Acerca Da Criminologia Da Classe Trabalhadora de Jock Young

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE DIREITO FERNANDO NOGUEIRA MARTINS JÚNIOR ACERCA DA “CRIMINOLOGIA DA CLASSE TRABALHADORA” DE JOCK YOUNG

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAISFACULDADE DE DIREITO

FERNANDO NOGUEIRA MARTINS JÚNIOR

ACERCA DA “CRIMINOLOGIA DA CLASSE TRABALHADORA” DE JOCK YOUNG

Belo Horizonte2011

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FERNANDO NOGUEIRA MARTINS JÚNIOR

ACERCA DA “CRIMINOLOGIA DA CLASSE TRABALHADORA” DE JOCK YOUNG

Monografia apresentada ao programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a aprovação na disciplina “Criminologia”, ministrada pelo Prof. Dr. Túlio de Lima Vianna.

Belo Horizonte2011

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Acerca da “Criminologia da Classe Trabalhadora”, de Jock Young

Fernando Nogueira Martins Júnior1

“Carcaça, tu tremes? Tu tremerias bem mais, se soubesse aonde te levo!”

Henri de La Tour D’Auvergne, Visconde de Turenne, Marechal de França, falando para si mesmo antes de entrar em combate.

À guisa de primeira introdução, ou: petição de intenções

A escritura do presente trabalho, ou o mote que a ensejou, surgiu em estudos

de Criminologia onde, na exposição de três marcos progressistas do saber penal,

quais sejam, o abolicionismo, o garantismo e o realismo de esquerda, imputou a

este último a pecha de ser o mais recuado dos três, o mais pleno de concessões e

retificações que o tornariam mais palatável ao gosto conservador do penalismo

corriqueiro.

Ainda: tomou-se como um referencial para este “realismo” esquerdista

crimnológico o artigo “Criminologia da Classe Trabalhadora”, do sociólogo e

professor britânico Jock Young, hoje lecionando na Universidade de Kent, na

Inglaterra.2

Alinhando-me a uma linha mais progressista do saber criminológico, me

propus a encontrar tal texto e fazer uma análise crítica das posições do prof. Young3,

vislumbrando desde já o enfrentamento de tal desafio com o arsenal teórico e

1 Advogado criminalista. Mestrando em Direito Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor da Faculdade de Direito da UFMG. Endereço eletrônico: [email protected] YOUNG, Jock. Criminologia da classe trabalhadora. In: TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. Criminologia crítica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980. p. 73-112.3 A quem já havia encontrado na belíssima obra “A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente”, publicada no Brasil pela editora Revan; a excelência desta obra me fazia desconfiado do epíteto de “recuado” dado ao Prof. Young, quando o vinculavam a um realismo de esquerda “apaziguado” em vários aspectos.

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político que o minimalismo penal e em especial o garantismo porventura me

proporcionavam.

Qual não foi minha surpresa ao encontrar no texto de Young uma das peças

criminológicas mais potentes jamais vistas, um opúsculo simplesmente seminal a

todo o estudo do campo da criminologia progressista contemporânea.

Vi-me então bem longe de nietzscheanamente “teorizar a marteladas” sobre

as construções do sociólogo inglês, e proponho o presente escrito como algo mais

voltado à publicização desta obra de Young do que voltado a qualquer outra coisa, a

qual contém argumentos e proposições com os quais me alinho em quase toda a

sua completude.

À guisa de segunda introdução, ou: para uma superação da má-consciência do

criminólogo contemporâneo, ou: o spleen de Belo Horizonte

O trabalho de um estusiasta da criminologia, ou de um criminólogo, nos dias

que correm em grande monta passa seja pela total subserviência ao status quo

acadêmico e político-criminal, seja pelo janotismo sui generis da rebeldia contra o

sistema penal – narcísico arroubo de inconformismo.

Se é muito confortável servir ao sistema penal corrente (e daí auferir

honrarias e dinheiros muitos), também é muito gratificante se portar como um

“resistente”, alguém que rechaça de todo o tal sistema penal, clamando aos quatro

cantos que esse alguém está indignado, enfurecido até, e não aceita as iniqüidades

de um sistema desigual, injusto.

Na grandessíssima maioria das vezes ambas as posições são

conservadoras. Se a primeira é clara em manter mesmo a fonte de suas delícias,

estas produzidas com a miséria e o sangue de seus concidadãos, a segunda se

presta à catarse para-cristã, “lavando a alma” do indignado aparente, que expurga

sua culpa dizendo a todos o quanto ele é bom, ele é belo, ele é correto, ele é limpo.

Uma bela-alma, que busca criar o semblante de sua ação político-criminal na

verdadeira ineficácia político-criminal de sua performance verbal e/ou literária e/ou

acadêmica.

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Compreender ambas as posições eivadas de conservadorismo é muito

importante ao criminólogo de talhe democrático. Mas também é a razão do spleen

criminológico, a febre melancólica/o surdo desespero de alguém que se vê fazendo

algo sumamente inócuo para mudar o absurdo sistema penal.

Nas palavras de Jock Young:

“O desvio daqueles sem poder social é tolerado. É mil vezes mais fácil se

tornar um acadêmico radical do que um operário militante: o primeiro curso

de ação leva à editora Penguin Books Ltd., e o segundo à lista negra.”4

Em tantos momentos a ação do penalista crítico, do criminólogo consternado

se resume a uma petição de princípios, a uma manifestação veemente de choque e

indignação quanto ao estado da arte policial, judiciário-penal e penitenciária do país.

