CENTRO UNIVERSITÁRIO AUTÔNOMO DO BRASIL … · ICMS - Imposto Sobre ... PROES - Programa de...

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CENTRO UNIVERSITÁRIO AUTÔNOMO DO BRASIL PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA CARLOS ANTONIO LESSKIU PACTO FEDERATIVO E TRIBUTAÇÃO: A GUERRA FISCAL NO ISS E O DIREITO FUNDAMENTAL À SEGURANÇA JURÍDICA CURITIBA 2015

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  • CENTRO UNIVERSITRIO AUTNOMO DO BRASILPROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA

    CARLOS ANTONIO LESSKIU

    PACTO FEDERATIVO E TRIBUTAO: A GUERRA FISCAL NO ISS E ODIREITO FUNDAMENTAL SEGURANA JURDICA

    CURITIBA2015

  • CARLOS ANTONIO LESSKIU

    PACTO FEDERATIVO E TRIBUTAO: A GUERRA FISCAL NO ISS E ODIREITO FUNDAMENTAL SEGURANA JURDICA

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno de ttulo de Mestre, Programa de Mestrado emDireitos Fundamentais e Democracia, CentroUniversitrio Autnomo do Brasil.

    Orientador: Prof. Dr. Octavio Fischer

    CURITIBA2015

  • TERMO DE APROVAO

    CARLOS ANTONIO LESSKIU

    PACTO FEDERATIVO E TRIBUTAO: A GUERRA FISCAL NO ISS E ODIREITO FUNDAMENTAL SEGURANA JURDICA

    Dissertao aprovada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em

    Direito, Programa de Mestrado, Centro Universitrio Autnomo do Brasil UniBrasil,

    pela seguinte banca examinadora:

    Orientador:

    Professor Dr. Octvio Campos Fischer

    Programa de Mestrado, Centro Universitrio Autnomo do

    Brasil UniBrasil

    Membros:

    Professora Dra. Betina Treiger Grupenmacher

    Programa de Mestrado em Direito da Universidade

    Federal do Paran.

    Professor Dr. Eduardo Biacchi Gomes

    Programa de Mestrado, Centro Universitrio Autnomo do

    Brasil UniBrasil

    Professor Dr. Jorge de Oliveira Vargas

    Programa de Mestrado, Centro Universitrio Autnomo do

    Brasil UniBrasil

  • Dedico este trabalho minha esposa Gilmara e

    aos meus filhos Marena, Gustavo e Daniel,

    fonte de inspirao para aceitar novos desafios.

  • AGRADECIMENTOS

    O desafio de iniciar um mestrado, em meio a mudanas profissionais que

    nos levaram a assumir novas responsabilidades, no teria sido possvel se no

    fossem algumas pessoas muito especiais.

    Minha esposa Gilmara e meus filhos Marena, Gustavo e Daniel, que durante

    o perodo do mestrado muitas vezes foram privados da minha companhia e alm

    disso deixaram seu tempo de lazer em prol de meu estudo.

    Aos demais familiares que puderam compreender minha ausncia em

    muitos momentos em que deixei de participar em razo de elaborao de artigos,

    leituras e principalmente o perodo de dissertao.

    Aos colegas de trabalho da Procuradoria Judicial do Municpio, que

    souberam compreender a importncia dessa empreitada, com respeito e

    considerao.

    Aos colegas de mestrado, professores e funcionrios integrantes do

    Programa de Mestrado da UniBrasil, que foram muito importantes na minha jornada.

    Aos amigos de caminhada crist, Eduardo e Gilberto, que souberam to bem

    me ouvir e muitas vezes interceder ao Deus Pai pela minha vida e pelos meus

    objetivos acadmicos.

    Ao colega de mestrado e Procuradoria, Jos Carlos do Nascimento, com

    que compartilhei, nesse tempo, minhas dificuldades e limitaes para a empreitada

    acadmica, e sempre me incentivou e apoiou. H amigo mais chegado do que um

    irmo. (Provrbios 18:24).

    Ao meu orientador, Octavio Fischer, colocado por Deus em meu caminho

    para essa empreitada, pela humildade e simplicidade, sempre me oferecendo uma

    palavra de nimo.

    E principalmente a Jesus Cristo, autor e consumador da minha f. (Hebreus

    12:2) razo do meu propsito em todas as coisas.

  • Combati o bom combate, acabei acarreira, guardei a f.

    2 Timteo 4:7

  • LISTA DE SIGLAS

    ADI - Ao Direta de Inconstitucionalidade

    CEE - Comunidade Econmica Europeia

    CONFAZ - Conselho Nacional de Poltica Fazendria

    CPC - Cdigo de Processo Civil

    IBET - Instituto Brasileiro de Estudos Tributrios

    IR - Imposto Sobre a Renda

    IPI - Imposto Sobre Produtos Industrializados

    ICM - Imposto Sobre Circulao de Mercadorias

    ICMS - Imposto Sobre Circulao de Mercadorias e Servios

    ISS - Imposto Sobre Servios

    IVA - Imposto sobre Valor Agregado

    NUPECONST - Ncleo de Pesquisas em Direito Constitucional

    MERCOSUL - Mercado Comum do Sul

    NAFTA - Tratado Norte-americano de Livre Comrcio

    PEC - Proposta de Emenda Constitucional

    PROES - Programa de Incentivo Reduo do Setor Pblico Estadual

    na Atividade Bancria

    REsp - Recurso Especial

    STF - Supremo Tribunal Federal

    STJ - Superior Tribunal de Justia

  • 8

    SUMRIO

    INTRODUO ..........................................................................................................111 PACTO FEDERATIVO E O MUNICPIO................................................................13

    1.1 NASCIMENTO DO ESTADO FEDERAL .........................................................13

    1.2FEDERALISMO NO BRASIL ............................................................................23

    1.3 AUTONOMIA MUNICIPAL...............................................................................36

    2 TRIBUTAO DOS SERVIOS NO BRASIL .......................................................512.1 NORMA JURDICA TRIBUTRIA....................................................................51

    2.2 ISS...................................................................................................................55

    2.3 CRITRIOS DA REGRA MATRIZ DE INCIDNCIA DO ISS...........................59

    2.3.1 Critrio material .........................................................................................59

    2.3.2 Critrio temporal........................................................................................62

    2.3.3 Critrio espacial.........................................................................................63

    2.3.4 Critrio pessoal .........................................................................................72

    2.3.5 Critrio quantitativo ...................................................................................75

    3 A GUERRA FISCAL NO ISS E O DIREITO FUNDAMENTAL SEGURANAJURDICA .................................................................................................................78

    3.1 GUERRA FISCAL NO ISS: ORIGENS E MODALIDADES ..............................78

    3.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS E SEGURANA JURDICA ..............................85

    3.2.1 Direitos fundamentais................................................................................85

    3.2.2 Segurana jurdica ....................................................................................94

    3.2.3 Segurana jurdica, ISS e o estabelecimento prestador..........................108

    3.3 A GUERRA FISCAL DO ISS E A VIOLAO AO DIREITO FUNDAMENTAL

    SEGURANA JURDICA.....................................................................................134

    CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................144REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................................149

  • 9

    RESUMO

    A segurana sempre foi almejada pelo ser humano. Nessa busca implacvel porsegurana, atravs de lutas e revolues, chega-se ao Estado Democrtico deDireito. Esse Estado exige a existncia de segurana jurdica, o que demandaproteo da confiana e a irretroatividade no s de leis mas de medidas queatentem contra a dignidade da pessoa humana. Na medida em que os entesfederativos se utilizam de guerra fiscal, visando a atrair recursos, essa seguranajurdica tem sido violada. Decises judiciais conflitantes tm provocado grandeinsegurana nos contribuintes, bem como instabilidade no pacto federativo brasileiro.H interferncia cada vez maior da Unio na autonomia dos Municpios, com adesonerao de tributos partilhados atravs de fundo de participao. Aps aConstituio de 1988 a descentralizao de polticas sociais tem levado esses entesfederativos a buscar recursos com a atrao de contribuintes aos seus respectivosterritrios, o que redunda em guerra fiscal. Estas so as questes a seremenfrentadas neste trabalho.

    Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Constitucionalismo. Segurana jurdica.Guerra fiscal. Federalismo. Federalismo cooperativo. Pacto federativo. Municpios.Imposto sobre servios. ISS.

  • 10

    ABSTRACT

    Security has always been aimed by the human being. On this implacable search forsecurity, through fights and revolutions, the Democratic State of Law can be reached.This State demands the existence of juridical security, which requires protection oftrust and non-retroactivity not only of laws, but measures that violate the dignity ofthe human person. In so far as the Federative Agents make use of fiscal war toattract resources, this juridical security has been violated. Conflicting judgementshave been causing great insecurity over the taxpayers, as well as instability over thebrazilian federative pact. There is a growing interference of the Union in theautonomy of municipalities, with the exemption of taxes through shared equity fund.After 1988's Constitution, the decentralization of social policies have been leadingthese federative agents in the search of resources attracting the taxpayers to theirrespective territories, what redounds in fiscal war. These are the issues to be faced inthis work.

    Keywords: Fundamental rights. Constitutionalism. Juridical security. Fiscal war.Federalism.Cooperative federalism. Federative pact. Municipalities. Tax overservices. ISS.

  • 11

    INTRODUO

    A busca pela segurana tem sido a aspirao do homem desde os

    primrdios. Estabilidade e segurana so necessrias a todos os homens. O Estado

    Democrtico de Direito foi uma conquista fruto de lutas, inclusive duas guerras

    mundiais. A segurana jurdica sobreprincpio inafastvel deste Estado

    Democrtico de Direito. Portanto direito fundamental garantidor de todos os demais

    direitos e, por conseguinte, da ordem jurdica.

    Na disputa travada pelos Municpios a respeito do imposto sobre servios,

    eles promovem guerra fiscal, trazendo estado de insegurana aos contribuintes,

    violando assim o direito fundamental segurana jurdica.

    A pesquisa feita neste trabalho consistiu em investigar a guerra fiscal entre

    os Municpios e sua relao com a forma federativa do Estado brasileiro aps a

    Constituio de 1988.

    A guerra fiscal entre os entes federativos provocaria violao ao direito

    fundamental segurana jurdica? Haveria segurana jurdica dos entes federativos

    sendo violada? Qual a relao entre a guerra fiscal e a forma federativa assumida

    pela Constituio de 1988, aps sucessivas Emendas Constitucionais?

    Este trabalho fruto de pesquisa bibliogrfica, mediante anlise de obras

    clssicas de direito constitucional, com enfoque nos direitos fundamentais,

    principalmente no direito fundamental segurana jurdica. Tambm foram utilizados

    clssicos do direito tributrio, pois o tema envolve a tributao, os direitos

    fundamentais e o federalismo. Quanto ao federalismo, da mesma forma buscou-se a

    pesquisa bibliogrfica, dados estatsticos e a contribuio dada pela participao no

    NUPECONST, vinculado ao programa de mestrado em direito.

