Celso frederico - Lukács, Weber e Debord

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PARTE SEGUNDA Celso Frederico MARXISMO WEBERIANO

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PARTE SEGUNDA

Celso Frederico

MARXISMO WEBERIANO

CAPTULO PRIMEIRO

O marxismo weberiano1. Lukcs: trabalho concreto e trabalho abstrato

Merleau-Ponty cunhou a expresso marxismo-weberiano para referir-se linhagem terica inspirada em Histria e conscincia de classe (HCC) . De fato, nesse livro que tanta influncia exerceu no pensamento social do sculo XX, Lukcs procura fazer uma incorporao de idias de Weber em sua tentativa de desenvolver a filosofia marxista. Lukcs, que havia sido discpulo e amigo de Weber e que freqentara as reunies em sua casa, buscava, desse modo, encontrar subsdios tericos para fundamentar a sua primeira grande incurso no marxismo.

No principal ensaio do livro, A reificao e a conscincia do proletariado, Lukcs afirma que o seu objetivo central descobrir na estrutura da relao mercantil o prottipo de todas as formas de objetividade e de todas as formas correspondentes de subjetividade da sociedade burguesa .

Para tanto, ele inspira-se na teoria do fetichismo de Marx para dar conta dos dois aspectos mencionados:

- no plano objetivo, o fato de uma relao entre pessoas manifestar-se como uma relao entre coisas, leva criao de uma objetividade ilusria que pretende apagar os vestgios da prtica social dos homens. A forma-mercadoria assumida pelo trabalho humano espalha-se por todos os poros da sociedade. O resultado final a imagem de um mundo de coisas autnomas, que se movimentam por conta prpria;

no plano subjetivo, a atividade do homem, sua fora de trabalho, torna-se uma mercadoria e, assim, passa a ser regida por princpios alheios e independentes de sua vontade.

Essa universalizao da forma-mercantil, com reflexos objetivos e subjetivos, s se tornou possvel pela presena do trabalho abstrato. Mas aqui surge um ponto de diferenciao entre a teoria de Marx e as idias de Lukcs. Em Marx, o trabalho abstrato surge como a forma atravs da qual se expressa a sociabilidade capitalista. O conceito, assim, remete ao movimento do capital e aos processos de produo e circulao. Lukcs, contrariamente, parte da evoluo do processo de trabalho para, assim, introduzir em seu marxismo as idias de Weber sobre a racionalidade e o clculo. Numa passagem esclarecedora pode-se ler:

Se se seguir o caminho percorrido pela evoluo do processo desde o artesanato, passando pela cooperao e pela manufatura, at a mquino-fatura, v-se nessa evoluo uma progressiva eliminao das propriedades qualitativas humanas e individuais do trabalhador. Com efeito, por um lado o processo de trabalho retalhado em operaes parciais abstratamente racionais, numa proporo sempre crescente, o que destri a relao entre o trabalhador e o produto como totalidade e reduz o seu trabalho a uma funo especial que se repete mecanicamente. Por outro lado, pela racionalizao e em conseqncia desta, o tempo de trabalho socialmente necessrio, fundamento do clculo racional, comea por ser produzido como tempo de trabalho mdio, apreensvel de modo simplesmente emprico, para depois, graas a uma mecanizao e a uma racionalizao cada vez mais adiantadas do processo de trabalho, passar a ser produzido como uma quantidade de trabalho objetivamente calculvel que se ope ao trabalhador qual objetividade consumada e fechada. Com a moderna decomposio psicolgica do processo de trabalho (sistema de Taylor), esta mecanizao racional penetra at a alma do trabalhador: at as suas propriedades psicolgicas so separadas do conjunto de sua personalidade e objetivadas a esta para poderem ser integradas em sistemas racionais especiais e reduzidas ao conceito calculador . Essa longa citao justifica-se pelos desdobramentos que produz no andamento do texto. Observe-se, inicialmente, que o pressuposto do raciocnio a referncia ao trabalho concreto, cuja defesa serve de fio condutor crtica do capitalismo. certo que tal defesa comparece em diversos textos do jovem Marx. Mas, nas obras maduras, o processo de trabalho permanece atrelado ao processo de produo: com isso, a nfase no trabalho concreto cede lugar realidade do trabalho abstrato como critrio para a determinao do valor. A centralidade do valor e de sua realizao em Marx substituda em Lukcs pelo nostlgico apego ao trabalho concreto. O que interessa a Marx a determinao do trabalho abstrato que se configura na troca entre as mercadorias, entendendo-se a troca como um momento do processo produtivo em que os diferentes trabalhos se tornam homogneos, abstratos, mensurveis e, somente assim, podem revelar-se como trabalho social. Por isso, Marx distanciou-se de Ricardo. Diferentemente da economia clssica, a teoria do valor de Marx no se restringe mera quantificao do valor, no apenas uma teoria da medida. O que a ele interessa enfatizar a forma-mercadoria assumida pelo trabalho social dos homens. No estamos no campo da economia pura, mas diante de uma teoria sobre a sociabilidade reificada, prpria do modo de produo capitalista. No Lukcs de HCC, contudo, o trabalho abstrato surge como resultante da decomposio do trabalho concreto. Nas palavras de Antoine Artous: O trabalho abstrato torna-se ento uma categoria que reproduz a decomposio do trabalho em unidades abstratas e individuais sob o efeito do desenvolvimento do processo de trabalho capitalista caracterizado pelo princpio de racionalizao baseado sobre o clculo, sobre a possibilidade de clculo ., portanto, a partir do processo de trabalho, que o movimento de racionalizao/reificao atinge todas as relaes sociais. O impacto avassalador da quantificao leva transformao do operrio em mercadoria . A no distino entre trabalho e fora de trabalho prova das dificuldades conceituais de Lukcs que, aqui, aproxima-se de Ricardo e distancia-se de Marx. Transformado em mercadoria (o que no o distinguiria do escravo), o operrio encarna a alienao absoluta, o completo esvaziamento que, na viso messinica de Lukcs, passa a encarnar a promessa de emancipao.