E nada de mais consistente se apresenta. Enquanto milhares e milhares de

cidadãos caem ou são mortificados nas engrenagens do sistema penal brasileiro, o

criminólogo por vezes apenas fala e escreve, escreve e fala. E suas palavras pouco

ou nada contribuem para mudanças, transformações. Eis o aconchego da posição

acadêmica, que “é a falta de qualquer poder nos [dos] grupos intelectuais”5.

E então me vejo construindo um trabalho sobre criminologia em viés crítico, e

correndo o risco de tornar-me por minha vez uma contradição performativa

ambulante, onde o que digo nada mais é que uma expressão da “democracia de

idéias” que aqueles que sustentam um sistema penal brutal afirmam existir; a

mesma retórica incisivamente crítica serve para reforçar a legitimidade discursiva (e

por conseguinte, material) do establishment político-criminal.

É necessário mudar tal situação. A potência política dos penalistas

progressistas deve ser irretorquivelmente posta, e estes devem, para mais do que

serem glosadores de discursos penais, ou cronistas da catástrofe penal, serem

atores políticos contundentes, agentes concretos de mudanças – e devem assumir

as conseqüências disso.

É dizer (como usavam os Situacionistas): o que se deve querer é que as

idéias voltem a ser perigosas.

4 YOUNG, Jock. Criminologia da classe trabalhadora. In: TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. Criminologia crítica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980. p. 102.5 Ibidem.

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Á guisa de terceira introdução, ou: para um destemor criminológico

A epígrafe do trabalho de Young é um excerto da monumental obra de E. P.

Thompson, chamada “A formação da classe operária inglesa”. A despeito de uma

eventual inconveniência, é interessantíssima a transcrição em sua completude do

citado excerto:

“Aqueles que desejaram enfatizar a sóbria linhagem constitucional do

movimento da classe trabalhadora tem, algumas vezes, minimizado suas

características mais robustas e desordeiras. Tudo o que podemos fazer ´e

manter em mente o aviso. Nós precisamos de mais estudos das atitudes

sociais dos criminosos, dos soldados e dos marinheiros, da vida da taverna;

e nós olharíamos para a evidência, não com um olho moralizador (‘o pobre

do Cristo não foi sempre bonito’), mas com um olho para valores

Brechtianos – o fatalismo, a ironia ante os sermões do Establishment, a

tenacidade da auto-preservação. E nós devemos, também, lembrar o ‘sub-

mundo’ (sic) dos cantores-de-balada e do ambiente-de-feira... pois, desse

modo, o ‘desarticulado’ conservou certos valores – uma espontaneidade e

capacidade para encantamento e lealdades mútuas – a despeito das

pressões inibidoras dos magistrados, dos proprietários de fábricas e dos

metodistas.”6

A epígrafe vem dar o tom de toda a obra de Young ora em análise: é preciso

desmistificar o crime e o criminoso, tanto para além do ideário retrógrado e brutal

dos grupos conservadores, quanto para além do idílio do ato de resistência que seria

o crime e do anti-herói que seria o criminoso – idílio montado por humanistas e

libertários de toda a sorte.

É preciso afastar as ilusões e enfrentar o fenômeno criminal no seu todo. Em

seus aspectos e momentos de luta (ainda que inconsciente) contra a opressão de

grupo ou classe quanto em seu egoísmo e sanguinolência com e sem sentido.

Longe de ser um monstro ou um revolucionário, o criminoso é um ser humano,

idiossincrático e contraditório, multifacetado, e as motivações, situações e

repercussões de seu ato (ou da imputação de um ato a si) são inúmeras e

multidirecionais – e frustram sobremaneira o ofício do moralista que, para bem 6 YOUNG, Jock. Criminologia da classe trabalhadora. In: TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. Criminologia crítica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980. p. 73. A citação de E. P. Thompson é extraída das págs. 63-64 da edição revisada de 1968 de The making of the english working class, publicada pela editora Victor Gollancz Ltd.

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encaixar um homem e seu ato em seus intuitos de docência moral, tendem a ver a

questão penal por preto ou branco, certo ou errado.

O clamor de Young é exatamente para se buscar o “olhar para o abismo”,

para se ter os mais variados elementos para bem compreender e analisar a questão

criminal, e assim poder criticar consistentemente e, especialmente, propor ações

concretas para reformular, para verdadeiramente transformar o sistema penal

hodierno em algo que sirva a contento a uma democracia genuína.

Passemos aos argumentos do corpo do artigo de Young.

Os postulados da criminologia correcionalista

Young inicia seu opúsculo afirmando que a empreitada da chamada “nova

teoria do desvio” teria malogrado, uma vez que, em vez de repropor a questão penal

em profundidade, se restringiu a única e exclusivamente construir uma crítica

“espelhada” das posições correcionalistas da criminologia conservadora: ao invés de

criticar e construir novos e avançados politicamente referenciais para o tratamento

da questão penal, resumiu-se a bem-intencionadamente afastar todas as conclusões

retrógradas e, romântica e idealisticamente, propor uma visão de crime e criminoso

que seria estritamente a imagem invertida da visão conservadora.

