder crescente

do capital rentista (banco). Deste pacto social (gravitando basicamente em torno da

redistribuição dos ganhos de produtividade na empresa industrial), surgiu nos EUA e na

Europa após Segunda Guerra Mundial o chamado Welfare State, possibilitando pela

primeira vez na história do capitalismo as condições da reprodução ampliada da força

de trabalho. Da mesma forma, o acordo de capital produtivo e sindicalismo

independente trouxe ao Brasil dos anos 2000 essa dinâmica de ampliação dos direitos

sociais, implementada e expressa nos governos sob a liderança do PT.

O primeiro governo Dilma Rousseff (2011-15) veio concretizar a hegemonia

política do capital financeiro com dominante industrial, em aliança com a classe

trabalhadora assalariada. A política econômica do Estado beneficiava prevalentemente o

grande capital industrial e gerava um acréscimo na taxa de mais-valor que podia ser

redistribuído para ampliação da reprodução da força de trabalho.

O intervencionismo adotado pela equipe econômica do governo incidiu no

investimento produtivo por meio do Plano de Aceleração do Crescimento, que focava

em obras de infraestrutura (portos, aeroportos, estradas, fontes de energia), e através das

desonerações fiscais e previdenciárias, crédito subsidiado dos bancos estatais, redução

de taxa de juros e barateamento de preços de insumos às empresas industriais. Tais

medidas ensejaram o aumento da rentabilidade do capital industrial e estimularam os

ganhos de produtividade pela adoção de novas tecnologias.

O segmento de bancos do capital financeiro não se sentiu contemplado com a

política industrial do governo, porque continha as linhas da redução da taxa de juros ao

crédito de investimento e da isenção fiscal das empresas. Os representantes dos

banqueiros reagiram a essas medidas governamentais, sob os argumentos de que se

19

chocavam com a meta de controle da inflação da moeda e levariam ao

sobreaquecimento da demanda efetiva. Ao final dessas manifestações, embora

continuassem a se beneficiar com a bancarização de contingentes da classe assalariada

que ascendiam materialmente no período, os bancos estavam na oposição ao governo.

As aspirações conscientes da coalisão governamental que deslocou a hegemonia

política para o setor industrial foram expressas num conjunto de diretrizes, chamado de

Nova Matriz Econômica. A NME indicava (a) afrouxar o controle sobre a política

monetária; (b) reforçar o incentivo ao investimento privado; (c) defender o crescimento

do mercado interno. O resultado da NME foi abrir novas frentes de expansão ao

investimento produtivo, especialmente na construção da infraestrutura das atividades

econômicas.

No entanto, apesar de o governo sustentar a hegemonia do setor industrial, os

representantes diretos dessa fração de classe transitaram para a postura de não fazer a

defesa do governo diante das críticas do setor bancário. É que os representantes

industriais intuíam, mas de maneira distorcida, a possibilidade de o governo adotar uma

política bonapartista, ou seja, passar a exigir sacrifícios de todas as frações do capital

para garantir o crescimento econômico. Assim, identificavam no “lulismo” (o

crescimento econômico com a ampliação de direitos sociais) da Presidente Dilma o

fantasma de Getúlio Vargas. O que o governo pedia, na substância, era que os

industriais abrissem mão de interesses imediatos, a desregulamentação das relações de

trabalho, em prol mesmo de seus interesses de longo prazo, a preponderância

econômica.

3) “Os documentos congressuais sintetizam o rumo que nosso partido propõe às

classes trabalhadoras e às forças progressistas de nosso país. São uma ferramenta para

avançarmos na unidade do campo popular, em sua capacidade de luta, tendo como

objetivo central a reconstrução de uma alternativa democrática contra as oligarquias

nativas e seus sócios internacionais”.

Carece no Caderno de Resoluções do 6º Congresso Nacional a indicação dos

contornos dessa recomposição de forças progressistas no país. Ora, no Brasil atual

ocorre uma disputa entre o grande capital e o médio capital. O grande capital não está

disposto a assumir maior participação nas tarifas de impostos, e com isso aliviar os

custos para o médio capital com os gastos de política social; mas o médio capital dispõe

de forte recurso de barganha, que é a capacidade de absorver o contingente de força de

trabalho no curto prazo e, assim, contribuir para política de combate ao desemprego. É

20

oportuno lembrar que a capacidade de endividamento deste setor do capital estaria no

limite, e, se proposta, por exemplo, uma política de corte dos incentivos fiscais e

creditícios ao grande capital e de transferência desses recursos para o capital não-

oligopolístico, essa fração poderá, dentro do quadro da crise, transformar-se em

importante força política.