A weberianizao de Marx cobra, entretanto, seu preo. Marx dizia que um de seus mritos como cientista foi o de ter descoberto o trabalho abstrato como propriedade no natural, mas social, prpria do mundo capitalista. Em Lukcs, ao contrrio, o trabalho abstrato aparece como decorrncia das modificaes no processo de trabalho, vale dizer, da racionalizao entendida como aplicao das cincias empricas no interior da fbrica capitalista. A influncia weberiana aproxima-o da crtica nostlgica da quantificao: A possibilidade de tudo calcular deve abarcar o conjunto das formas de manifestao da vida . Reificao e racionalizao so, assim identificadas. No plano subjetivo, a racionalizao penetra cada vez mais profundamente na conscincia do homem; no plano objetivo, estende-se todas as instituies sociais: Estado, direito, administrao, burocracia etc. adaptam-se racionalizao formal, idntica decomposio de todas as funes sociais nos seus elementos .Seguindo risca Weber, Lukcs endossa a tese de que O Estado moderno, de um ponto de vista sociolgico, uma empresa idntica a uma fbrica. A existncia histrica do Estado, em Marx, em nada se parece com essa aproximao forada com a fbrica capitalista. Em Weber, tal aproximao s se tornou possvel como resultado do inexorvel processo de racionalizao.

Lukcs, contudo, afirma o acerto da identificao Estado/fbrica, a partir do clculo e cita Weber com aprovao: Para existir, [a empresa capitalista] tem necessidade de uma justia e de uma administrao cujo funcionamento possa ser tambm, em princpio, racionalmente calculado segundo slidas regras gerais, tal como se calcula o trabalho previsvel efetuado por uma mquina. Nesse mundo da racionalizao consumada, o prprio juiz mais ou menos uma mquina automtica de distribuio de pargrafos .Sem muito esforo, percebe-se a distncia entre essas citaes entusisticas de Weber e as idias que Marx desenvolveu sobre o direito. Este, pensado como uma decorrncia da forma-mercadoria, como um instrumento de dominao de classe, transferido para a aparente neutralidade do processo de racionalizao.

Um dos mais conceituados discpulos de Lukcs, Istvn Mszros, voltou-se duramente contra o seu antigo mestre por conta desse endosso s teses weberianas em HCC, que, segundo ele, reaparecem, embora com nuances, na Ontologia do ser social. No primeiro livro, o mito da racionalidade teria embotado o senso crtico de Lukcs. Uma das conseqncias incide sobre as relaes dialticas entre uso e troca. A primazia marxiana do uso, em Lukcs, foi subvertida pelo capitalismo de modo que o valor de uso correspondente necessidade adquire o direito existncia apenas quando se ajusta aos imperativos aprioristicos do valor de troca sempre em expanso. O que era, em Marx, uma relao dialtica transforma-se assim num dualismo, em que um dos plos domina o outro, abrindo espao para a cristalizao de novos pares. Diz Mszros: Assim, o concreto subordinado ao abstrato, o qualitativo ao quantitativo, e o espao vivo das interaes humanas produtivas dominado pela tirania da administrao-do-tempo e da contabilidade-do-tempo do capital .