Ou seja, acabou por não construir nada de mais sólido; apenas afastou por

princípio o marco conservador e colocou em seu lugar proposições que, de muito

idealistas e abstratas, eram mais frágeis que aquelas idéias conservadoras que

combatiam.

Antes de entrar em pormenores acerca das limitações da “nova teoria do

desvio”, o sociólogo britânico expõe quais são as principais idéias-força da dita

criminologia correcionalista positivista, de cepa conservadora. São elas:

1. A sociedade seria fruto de um consenso irrevogável e desde-já dado; a

reação social contra alguém que viola os valores de consenso seria “óbvia”,

por ser a mais natural conseqüência. Portanto a dita reação social nunca

poderia ser tomada como problemática, e não seria objeto de estudo da

criminologia;

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2. O indivíduo que viola os valores de consenso – dito “desviante individual”

seria um elemento patológico, oriundo de “sub-socialização dentro do

consenso”. Seu ato seria simplesmente associal, portanto despido de

qualquer sentido;

3. O indivíduo desviante é um elemento de natureza patológica, portanto seus

atos não são livres, e sim determinados por esta doença – uma vez que

nenhum indivíduo normal se prestaria a realizar um ato criminoso;

4. O ato criminoso deste indivíduo, ou o caráter desviante do próprio indivíduo

seria “determinado por fatores operante no passado longínquo do indivíduo –

quanto mais perto da primeira infância do desviante for “identificado” o fator

ou os fatores que o forçaram a cometer o crime, melhor;

5. A ação individual é reduzida a predisposições psicológicas, fisiológicas ou

genéticas. O desviante é analisado como uma mônada isolada, e o campo do

social não tem qualquer interferência nas escolhas delitivas de um dado

cidadão;

6. A compreensão criminológica é envolvida num discurso cientificista, que

busca – e consegue – a respeitabilidade que a ciência em geral tem e dá o

tom de uma suposta neutralidade da posição sobre o crime e o criminoso. E

mais: dá-se ao criminólogo o “título” de perito, o que reforça mais a idéia de

neutralidade técnico-científica do discurso;

7. O perito criminólogo não é visto como um ator político por excelência: ele é

tomado como um técnico, um “cientista”, neutro e desapaixonado, que faz o

que faz não por alinhamento político ou por posição de classe, mas sim por

ser a decorrência natural da aplicação da técnica neutra a um situação dada.

A “reabilitação social” não teria viés ideológico, mas seria sim decorrência de

uma sóbria e “apolítica” medida técnica.

8. O conflito social que é o crime é desmembrado: a vítima não tem qualquer

papel preponderante nesta dinâmica; ela foi apenas o elemento acidental que

compôs o quadro do ato desviante.

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O construto é razoavelmente sofisticado, e move e quebra a dinâmica do

crime em vários momentos. É dizer,

“A significação ideológica destas premissas em criminologia correcionalista

é que elas realizam uma fratura de quatro dimensões da realidade:

primeiro, o ator é separado de seu predicamento presente; segundo, o

predicamento é arrancado da sociedade total (incluindo a ‘reação social’ da

sociedade contemporânea); terceiro, o próprio ato desviante é separado de

qualquer consciência dele pelo ator desviante; e, finalmente, o desviante é

divorciado de sua vítima.”7

A chamada “nova teoria do desvio” reconhece a marcação ideológica desta

criminologia, e se presta a recolocar a questão penal em outros termos. Ainda que

falhe de algum tanto neste mister.

Veremos a seguir.

Os contra-postulados da “nova teoria do desvio”

Contra as afirmações correcionalistas, os novos criminólogos buscam juntar o

desviante com os seus haveres, o humano com seu tempo e espaço. O consenso

estruturante da sociedade é desconstruído, de onde surge uma pluralidade de

culturas e moralidades (ordem social como “pluralidade de guetos normativos”). E

dessa pluralidade, um conjunto de valores sociais é erigido como o realmente válido

– são os valores sustentados pelo grupo ou classe de maior ascendência político-

econômica.

E mais:

“A concepção patológica do desvio está subvertida: em uma sociedade

pluralística, todas as pessoas são potencialmente desviantes (...), todas as

pessoas experimentam ‘impulsos’ desviantes, sendo a intolerância do poder

que transforma tal ação normal em ação que é estigmatizada e rotulada (...).

O desvio não é inerente em uma ação: é uma qualidade conferida a ela.”8

7 YOUNG, Jock. Criminologia da classe trabalhadora. In: TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. Criminologia crítica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980. p. 77. 8 Ibidem. p. 78-79.

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A “dignidade” do ato criminoso é afirmada, ao se tomar o desvio como “uma

inadequada mas racional tentativa de resolver problemas sociais”9.

Já a reação social, negligenciada pelo correcionalismo, passa a ser vista

como o elemento que serviria para manter e incrementar os problemas sociais. A

ação do Estado seria eivada de irracionalidade, pois levaria à ampliação da

ocorrência do desvio ou à fixação do autor na posição estigmatizante de desviante; a

seleção dos cidadãos a entrarem no processo de criminalização (criminalização

secundária) geraria arbitrária e preconceituosamente bodes expiatórios com base

em estereótipos que identificariam criminosos com membros da classe mais baixas

(aquela que teria menor poder numa dada sociedade).