Analistas de esquerda, como Ruy Fausto, Renato Janine Ribeiro e outros, vêm

chamando a atenção para proposta de reforma tributária. Por exemplo, no Brasil, não há

a cobrança de imposto sobre lucros e dividendos dos acionistas enquanto pessoas

físicas. Para liderança do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, a esquerda deve

estar unida ao propor “uma política econômica não recessiva, e uma democratização do

sistema tributário no país”. 21

Outro aspecto a ser considerado diz respeito aos segmentos da burocracia do

Estado. Ruy Fausto, tratando sobre o tema da segurança internacional, adverte: “seria

importante estimular as vocações para carreira militar de jovens com convicções

democráticas e progressistas”.22

Talvez R. Fausto pense na força como último recurso

de poder. Mas se considerarmos a interdependência entre a lei e a aplicação da lei, então

temos de levar em conta também a reforma do sistema judiciário. Convém destacar

nesse caso o papel das faculdades de direito e seu sistema de ensino; aqui têm vigência,

em termos de progresso social, as filosofias jurídicas mais atrasadas (a mitologia do

direito natural etc.). Seria importante não apenas pluralizar o ensino doutrinário, como

também estimular a introdução da pesquisa científica na formação dos membros dos

aparelhos judiciários.

4) “Os oligopólios da comunicação estão em sintonia com a violência perpetrada

por setores do Ministério Público, das polícias e do Judiciário, que se erigiu no Brasil

como um poder bonapartista, isto é, que se anuncia acima das classes e dos poderes da

República”.

Não há um poder bonapartista do ramo judiciário no Brasil, pois o Estado

bonapartista é o produto de um equilíbrio de forças entre as frações da classe

21 Cf. Guilherme Boulos. “Por uma nova pedagogia de esquerda: entrevista”. In Fornazieri, A. & Muanis, C. (orgs.). A crise das esquerdas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. 22 Fausto, R. Op. cit., p. 93.

21

dominante.23

Ora, o que vimos com o golpe político foi a tendência a um deslocamento

da hegemonia política das mãos da burguesia industrial às do capital monetário. É

verdade que a burocracia estatal possui interesses específicos e se representa missões

universalistas. Mas tais representações e objetivos são limitados e reconduzidos aos

valores e interesses da fração hegemônica na classe capitalista. Mais especificamente,

ao se lançar numa cruzada de moralização em abstrato das instituições políticas, a

burocracia judiciária do Estado brasileiro tem favorecido, de modo consciente ou

inconsciente, o retorno da hegemonia política neoliberal.

Consideremos o tema da chamada corrupção política. Se no plano geral o

clientelismo serve aos valores da classe dominante - pois afasta a classe trabalhadora de

seus interesses globais, ao orientar-se por demandas individuais, paroquiais, locais etc. -

, em contextos específicos ele pode desempenhar um papel ora conservador, ora

progressista - a depender da correlação de forças no jogo de interesses das frações

dominantes.

Como indicou Nicos Poulantzas, o capital monopolístico se divide em capital

estrangeiro e burguesia interna, existindo uma disputa dessas frações no seu interior.24

Ora, a partir da crise de 1970, o setor interessado em criminalizar o uso do clientelismo

político será o capital estrangeiro, devido a sua ligação com a integralidade do programa

neoliberal, especialmente a política monetarista de contenção de gastos do Estado. Para

os representantes desse capital, as práticas clientelistas são um desperdício no modo das

despesas governamentais, que deveriam se pautar não por demandas setoriais ou

regionais, mas pelo interesse geral da nação (leiamos: interesse do capital estrangeiro).

Em diversas democracias capitalistas, as práticas clientelistas são consideradas

ilegais (uma exceção são os EUA, onde existe a regulamentação dos chamados lobbies).

Uma das razões dessa interdição jurídica seria a busca do grande capital internacional

de restringir o poder das burguesias internas, tendentes a fazer uso do clientelismo como

recurso de sua coesão política. Em outras palavras, a política do capital monopolístico

internacional de conter os gastos do Estado a seu favor procura impor o controle do

clientelismo, lançando mão da sua judicialização.

23 Cf. Francisco Pereira de Farias. Estado burguês e classes dominantes no Brasil (1930-1964). Curitiba: CRV, 2017. 24 Cf. Poulantzas, N. Les classes sociales dans le capitalisme aujourd’hui. Paris : Seuil, 1974.