A subordinao do qualitativo ao quantitativo foi uma das teses que mais diretamente influenciaram a recepo de HCC. Acrescente-se a ela a ausncia da natureza como um dos elementos bsicos da teoria marxiana, o que compromete o prprio materialismo e descarta a presena mediadora do trabalho. A considerao da natureza como uma categoria diretamente social o corolrio da identificao idealista entre objetivao e alienao tema tratado por Lukcs no prefcio crtico da edio de 1967. No texto original, contudo, a identificao conflui para a crtica abstrata das cincias da natureza:

Os fatos puros das cincias da natureza surgem, com efeito, assim: um fenmeno da vida transportado, realmente ou em pensamento, para um contexto que permite estudar as leis a que obedece sem a interveno perturbadora de outros fenmenos; este processo ainda reforado por se reduzirem os fenmenos sua pura essncia quantitativa, sua expresso em nmero e em relao de nmero .

A ausncia da natureza e do trabalho como mediador do metabolismo entre homem e natureza e a identificao entre objetivao e alienao, responsveis por essa atitude de desprezo perante o procedimento emprico adotado pelas cincias naturais, deixaram a sua presena na obra de diversos autores. Essa presena, muitas vezes, foi responsvel por uma inflexo irracionalista que critica a cincia ao compreend-la, weberianamente, como a forma prpria de dominao das sociedades desenvolvidas.

Por outro lado, a influncia do marxismo weberiano em alguns autores ir deslocar para a dimenso cultural a crtica ao capitalismo. Com esse procedimento, d-se a confluncia das reflexes marxianas sobre o fetichismo com a temtica da racionalizao. A teoria marxista amplia o seu repertrio temtico, ganhando novos contornos e se enriquecendo as custas, porm, de um abandono da economia poltica.

2. Goldmann: comunidade humana e reificao

Lucien Goldmann foi um dos mais entusiastas divulgadores da obra juvenil de Lukcs, tanto HCC como os livros da fase pr-marxista, como A alma e as formas e A teoria do romance. Com esse referencial, realizou importantes pesquisas sobre a sociologia da cultura. A filiao a Lukcs, contudo, feita de forma muito livre, a comear pelo afastamento em relao ao legado hegeliano.

Para Goldmann, as origens do pensamento dialtico estariam principalmente em Pascal e Kant, os dois representantes do que ele chamou de pensamento trgico aquela forma de pensar que se desenvolveu a partir do sculo XVII como reao ao racionalismo. A teoria sobre a viso trgica foi retirada do livro de Lukcs A alma e as formas, que se estrutura a partir da contraposio entre interioridade e exterioridade, vale dizer, a vida verdadeira e o mundo degradado. Essa oposio irredutvel, que configura a tragdia, encontra no proletariado de HCC a possibilidade objetiva de soluo. O marxismo, para Goldmann, um herdeiro do pensamento trgico, capaz de levar adiante a possibilidade de reconciliao, a aspirao totalidade que j estava presente em Pascal, Kant e nas obras pr-marxistas de Lukcs, mas no tinha meios para se realizar.

Um dos textos mais importantes de Goldmann a conferncia de 1959, A reificao . Nela, retoma a teoria lukacsiana da reificao para enfocar as conseqncias psquicas e intelectuais do fenmeno. Toda a argumentao se desenvolve a partir da oposio entre valor de uso e valor de troca. O primeiro associado vida autntica, enquanto que o valor de troca, ao impor o primado da quantidade, exerce um poder deletrio sobre a comunidade humana. A crtica reificao, portanto, se faz a partir dos valores comunitrios pr-capitalistas que ficaram para trs.

Muitos anos depois, Goldmann voltou ao tema em suas aulas sobre os Grundrisse de Marx. Nelas, a crtica ao primado da quantidade se concentra na existncia do dinheiro como mediador universal e suas influncias negativas sobre a vida dos homens. Aqui, tambm, h uma ligao direta com Simmel de quem, alis, Lukcs havia sido aluno. De novo, a crtica se reveste de um carter nostlgico ao se apoiar numa pretensa vida autntica corroda pelos critrios quantitativos. O antema ao dinheiro, diga-se, foi corroborado pelo jovem Marx, num momento em que ainda no dominava a economia poltica. A esse propsito, remeto a um comentrio que fiz em outro trabalho:

Nas obras maduras de Marx, a compreenso do papel do dinheiro na economia mercantil desloca o eixo da crtica para o capital. No mais o dinheiro o elemento dissolvente da sociabilidade humana, o ser endemoninhado que corrompe os valores humanos. A mesma coisa vale para o predomnio crescente da quantidade sobre a qualidade ou, como quer Goldmann, do valor de troca sobre o valor de uso, tese que supe a pretensa autenticidade do mundo pr-capitalista. O valor de uso, para Marx, no desaparece na troca mercantil: ao contrrio, permanece implcito na mercadoria, pois corresponde s reais necessidades do ser humano (somente o ps-modernismo, vrias dcadas depois, ir retomar a tese da des-substancializao da vida social e do conseqente desaparecimento do valor de uso, numa sociedade que, aparentemente, viveria apenas de consumir ideologia...) .