    No primeiro captulo demonstra-se o nascimento do Estado Federal, e como

    isso ocorreu no Brasil. Trabalha-se com o federalismo na Constituio de 1988 e a

    tentativa de um federalismo cooperativo. Na sequncia procura-se demonstrar que o

    Municpio, como ente federativo colocado nessa condio pela Constituio Federal

    de 1988, tem tido sua autonomia ameaada pela centralizao da Unio nos

    recursos financeiros e pela descentralizao na realizao de polticas sociais.

    No captulo seguinte, de nmero dois, busca-se descortinar a norma jurdica

    tributria e o imposto sobre servios, nos seus critrios. Necessria tal explanao

  • 12

    pois se pode perceber em quais desses critrios se desenvolve a disputa entre os

    Municpios provocando a guerra fiscal.

    No terceiro e ltimo captulo ser tratada a guerra fiscal no ISS e suas

    modalidades. Na sequncia do captulo discorre-se sobre os direitos fundamentais e

    adiante a segurana jurdica como direito fundamental. Busca-se ainda demonstrar a

    violao segurana jurdica pela anlise de julgados do Superior Tribunal de

    Justia envolvendo o Decreto-lei 406/68 e a Lei Complementar 116/2003. Ao final do

    captulo trata-se da guerra fiscal e da violao ao direito fundamental segurana

    jurdica.

    Nas consideraes finais feita uma sntese daquilo que foi constatado no

    trabalho, com algumas impresses sobre como solucionar o problema da segurana

    jurdica no modelo federativo brasileiro.

  • 13

    1 PACTO FEDERATIVO E O MUNICPIO

    O propsito do estudo do pacto federativo entender a federao brasileira

    e o papel dos municpios. Verificar a autonomia e como ela se realiza. Investigar se

    de algum modo a interferncia na autonomia municipal tem trazido contribuies

    para a denominada guerra fiscal dos municpios.

    A guerra fiscal e o direito fundamental segurana jurdica nascem em

    momentos distintos.

    A guerra fiscal se d pela disputa entre entes federativos, o que se verifica

    num determinado modelo de Estado.

    J a segurana sempre foi o desejo do homem, em todos os aspectos.

    Passou a existir uma preocupao com essa segurana e tambm uma forma de

    assegur-la a partir de um Estado de Direito Constitucional.

    Essa a razo para que se verifique como se deu a formao desse Estado

    Federal, at que se chegue ao federalismo e posteriormente como isso ocorreu no

    Brasil.

    Dentro desse federalismo brasileiro surgiu o Municpio, que com o advento

    da Constituio de 1988 assumiu a condio de ente federativo, dotado de

    autonomia para organizar seu prprio governo, produzir a prpria legislao e cuidar

    da administrao, nos termos e limites da Constituio Federal.

    1.1 NASCIMENTO DO ESTADO FEDERAL

    O Estado europeu moderno vem desde o sculo XIV at a atualidade. Nesse

    perodo assumiu diferentes formas dentro de diferentes experincias constitucionais,

    como a questo do senhorio da terra, a poca absolutista e a revoluo francesa,

    sendo esta ltima causadora de grande ruptura com a origem de novas formas de

    estado. Todo esse processo teve um fio condutor que revelou o carter desse

    Estado.1

    1FIORAVANTI, Maurizio. Estado y constitucion. In: _____. (Org.). El Estado moderno en Europa.Instituciones y derecho. Madri: Trotta, 2004. p. 13-43.

  • 14

    Ao longo da histria europeia, percebe-se a organizao dos governos dos

    diversos territrios, com a formao de exrcitos para proteo deles, a exigncia de

    tributos e o surgimento de regras costumeiras, que originam os contratos de

    dominao.

    Num momento anterior, de um direito pr-moderno, de formao no

    legislativa, mas jurisprudencial e doutrinria, no existia um sistema unitrio e

    formalizado de fontes positivas. Havia pluralidade de fontes e ordenamentos

    concorrentes, como o imprio, a igreja, os prncipes, os municpios e as

    corporaes. Nesses ningum detinha o monoplio. O direito era assegurado com

    base na tradio romana de jurisprudncia e doutrina validadas. Veritas, non

    auctoritas facit legem (a autoridade, e no a verdade, que faz a lei).2

    Esse Estado inicial era um Estado Absoluto, que foi a primeira forma de

    Estado moderno a estatalizar as funes de imprio, ou seja, a jurisdio, a

    tributao, organizao do exrcito, o que criou uma burocracia profissional no

    patrimonial.3

    Como Estado absoluto entendem-se algumas monarquias europeias,

    principalmente do sculo XVII, em que o poder monrquico reduzia o poder dos

    conselhos que auxiliavam os soberanos e de certos sujeitos institucionais que

    podiam exercer certo controle sobre a ao da monarquia. O Estado absoluto pode

    ser representado pela monarquia de Lus XIV, distinta da monarquia constitucional

    inglesa, na qual o parlamento se opunha monarquia na repartio do poder.4

    Esse Estado Absoluto da Frana era cercado de injustias e privilgios. A

    Revoluo Francesa veio combater a ordem estamental do direito em que

    prevaleciam os privilgios da realeza, do clero e da nobreza, surgindo um Estado de

    Direito. Foi um Estado forte, substituindo o domnio do monarca pelo do legislador. A

    Declarao de direitos de 26 de agosto de 1789 nos oferece o fio condutor antes

    anunciado. Dentro do novo modelo instaurado se ligavam a soberania e os direitos

    individuais segundo critrios e princpios da revoluo: a) princpio da presuno de

    liberdade; b) critrio da reserva de lei e c) princpio da constituio como garantia do

    direito e separao dos poderes.5

    2FERRAJOLI, Luigi. Passado y futuro Del Estado de derecho. In: CARBONELL, Miguel.Neoconstitucionalismo. Madri: Trotta, 2003. p. 13-30.3FIORAVANTI, 2004, p. 13-43.4FIORAVANTI, loc. cit.5FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fundamentales. Madri: Editorial Trotta, 1998. p. 75-95.

  • 15

    Com a revoluo francesa surgiu uma nova forma de Estado moderno. Com

    ela veio a Declarao dos direitos do homem e do cidado. Da Revoluo veio o

    princpio de que toda soberania residia na nao e nenhum indivduo poderia

    exercitar uma autoridade que no viesse dela.

    A lei assumiu papel preponderante, sendo ela a expresso da vontade geral

    e da soberania da nao. A execuo da lei por um novo sujeito, a administrao

    pblica, contribuiu para o fim do Estado jurisdicional. No Estado jurisdicional no

    havia distino entre funo administrativa e jurisdicional.

    No Estado legislativo e administrativo, gerado pela Revoluo Francesa,

    havia um governo, uma legislao e uma funo administrativa vlida para todo o

    territrio, consagrando a vontade geral contida na lei. Isso, no entanto, no era

    suficiente para definir um novo Estado.

    Para Fioravante6 a fora desse novo Estado estava na substituio dos

    antigos privilgios e direito dos estamentos, por direitos individuais baseados no

    princpio da igualdade. A soberania desse Estado consistia numa lei positiva

    garantidora de direitos dos indivduos em condies de igualdade.

    Assim, a lei garantidora foi o grande fio condutor que se estendeu por todo

    sculo XIX, fazendo a ligao entre soberania, direitos individuais e princpio da

    igualdade, sustentados num Estado. Um Estado de direito e ao mesmo tempo direito

    dos indivduos ao invs de mltiplos poderes e privilgios da antiga ordem. O direito

    foi ento o grande vis e o Estado de direito era a nova forma poltica que se

    buscava em substituio ao Estado jurisdicional, o que ocorreu por meio da

    revoluo.7

    Nesse Estado de direito moderno, na forma de Estado legislativo de direito,

    Ferrajoli8 afirma que o princpio da legalidade era tido como critrio exclusivo de

    identificao com o direito vlido, o que antes no existia, com independncia da

    valorao de justo ou injusto. Uma norma jurdica era vlida no por ser justa, mas

    por ser colocada no sistema por uma autoridade competente.

    A jurisdio deixou de ser produo jurisprudencial do Direito e somente a

    lei e o princpio da legalidade eram fontes legtimas do direito.

    6FIORAVANTI, 2004, p. 13-43.7FERRAJOLI, 2003, p. 13-30.8FERRAJOLI, loc. cit.

  • 16

    A lei era preestabelecida convencionalmente por uma autoridade. Isso deu

    fundamento a um sistema de garantias, desde a certeza do direito, a igualdade ante

    a lei, liberdade ante a arbitrariedade, independncia do juiz, prova para acusao e

    direitos de defesa. A afirmao do princpio da legalidade era de um extraordinrio

    alcance, com o monoplio estatal da produo jurdica. A mudana da legitimao

    no estava na autoridade dos doutores, mas na autoridade da fonte de produo;

    no na verdade, mas na legalidade; no na substncia, mas na forma dos atos

    administrativos. Auctoritas non veritas facit legem. Princpio do direito positivo, de

    Hobbes.9

    J o constitucionalismo moderno, como tcnica especfica de limitao do

    poder com finalidade de garantia, nasceu com a Constituio Americana de 1787 e

    no com as Declaraes de direito da Revoluo Francesa10.

    A Revoluo Francesa no fundou seus direitos e suas liberdades na

    histria. Ao contrrio, foi contra a histria, isto , o antigo regime. Ela combateu a

    ordem estamental do direito na qual prevaleciam os privilgios das classes

    dominantes (realeza, clero, nobreza). Era um sistema de injustias e desordens.

    Rompeu-se uma ordem corporativa de mandato da realeza, mas procurou se manter

    um estado forte, em que havia domnio do legislador com capacidade para representar

    a unidade do povo e da nao. Impossvel para essa Revoluo basear-se na doutrina

    historicista dos direitos e liberdades.11

    J a Revoluo Americana no tinha necessidade de derrubar nenhum

    regime. O que ela precisava era romper com a Inglaterra e proclamar sua

    independncia. Os americanos no necessitavam afirmar o domnio de uma lei geral

    e abstrata como uma nova fonte do direito, como os franceses. No havia o

    sentimento de construir um direito privado nos moldes europeus12.

    Equivocadamente toma-se a Revoluo Francesa como o grande marco da

    democracia e das liberdades, j que isso se deu com os ideais americanos.

    Para os americanos, fortemente influenciados por Locke13, tanto na

    declarao de independncia como nas constituies dos Estados, a proclamao

    9FERRAJOLI, 2003, p. 13-30.10FIORAVANTI, 1998, p. 75-9511Ibid., p. 83.12Ibid., p. 75-9513FIORAVANTI, loc. cit.

  • 17

    dos direitos naturais individuais se mesclam tradio britnica de liberdade e

    propriedade.

    Os franceses necessitavam de um Estado forte, com legislador forte,

    soberano, que refutasse o regime de privilgios de at ento. Nas palavras de

    Maurizio Fioravanti14, [...] la revolucin francesa confia ls derechos y libertades a la

    obra de um legislador virtuoso, que es tal porque es altamente representativo del

    pueblo o nacin, mas all de ls facciones o de ls interesses particulares.