22

A burguesia interna, conquistando a hegemonia no Estado nacional, pode fazer

um uso progressista do clientelismo, porque, embora essa fração de classe venha ter a

preponderância na política nacional, ela joga um papel em parte subordinado no plano

da política internacional, ou seja, dos interesses do capital imperialista central. A

burguesia interna torna-se ao mesmo tempo uma fração hegemônica (no plano nacional)

e uma fração semissubordinada (no plano internacional). No Brasil dos anos 2000, a

utilização de barganhas pela burguesia interna junto ao Estado para conquistar mercados

no exterior ou manter o controle da produção nacional de petróleo provocaram reações

do capital internacional para tentar desestabilizar o governo de esquerda ou centro-

esquerda.

Do ponto de vista da relação com sua base social específica, não haveria

coerência do partido de esquerda em fazer concessões ao clientelismo político. Pois às

forças de esquerda interessa restringir o clientelismo junto aos assalariados, uma vez

que se torna um obstáculo à generalização dos interesses de classe. Mas, enquanto

participantes de uma aliança de classes que ascende ao governo do Estado burguês, seria

quase inevitável algum tipo de clientelismo de “cúpula”. As pressões

intergovernamentais podem levar o partido a lançar mão de práticas seletivas, em vista

da estabilidade da coalizão governante.

A abordagem do clientelismo político por correntes de esquerda em termos da

ideologia público /privado produz propostas políticas pouco eficazes. Do ponto de vista

prático, se aceita as proposições de judicialização das barganhas partidárias na vida

política. Não se questiona quando a legislação põe no mesmo plano a corrupção privada

e o lobby político. Mas a regra institucionalizada da burocracia moderna é de que o

funcionário não deve confundir os seus meios de vida com os meios administrativos do

Estado. Disso não se infere que um agente estatal, atuando em vista de objetivos

partidários, estará “privatizando” o Estado. Embora na prática a linha divisória entre o

“privado” e o “público” venha oscilar, devido aos surtos de individualismo e

carreirismo na vida político-partidária, em princípio a atuação, por exemplo, de um

político para alocar recursos estatais a um grupo ou comunidade em troca de apoio

político-partidário não se confunde com o desvio de recursos para a sua vida privado-

familiar. Renato Janine Ribeiro observou essa diferença quando se referiu ao caso da

morte de um ex-prefeito do PT: “mas, para Celso Daniel, uma coisa seria a corrupção

23

(sic.!) para o bem de um projeto político; outra, a corrupção para pôr dinheiro no bolso,

algo que ele não admitia”.25

Cabe então a indagação: uma política progressista deveria se posicionar a favor

da proposta de descriminalização do clientelismo político? Podemos fazer uma analogia

com o problema do consumo de drogas. A criminalização das drogas acaba tendo por

efeito favorecer os interesses econômicos do grupo de traficantes, sob a aparência de

preservar os valores morais da sociedade. A satisfação das aspirações de indivíduos e

comunidades mostra-se um caminho mais eficiente para o controle do uso de

entorpecentes. Da mesma forma, a criminalização do clientelismo político termina por

privilegiar os interesses das frações hegemônicas do capitalismo mundial (capital

monopolístico internacional, burguesia americana etc.), sob a aparência de defender os

valores e os interesses gerais das nações. A participação e a organização seriam os

meios mais eficazes de combater o clientelismo junto às classes subordinadas.

Tornar-se-ia, pois, desejável a inclusão na retomada da reforma política desta

questão da regulamentação do lobby político. Isso implicaria uma retomada de temas

polêmicos, como o financiamento de campanha eleitoral. De qualquer modo, diante da

investida do capital internacional e imperialista, sob a coordenação de suas agências de

representação (Banco Mundial, ONU, FMI, OMC, OCDE), substituindo o cavalo de

batalha dos “direitos humanos” pela cruzada civilizatória do combate à “corrupção

política”, cabe aos grupos de esquerda um posicionamento claro: o clientelismo político

não é corrupção.

III- Balanço de uma experiência histórica

“As teses debatidas no 6º Congresso oferecem diferentes interpretações.

Algumas apontam para existência de uma estratégia de conciliação de classes, que

inclusive não teria se preparado para hipótese de ocorrer uma reação golpista. Outras

interpretações reconhecem decisões efetivamente incorretas, mas consideram que elas

teriam se dado nos marcos de uma estratégia correta, que buscou levar em conta a

correlação de forças.”

Sobre este ponto decisivo, o balanço da experiência de governo, o documento se

encaminha por evitar a discussão das divergências e a incorporação de uma análise

histórico-científica da questão.