Cabe acrescentar que o dualismo valor de uso/valor de troca se mantm, no pensamento de Goldmann, s custas da excluso do valor. Mas, a realizao deste ltimo justamente o que central para se entender o funcionamento da economia capitalista, e no a referncia ao valor de troca mera expresso monetria do valor, a sua forma fenomenal.

graas ao valor embutido na mercadoria que se revela o carter social do trabalho dos produtores particulares, dos indivduos dispersos na sociedade mercantil. Na esfera da circulao, no momento da troca em que as diversas mercadorias se encontram, a sociedade aparentemente fragmentada revela a sua unidade. Nesse instante, os trabalhos privados revelam seu carter social, isto , tornam-se, nas condies prprias do mundo burgus, trabalho abstrato.

A economia poltica, para Marx, uma cincia social que trata das relaes entre os homens, as quais, no capitalismo, revestem-se desta forma reificada. O valor, portanto, uma realizao especfica do capitalismo, uma realidade puramente social. E reside a a dificuldade que sempre acompanhou as interminveis discusses sobre o valor. O prprio Marx, alis, em seus primeiros trabalhos juvenis negou a teoria do valor para, depois, aceit-la em sua verso ricardiana. Nas obras de maturidade pode finalmente desenvolver sua prpria teoria para, com ela, ir alm da mera determinao da medida e, assim, revelar a sociabilidade prpria da sociedade mercantil.

A dificuldade para se entender a teoria marxiana do valor repousa em seu carter ontolgico e dialtico. Alguns autores viram nele uma divagao metafsica de Marx, um mero exerccio especulativo. O valor, entretanto, antes de ser uma categoria abstrata foi posto na realidade pela prtica social dos homens; possua uma realidade efetiva, pois graas a ele se tornou possvel a comparao e a troca de mercadorias. Os economistas clssicos constataram sua existncia, mas no souberam tirar todas as conseqncias tericas. As correntes inspiradas no kantismo, por sua vez, apegaram-se idia de valor como constructo mental. Depois, a tradio positivista passou a olhar com desconfiana essa objetividade que no nos fornecida de modo imediato, que no captada pela senso-percepo. De fato, a teoria marxiana do valor um escndalo para a razo analtica. Como possvel aceitar a contradio entre valor e valor de uso que habita na mercadoria? Como conferir credibilidade cientfica compreenso do valor como um no-ser, uma sombra que acompanha a substncia corprea da mercadoria, uma alma que a prpria verdade do objeto?

Goldmann, crtico implacvel do positivismo, no percebeu as implicaes dialticas da teoria do valor. A oposio goldmanniana entre valor de uso e valor de troca, por sua vez, cruza com a teoria da alienao do jovem Marx. Com esse referencial, Goldmann procura enfocar a oposio entre o mundo humano do trabalho e os objetos alienados que ele produz. O horizonte que se abre a luta contra a realidade desumana do mundo quantificado em nome da utopia: a realizao dos valores humanos. Em Marx, contrariamente, no h utopia: a luta de classes um processo imanente conduzido pelo movimento do capital, a contradio em movimento.

3. Adorno e Horkheimer: o triunfo da Administrao

Se a reificao permanece submetida problemtica geral da alienao em Goldmann, em Adorno e Horkheimer ela se identifica com o processo de racionalizao/reificao, tal como tematizado por Weber e e Marx e desenvolvido por Lukcs em HCC. H, entretanto, diferenas que devem ser assinaladas tanto em relao a Weber e Marx quanto a Lukcs.

1) O processo de racionalizao, como caracterstica da sociedade ocidental, um fenmeno que Weber circunscreve ao mundo moderno. A reificao, em Marx, configura-se como uma caracterstica exclusiva da sociabilidade do mundo burgus. Em Adorno e Horkheimer, estamos diante de um processo trans-histrico presente em quase todo o processo civilizatrio. A dialtica do esclarecimento o movimento atravs do qual os homens procuraram se livrar da magia, do medo da natureza, atravs da cincia. Mas, o controle da natureza revelou-se como um poderoso controle sobre os prprios homens. O esclarecimento no se identifica com o Iluminismo, aquela corrente de idias do sculo XVIII. A emergncia da razo manipuladora em seu af de domar a natureza remonta mitologia, Odissia de Ulisses e segue seu curso inexorvel at a consolidao da sociedade administrada.