    Os americanos tiveram como mrito estabelecer um constitucionalismo

    embasado numa constituio soberana, rgida, fonte mxima do direito, sempre a

    ser defendida do arbtrio do legislador, no intuito de tutelar os direitos e liberdades

    individuais. Norteava a Constituio americana o princpio checks and balances

    (freios e contrapesos) no qual no havia poder supremo sem que a constituio

    autorizasse com equilbrio entre eles. A constituio previa atribuies reservadas

    ao executivo, legislativo e judicirio. O bicameralismo americano apontava para o

    equilbrio, em que a Cmara representava a unidade do povo e o Senado

    representava o interesse dos Estados. Permaneceu na Constituio americana de

    1787 a velha ideologia britnica de governo equilibrado e moderado, embora

    superado o mixed government de monarquia, aristocracia e democracia, em razo

    da tcnica de freios e contrapesos, visando a eliminar um poder supremo, em

    detrimento de governo limitado.15

    Com o advento da Constituio Americana nasceu o Estado Federal, j que

    as treze colnias britnicas na Amrica haviam declarado a independncia, em

    declarao conjunta de 1776, constituindo-se cada uma num novo Estado. Em 1 de

    maro de 1781 foram assinados os artigos de confederao, recebendo o

    Congresso a denominao de Estados Unidos Reunidos em Congresso, e da a

    Confederao que recebeu o nome de Estados Unidos da Amrica. O tratado da

    confederao estabelecia que cada Estado reteria sua soberania, liberdade e

    independncia. Poderiam assim os Estados desligarem-se da confederao por

    mera denncia ao tratado.16

    14FIORAVANTI, 1998, p. 83.15Ibid., p. 92.16DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 20. ed. atual. So Paulo:Saraiva, 1998. p. 254-256.

  • 18

    Federao, do latim foedus, foederis, significa aliana, pacto, unio. Pois da

    unio, da aliana, do pacto entre Estados que ela nasce.17

    Para Alexandre Mariotti a federao surgiu como um remdio para os

    inconvenientes do arranjo poltico estabelecido aps a Declarao de

    Independncia, por documento denominado Artigos da Confederao.18

    Em curto espao de tempo verificou-se a fragilidade da confederao e os

    conflitos de interesses j ameaavam a sobrevida da unio desses Estados.19

    Alexandre Mariotti afirma que j se cogitava at mesmo em movimento

    monrquico, tamanha dificuldade que passava a confederao. Foi na Conveno

    de Filadlfia que os treze Estados soberanos fundaram uma federao, um nico

    Estado soberano, os Estados Unidos da Amrica. Foram estabelecidas

    competncias da Unio, reservando-se as demais aos estados-membros, que

    passaram a participar no governo central pelos senadores. Para o direito

    internacional no havia mais treze estados soberanos, apenas os Estados Unidos da

    Amrica.20

    Assim, nos Estados Unidos a federao surgiu da unio de Estados e a base

    jurdica dessa formao foi a Constituio e no um tratado.21

    O Estado Federal detinha a soberania22 enquanto os estados-membros, ou

    unidades federadas, possuam autonomia.

    A soberania era essencial para o Estado, sendo atributo do poder interno do

    Estado que o torna independente no plano interno e interdependente no plano

    externo23.

    Para George Anderson so caractersticas comuns do federalismo:

    Por lo menos dos rdenes de gobierno, uno para todo el pas y outro paralas regiones. Cada gobierno tene uma relacin electoral directa com susciudadanos. [...] Una Constitucin escrita [...] Una Constitucin que

    17TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 19. ed. rev. e atual. So Paulo: Malheiros,2003. p. 57.18MARIOTTI, Alexandre. Teoria do estado. Porto Alegre: Sntese, 1999. p. 87.19DALLARI , 1998, p. 256.20MARIOTTI, op. cit., p. 87-88.21DALLARI, op. cit., p. 258.22Para Carrazza, Soberania a faculdade que, num dado ordenamento jurdico, aparece comosuprema. Tem soberania quem possui o poder supremo, absoluto e incontrastvel, que noreconhece acima de si, nenhum outro poder. (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direitoconstitucional tributrio. 21. ed. So Paulo: Malheiros, 2005. p. 125).23ACQUAVIVA, Marcos Claudio. Teoria geral do estado. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 2000. p. 54.

  • 19

    atribuye formalmente poderes legislativos, includos los fiscales, a los dosrdenes de gobierno, com la garantia de uma certa autonomia autnticapara cada orden... Normalmente se establece una organizacin especial,sobre todo de la Cmara alta, para la representacin de las unidadesconstitutivas em las instituiciones centrales clave a fin de permitir laparticipacin regional em la toma de decisiones a nvel central, a menudodando a las unidades pequenas ms peso del que les corresponderia deacordo com sus poblaciones. [...] Un rbitro o um procedimento (que sueleimplicar tribunales, pero em ocasiones fererndums o uma Cmara alta)para resolucin de los conflitos constitucionales entre los gobiernos. [...]Uma serie de processos e instituciones para facilitar o estabelecerrelaciones entre los gobiernos.24

    No Brasil, embora o prximo tpico trate do federalismo brasileiro, destaca-se

    que a prpria Constituio traz no artigo 125 a soberania como fundamento deste

    Estado. Trata-se de poder poltico supremo e independente. A supremacia se d

    internamente, enquanto a independncia em relao aos poderes alm da

    sociedade estatal.26

    Diz Dalmo Dallari que na federao no h direito de secesso e s o

    Estado Federal tem soberania. Os Estados tm autonomia poltica limitada j que

    incompatvel a soberania. As atribuies da Unio e das unidades federadas so

    fixadas por distribuio de competncia numa Constituio. Disso decorre a

    competncia para adquirir receita. As unidades federadas compartilham poder

    poltico com o governo central.27

    Nesse sentido Lus Roberto Barroso:

    Estado federal, partindo de uma premissa de descentralizao poltica,caracteriza-se pela superposio de duas ordens jurdicas: federal,representada pela Unio (embora com esta no se confunda) e federada,representada pelos Estados-membros. A esfera de atribuies de cada uma determinada por um critrio de repartio de competncias, ressaltando-se,porm, por essencial, que as unidades federadas participam da formao davontade maior, a vontade federal. Detm os Estados-membros a autonomia,conceito de direito pblico interno, enquanto a soberania, conceito de direitointernacional, exercida pelo Poder Central.28

    24ANDERSON, George. Uma introduccin al federalismo. Madrid: Marcial Pons, 2008. p. 21-22.25Art. 1. A Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpiose do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos: I - asoberania; [...]26SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 36. ed. So Paulo: Malheiros,2013. p. 106-109.27DALLARI, 1998, p. 257-259.28BARROSO, Lus Roberto. Direito constitucional brasileiro: o problema da federao. Rio deJaneiro: Forense, 1982. p. 2. Convm observar que o autor trata de duas ordens jurdicas, Unio e

  • 20

    E tambm Paulo Bonavides, quando afirma que:

    No Estado federal deparam-se vrios Estados que se associam com vistasa uma integrao harmnica de seus destinos. No possuem esses Estadossoberania externa e do ponto de vista da soberania interna se acham emparte sujeitos a um poder nico, que o poder federal, e em parteconservam sua independncia, movendo-se livremente na esfera dacompetncia constitucional que lhes for atribuda para efeito de auto-organizao.29

    A soberania j foi vista com base num poder supremo, conforme leciona

    Eduardo Gomes quando descreve:

    Com o decorrer da histria, a ecloso das duas grandes guerras mundiais, operodo do socialismo e da prpria Guerra Fria, o seu trmino na dcada de90, o advento do desenvolvimento tecnolgico, o florescimento do comrciointernacional e a prpria formao dos blocos econmicos, o conceito desoberania relativizado. Com a relativizao do conceito de soberaniasurge a possibilidade de os indivduos manifestarem os seus valoresculturais, notadamente porque, nos dias de hoje, vivemos em umasociedade pluralista.30

    A soberania vem sofrendo mutaes ao longo dos anos, mormente no plano

    internacional31, atrelada ideia de cooperao jurdica. As chamadas comunidades

    supranacionais, como a Comunidade Econmica Europeia, NAFTA e MERCOSUL

    acabam influenciando o entendimento sobre soberania.32

    Nesse sentido Eduardo Gomes, referindo-se relativizao do conceito de

    soberania:

    Estados, porque est se referindo ordem anterior Constituio de 1988, quando os Municpiosvieram, a nosso ver, integrar a federao brasileira.29BONAVIDES, Paulo. Cincia poltica. 19. ed. So Paulo: Malheiros, 2012. p. 195.30GOMES, Eduardo Biacchi. Unio europeia e multiculturalismo. Disponvel em:. Acessoem: 2 mar. 2015.31H juristas, socilogos e pensadores polticos que entendem tratar-se de um conceito j emdeclnio. [...] as ideologias pesam mais nas relaes entre os Estados do que o sentimento nacionalde soberania. (BONAVIDES, op. cit., p. 143).32STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, Jos Luis Bolzan de. Cincia poltica e teoria do estado. 7. ed.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 139-140.

    http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/uniao-europeia-e-multiculturalismo-de-eduardo-gomes-2/

  • 21

    Com a relativizao do conceito de soberania o Estado no pode maisatuar, de forma isolada, com a finalidade de adotar as suas polticas em seuespao jurisdicional, porque passam a surgir as associaes dos pases,com a finalidade de, atravs da ao conjunta, buscar adotar polticascomuns que surtiro efeito para todos os pases associados. A UnioEuropeia exemplo vivo da nova realidade mundial, em que vinte e seteEstados e vinte e trs idiomas oficiais convivem em um espao,denominado de arena supranacional. Dentro da arena supranacional surgeum direito singular e peculiar, como visto anteriormente, com a finalidade debuscar um maior equilbrio entre os Estados, que o Direito Comunitrio.33

    Para este trabalho importa distinguir a soberania, atributo do Estado Federal,

    no caso da Repblica Federativa do Brasil, em relao a outros Estados, igualmente

    soberanos, da autonomia34.