Esta dinâmica geraria as etiologias positivistas de criminalidade (as mazelas

sociais que a criminalização arbitrária dos mais vulneráveis cria), as quais seriam

auto-preenchidas por se transformarem nos critérios usados pelas agências do

sistema penal para criminalizarem cidadãos (a criminalização gera lares desfeitos;

lares desfeitos são tomados como causa de criminalidade; pessoas oriundas de

lares desfeitos são tomadas como criminosos). E as estatísticas criminais diriam

apenas a quantidade daqueles que foram rotulados como desviantes, aqueles

escolhidos para bodes-expiatórios.

Na nova teoria do desvio o passado do ator é secundário, por vezes

irrelevante. E tal ator seria, sumamente, um ator consciente, racional, livre de

determinantes físicas ou psíquicas, socializado numa dada subcultura dentre as

tantas numa sociedade pluralista. Não há nada que predisponha o homem ao desvio

– sua ação é finalística, não conformada exclusivamente em questões corporais ou

inconscientes. O que seria preponderante para se entender a ação desviante seria o

“universo social” do ator e de sua ação.

“O relativismo conceitual se torna a ordem-do-dia.”10

A crítica à nova teoria do desvio

9 Quando tal desvio não viesse a ser meramente uma “manifestação da vontade caprichosa do ator”.10 YOUNG, Jock. Criminologia da classe trabalhadora. In: TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. Criminologia crítica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980. p. 81.

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Desde já nota-se as fraquezas da nova visão criminológica. O recorte da

realidade agora feito tem embutido em si uma nova petição de princípios,

injustificada tanto quanto a feita pela criminologia positivista.

A nova abordagem romantiza o “universo social”, idealizando o humano e

afirmando, sem mais, que este humano seria achado em uma forma mais autêntica,

mais genuína, na marginalidade, nas bordas da sociedade. Esta sociedade, por sua

vez, tenderia a tratar tais “autênticos” (cuja diferença dos membros da sociedade

oficial seriam, num primeiro momento, inócua) com a segregação e a brutalização.

Os novos teóricos do desvio também se desvinculariam idealisticamente do

mundo concretos das relações de trabalho e exploração para firmarem seu olhar

criminológico sobre supostos sujeitos desviantes realizariam atos irregulares para

expressarem uma “ânsia pelo prazer”. O desviante quer o prazer, quer manifestar

hedonisticamente seu eu, e nisso comete o ato desviante. O foco são nos crimes

sem vítimas, e na desarrazoada intervenção do Estado no Âmbito dessas

liberdades. Portanto crimes de outro tipo, como o homicídio e todos os crimes

patrimoniais (“crimes utilitários”, segundo Young) não seriam objetos relevantes para

este enfoque analítico.

O que se depreenderia desta abordagem é um deleite “voyeurista” por parte

de tais criminólogos, que em sua idealização de uma criminalidade “heróica”, se

divertiriam com esta “fauna de fortes”, numa observação ideologicamente balizada e

de quase nula intervenção concreta no mundo da vida. Se a criminologia positivista

tinha como trunfo a intervenção na política e na prática do sistema penal (ainda que

seus postulados sejam irracionais e por demais violentos), a nova criminologia se

resumiria a criar um mundo ideal e um objeto de estudo também ideal, o qual

poderiam observar de uma dada posição de pesquisa, sem nunca poder transformar

suas considerações em políticas penais consistentes e contribuintes a um sistema

penal mais democrático.

Eis a neutralidade voyeurística do novo criminólogo. Nas palavras de Alvin

Gouldner, o que ele chama de “Teoria e Prática do Comedimento”:

“Como o guarda de zoo, ele deseja proteger sua coleção; ele não quer que

os espectadores atirem pedras nos animais atrás das grades. Mas

tampouco está ansioso para retirar as grades e soltar os animais. A atitude

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destes guardas de zoo do desvio é criar uma Reserva Índia confortável e

humana, um espaço social protegido, dentro do qual estes espécimes

coloridos possam ser exibidos sem serem molestados e mudados.”11

A posição de uma criminologia de esquerda “festiva” celebrava a rebeldia por

si, e o ímpeto de alguns bravos, que de alguma forma percebiam que havia algo de

errado no mundo, e se prestavam a fazer algo contra a “caretice”, a “modorra” do

“mundo da classe média utilitária”. A fé, sempre delegada, era a de que estes

desviados se tornariam uma verdadeira ameaça a uma ordem social tida por não

desejável. E seus atos, apenas por serem um desvio, de pronto já seriam celebrados

e endossados.

As belas-almas “libertárias”, “anarcóides”, se prostrariam com seus binóculos,

seus queijos e vinhos para poderem observar a subversão da ordem social vigente.

“[Na nova teoria do desvio] não existia concepção clara de prática – o poder

tinha realmente sido descoberto, mas não havia nenhum desejo de sujar as

mãos na luta real (e, certamente, nenhum programa ou política

detalhadamente explicada, para aqueles que assim o pudessem desejar).”12

Do que se depreende o eixo do artigo de Young aqui tratado: o radicalismo

pelo radicalismo é inócuo e atenta contra causas e pautas mais avançadas (são

idéias “abortivas” nos dizeres do autor), uma vez que usualmente (como ocorre com

essa “nova teoria do desvio”) tal radicalismo gera construtos deveras abstratos,

desvinculados de uma apreensão e de uma análise mais aprofundada da sociedade

como um todo, e afastados de uma compreensão da dimensão conflituosa

intergrupos ou interclasses ínsita ao fenômeno criminal.