A pergunta filosfica sobre o porqu das coisas, dizem os tericos frankfurteanos, foi substituda pelo como: para a razo, agora, conhecer manipular. Por isso, nesse desejo calculista, o nmero tornou-se o cnon do esclarecimento . As consideraes qualitativas, concernentes essncia, sairam de cena.

Toda essa argumentao tem como pano de fundo a teoria do valor desenvolvida por Marx, utilizada para a compreenso das formas de pensamento do mundo administrado. Essa mesma lei serve de pano de referncia para a anlise dos descaminhos da cultura.

Como se sabe, a teoria do valor, em Marx, o princpio que regula o intercmbio das mercadorias no mundo capitalista. O valor no decorre da vontade subjetiva do fabricante, mas uma medida objetiva derivada da durao do trabalho, do tempo necessrio produo. A mercadoria, portanto, vendida no pelo que o produtor imagina ou deseja que ela valha no se trata de algo subjetivo. O valor (o tempo de trabalho socialmente necessrio) algo objetivo, que se impe aos indivduos.

Como medida objetiva, o valor permite a comparao e a troca de mercadorias com valores de uso diferentes e em quantidades diferentes. O que conta, para Marx, no o trabalho individual, mas a mdia, o tempo de trabalho socialmente necessrio para se fabricar a mercadoria, que dissolve as particularidades dos diferentes trabalhos concretos.

Na produo capitalista reina um critrio quantitativo (a durao do indiferente trabalho abstrato) que se impe sobre as caractersticas qualitativas dos diferentes trabalhos humanos concretos. Nessa realidade, os critrios qualitativos desaparecem. No preciso muito esforo para se entenderem as conseqncias desse processo na vida dos homens: vivemos em um mundo dominado pela quantidade, por um critrio abstrato, matemtico, indiferente s consideraes qualitativas.

Dessa breve caracterizao j se pode antever os temas que Adorno e Horkheimer iro retirar de Marx o carter abstrato da produo capitalista (que se estende ao conjunto da vida social) e a existncia de uma medida regulando o intercmbio entre os homens e submetendo as qualidades, as diferenas, ao critrio quantitativo, mercantil. Dizem os autores: A sociedade burguesa est dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogneo comparado, reduzindo-a a grandezas abstratas. Para o esclarecimento, aquilo que no se reduz a nmeros e, por fim, ao uno, passa a ser iluso: o positivismo moderno remete-o para a literatura. Unidade continua a ser a divisa, de Parmnides a Russel. O que se continua a exigir insistentemente a destruio dos deuses e das qualidades" .

A sociedade burguesa vive assim sob o domnio nivelador do abstrato. De um lado, a presena do equivalente submete as qualidades, diferenas, ao critrio quantitativo mercantil. A odiosa identidade, to execrada pela dialtica negativa de Adorno, faz-se presente como caracterstica definidora da sociabilidade moderna. De outro lado, essa caracterstica, fincada na lei do valor, serve para os tericos frankfurteanos desenvolverem um diagnstico sobre a crise da cultura. Sob a regncia do equivalente, tudo reduzido a grandezas abstratas e passvel de reproduo (esse um dos pontos de arranque da teoria sobre a indstria cultural e da crtica que Adorno dirige a Walter Benjamin).

Contra esse estado de coisas, Adorno, em outro texto, afirma a sua conhecida definio de cultura: reivindicao perene do particular frente generalidade . A cultura, portanto, uma esfera negativa, utpica, capaz de opor resistncia ao mundo das grandezas abstratas, ao mundo administrado.

Cultura e administrao, em Adorno, so termos opostos. A primeira a reivindicao do particular contra o geral, do qualitativo contra o quantitativo, da espontaneidade contra o planejamento. A administrao, contrariamente, representa o geral frente ao particular: ela extrnseca, externa ao mundo administrado. Ela submete as coisas, classifica-as, coloca-as em escaninhos separados, mas no as compreende. Num mundo cada vez mais unificado, graas vigncia da lei do valor, a administrao depara com a cultura e procura enquadr-la. Mas, os seus critrios, as suas normas, nada tm a ver com a cultura, com a qualidade do objeto, com o seu valor de uso.