    Em contraponto ao Estado Federal temos o Estado Unitrio. Este o inverso

    daquele, pois a centralizao do poder a sua marca. O Estado Unitrio exclui

    outras pluralidades normativas e administrativas, centralizando a execuo das leis

    e gesto de servios. Repassa-se parcela de poder pblico a agentes locais, sem

    dot-los de autonomia.35

    A distino entre ambos que no Estado Unitrio h descentralizao

    administrativa, dependente do Estado. No Estado Federal h independncia e

    dualidade de poderes polticos, sistemas jurdicos etc., bem como sua configurao

    se d via estrutura constitucional, ao passo que no Estado Unitrio, quando h,

    ocorre por meio de legislao inferior (ordinria).36

    Dalmo Dallari traz como argumentos favorveis ao Estado Federal a maior

    aproximao entre governantes e governados, o que seria mais democrtico j que

    o povo teria acesso ao rgo de poder local e este influiria o poder central. Tambm

    haveria maior desconcentrao de poder e preservao das caractersticas locais e

    regionais, propiciando a integrao.37

    Contrapondo-se ao federalismo Dallari afirma que para atender a

    solicitaes intensas necessrio governo forte. O atendimento planificao global

    33GOMES, Eduardo Biacchi. Unio europeia e multiculturalismo. Disponvel em:. Acessoem: 2 mar. 2015.34Autonomia no se confunde com soberania, pois a autonomia assegurada pela Constituio aosEstados e Municpios e diz respeito capacidade de auto-organizao, autolegislao, autogoverno eautoadministrao. (SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 36. ed. SoPaulo: Malheiros, 2013. p. 610).35STRECK; MORAIS, 2010, p. 173.36Ibid., p. 173-174.37DALLARI, 1998, p. 260.

    http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/uniao-europeia-e-multiculturalismo-de-eduardo-gomes-2/

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    precisa melhor aproveitar e de maneira eficiente recursos sociais e econmicos, o

    que bastante difcil j que no h como obrigar Estados a se enquadrarem a tais

    planos, cujos gastos so excessivos devido a mltiplos aparelhos burocrticos. Uma

    federao tenderia a propiciar o surgimento de conflitos jurdicos e polticos.38

    Existem aspectos positivos e negativos no modelo de Estado Federal

    tambm apontados por Lnio Streck. Positivos seriam: existncia de apenas uma

    ordem poltica, jurdica e administrativa; fortalecimento da autoridade estatal; uma

    unidade nacional; burocracia nica, eficaz e racionalizada; impessoalidade e

    imparcialidade quando do exerccio das atribuies de governo. Como pontos

    negativos: desaparecimento de grupos sociais intermedirios; poder central

    assoberbado; fim de autogoverno e desvinculao em funo de problemas

    pblicos; assuntos de interesse local com solues de leis nacionais e postergao

    das decises administrativas.39

    Paulo Bonavides menciona que h quem entenda que o federalismo tenderia

    a desaparecer na crise do Estado contemporneo, em razo da concentrao de

    poder anulando as autonomias, ou o que resta delas. A crise seria no no

    federalismo como fenmeno poltico associativo, mas na forma doutrinria,

    decorrente do Estado liberal e sua decadente ideologia.40

    Trs pocas distintas do federalismo so apontadas por Paulo Bonavides. A

    primeira refere-se s leis da autonomia e participao. Havia excesso de

    competncias dos Estados participantes. A segunda marca o equilbrio entre a Unio

    e os Estados federados. A terceira contempornea e rompe o equilbrio em

    detrimento da autonomia dos Estados, havendo excesso de poderes na Unio.41

    Sobre esse desvirtuamento do federalismo, diminuindo a autonomia dos

    Municpios, principalmente em relao autonomia financeira, pretende-se discorrer

    mais adiante.

    38DALLARI, 1998, p. 260.39STRECK; MORAIS, 2010, p. 173.40BONAVIDES, 2012, p. 202.41Ibid., p. 202-206.

  • 23

    1.2 FEDERALISMO NO BRASIL

    Com a proclamao da independncia, o Brasil tornou-se um Estado unitrio

    monrquico. A descentralizao era apenas administrativa por meio das provncias,

    antes capitanias, que possuam Conselhos Gerais42 de limitadas atribuies.43

    A Constituio de 1824, embora ainda no republicana, significou avano

    nessa direo. Disps que os governos das provncias seriam presididos por

    pessoas nomeadas pelo Imperador44 e que os cidados poderiam intervir nos

    negcios da provncia por meio dos Conselhos.45

    A forma de Estado Federal foi assumida em 1889 com a proclamao da

    Repblica.46 A ementa do Decreto n 1 de 15 de novembro de 1889 disps:

    Proclama provisoriamente e decreta como forma de governo da Nao Brasileira a

    Repblica Federativa, e estabelece as normas pelas quais se devem reger os

    Estados Federais.

    Afirma Octvio Fischer que diferentemente dos Estados Unidos da Amrica,

    inspirao para o nosso federalismo, o Brasil chegou a uma federao de forma

    inversa americana. L, os estados se uniram para criar uma federao. Aqui, o

    poder foi descentralizado da Unio para as provncias, que passam a denominar-se

    estados.47

    Andrea Krell, comparando a autonomia dos municpios no Brasil e na

    Alemanha, diz:

    42Art. 71. A Constituio reconhece e garante o direito de intervir todo o Cidado nos negocios da suaProvincia, e que so immediatamente relativos a seus interesses peculiares. Art. 72. Este direito serexercitado pelas Camaras dos Districtos, e pelos Conselhos, que com o titulo de Conselho Geral daProvincia se devem estabelecer em cada Provincia, aonde no, estiver collocada a Capital doImperio.43MARIOTTI, 1999, p. 88.44Art. 165. Haver em cada Provincia um Presidente, nomeado pelo Imperador, que o poderremover, quando entender, que assim convem ao bom servio do Estado.45Art. 81. Estes Conselhos tero por principal objecto propr, discutir, e deliberar sobre os negociosmais interessantes das suas Provincias; formando projectos peculiares, e accommodados s suaslocalidades, e urgencias.46SILVA, 2013, p. 101.47FISCHER, Octvio Campos. Federalismo e democracia no Brasil: apontamentos iniciais. In: _____.Federalismo fiscal e democracia. (Coord.). Curitiba: Instituto da Memria Centro de Estudos dacontemporaneidade, 2014a. p. 4.

  • 24

    No final do sculo passado foi introduzido no Brasil praticamente de cimapara baixo o sistema federativo para melhorar a organizao administrativade seu territrio gigante. Destarte, o surgimento da federao brasileira nose deve a um pacto federativo como foi o caso dos Estados Unidos edepois na Alemanha.48

    A Constituio de 1891 traz em seu caput Constituio da Repblica dos

    Estados Unidos do Brasil, e j no artigo 1 prescrevia que a Nao brasileira adota

    como forma de Governo, sob o regime representativo, a Repblica Federativa,

    proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por unio perptua e

    indissolvel das suas antigas Provncias, em Estados Unidos do Brasil.49

    Para Betina Treiger Grupenmacher foi nesse momento em que se optou por

    um modelo de federalismo. Confira-se:

    O Estado brasileiro optou pelo federalismo no momento em que decidiu pelaadoo da forma republicana de governo, o que fez na Constituio de1891. Contudo, no perodo que sucedeu a criao do modelo federal, osEstados no utilizaram a sua autonomia como poderiam, tendo em vista odomnio das oligarquias locais que detinham o poder.50

    Na chamada era Vargas, na Constituio de 1934, a repblica foi mantida,

    bem como a federao, a diviso de poderes, o presidencialismo e o regime

    representativo. No entanto ampliaram-se os poderes da Unio nos artigos 5 e 6. 51

    Houve nessa poca excessiva concentrao de poder na Unio.52

    48KRELL, Andreas J. Diferenas do conceito, desenvolvimento e contedo da autonomia municipal naAlemanha e no Brasil. p. 110-111. Disponvel em:. Acesso em: 6 fev. 2015.49Tambm vem com a Constituio de 1891 a repartio de competncias da Unio e dos Estados ea atribuio de poderes para tributao de ambos. No artigo 6 foram estabelecidos os casos deinterveno nos Estados. A Carta ainda traz os trs poderes, extinguindo o poder moderador. Traz ovoto universal, exceto para mendigos, analfabetos, soldados (praas) e religiosos com votos deobedincia que importem em renncia liberdade individual. O Estado passa a ser laico, j que aConstituio anterior determinava a religio oficial.50GRUPENMACHER, Betina Treiger. A guerra fiscal. As decises do STF e seus efeitos. In: ROCHA,Valdir de Oliveira. (Coord.). Grandes questes atuais do direito tributrio. v. 15. So Paulo:Dialtica, 2011. p. 14.51Adotou-se, ao lado da representao poltica tradicional, a representao corporativa de influnciafascista (art. 23). Ainda segundo Jos Afonso, alm da clssica declarao de direitos e garantiasindividuais, trouxe normas programticas de influncia da Constituio de Weimar, tratando-se dedocumento de compromisso entre o liberalismo e o intervencionismo. (SILVA, 2013, p. 84).52GRUPENMACHER, op. cit., p. 14-15.

    http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/176412

  • 25

    A Constituio de 1937 j dispunha que o Brasil era um Estado federal,

    constitudo pela unio indissolvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Territrios,

    definindo a competncia dos Estados para a decretao de impostos53.

    Tambm estipulava no art. 27 que O Prefeito ser de livre nomeao do

    Governador do Estado. Tem razo Michel Temer quando afirma que embora

    formalmente federal, a forma de Estado foi, realmente, unitria.54

    No mesmo sentido leciona Jos Afonso da Silva quando diz: A Carta de

    1937 no teve, porm, aplicao regular. Muitos de seus dispositivos permaneceram

    letra morta. Houve ditadura pura e simples, com todo o Poder Executivo e

    Legislativo concentrado nas mos do Presidente da Repblica, que legislava por via

    de decretos-leis que ele prprio depois aplicava, como rgo do Executivo.55

    Michel Temer leciona que no perodo de 1937 a 1945 no se obedecia

    Constituio.56

    Finda a 2 Guerra Mundial, na Europa surgiu uma necessidade de respostas

    s atrocidades cometidas pelo nazismo e outras ditaduras. Nesse momento histrico

    ganharam importncia os direitos humanos que, segundo Estefnia Maria de

    Queiroz Barboza57, eram elevados de patamar no sistema jurdico, pois transferiam

    para o judicirio contedo moral e poltico, expandindo o judicial review. Esse

    movimento constitucionalista acabou influenciando o Brasil na Constituio de 1946.

    Com novo Presidente e novos ares foi promulgada a Constituio de 194658

    que, no plano histrico-constitucional, restabeleceu a Federao, em amplo e

    democrtico debate, originando um dos mais primorosos textos constitucionais do

    Brasil.59

    53Art. 23. da competncia exclusiva dos Estados, salvo a limitao constante do art. 35, letra d: I a decretao de impostos sobre: [...]54TEMER, 2003, p. 72.55SILVA, 2013, p. 85.56Os Estados regiam-se pelo Decreto-lei 1.202, de 8 de abril de 1939, verdadeira lei orgnica dosentes federados. Eram nomeados por interventores nomeados pelo Presidente da Repblica. Aseleies para o Parlamento Nacional jamais foram convocadas. Para as Assembleias Legislativas,igualmente, no se convocaram eleies. (TEMER, op. cit., p. 72).57BARBOZA, Estefnia Maria de Queiroz. Stare decisis, integridade e segurana jurdica:reflexescrticas a partir da aproximao dos sistemas de common Law e civil Law. Tese (Doutorado), PUCPR,Curitiba, 2011.58Como principais caractersticas, essa Constituio foi legalmente promulgada, ao contrrio daConstituio de 1937, de inspirao fascista, que havia sido imposta. Trouxe mandato presidencial de5 anos e ampla autonomia poltico-administrativa aos Estados e Municpios. Assegurou direito degreve e liberdade de opinio e de expresso.59TEMER, op. cit., p. 72.