Os entraves da nova teoria do desvio

A tomada de posição dos criminólogos da nova teoria do desvio, como vimos,

enquadrou o campo da questão penal em parâmetros tais que são manifestações de

11 O trecho acima colocado é citado no próprio corpo do artigo de Young, e é oriundo (salvo melhor juízo) do famoso opúsculo de Gouldner chamado “The sociologist as partisan: sociology and the welfare state”, datado de 1968.12 YOUNG, Jock. Criminologia da classe trabalhadora. In: TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. Criminologia crítica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980. p. 84.

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uma visão epistemológica muito peculiar e, diga-se, bem limitada. Alguns

contratempos oriundos dessa posição são notáveis. São os que seguem.

1. A categoria do consenso estruturante da sociedade, afastado de pronto pelos

novos criminólogos, traz à pesquisa criminológica algumas pontuações

importantes – que foram afastadas do escopo da nova criminologia: em

algumas matérias, e por diversos motivos, existe sim um substancioso

consenso (como na reação social contra crimes contra a vida e contra crimes

contra a propriedade realizados por membros das classes inferiores). Mais: tal

consenso fragmentário se dá inclusive contra os interesses dos próprios

cidadãos que sustentam o consenso (é a hegemonia sustentando como

sempre algumas – várias – posições irracionais). A nova criminologia não se

presta a tentar responder ou tratar tais temas;

2. As estatísticas, que num primeiro momento serviriam apenas para mostrar

algo da seletividade do sistema penal, tem outras funcionalidades no embate

político-penal que também são afastadas de todo das considerações da nova

teoria do desvio. Além do impacto social imediato dos números apresentados

pelos trabalhos estatísticos, deve-se atentar para o negativo das estatísticas,

para a ‘taxa não-oficial de crimes’: pelo que elas não mostram, mas que lhe é

umbilicalmente vinculado. São exemplo disso a violação das leis perpetradas

pelos próprios legisladores (ou por sua classe ou grupo). Lidar com as

estatísticas é ação fundamental para entrar no debate/embate político-

criminal imediato, utilizar dos instrumentais retóricos que mais atingem a

opinião pública e impingir um vetor contrário a eles, reinterpretando as altas e

baixas, as mudanças qualitativas e quantitativas dos números estatísticos por

um viés progressista. Mas tal diz respeito a uma ação concreta no campo

social, o que a nova teoria do desvio e seus adeptos de certa forma não se

propõem;

3. Todas as manifestações subculturais, entendidas em outro aspecto

(conservador, este) como “desorganização social” são tomadas como válidas,

louváveis, “autênticas”, ao assumirem metas e atitudes outras que não as

oficiais, as de maior dominância numa dada sociedade. Entretanto tal não é

absolutamente correto: existem manifestações que, se são sim “autênticas”,

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produzem uma danosidade comunitária e mesmo em termos humanísticos

muito graves. Seria papel do criminólogo consciencioso o de se atentar para

estas manifestações, mas para analisá-las de forma crítica, sem tomar

principiológicamente todo desvio como “saudável” ou “politicamente

avançado”;

4. A faticidade ideológica nas questões do desvio são muito mais complexas do

que a nova teoria do desvio quer mostrar. Assumir como sempre e sempre

racional o desviante é olvidar da obviedade de certos desvios que, longe de

atenderem a anseios do desviante ou de seu grupo ou classe, atacam frontal

e drasticamente seus próprios interesses. A construção e a apresentação do

que se chamou (e se chama) “hegemonia” mostra que muitos se comportam

com se arredios fossem à sua própria liberdade; ainda, os próprios membros

da classe ou grupo dominante numa sociedade agem por vezes (como na sua

sanha irascível em reprimir sem mais as classes inferiores) contra seus

próprios interesses de bem manter sua dominância social. Estas e outras

perguntas os novos teóricos do desvio não se fazem;

5. O desviante no marco criminológico novel é um ser racional em tantos

momentos, operante sempre consciente e teleologicamente. Todavia o

humano padece de contradições internas, desejos conflitantes,

representações alucinadas ou distorcidas da realidade pessoal ou social. O

que fazer com estas dificuldades? A nova criminologia não sabe;

6. A preponderância (quase absoluta) do universo social na concepção de crime

e criminoso da nova criminologia faz com que se esqueça que o desviante

tem um corpo biológico, e uma psique complexa. Os novos teóricos pouco ou

nada dizem sobre notórios referenciais físico-psíquicos para o entendimento

de certos atos desviantes (ainda que estes referenciais não venham a

explicar a totalidade do ato);

7. O relativismo amplíssimo da posição da nova teoria do desvio retira qualquer

parâmetro pelo qual poder-se-ia fazer algum julgamento sobre certas

condutas e sobre a reação social a elas. É preciso uma noção de

“normalidade” para se entender os lapsos e desvios de um indivíduo ou de

um grupo. Ainda que tal normalidade não seja a “essencial” do positivismo,

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mas sim a “potencial-histórica-contingente” de um marco progressista em

criminologia. Para se intervir na realidade, deve-se ter um parâmetro; para se

criticar uma “ilusão de consciência” manifestada num comportamento, é

necessário entender o que seria uma “consciência concreta, razoavelmente

precisa”. Ao não se firmar em nada, a nova teoria do desvio não pode

avançar para quase lugar nenhum.