Apesar da resistncia cultural, a administrao, em Adorno, segue uma lgica que vai ao mesmo tempo alm e contra o diagnstico weberiano. A imagem final da gaiola de ferro, projetada com um fim da civilizao ocidental em Weber j se encontra plenamente realizada em Adorno. Por isso mesmo, ele se volta contra o contedo da teoria da racionalizao. A tese do triunfo da ao racional com relao a fins, tal como foi originalmente formulada, no levou em conta a irracionalidade dos fins. Nos tempos modernos, a razo se tornou a finalidade sem fim, o que nos termos da Dialtica do esclarecimento significa uma recada no mito. Portanto, se os meios so racionais, os fins no o so. Para Adorno, a razo ensandecida tornou-se uma finalidade sem fim. Weber, portanto, em sua teoria sobre a racionalizao, teria parado no meio do caminho ao no questionar a irracionalidade dos fins razo pela qual Adorno o inclui, sem mais, como um dos representantes do pensamento administrativo.

A crtica a Weber completa-se com a rejeio da proposta de uma sociologia compreensiva. Tal proposta lhe parece unilateral, pois tentar conhecer a sociedade por dentro, atravs do sentido que os indivduos conferem sua ao, exclui aquilo que na sociedade contrrio sua identificao por parte dos sujeitos da compreenso .

A centralidade conferida ao sentido imputado aos sujeitos da ao social criticada por Adorno como sendo o reverso da sociologia emprica esta tambm restrita a pesquisas cujo referencial ltimo acaba sendo a opinio subjetiva dos indivduos. Em seu estgio nos Estados Unidos, Adorno fora um crtico implacvel do empirismo funcionalista. Ao voltar para a Alemanha, contudo, ele depara com a antiga tradio de estudos que entendia a sociologia como uma cincia do esprito. A crtica a Weber deve ser entendida nesse contexto. Diz Adorno: O conceito alemo de compreenso (Verstehen) das primeiras dcadas do sculo XX a secularizao do Esprito (Geist) hegeliano a totalidade que levar ao conceito em forma de atos singulares ou de tipos ideais, sem ter em conta a totalidade da sociedade, da qual em verdade extraem seu sentido os fenmenos que h que compreender. A sociologia, como cincia do esprito, diz Adorno, precisa do antdoto que so os mtodos empricos. Estes, refletem o desenvolvimento da prpria realidade tanto constituem uma expresso da situao concreta como um instrumento adequado para a descrever e entender. Numa sociedade padronizada, o positivismo contm esse elemento verdadeiro: traduz e duplica a existncia de um mundo falso.

A aparente defesa dos mtodos empricos, sua superioridade em relao ao ideal germnico de transformar a sociologia numa cincia do esprito, no implica, evidentemente, em recuo. Trata-se apenas de um recurso terico para combater a nfase subjetiva no sentido da ao social:

Num mundo dominado por leis econmicas que se impem acima da cabea dos homens, seria ilusrio pretender compreender os fenmenos sociais como fenmenos que, por princpio, esto dotados de sentido .

2) Tambm em relao ao Lukcs de HCC, Adorno mantm a mesma relao de apropriao e crtica. O ponto de continuidade dado pela teoria da reificao. Mas, aqui, repete-se o mesmo movimento realizado na crtica a Weber: desenvolve-se uma teoria at o seu ponto extremo para, da, volt-la contra o seu criador.

A teoria marxiana da reificao, qual Lukcs incorporou a teoria weberiana da racionalizao, levada s ltimas conseqncias por Adorno. Segundo afirma, a plena realizao da razo produz resultados irracionais que solapam o edifcio lgico-hegeliano construdo por Lukcs. A consumao da dominao burocrtica ps fim s esperanas revolucionrias e ao papel atribudo classe operria. A idia de um sujeito-objeto idntico, encarnado pelo proletariado revolucionrio, negada num registro terico abstrato: ela reproduziria a prpria vitria da reificao representada pela razo manipuladora em seu af de gerar incessantemente a identidade o cancelamento das irredutveis diferenas entre o sujeito e o objeto.

Em Lukcs, a reificao da vida social atinge de diferentes modos as formas de conscincia social. O pensamento burgus permanece prisioneiro das insuperveis antinomias, mas o proletariado, em sua atividade revolucionria, pode tornar-se um sujeito-objeto idntico, um ser auto-consciente. Interessante observar aqui que a unidade entre sujeito/objeto, em Hegel s se realizaria no longnquo momento final do Absoluto. Lukcs, indo alm de Hegel, via a realizao da unidade prestes a se efetivar no histria profana dos homens...

O momento da reconciliao, em Lukcs, momento em que o objeto da explorao capitalista o proletariado chega conscincia e se afirma como sujeito da histria, tem sua explicao ltima na prpria lgica hegeliana (a passagem da substncia sujeito), explicao qual se acrescenta, como pano de fundo materialista, a teoria das crises em Marx.