  • 26

    O Brasil viveu grande instabilidade60 poltica com sucessivos golpes61e em

    1967 promulgou-se uma nova Constituio, a qual reduziu sensivelmente a

    autonomia estadual e, concomitantemente, diminuiu a independncia do Poder

    Legislativo. Pode-se dizer que a fisionomia federal do Estado brasileiro se alterou

    (comparando-se o regime de 1946 com o de 1967).62

    O federalismo brasileiro deformou-se profundamente63 com grande

    concentrao de poderes no Presidente da Repblica64, fruto de uma ditadura militar

    que vigeu at 1985,65 quando o novo Presidente encaminhou ao Congresso

    proposta de Emenda Constitucional para convocar Assembleia Nacional

    Constituinte, e por meio da Emenda Constitucional 26 convocaram-se membros da

    Cmara e do Senado para reunirem-se e elaborar a nova Constituio66.

    Com a queda do regime militar surgiu uma nova Constituio, em 198867,

    fortemente marcada pelo extenso catlogo de direitos fundamentais, deixando o

    ordenamento expressamente aberto para novos direitos68.

    60Em 1961, com a renncia do Presidente Jnio Quadros, os militares se articulam para impedir aposse do Vice-Presidente Joo Goulart, votando a Emenda Constitucional 4 de 2/09/1961, paraimplantar o parlamentarismo. Joo Goulart consegue, atravs de plebiscito, a volta dopresidencialismo e o Congresso aprova a Emenda Constitucional 6 que revoga o Ato Adicional sobreo parlamentarismo. (SILVA, 2013, p. 88).61Novo golpe no Brasil, desta feita Joo Goulart deposto e assume uma Junta Militar at que oGeneral Castelo Branco assumisse a presidncia. So emitidos diversos Atos Institucionais at aConstituio de 1967, que acaba por incorpor-los.62TEMER, 2013, p. 72.63O auge da centralizao vem em 1968 com o Ato Institucional n 5. O AI 5, e os demais que oseguem, rompe com a ordem constitucional at que a Emenda Constitucional n 1 Constituio de1967 promulgou texto integralmente reformulado, a comear pela denominao que se lhe deu:Constituio da Repblica Federativa do Brasil. (SILVA, op. cit., p. 89).64A Constituio de 1969 concentrou poderes no Presidente da Repblica a ponto de Michel Temerdizer no h como negar a evidncia: a Federao norte-americana foi a inspiradora dos federalistasbrasileiros, mas o Brasil muito se afastou, depois, daquela fonte iluminadora. (TEMER, op. cit., p.73).65Em 1982, nas eleies para governadores, a oposio ao regime militar desencadeia no movimentodas diretas j. A eleio que se realiza indireta, por meio de um colgio eleitoral, e TancredoNeves escolhido presidente. Seu vice Jos Sarney. Tancredo no chega a tomar posse, j queantes disso acabando morrendo. Assume seu vice que era Jos Sarney. O Presidente encaminha aoCongresso proposta de Emenda Constitucional para convocar Assembleia Nacional Constituinte. ento aprovada a Emenda Constitucional 26, que convoca membros da Cmara e do Senado parareunirem-se e elaborar a nova Constituio. (LESSKIU, Carlos Antonio. O pacto federativo naConstituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988; MARRAFON, Marco Aurlio; LIZIERO,Leonam Baesso da Silva. Competncias constitucionais da unio e o supremo tribunal federal:fiadores da centralizao no federalismo brasileiro. In: FISCHER, 2014a, p. 55-56).66Para Jos Afonso no houve convocao de Assembleia Nacional Constituinte mas de CongressoConstituinte, que elaborou texto avanado e documento de grande importncia para oconstitucionalismo. (SILVA, op. cit., p. 91).67A Constituio de 1988, atualmente em vigor, promulgada de forma legtima, modifica a formafederativa se comparada de 1967/1969. Mantm o nome do pas como Repblica Federativa doBrasil e traz inovaes democrticas como o voto para analfabetos e brasileiros entre 16 e 18 anos. Apropriedade privada direito fundamental, mas deve cumprir funo social. Avana o texto

  • 27

    Trouxe a Constituio Federal o Municpio elevado ao patamar de ente

    federativo juntamente com a Unio, Estados e Distrito Federal.69

    No prximo tpico ser tratada da autonomia municipal e do Municpio como

    membro da federao.

    Quando se analisa a autonomia municipal se percebe a relao entre ela e o

    pacto federativo. A violao na autonomia instabiliza o pacto federativo, o que

    fomenta a guerra fiscal, na busca de recursos para cumprimento de obrigaes

    constitucionais.

    Dentro deste tpico, sobre federalismo no Brasil, destaca-se ainda que a

    Constituio Federal de 1988 traz no artigo 23 a ideia de cooperao entre a Unio,

    Estados Federados e Municpios70. A ideia no outra seno um federalismo

    cooperativo71.

    Isso fica muito prejudicado pela ausncia de normas complementares para

    efetivar a cooperao entre os entes. J quase no final, nas disposies

    constitucionais gerais, estabelece que por lei os entes federados celebraro

    consrcios e convnios de cooperao para realizao de servios pblicos.72

    Em que pese a ausncia de normas complementares, o Estado brasileiro

    ganha um vis de cooperativo.

    Para Marcos Maliska o chamado Estado cooperativo pode assumir diversos

    significados. Em um primeiro momento, ele pode ser identificado com o Federalismo

    cooperativo, conceito que caracteriza o modelo federal que deu respostas aos

    desafios do estado social.73

    constitucional no combate ao racismo, traz direitos sociais aos trabalhadores, como reduo dajornada semanal, seguro desemprego, frias remuneradas acrescidas de 1/3 do salrio, os direitostrabalhistas aplicam-se aos trabalhadores urbanos e rurais e se estendem aos trabalhadoresdomsticos.68Artigo 5, 2 Os direitos e garantias expressos nesta Constituio no excluem outrosdecorrentes do regime e dos princpios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que aRepblica Federativa do Brasil seja parte.69No que diz respeito distribuio de competncias legislativas e administrativas, a Constituio de1988 coloca os municpios tambm ao lado da Unio e dos Estados. Essa trilogia federativa daexistncia de trs entes polticos internos autnomos constitui uma peculiaridade do Brasil emcomparao com todos outros pases de organizao federativa. (KRELL, s. d., s. p.).70Art. 23. competncia comum da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios: [...]71Para o Professor Ingo Sarlet o federalismo cooperativo trazido pela Carta de 1988 de efetividadecontroversa. (FISCHER, 2014a, p. 4-5).72Art. 241. A Unio, os Estados, o Distrito Federal e os Municpios disciplinaro por meio de lei osconsrcios pblicos e os convnios de cooperao entre os entes federados, autorizando a gestoassociada de servios pblicos, bem como a transferncia total ou parcial de encargos, servios,pessoal e bens essenciais continuidade dos servios transferidos.73MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos da constituio: abertura, cooperao, integraoCuritiba: Juru, 2013. p. 69.

  • 28

    Nesse modelo de federalismo cooperativo brasileiro74 as atribuies dos

    entes federados se exercem de modo comum ou concorrente, ocorrendo a

    aproximao dos entes federados para atuao conjunta, como nos artigos 23 e 241

    da Constituio Federal. Nesse sentido leciona Marcos Maliska:

    O federalismo cooperativo apresentou-se, de certa forma, como a respostado federalismo aos desafios do Estado social. Enquanto que o federalismodual era identificado com o Estado liberal, o federalismo cooperativo emsintonia com o constitucionalismo social do sculo XX buscou desencadearmecanismos de cooperao regional visando superao dasdesigualdades espaciais.75

    Os entes federados no perdem a autonomia76, mas cooperam entre si para

    efeito de alcanar os melhores resultados no exerccio das respectivas

    competncias.77

    Tem-se, ento, a partir da Carta Magna de 1988, um federalismo

    cooperativo, em que os diversos entes federados, preservando sua autonomia,

    cooperam entre si para efeito de alcanar os melhores resultados no exerccio das

    respectivas competncias.78

    Segundo Maliska o federalismo cooperativo um dos significados do

    chamado Estado cooperativo, nos moldes do modelo alemo estando ali presente

    desde o II Reich.79

    O sistema brasileiro complexo, j que a Unio (artigo 22) e os Municpios

    (artigo 30) so dotados constitucionalmente de competncia privativa. Entre os trs

    74Nos Estados Unidos, de incio o modelo federalista era o dual, no qual a separao de atribuiesentre os entes federativos rigorosamente rgida, no se cogitando cooperao entre os entesfederados. A partir da crise de 1929 h uma remodelao do federalismo americano com aesintervencionistas. Os poderes dos estados so mitigados, surgindo o federalismo de cooperaocoma unio. (BERNARDES, Wilba Lcia Maia. O federalismo dualista e competitivo: a conceponorte-americana e suas possveis influncias no modelo brasileiro. p. 165-166. Disponvel em:. Acesso em 25 fev. 2015).75MALISKA, 2013, p. 90.76DELGADO, Jos Augusto. ISS questes controvertidas na jurisprudncia do STJ o local daprestao do servio como determinante da competncia do municpio para exigir a cobrana domencionado tributo recursos especiais julgados sob a modalidade e com efeitos de recursosrepetitivos consagrao da jurisprudncia predominante no STJ por mais de 20 anos.(GRUPENMACHER, Betina Treiger. (Coord.). Tributao: democracia e liberdade. So Paulo:Noeses, 2014. p. 204-205).77MIRAGEM, Bruno. A nova administrao pblica e o direito administrativo. So Paulo: Revistados Tribunais, 2013. p. 125.78Ibid., p. 126-127.79MALISKA, op. cit., p. 69.

    http://www.pos.direito.ufmg.br/rbepdocs/098159174.pdf

  • 29

    entes h competncia comum (art. 23). Tambm h competncia concorrente entre

    a Unio e Estados e distrito Federal (artigo 24). Por derradeiro, aos Estados cabe a

    competncia residual (artigo 25).

    Gilberto Bercovici diz que no se confundem cooperao e coordenao. A

    coordenao seria exerccio conjunto de competncias com determinado grau de

    participao dos integrantes da federao. O procedimento busca resultado comum

    no interesse de todos.80

    J Enoch Alberti Rovira define a cooperao propriamente dita como:

    La cooperacin, em sentido estricto, se diferencia cualitativamente de estasanteriores relaciones, al consistir propriamente em uma toma conjunta dedecisiones, em um coejercicio de las competncias, y, consiguientemente,em uma corresponsabilizacin de las actuaciones realizadas bajo talrgimen. Uma determinada funcin o competncia no se realiza ya de formaautnoma y separada por cada instncia, com todos os limites externos deaplicacin al caso, sino de forma conjunta, de modo que tal funcin ocompetncia, para que se traduzca em concretas actuaciones, slo puedeser ejercida conjuntamente por varias partes, que deben actuarmancomunadamente.81

    Os entes federativos no atuam isoladamente. Confira-se a lio de

    Bercovici:

    Na cooperao, nem a Unio nem qualquer ente federado pode atuarisoladamente, mas todos devem exercer sua competncia conjuntamentecom os demais. Na repartio de competncias, a cooperao se revela naschamadas competncias comuns, consagradas no art. 23 da Constituiode 1988. Nas competncias comuns, todos os entes da Federao devemcolaborar para a execuo das tarefas determinadas pela Constituio. Emais: no existindo supremacia de nenhuma das esferas na execuodessas tarefas, as responsabilidades tambm so comuns, no podendonenhum dos entes da Federao se eximir de implement-las, pois o custopoltico recai sobre todas as esferas de governo. A cooperao parte dopressuposto da estreita interdependncia que existe em inmeras matriase programas de interesse comum, o que dificulta (quando no impede) asua atribuio exclusiva ou preponderante a um determinado ente,

    80BERCOVICI, Gilberto. A descentralizao de polticas sociais e o federalismo cooperativo brasileiro.Revista de Direito Sanitrio, So Paulo, v. 3, n. 1, 2002. p. 14-15. Disponvel em:.Acesso em: 10 jan. 2015.81ROVIRA, Enochi Alberti. Federalismo y Cooperacion em la Republica Federal Alemana. Madrid:Centro de Estudos Constitucionales, 1986, p. 369 apud BERCOVICI, 2002, p. 16.

    http://www.revistas.usp.br/rdisan/article/view/81291/84931

  • 30

    diferenciando, em termos de repartio de competncias, as competnciascomuns das competncias concorrentes e exclusivas.82

    Esse federalismo cooperativo no vem cumprindo o seu papel, tanto que a

    discusso no Senado da Repblica, h muito tempo, tem como pauta um novo pacto

    federativo devido ao grande descontentamento dos governadores com a poltica

    fiscal e o endividamento dos Estados.