25 Ribeiro, R. J. Op. cit., p. 23.

24

Em documentos preparatórios ao 6º Congresso Nacional, as correntes que

sustentam ter sido a política concretizada pelo PT orientada pela estratégia da

conciliação de classes argumentam que tal política possibilitou a conquista de reformas

moderadas, mas foi insuficiente para enfrentar a crise do capitalismo neoliberal, com

medidas adequadas de política econômica e com a preparação da classe trabalhadora

para os enfrentamentos políticos diante da classe dominante e os seus setores

hegemônicos. Ligado a essa estratégia, o partido não pôde impedir que o governo sob

sua direção adotasse a partir de 2015 uma política equívoca de combinar o ajuste fiscal

com altas taxas de juros, que terminou por provocar o distanciamento dos setores do

empresariado beneficiados com o desenvolvimentismo capitalista nos governos Lula e o

primeiro mandato de Dilma.

Do ponto de vista teórico, a tese da conciliação de classe pretende abarcar uma

situação intermediária entre a colaboração de classe e a aliança de classe. Ora, numa

conjuntura de reprodução da ordem social, a política da classe dominada tende a

assumir uma de duas possibilidades: a política de apoio (sem contrapartida aos

interesses de classe) ou a política de aliança (conquista de ganhos materiais e culturais

para a classe). A estratégia da conciliação de classe seria uma política bastarda: uma

mistura de colaboração de classe (a política de apoio) e independência de classe (a

política de aliança). Mas isso não poderia ter vida longa; na prática, há ou a política de

apoio, em troca de ilusões prometidas pela classe dominante, ou a política de aliança, na

qual são feitas realmente concessões aos interesses dos dominados, em proveito de uma

hegemonia de setores da classe dominante.

No entanto, seria exagerado se dizer que o PT e a CUT praticaram uma política

de traição à classe trabalhadora, vendendo ilusões no lugar de benefícios concretos.

Basta vermos os indicadores sociais do período das gestões governamentais sob as

lideranças do PT para nos convencer que no global os resultados foram positivos aos

interesses da maioria social, sem deixar de privilegiar os interesses das frações

hegemônicas do capital. Afinal, o governo de esquerda ou centro-esquerda se instalou

sem revolucionar as estruturas do Estado burguês, que, pelos seus valores e pela

institucionalidade limitada a tais valores, impõe invariavelmente a convergência da

política estatal aos interesses da classe dominante ou da sua fração hegemônica. Mais

concretamente, as alianças Lula-Alencar e CUT-FIESP produziram efeitos que

ampliaram, de fato, o bem-estar da maioria social, num contexto em que as burguesias

dos países centrais patrocinavam as políticas de regressão dos direitos sociais; ao

25

mesmo tempo que essas alianças ensejaram uma estabilidade política para a consecução

de uma política econômica desenvolvimentista, que privilegiava os interesses da

burguesia interna (bancos nacionais, indústrias nacionais, agronegócio), em

contraposição aos interesses dos capitais enfeudados aos interesses estrangeiros e

imperialistas.

A política de ajuste fiscal foi sem dúvida um fator da crise de aliança de classes,

porque essa medida atendia antes aos interesses e às pressões da burguesia associada ao

imperialismo dos países centrais (EUA, Alemanha). A gestão de Dilma em 2015 tentou

seguir o exemplo do primeiro ano do governo Lula, com ênfase numa política de

estabilização monetária, para em seguida retomar a política de crescimento econômico,

mas não teve êxito nisso por conta dos efeitos da crise internacional e em especial pela

retração do mercado de bens primários, principal fonte de divisas do país.

De qualquer modo, o desfecho do golpe político, com o fim da coalizão

partidária governante e da aliança de forças sociais relacionada, vai requerer uma nova

linha programática do PT e das forças de esquerda ao momento atual. Diante de um

governo de instabilidade hegemônica, oscilando entre, de um lado, políticas “ortodoxas”

neoliberais e, de outro, políticas “heterodoxas” desenvolvimentistas, o novo programa

exige que não apenas se evite a conquista do Estado pela burguesia associada, como

também se contraponha à unidade do grande capital privado um conjunto de medidas

estatizantes (defesa das empresas estatais), anti-imperialistas (salvaguarda dos recursos

naturais, controle das remessas de lucros, tarifas protecionistas do mercado interno) e

antimonopolistas (redirecionamento do crédito estatal, reforma do sistema tributário).

O caráter desse programa vem ser o das “reformas estruturais” (mudanças dentro

da ordem capitalista, mas que se encaminham para transformação estrutural contra a

ordem capitalista) ou das “reformas revolucionárias” (ampliação do bem-estar material

e cultural da maioria social que se liga às aspirações da igualdade econômica e

civilizacional no socialismo). Nesse sentido, vem reafirmado o sentido da política de

esquerda, tão bem expresso na fórmula de Ruy Fausto: “a política dos que defendem os

interesses dos não detentores de capital, em oposição aos interesses dos que dispõem

dele”.26

26 Fausto, R. Op. cit., p. 110.