Novas perguntas, irrespondidas (irrespondíveis) pela nova teoria do desvio

Jock Young se indaga sobre alguns pontos cegos da nova teoria, apoiando-se

na notoriedade, por parte das classes mais vulneráveis, da aversão ao crime, da

“pressão psíquica e corporal em direção à conformidade”, e da irracional adesão aos

valores dominantes, ditos “consensuais”, mas que não atendem a seus próprios

interesses (e sim aos interesses das classes ou grupos de dominância social).

Em outras palavras,

“O contínuo respeito pela propriedade, em sociedades grandemente

desiguais, sublinha duas questões interrelacionadas: na situação imediata,

por que não existe uma busca generalizada e racional por carreiras

criminosas, e por que, ao longo do tempo, não existe a óbvia busca do

socialismo? Por que é respeitada a propriedade e por que está a classe

trabalhadora envolvida em suportar idéias políticas, que, manifestamente,

falham em satisfazer ou são opostas a seus interesses?”13

A questão, candente e importante, é colocada em 1969 pela revista inglesa

Solidarity e citada por Young. A transcrição do excerto da revista é muito

interessante. Ei-la:

“Vamos considerar, por um momento – e não através de espetáculos

pintados de rosa – , a média britânica do votante de classe trabalhadora de

meia-idade, hoje em dia. Ele é, provavelmente, consciente da hierarquia,

xenófobo, racialmente preconceituoso, a favor da monarquia, a favor da

pena capital, a favor da lei de da ordem, anti-contestador, contra estudantes

cabeludos e contra os não-participantes.”

13 YOUNG, Jock. Criminologia da classe trabalhadora. In: TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. Criminologia crítica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980. p. 91.

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Estas perguntas ficam sem resposta na nova teoria do desvio. As respostas

usuais a isso – a traição dos líderes da esquerda contra a classe trabalhadora, a

influência maléfica dos meios de comunicação em massa e a formação autoritária

legada a tais cidadãos desde sua infância (teoria tributada precipuamente a Wilhelm

Reich, médico e psicoterapeuta alemão) nada mais são do que parcos argumentos,

que são simplesmente a forma espelhada, invertida das explicações de caráter

correcionalista.

Novamente Young:

“A teoria da liderança corrupta é a contraparte precisa da noção de ‘má

companhia’ e da relação corruptor-corrompido, na explicação criminológica

convencional;

(...)

“A teoria da imagem maléfica dos meios de comunicação de massa é

idealista, porquanto assume que as pessoas são de algum modo motivadas

por idéias, independente de suas circunstâncias materiais. (...) O paralelo

com a teoria da associação diferencial, na criminologia ortodoxa, como uma

questão de aprendizagem de normas e valores, é aparente.

(...)

“O caráter da armadura autoritária da teoria de Reich é uma réplica exata

das teorias de subsocialização, nos positivismos psicológico e

sociológico.”14

A posição da nova criminologia – ainda que com as três explicações acima

expostas – entende o homem num parâmetro idealista, olvidando de sua condição

material e de sua inserção social concreta. Este homem é um tanto “bovino”,

passivo, irreflexivo, uma vítima por excelência do mal que vem de si ou de fora.15

Tal não seria pertinente. Para Young, é preciso compreender a marcação

ideológica do controle social, como ela se utiliza de problemas reais jurídicos e

sociais para sustentar sua pauta, como ela se mostra como “natural” e inafastável –

e assim é tomada pela sociedade num grau alarmante de unanimidade, e como tudo

isso se consubstancia um aparato real de controle social de conduta que recai

14 YOUNG, Jock. Criminologia da classe trabalhadora. In: TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. Criminologia crítica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980. p. 93.15 Ibidem. p. 94

Page 21: Acerca Da Criminologia Da Classe Trabalhadora de Jock Young

particularmente sobre a classe trabalhadora e seus desvios que porventura

ameacem membros das classes dominantes ou mesmo o status quo da hierarquia

de dominância social.

Pontuações sobre os temas criminológicos 1: a classificação de Friedrich

Engels

Apresentada a problemática por várias vias, nosso sociólogo britânico

apresenta uma classificação das atitudes do desviante da classe trabalhadora no

marco do sistema capitalista que, ainda que simples, é de extrema utilidade para o

criminólogo – pela sua abrangência e objetividade. É a apresentada por Friedrich

Engels em “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”.

Engels diz que, grossamente, o ser humano envolto em privação econômica

pode se enquadrar em quatro situações.

1. Pode se tornar um ser tão mortificado e brutalizado a ponto de se tornar um

“semi-autômato”, um ser privado drasticamente de qualquer laivo de vontade;

2. Pode entrar no jogo do capital versus o trabalho, e aceitar os valores

capitalistas em sua plenitude, se tornando mais um no “salve-se quem puder”

do mercado;

3. Pode furtar ou roubar a propriedade de membros mais abastados da

sociedade (aqui ele se tornaria o desviante por excelência);

4. Pode lutar pelo socialismo (ou numa referência contemporânea, pode adquirir

consciência crítica).

Seria em meio a este imbróglio que os mais diversos desvios surgiriam:

teriam origem numa “passagem ao ato” de um ser brutalizado, ou nos estritos

termos do egoísmo competitivo capitalista, ou numa consciência (ainda que truncada

e individualista) de uma situação injusta de exploração.