    Comungam com esse pensamento Marco Aurlio Marrafon e Leonam

    Baesso da Silva Liziero. Ambos fundamentam a discordncia em razo nos

    resultados de pesquisas de decises nas Aes Diretas de Inconstitucionalidade

    (ADI). Os governadores utilizam a ADI para derrubar leis aprovadas em seus

    parlamentos e tambm em outros Estados. Transfere-se o debate poltico para o

    Judicirio, fomentando a guerra fiscal. Com isso concluem:

    Por esse motivo, possvel concordar que o federalismo brasileiro no cooperativo na prtica, como intencionalmente o new deal. O poder daUnio esmaga os Estados-Membros e os leva a procurar conseguir omximo de autonomia possvel os colocando em conflito com outros. Aconfigurao da ordem brasileira, ao invs de levar a uma cooperao entreos entes federativos, gerou uma relao de antifederalismo.83

    Em 1987 a Unio dispunha de 64% do total da receita pblica, os Estados

    23% e os Municpios 13%. Em 2008 a Unio contava com 52%, os Estados 27% e

    os Municpios 22% da receita. Segundo estudos da Consultoria legislativa da

    Cmara dos Deputados os encargos no foram descentralizados na mesma

    proporo, o que levou a Unio ao aumento das alquotas das contribuies, tributos

    no partilhados. Alm disso a Unio criou, em 1989, a Contribuio Social sobre o

    Lucro Lquido CSLL, Imposto Provisrio sobre Movimentaes Financeiras IPMF,

    depois institudo como Contribuio Provisria sobre Movimentaes Financeiras

    CPMF.84

    82BERCOVICI, 2002, p. 17.83MARRAFON, Marco Aurlio; LIZIERO, Leonam Baesso da Silva. Competncias constitucionais daunio e supremo tribunal federal: fiadores da centralizao no federalismo brasileiro. In: FISCHER,2014a. p. 37-42.84PALOS, Aurlio Guimares Cruvinel. Consultor Legislativo da rea IV Finanas Pblicas. Cmarados Deputados Praa 3 Poderes Consultoria Legislativa. Disponvel em:

  • 31

    A descentralizao de receitas, como dito anteriormente, fez com que a

    Unio institusse novas contribuies, no compartilhadas com os Estados e

    Municpios, recuperando assim algo que havia perdido85. Essa exclusividade da

    Unio na cobrana das contribuies se deu a partir dos anos 90.86

    Essa descentralizao das polticas sociais eleva os compromissos

    municipais. Isso porque nos impostos partilhados, como o IPI, a Unio vem,

    recentemente, concedendo isenes, o que compromete a arrecadao dos

    Municpios e Estados por meio de Fundos de participao87. Tal reduo

    compromete sensivelmente a j combalida receita dos Municpios e Estados.88

    Tamanha a preocupao com a perda de receita que o Senado Federal

    props Emenda Constituio obrigando a Unio a compensar Estados e

    Municpios quando ela estabelecer isenes no imposto de renda e no imposto

    sobre produtos industrializados, ambos de sua competncia89.

    Tais impostos so partilhados com os demais entes da federao, por

    disposio constitucional, art. 159. Segundo parecer que acompanha a PEC, toda

    . Acesso em: 24 mar. 2014.85A constituio de 1988 tornou o Municpio ente federativo dotado de autonomia poltica, legislativa,administrativa e financeira. Ademais, tornou o Municpio o ente responsvel pela poltica urbana, numcontexto marcado pela ampliao dos direitos sociais e pela execuo descentralizada das polticassociais, ampliando as atribuies dos governos municipais. O novo desenho institucional, no entanto,suscitou reaes que colocaram em xeque aquela autonomia, em particular a financeira. Numprimeiro momento (1989-1995), a autonomia municipal foi experimentada por meio da elevao dasreceitas, especialmente as oriundas das transferncias intergovernamentais, o que contribuiu parafortalecer a autonomia poltica frente aos estados e Unio. Uma vez estabilizadas as receitas detransferncias intergovernamentais, uma nova etapa se seguiu, ao longo dos dois mandatos dopresidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Nesse perodo, a Unio passou a recuperar suaparticipao na partilha federativa da arrecadao das receitas pblicas por meio da elevao detributos no partilhveis com os demais entes da Federao. O aumento das receitas municipaispassou a depender da arrecadao prpria, mas em um contexto de crise econmica, o que limitavasuas possibilidades de elevao de receitas. (SANTOS, Angela Moulin Simes Penalva.Descentralizao e autonomia municipal: uma anlise das transformaes institucionais dofederalismo brasileiro. p. 2-3. Disponvel em:. Acesso em: 28 fev. 2015).86ARRETCHE, Marta. Quem taxa e quem gasta: a barganha federativa na federao brasileira. p. 78.Disponvel em:. Acesso em: 1mar. 2015.87Disponvel em:. Acesso em: 18 fev. 2015.88Disponvel em:. Acesso em: 18 fev. 2015.89BRASIL. Proposta de Emenda Constituio (PEC) n 12, de 2009, Senador FLEXA RIBEIRO.Disponvel em:. Acesso em: 18 fev. 2015.

    http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/http://www.scielo.br/scielo.phphttp://www.aen.pr.gov.br/modules/noticias/article.phphttp://tribunadonorte.com.br/noticia/autonomia-municipal-ficticia/104956

  • 32

    vez que a Unio concede algum tipo de benefcio fiscal relativo a IR ou IPI, h

    impacto financeiro nos Estados, Distrito Federal e Municpios.

    A inteno do Senado que a Unio tenha de compensar os demais entes

    da Federao toda vez que conceder subsdio, iseno, reduo da base de clculo,

    concesso de crdito presumido, anistia, remisso ou reduo temporria de

    alquota, que impacte os recursos devidos aos Estados, Distrito Federal e Municpios

    previstos nos incisos I e II do art. 159 da CF.90 Posteriormente essa PEC foi

    substituda pela PEC 31, ainda tramitando no Senado91.

    A preocupao com a desonerao promovida pela Unio, prejudicando os

    repasses por meio de fundos de participao, j chegou ao Supremo Tribunal

    Federal, conforme se v de trecho do voto do Ministro Roberto Barroso:

    [...] o federalismo fiscal brasileiro vive um momento delicado, marcado porinsuficincias e desequilbrios. Para tal situao contribuem, entre outrosfatores, o centralismo tributrio da Unio, a desonerao tributria queproduz impactos sobre o Fundo de Participao dos Estados, uma guerrafiscal de todos contra todos e as obrigaes de amortizao da dvida dosEstados com a Unio. A interpretao de normas e contratos entre os entesfederativos no pode desconsiderar essa realidade ftica, cujoequacionamento mereceu, inclusive, a instituio de uma ComissoEspecial Externa do Senado Federal, que estudou amplamente a matria eapresentou inmeras sugestes relevantes.92

    Para Gilberto Bercovici o problema foi a descentralizao de receitas e

    competncias desacompanhadas de um plano ou programa de atuao. O Governo

    Federal, ao perder recursos, reduziu transferncias no obrigatrias, o que implicou

    na reduo de polticas sociais que a partir de 1988 tambm passam a ser de

    responsabilidade dos Municpios e Estados. De modo lento, inconstante e

    descoordenado, os Estados e municpios vm substituindo a Unio em vrias reas

    90BRASIL. Proposta de Emenda Constituio (PEC) n 12, de 2009, Senador FLEXA RIBEIRO.Disponvel em:. Acesso em: 18 fev. 2015.91Disponvel em:. Acesso em: 18 fev. 2015.92BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tutela Antecipada na Ao Cvel Originria n. 2178 TA/DF.Relator Ministro Roberto Barroso. Disponvel em:. Acesso em: 18 fev. 2015.

    www.senado.gov.br/atividade/materia/getDocumento.aspwww.senado.gov.br/atividade/materia/getDocumento.aspwww.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp%3Fp_cod_mate%3D90783+&cdhttp://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asphttp://tinyurl.com/a

  • 33

    de atuao (especialmente nas reas de sade, educao, habitao e

    saneamento)93.

    Samos de uma concentrao de poder junto ao governo federal para uma

    transferncia de responsabilidades, mais acentuadas aos demais entes federativos,

    na dcada de 90.94

    Ao que tudo indica h ainda grande demanda por polticas sociais advindas

    da Carta de 198895.

    Segundo Marco Aurlio Marrafon a federao brasileira to centralizada

    que beira o federalismo nominal em funo da distribuio de competncias e a

    atuao do STF na deciso sobre as ADI, muito utilizadas pelos governadores. Isso

    aumenta a dependncia da Unio. A forma adotada pela Constituio de 1988, de

    Estado de Bem-Estar, em que prevalecem prestaes positivas, fortalece o poder

    executivo da Unio.96

    Prossegue Marrafon dizendo que a partir dos anos 90 a centralizao na

    Unio se acentuou de forma a enfraquecer a autonomia dos Estados e Municpios.

    Destacam como causas, entre outros fatores, a Emenda 03/93, que d poderes

    Unio para reter crditos de impostos estaduais e municipais para garantia de

    pagamento dvidas, art. 167 4. Criao do PROES. Fundo de Estabilizao Fiscal.

    Lei Kandir, que desonera as exportaes do ICMS.97

    O Senado tem discutido propostas de um novo pacto federativo. Foi

    nomeada uma comisso de especialistas para elaborar propostas. Segundo ex-

    93BERCOVICI, 2002, p. 21.94O federalismo brasileiro caracterizou-se no passado por uma concentrao excessiva no podercentral, tornando o nosso regime mais prximo do federalismo econmico em virtude do poderexercido pelo Presidente da Repblica. Desde o incio da dcada de 1980 o Brasil entrou numapoca de mudanas institucionais, que se acelerou na dcada de 1990, e que certamente aindacontinuar nos prximos anos. O regime federalista brasileiro est, portanto, em processo demutao, com a transferncia de responsabilidades da unio para os estados e municpios. Nessascircunstncias bastante difcil projetar o nvel de despesas de cada nvel de governo e calcular acarga tributria necessria para equilibrar as finanas de cada uma das esferas de governo: da unio,dos estados e dos municpios. Uma proposta de reforma tributria que se preocupe com a questo dofederalismo tem que ser bastante flexvel para acomodar as possveis transformaes nas atribuiesde responsabilidades que possam vir a ocorrer nos prximos anos. (BARBOSA, Fernando deHolanda. (Coord.). Federalismo fiscal, eficincia e equidade: uma proposta de reforma tributria.Disponvel em:. Acesso em: 18 fev. 2015).95MARRAFON; LIZIERO, 2014, p. 26.96Ibid., p. 43.97Ibid., p. 4.

    http://www.fgv.br/professor/fholanda/Arquivo/FederalismoFiscal.pdf

  • 34

    presidente do STF Nelson Jobim o federalismo atual predatrio e deve ser

    transformado por um novo pacto solidrio.98

    Dentre as propostas da comisso esto a troca de indexador da dvida dos

    Estados, e os juros que hoje variam de 6% a 9% e cairiam para 4%; vedao de

    normas nacionais que repercutam sobre remunerao de servidores estaduais e

    municipais bem como novas regras para distribuio de recursos do FPE; previso

    de crime relacionado a prticas de guerra fiscal tanto no ICMS como no ISS.

    Anteprojeto de lei geral sobre federalismo, evitando guerra fiscal.99

    Essas dvidas dos Estados e Municpios comeam a sair do controle quando

    a Unio, na dcada de 70, em pleno regime militar, centralizou a gesto de tributos.

    Os Estados, no tendo como obter receita, socorriam-se emprstimos externos, no

    havendo o rigor hoje existente da Lei de Responsabilidade Fiscal. J na dcada de

    80 os Estados foram financiados pela Caixa Econmica, alm de emitir ttulos

    estaduais, o que elevou a dvida estatal. A implantao do Plano Real levou os

    Estados a dificuldades de financiamento devido s taxas de juros mais elevadas.100

    Por mais paradoxal que possa parecer a estabilizao da moeda no Plano

    Real rompeu com a ciranda financeira devido inflao alta, mostrando a realidade

    das dvidas dos entes federados.

    A taxa de juros aplicada pela Unio superior taxa aplicada pelo BNDS ao

    setor privado, o que j indica a necessidade de repactuao. Por essa razo o

    Senado insiste na repactuao dos juros nas dvidas dos Estados e dos Municpios

    com a Unio.

    Recentemente foi sancionada a Lei Complementar 148 de 25 de novembro

    de 2014. Essa lei altera o indexador das dvidas dos estados e municpios com a

    Unio, abrandando a situao fiscal desses entes federativos. Os juros so limitados

    a 4% ao ano mais a correo pelo IPCA. Opcionalmente pode ser usada a taxa

    SELIC, prevalecendo o menos oneroso ao devedor.101

    98BRASIL. Agncia Senado. Disponvel em:. Acesso em: 29 mar. 2014.99BRASIL. Agncia Senado. loc. cit.100Disponvel em:. Acesso em: 29 mar. 2014.101Disponvel em:. Acesso em: 13 maio 2015.

    http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2012/10/30/senado-recebe-sugestoes-de-http://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/contas-publicas/contexto/nascida-na-http://cd.jusbrasil.com.br/noticias/153421012/dilma-sanciona-reducao-dos-encargos-das-dividas-de-

  • 35

    No se trata de um novo pacto federativo, mas da previso legal de

    renegociao de juros da dvida e partilha tributria, o que um passo a esse novo

    pacto.

    A ausncia de novas regras leva os Estados a promover guerra fiscal102, que

    vem a ser a disputa entre eles na concesso de incentivos fiscais visando a atrair

    empresas ou investimentos.

    Os Estados do incentivos ao ICMS, imposto de sua competncia, com

    renuncia tributria, margem de autorizao do CONFAZ (Conselho Nacional de

    Poltica Fazendria) criado pela Lei Complementar 24/75, que congrega todos os

    secretrios de fazenda dos Estados para deliberarem sobre incentivos fiscais. As

    deliberaes devem ser unnimes, o que torna a tarefa extremamente difcil.

    Por essa razo os Estados concedem benefcios de forma unilateral, o que

    leva os casos ao Supremo Tribunal Federal, que via de regra julga inconstitucionais

    tais benefcios.

    J em relao aos Municpios a guerra fiscal se d no s pela concesso

    de benefcios, reduzindo alquota do ISS ou a base de clculo, como quando mais

    de um dos entes federados tributa o sujeito passivo quando da prestao de

    servios.

    A Lei Complementar 116/2003 estabelece no artigo 3, no qual se considera

    prestado o servio, que no estabelecimento prestador em que tambm devido o

    imposto. J no artigo 4 define esse estabelecimento prestador.103

    Ocorre que na prtica isso nem sempre fcil definir, a ponto de as

    questes chegarem ao Superior Tribunal de Justia quanto definio do Municpio

    competente para tributar. Mais adiante se trata dessa questo em tpico especfico.

    102Para Fernando Facury Scaff, Certamente a origem da guerra fiscal entre os Estados da Federaobrasileira tm vrias causas, mas estou seguro de que sua intensificao aos nveis hoje encontradosde retaliao fiscal decorre da implantao da sistemtica do Fundo de Compensao deExportaes criado pela Lei Kandir (Lei Complementar 87/1996). (SCAFF, Fernando Facury. Aresponsabilidade tributria e a inconstitucionalidade da guerra fiscal. In: ROCHA, Valdir de Oliveira.(Coord.). Grandes questes atuais do direito tributrio. v. 15. So Paulo: Dialtica, 2011. p. 44).103Art. 3o. O servio considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestadorou, na falta do estabelecimento, no local do domiclio do prestador, exceto nas hipteses previstasnos incisos I a XXII, quando o imposto ser devido no local:.Art. 4. Considera-se estabelecimento prestador o local onde o contribuinte desenvolva a atividadede prestar servios, de modo permanente ou temporrio, e que configure unidade econmica ouprofissional, sendo irrelevantes para caracteriz-lo as denominaes de sede, filial, agncia, posto deatendimento, sucursal, escritrio de representao ou contato ou quaisquer outras que venham a serutilizadas.

  • 36

    Um novo pacto federativo bem-vindo, em razo da atual conjuntura

    brasileira. Recentemente, na Cmara dos Deputados, foi instalada comisso

    especial para rever o pacto federativo. A justificativa do Presidente foi o

    descompasso entre as obrigaes dos Municpios e o financiamento de projetos.104

    1.3 AUTONOMIA MUNICIPAL

    Antes de discorrer sobre a autonomia do Municpio, so necessrias

    algumas consideraes sobre a elevao do Municpio a ente federativo.

    Muito se discute se o Municpio integraria ou no a federao, j que no

    possui representao no senado federal.

    Dentre as razes para a no aceitao do Municpio como ente federativo,

    leciona Roque Carrazza que os Municpios no influenciam nem decidem no Estado

    Federal por no terem representantes na Cmara dos Deputados, nem no

    Senado.105

    Para Jos Afonso da Silva os Municpios, embora tenham autonomia

    poltico-constitucional, no integram o conceito de entidade federativa, j que no

    existe federao de municpios, mas de Estados. Para ele, se houvesse federao

    de municpios eles assumiriam natureza de Estados-membros de segunda classe

    dentro dos Estados federados106.

    A grande inovao da Constituio de 1988, segundo Ingo Sarlet, foi trazer o

    Municpio como ente federativo, juntamente com a Unio, os Estados e o Distrito

    Federal. Os municpios que tinham governo e competncias prprias agora passam

    a poder se auto-organizar, por leis orgnicas, art. 29, o que antes era feito pelos

    Estados.107

    104Disponvel em:. Acesso em: 18 mar. 2015.105CARRAZZA, 2005, p. 160.106SILVA, 2013, p. 476-477.107Ingo Sarlet, no prefcio ao livro Federalismo Fiscal e Democracia, fruto de pesquisas doNUPECONST (Ncleo de Pesquisas Constitucionais do Programa de Mestrado em DireitosFundamentais e Democracia das Faculdades Integradas do Brasil UniBrasil). (FISCHER, 2014a, p.4).

    http://oglobo.globo.com/brasil/cunha-instala-comissao-especial-para-rever-pacto-federativo-

  • 37

    Segundo Octavio Fischer a doutrina tem grande dificuldade em reconhecer o

    Municpio como ente federativo. Com toda razo quando afirma que isso est

    positivado com todas as letras na Constituio de 1988.108

    A Constituio de 1988 trouxe o Municpio como integrante da federao j

    no primeiro artigo109. Nas Constituies anteriores no havia tal previso e tampouco

    h algo semelhante na Constituio americana, cuja inspirao serviu de modelo ao

    Brasil.110

    O artigo 1 da Constituio diz que a Repblica Federativa do Brasil

    formada pela unio dos Estados, Municpio e Distrito Federal de forma indissolvel.

    Est expressa no texto constitucional a condio do Municpio de ente federativo.

    Ademais, a Constituio assegura que o Municpio no pode ser excludo da

    federao como ente federado, no art. 60111.

    Oportuna aqui a colocao de Andreas Krell:

    Depois do fim do governo militar em 1985, ganhou fora a reclamao porum municpio mais potente e eficiente em funo da consolidao dorenascido regime democrtico. A pretensa inteno dessas novas foraspolticas foi estabelecer, em todo o pas, um procedimento poltico de baixopara cima.Como consequncia, o art. 18 da Constituio Federal de 1988, pela 1 vezna histria constitucional brasileira, levantou os municpios oficialmente paraserem entes da Unio, rezando que a organizao poltico-administrativada Repblica Federativa do Brasil compreende a Unio, os Estados, oDistrito Federal e os Municpios, todos autnomos, nos termos destaConstituio.112 (destaques do original)

    Ao contrrio de outras federaes, diz Acquaviva que em vez de duas, h

    trs ordens de competncia: a da Unio, a dos Estados federados e a dos

    municpios. Nenhuma dessas entidades federadas poder invadir a competncia das

    108FISCHER, 2014a, p. 17.109Art. 1. A Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpiose do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos:110Mas, no h como se fugir da realidade imposta pelos arts. 1 e 18. [...] Ora, se tal no existisseem qualquer outra federao no mundo, mesmo assim o Brasil no estaria impedido de faz-lo.Trata-se de uma deciso soberana e que melhor retrata uma determinada opo poltica. Pode nosignificar a melhor, mas no se pode dizer que, para ser Federao, no podemos admitir osMunicpios como entes que dela participam, porque isto contraria um conceito ideal de EstadoFederal. (FISCHER, Octvio Campos. Federalismo e democracia no Brasil: apontamentos iniciais. In:_____, 2014b, p. 18).111Art. 60. A Constituio poder ser emendada mediante proposta: [...] 4. No ser objeto dedeliberao a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado;112KRELL, s. d., p. 114.