Somado a isso – e agora apresentando talvez um dos grandes temas do

discurso do realismo de esquerda – Engels desvela um dos grandes aspectos de

Page 22: Acerca Da Criminologia Da Classe Trabalhadora de Jock Young

uma vitimologia realista e progressista (que gera necessariamente uma criminologia

destemida). Nos dizeres de Young:

“É um fato simples que a maioria do crime da classe trabalhadora é intra, e

não inter-classe, na sua escolha de alvo, área de atividade e distribuição. As

pessoas de classe trabalhadora sofrem com o crime, confrontam

diariamente a experiência do desespero material, suportam as ruínas da

desorganização e do individualismo competitivo.”16

Compreender que não só os alvo da criminalização seletiva, mas também da

efetiva ação criminosa são as próprias classes baixas é de suma importância para o

enfrentamento consciente da questão penal e da repressão social com corte de raça

e classe que vige seja no Brasil, seja em outras comunidades.

Pontuações sobre os temas criminológicos 2: a ideologia, esta pantera

A indignação moral, as aspirações por uma justiça real e palpável fazem parte

do universo simbólico da classe trabalhadora. O que então truncaria todo este

campo, fazendo com que ela seja algoz e vítima do crime? O que a faz contribuir

para sua própria subjugação?

A indignação moral, sempre deslocada para o bode expiatório do criminoso

pobre (mantendo protegido o criminoso rico, “de colarinho branco” ou “bem

nascido”), é um fenômeno típico da mistificação ideológica no tratamento da questão

penal: se o vulnerável é transformado utilitariamente no bode expiatório de toda uma

situação de exploração e aviltamento sofrida pela classes subaltenas, também por

vezes existe uma “correta correspondência” entre a indignação e seu alvo: em várias

oportunidades o desviante ataca mesmo sua própria classe ou grupo.

Daí a dinâmica da eficácia ideológica per se: a ideologia sempre age sobre

um substrato concreto, uma angústia ou demanda real e “justa” de uma certa classe

ou grupo subalterno; entretanto, a dinâmica ideológica consiste em tomar este

substrato real e válido e falseá-las, distorcê-las na direção dos interesses da classe

de dominância. O artigo ideológico nunca é mera ou oura ficção: é sempre um misto

16 YOUNG, Jock. Criminologia da classe trabalhadora. In: TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. Criminologia crítica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980. p. 96.

Page 23: Acerca Da Criminologia Da Classe Trabalhadora de Jock Young

de realidade experimentada com uma bem colocada reinterpretação “torta”,

“desfigurada”, “desviada” dessa realidade.

Por isso tem-se que a classe trabalhadora acaba por tomar o Estado e sua

operatividade não por algo histórico, mas por algo “natural”, um tanto “imutável”,

desvinculada e autônoma quanto ao homem e a história. Se o Estado e suas

mazelas são reais experimentados pelos cidadãos das classes subalternas, a

“compreensão” do Estado como além-do-homem é é um ponto ideológico, que

desde já obsta uma possibilidade de mudança do paradigma repressivo: a

reformulação do Estado enquanto tal.

Segundo Gyorgy Lukács, filósofo húngaro, citado por Young, a

“harmonização” da autoridade estatal com as outras leis de uma sociedade é tão

profunda que as pessoas acabam por tomar as leis do Estado e da sociedade como

forças naturais, como necessidade inafastável no seio do social, a elas se

submetendo voluntariamente (ainda que delas discordem).17

Disso decorre que a realização de um crime – que ataca o conjunto de

valores tomados ideologicamente como um “consenso monolítico” – seria algo como

um ataque e uma ameaça à vida como tal. Aí também falha o cidadão em

reconhecer a contingencialidade e a historicidade e a distorção ideológica relativa ao

fenômeno criminal.

Prosseguindo, tem-se que também o controle social não poderia ser tomado

como meramente repressivo e frontalmente violento: em vários aspectos ele poderia

ser tomado como um sistema muito mais sutil, como (nos dizeres de Young),

“uma distribuição judicial de recompensas ligadas a milhares de alfinetadas

de punição no local de trabalho, que é a sociedade.

(...)

“O lugar real de controle social está na situação de trabalho”18

A repressão do sistema penal seria apenas uma das facetas da repressão de

condutas desviantes: o fino e o forte de tal repressão seria mesmo no dia-a-dia,

17 A passagem de Lukács, segundo Young, é de uma edição datada de 1971 de “History and class consciousness” (História e consciência de classe). 18 YOUNG, Jock. Criminologia da classe trabalhadora. In: TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. Criminologia crítica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980. p. 101-102.

Page 24: Acerca Da Criminologia Da Classe Trabalhadora de Jock Young

cotidianamente, na subordinação e na exploração das classes subalternas no âmbito

do trabalho - ou na falta dele, o que transforma o cidadão no alvo privilegiado do

sistema de controle social, que busca criar um grupo simbólico de “desorganizados”,

“desajustados”, que se tornam seres “psiquicamente e materialmente” degradados

(dando assim o tom, a referência para os trabalhos do aparato de repressão social).

Em suma, e para além do correcionalismo criminológico,

“o sistema nervoso autônomo e a personalidade conformista, concordante,

não são, simplesmente, produtos de condicionamento infantil, mas que são

mantidos in stasio pela continuação do sistema de ‘oportunidade’, controle

social e dominação ideológica.