  • 38

    demais, sob pena de inconstitucionalidade, com ressalva, como j foi visto, da

    competncia comum a todos (CF, art. 23).113

    Da forma como a Constituio de 1988 dotou o Municpio de autonomia

    difcil no imaginar o Municpio como integrante da federao. Alm disso, o artigo

    1 da Constituio diz que a Repblica Federativa do Brasil formada pela unio

    dos Estados, Municpios e Distrito Federal de forma indissolvel. O Constituinte

    originrio colocou no art. 60 o Municpio na condio de no poder ser excludo da

    federao como ente federado114.

    O Municpio foi colocado na Constituio como ente federativo. A forma

    federativa de Estado tal como desenhada na Carta Magna no pode ser emendada,

    pois se trata de clusula ptrea. Assim, os Municpios jamais podero ter

    competncias legislativas e administrativas diminudas ou suprimidas. Isso seria

    ofensivo clausula ptrea, que busca impedir a modificao do sistema federativo

    em trs nveis, i.e. Unio, Estados e Municpios.

    O Municpio como ente federativo, portanto, integrante da federao

    brasileira, dela no pode ser excludo, sob pena de violao clusula ptrea.

    Assume-se assim, neste trabalho, a posio doutrinria que reconhece o

    Municpio como ente federativo. A Constituio clara ao estabelecer o Municpio

    nessa condio, pouco importando se em outros pases que adotam o federalismo

    isso no ocorre.

    No basta que o Municpio seja formalmente integrante da federao,

    preciso ser dotado de autonomia, mormente financeira, para que no se anule o

    pacto federativo estabelecido pela Constituio.

    Sobre a autonomia municipal, oportuna a lio de Michel Temer quando diz

    que a autonomia dos municpios antecede a autonomia dos Estados, j que a partir

    do ajuntamento de pessoas no entorno de uma igreja surgem ncleos populacionais.

    Quando a ordem jurdica vem reconhecer autonomia poltica aos municpios,

    reconhece uma realidade. Temer cita as lies de Pedro Calmon que afirma que o

    Municpio uma instituio mais social do que poltica, mais histrica do que

    113ACQUAVIVA, 2000, p. 106.114Art. 60. A Constituio poder ser emendada mediante proposta: [...] 4. No ser objeto dedeliberao a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado;

  • 39

    constitucional, mais cultural do que jurdica. E arremata para enfatizar a autonomia

    nascida espontaneamente.115

    A Carta de 1988, corrigindo falha das anteriores116, restabelece o princpio

    federativo com maior autonomia aos Estados e Municpios, descentralizando as

    receitas pblicas. Os Estados tm o seu principal imposto ampliado. O ICM passa a

    ser ICMS incidindo sobre combustveis, lubrificantes, minerais, energia eltrica,

    servios de transporte intermunicipal e interestadual e ainda servios de

    comunicao.

    A autonomia municipal protegida pela Constituio que a reconhece como

    princpio a ser garantido, se necessrio, sob a interveno da Unio nos Estados.117

    A Constituio estabelece a competncia tanto da Unio como dos Estados

    e Distrito Federal e ainda dos Municpios, a ponto de se entender que no mbito de

    suas atribuies o Municpio est acima da Unio e dos Estados, s encontrando

    bice no poder judicirio quando extrapolar sua competncia.118

    Ainda que discorde do Municpio como ente componente da federao,

    Roque Carrazza defende a autonomia dos municpios, que antes no fazia, confira-

    se:

    Nas edies anteriores deste Curso (v.g., na p. 154 da 20 ed.) defendemos em reforo da nossa posio de que o Municpio no integra a Federao a tese de que a autonomia municipal no clusula ptrea e que,portanto, o Congresso Nacional, no exerccio de seu poder constituintederivado, pode, querendo, aprovar emenda constitucional que venha adiminuir ou, mesmo, a eliminar a autonomia dos Municpios.Agora, porm, melhor meditando sobre o assunto, mudamos de opinio.Hoje estamos convencidos de que qualquer amesquinhamento naautonomia municipal vedado pelo texto Magno. De fato, no faria sentidoque a Lei Maior do Pas, tendo atribudo aos Municpios poder constituintedecorrente (eles votam suas leis orgnicas, obedecidos apenas osprincpios jurdicos sensveis da Constituio da Repblica), abrisse espaoa que o poder constituinte derivado abolisse, ainda que em parte, a aptido

    115TEMER, 2003, p.104-105.116De incio a Constituio da Repblica de 1988, corrigindo falha das anteriores, integrou o Municpiona Federao como entidade de terceiro grau (arts. 1 e 18) o que j reivindicvamos desde a 1edio desta obra, por no se justificar sua excluso, j que sempre fora pea essencial daorganizao poltico-administrativa brasileira. (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipalbrasileiro. 14. ed. So Paulo: Malheiros, 2006. p. 44).117BRASIL. Constituio Federal (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Art. 34. AUnio no intervir nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: [...] VII - assegurar aobservncia dos seguintes princpios constitucionais: [...] c) autonomia municipal;118MEIRELLES, op. cit., p. 93.

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    que a Constituio Federal lhes deu para se autogovernarem.119 (destaquedo original)

    Mais adiante Roque Carrazza insiste que os Municpios no integram a

    Federao, no entanto so dotados de grande autonomia, retirando da Constituio

    o fundamento de validade de suas leis.120

    Alm da autonomia, no sentir de Regina Ferrari Nery h a necessidade da

    observncia do princpio da participao, atravs do qual as coletividades pblicas

    federadas devem concorrer para a formao da vontade da ordem nacional [...].121

    Neste sentido Paulo Bonavides diz que mediante a lei de participao,

    tomam os Estados-membros parte no processo de elaborao da vontade poltica

    vlida para toda a organizao federal, intervm com voz ativa nas deliberaes de

    conjunto122, o que j diferencia esses Estados das provncias ou coletividades do

    Estado unitrio.123

    Com relao lei da autonomia por ela que se manifesta com toda a

    clareza o carter estatal das unidades federadas. Podem livremente estatuir uma

    ordem constitucional prpria, estabelecer a competncia dos trs poderes que

    habitualmente integram o Estado.124

    Para Lenio Streck, a razo da federao descentralizar o poder, no intuito

    de impedir concentrao, de forma autoritria. H uma transferncia de atividades

    do centro para a periferia. Dessa forma, federao e democracia tm uma tendncia

    simtrica, embora tal no seja uma contingncia inexorvel, como se observa na

    experincia internacional e, particularmente, na tradio latino-americana.125

    Para Kelsen apenas o grau de descentralizao diferencia um Estado

    unitrio dividido em provncias autnomas de um Estado federal.126 Mas no s

    isso. Tambm para Kelsen no apenas a competncia legislativa dividida entre a

    119CARRAZZA, 2005, p.160-161.120Ibid., p.161.121FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Elementos de direito municipal. So Paulo: Revista dosTribunais, 1993. p. 30.122BONAVIDES, 2012, p. 195.123BONAVIDES, loc. cit.124BONAVIDES, loc. cit.125STRECK; MORAIS, 2010, p. 171.126KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Traduo de: Lus Carlos Borges. 3. ed. 2.tir. So Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 451.

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    federao e os Estados componentes, mas tambm a competncia judiciria e

    administrativa.127

    No outra a lio de Regina Nery Ferrari quando diz que ao criar o Estado

    Federal ou Federao, a Constituio trata de impedir que o poder se concentre em

    uma nica pessoa jurdica de direito pblico, mas, ao contrrio, se reparta entre os

    entes coletivos que a compem.128

    Para que o Municpio exera seu papel de ente federativo ele deve realizar

    as competncias a ele atribudas pela Constituio nos artigos 29 e 30129. No s

    autonomia poltica e administrativa, mas autonomia financeira.

    Para Michel Temer a autonomia poltica do Municpio caracteriza-se pela

    capacidade de legislar sobre seus negcios e por meio de autoridades prprias. Isso

    estaria contido nos artigos 29 e 30 da Constituio.130

    Assim, nos artigos 29 e 30 da Constituio Federal est contido o princpio

    da autonomia municipal, bem como seu reconhecimento explcito como princpio no

    artigo 34, VII, c. Essa autonomia seria poltica, administrativa e financeira. Poltica,

    tendo o Municpio direito a eleger Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores.

    Administrativa seria a possibilidade de legislar sobre assuntos de interesse local.

    Financeira decorre da competncia de instituir e arrecadar tributos.131

    A repartio de competncias reflete a substncia do princpio federal132,

    que representa o fundamento do Estado federal, determinando a maneira de

    127KELSEN, 2000, p. 456.128FERRARI, 1993, p. 26.129Art. 29. O Municpio reger-se- por lei orgnica, votada em dois turnos, com o interstcio mnimo dedez dias, e aprovada por dois teros dos membros da Cmara Municipal, que a promulgar,atendidos os princpios estabelecidos nesta Constituio, na Constituio do respectivo Estado e osseguintes preceitos:Art. 30. Compete aos Municpios: I - legislar sobre assuntos de interesse local; II - suplementar alegislao federal e a estadual no que couber; III - instituir e arrecadar os tributos de suacompetncia, bem como aplicar suas rendas, sem prejuzo da obrigatoriedade de prestar contas epublicar balancetes nos prazos fixados em lei; IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada alegislao estadual; V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concesso ou permisso,os servios pblicos de interesse local, includo o de transporte coletivo, que tem carter essencial; VI- manter, com a cooperao tcnica e financeira da Unio e do Estado, programas de educaoinfantil e de ensino fundamental; (Redao dada pela Emenda Constitucional n 53, de 2006) VII -prestar, com a cooperao tcnica e financeira da Unio e do Estado, servios de atendimento sade da populao; VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, medianteplanejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupao do solo urbano; IX - promover aproteo do patrimnio histrico-cultural local, observada a legislao e a ao fiscalizadora federal eestadual.130TEMER, 2003, p. 105.131BARRETO, Aires F. ISS na Constituio e na lei. 3. ed. So Paulo: Dialtica, 2009a. p. 9.132Nos artigos 21 e 22 esto enumeradas as competncias da Unio e no artigo 30, as competnciasdos Municpios, ficando os Estados com a competncia residual, disposta no artigo 25. Alm disso, o

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    coexistncia das trs ordens jurdicas existentes. Aqui se revela o princpio

    federativo.133

    Dentre essas competncias, leciona Luis Roberto Barroso, est a

    competncia tributria e discriminao de rendas, pois a repousa materialmente o

    princpio federativo, de vez que a medida da autonomia real dos Estados-

    membros134.

    No que respeita s competncias tributrias, a Constituio delimitou bem o

    que coube a cada ente federativo. Os impostos da Unio135 esto descritos no artigo

    153. Alm desses, a Unio poder instituir, mediante lei complementar, impostos

    no previstos no artigo anterior, desde que sejam no cumulativos e no tenham

    fato gerador136 ou base de clculo prprios dos discriminados nessa Constituio e

    na iminncia ou no caso de guerra externa, impostos extraordinrios,

    compreendidos ou no em sua competncia tributria, os quais sero suprimidos,

    gradativamente, cessadas as causas de sua criao, conforme dispe o artigo 154,

    na chamada competncia tributria residual.

    Cabe