“(...) isto é um produto de tempo e lugar histórico, e não uma parte da

‘natureza humana’: de ‘essência do homem (...)”19

Exigências para uma criminologia consciente

Jock Young passa então a propor o programa da criminologia progressista e

vinculada com o ideário democrático concreto.

Sucintamente, seria ele:

1. No esteio do “partisanismo sociológico” ventilado por Alvin W.

Gouldner20, deve-se superar a “desconexão” entre uma aproximação

da questão criminal e a teoria e prática do Estado enquanto operador

do sistema de repressão social, realizada pelo positivismo

criminológico. Os paradigmas de uma criminologia de novo e válido

porte devem ser orientados para problemas e interesses de classe ou

grupo, ao invés de se firmarem em hipóteses ou casuística de

problemas “públicos e nacionais” afastados da dinâmica da luta social

real. O rechaço da leniente “observação participante” é premente – e o

criminólogo, dentre tantas perguntas que deve a si e à realidade fazer,

deve indagar: como uma dada situação criminológica problemática

19 YOUNG, Jock. Criminologia da classe trabalhadora. In: TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. Criminologia crítica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980. p. 103-104.20 No célebre artigo “The sociologist as partisan: sociology and the welfare state”, publicado em 1968 na revista The American Sociologist, e aqui já citado.

Page 25: Acerca Da Criminologia Da Classe Trabalhadora de Jock Young

pode mudar, e como a pesquisa-ação criminológica pode interferir para

melhor nesta situação;

2. As estatísticas criminais são sim o retrato da aproximação do controle

social das classes de dominância quanto à questão criminal. Não

obstante, os dados desta natureza são sim relevantes ao fazer e agir

criminológicos (em especial na disputa concreta e imediata para a

formação do senso comum criminológico e para o surgimento de novas

e avançadas políticas sócio-criminais);

3. A elegia à “liberdade a todo custo, e de toda forma”, manifestada em

vários comportamentos desviantes, deve ser severamente criticada.

Ela nada mais é do que uma transposição da ética do laissez-faire

mercadológico, do individualismo monadológico que nada tem a

contribuir (muito pelo contrário) à contestação da dominância social de

um dado grupo ou classe. Como diz Young:

“O desenvolvimento de responsabilidade social no criminólogo exige que ele

discrimine, que não faça, meramente, colecionar exotismos, que separe o

desespero da solução, e que relacione a solução desviante aos seus efeitos

sobre outros (...)”21

4. A pauta da descriminalização radical é ingênua em grande monta. As

concessões feitas pelo poder instituído nesta direção normalmente tem

o viés de otimizar o controle social repressivo, de retirar a pressão

sobre certos setores do sistema penal que a superlotação carcerária e

o custo para o erário do aprisionamento impõe. Realisticamente é difícil

num curto ou médio prazo se empreender uma drástica

descriminalização qualitativamente interessante aos setores mais

vulneráveis da sociedade. Deve-se, outrossim, pugnar pelo controle

social, mas pelo exercício de tal controle pelas classes mais

vulneráveis, argüindo taticamente o discurso da maior eficiência de tal

controle se feito pelo grosso da sociedade, pela massa atingida pelo

fenômeno criminal, e não por agentes repressivos externos, como a

polícia classista/racista ou instâncias burocrático-judiciais que sirvam a

21 YOUNG, Jock. Criminologia da classe trabalhadora. In: TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. Criminologia crítica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980. p. 109.

Page 26: Acerca Da Criminologia Da Classe Trabalhadora de Jock Young

interesses dominantes e inconfessáveis. E assim agindo

estrategicamente em prol do desmantelamento do sistema de controle

social repressivo, vertical e violento que hoje vige. Na sugestão de

Lukács, trazida por Young,

“A tarefa não é romantizar a ilegalidade: é (...) julgar a ação desviante em

termos de sua relação com a luta, ignorando as classificações de legalidade

e ilegalidade criadas pelos poderosos em sua luta contra os impotentes.”22

Breve conclusão

A obra em tela de Jock Young é fulcral, primordial nos estudos criminológicos

contemporâneos. Uma posição realista, longe de ser condescendente ou cínica, é a

mais apta a conseguir avanços concretos na disputa por um sistema de controle

social democrático e amplamente humanista.

O foco e a meta é mesmo a construção de uma nova cultura jurídico-político-

penal. Ou seja,

“uma cultura que assume os componentes progressistas do pluralismo

enquanto rejeita aquelas atividades que são, diretamente, o produto das

brutalizações da sociedade existente (embora diversa, expressiva ou

idiossincrática sua manifestação).”23

Uma cultura que tome o melhor das proposições de alguma forma

progressistas (como a exaustivamente citada “nova teoria do desvio”), desbastando-

lhes os ranços conformistas e conservadores, e agregando novos e avançados

elementos idôneos a contribuírem para um sistema penal e para uma sociedade

concretamente democrática.

Referências bibliográficas

22 YOUNG, Jock. Criminologia da classe trabalhadora. In: TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. Criminologia crítica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980. p. 110.23 Ibidem. p. 111.

Page 27: Acerca Da Criminologia Da Classe Trabalhadora de Jock Young

ANITUA, Gabriel Ignacio; Instituto Carioca de Criminologia. Histórias dos

pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de

Criminologia, c2007.

TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. Criminologia crítica. Rio de Janeiro:

Edições Graal, 1980.

ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro. Rio de

Janeiro: Revan, 2003