Adorno, contrariamente, recusa o momento da reconciliao que, segundo ele repe, fora, a identidade e, assim fazendo, neutraliza as diferenas que ele tanto preza. dmarche logicista de Lukcs, Adorno ope um procedimento emprico que procura encontrar nos fatos da realidade os elementos que negam a pretendida identidade sujeito-objeto encarnada pelo proletariado revolucionrio. E esses elementos so encontrados em sua teoria psicologizante sobre o fascismo e a cultura de massas .

Convm lembrar que mesmo antes de formular essas teorias para explicar a acomodao da classe operria, Adorno sempre insistiu no carter assimtrico da relao sujeito-objeto . A dialtica negativa de Adorno recusa-se a aceitar a integrao entre sujeito e objeto, a superao/conservao que em Hegel se realiza no momento da sntese. Em vrios momentos de sua obra descarta qualquer soluo amigvel, qualquer compromisso que possibilite a reconciliao feliz do sujeito com o objeto. Essa reconciliao, presente em Hegel e Lukcs, s pode existir, segundo afirma, no pensamento idealista pois, para este, tanto o sujeito como o objeto so concebidos como Idia. A esse propsito afirma: Se, segundo Hegel, o sujeito pode entregar-se por completo e sem reservas ao objeto, coisa mesma, porque esta se revela no curso do processo como o que j , em si, sujeito .

O primado materialista do objeto, reivindicada por Adorno, deve ser entendido a partir da dialtica que revela a objetificao do sujeito e a subjetivao do objeto e, assim, demonstra o carter assimtrico dessa relao em que o objeto s pode ser pensado por meio do sujeito; mas se mantm sempre a este como outro .

A assimetria dessa relao, vital no pensamento de Adorno, adquire tons dramticos a partir do momento em que a reificao se expande e ameaa diretamente o sujeito. Nas palavras do autor: o predomnio do objetivado nos sujeitos, que os impede a chegar a tais, impede, tambm, o conhecimento do objetivo . Aqui, no somente o sujeito coletivo, o proletariado de HCC que deixa de contar, mas o prprio sujeito individual, to caro a Adorno, que entra em crise terminal.

De qualquer modo, o carter irredutvel da oposio entre sujeito e objeto mantido por Adorno e lhe serve de referncia para criticar os autores que se atrelam de modo unilateral em um dos dois plos. Basta lembrar sua crtica a Weber, autor que paradoxalmente fixava-se no sentido subjetivo imputado ao sujeito da ao social no instante de sua queda, isto , justamente no momento em que a racionalizao se impe de modo avassalador. Num plo oposto, encontra-se mile Durkheim e sua insistncia em definir o objeto da sociologia os fatos sociais- como coisas. Adorno compartilha com Durkheim a tese materialista do primado do objeto, mas considera ser mera aparncia a definio do carter de coisa ao mundo exterior, pois induz os sujeitos a atribuir s coisas em si o carter social de sua produo. Durkheim, portanto, permanece, segundo Adorno, prisioneiro do fetichismo: que a mercadoria seja um fetiche no posta na conta de uma conscincia equivocada subjetivamente, seno que est deduzido objetivamente do apriori social, o carter de troca . A relao positiva, imediata, que o socilogo francs queria manter com a realidade o impede de ascender ao conhecimento verdadeiro, aquele que visualiza a sociedade como o no-idntico, como coao.

Assim, num plano terico abstrato, sujeito e objeto so pensados em sua insupervel alteridade. Mas, tais idias tem um pressuposto na prpria estrutura da vida social e, tambm aqui, Adorno distancia-se de Lukcs.

A teoria da conscincia de classe e sua possvel vitria sobre a reificao baseava-se no carter contraditrio do processo de racionalizao do mundo burgus e na ocorrncia das crises que permitiam revelar a verdade da explorao. Lukcs, portanto, apoiava-se diretamente em Marx. Adorno, escrevendo algumas dcadas depois, parte da constatao da mudana estrutural ocorrida no modo de produo capitalista. interessante notar a propsito que Adorno e Horkheimer afirmam sempre, como materialistas, o primado do objeto. Mas nunca se dedicaram economia poltica. Entretanto, h um pressuposto subjacente a tudo o que escreveram: a mudana estrutural da sociedade capitalista. A referncia que informa suas reflexes est dada num texto do economista da Escola de Frankfurt, Friedrich Pollock que, j nos anos 30, defendia a tese segundo a qual o capitalismo havia entrado numa nova fase que ele chama de capitalismo de Estado. O novo momento caracteriza-se pela presena frrea do Estado na vida econmica da sociedade que teria posto fim concorrncia. A economia, portanto, passa a ser dirigida pelo Estado, o que equivale a dizer que a economia ficou submetida poltica. Nas palavras de Pollock:

Por mais advertidos que sejamos, somos incapazes de descobrir qualquer fora econmica inerente, leis econmicas do velho ou do novo tipo, que poderiam impedir o funcionamento do capitalismo de estado. O controle governamental dos meios de produo e distribuio fornece os meios para eliminar as causas econmicas das depresses, processos acumulativos destrutivos e desemprego de capital e trabalho. Ns podemos inclusive dizer que sob o estado capitalista a economia como cincia autnoma perdeu o seu objeto. Problemas econmicos, no velho sentido, h tempos no mais existem, uma vez que a coordenao de toda atividade efetivada atravs de um plano consciente ao invs de o ser pelas leis naturais do mercado .

Pollock, como se v, decretou o fim da economia poltica uma cincia que perdeu o seu objeto (o estudo dos fenmenos econmicos enquanto instncia autnoma). Esse diagnstico, aceito de uma vez para sempre como verdadeiro, est presente em todo o pensamento dos frankfurteanos, dispensando-os de voltar ao tema para acompanhar as incessantes metamorfoses do modo de produo capitalista.

As conseqncias dessa teoria so facilmente reconhecveis: o fim da concorrncia acarretou um fechamento do sistema; a burocratizao, envolvendo o Estado e as corporaes, fez da poltica uma mera tcnica administrativa; a monopolizao permitiu controlar as crises cclicas do capitalismo e promover a estabilidade social; finalmente, nesse contexto de controle crescente um mundo sem concorrncia e sem fissuras o sindicalismo burocratizado (e, portanto, funcionando segundo a lgica das demais empresas capitalistas) foi cooptado desaparece, assim, o antigo potencial emancipador da classe operria.

A nfase marxista e lukacsiana na explorao (cuja base a atividade econmica) cede lugar weberiana dominao, termo recorrente na obra de Adorno que, dando por conhecida a infraestrutura, pode concentrar-se exclusivamente no fenmenos superestruturais para acompanhar as novas formas em que se realiza a dominao. Toda a sua crtica sociedade administrada, feita revelia da economia poltica, insere-se, assim, no interior da problemtica weberiana da burocracia e da dominao, distanciando-se da determinao da base material, tal como ocorre de modo problemtico em HCC.

CAPTULO SEGUNDO

TRANSPARNCIA, OPACIDADE E FANTASMAGORIA EM MARX E WEBER1.Marx: as razes da teoria do fetichismo

A problemtica do fetichismo da mercadoria tal como foi desenvolvida por Marx vem sendo retomada com freqncia pelo pensamento social a partir da segunda metade do sculo XX. Nesse novo quadrante da histria, as metamorfoses do modo de produo capitalista, que passou progressivamente a girar em torno do capital financeiro, reforam a imagem de um mundo fantasmagrico esforando-se por manter ocultas as origens humanas da riqueza material. Por isso mesmo, as reflexes marxianas sobre o fetichismo tm sido utilizadas como ponto de partida para caracterizar o conjunto de fenmenos que perturbam e inviabilizam a percepo social dos indivduos.

Mesmo autores que seguem a direo contrria, como Althusser, sentem-se incomodados com aquelas pginas enigmticas nas quais Marx teria flertado com o vocabulrio hegeliano. Marx, como sabido, no momento de escrever O capital releu a Cincia da lgica de Hegel. Uma anlise mais atenta mostra que a relao com Hegel no permaneceu num simples flerte, assim como tambm no se podem considerar as reflexes sobre o fetichismo como uma mera digresso. O captulo sobre o fetichismo da mercadoria, como sabem os leitores de Rubin, a base de todo o sistema econmico de Marx, particularmente de sua teoria do valor .

Se a presena de Hegel conhecida por alguns e reconhecida a contragosto por outros, pouco se sabe de uma outra influncia: a do esteta alemo Friedrich Theodor Vischer, objeto de estudo de Marx em 1857 e 1858, momento em que preparava a redao de suas obras econmicas. Esse fato foi apontado por Mikhail Lifshitz, refinado crtico literrio russo, que em 1930 organizou com a colaborao de Lukcs os textos inditos de Marx e Engels (entre outros, os Manuscritos econmico-filosficos de 1844 e a correspondncia entre os dois amigos).

Segundo Lifshitz, o que interessava a Marx no era o esttico enquanto tal, mas o seu contrrio: na poca da redao de O capital interessavam a Marx as categorias e formas que se encontram no limite do propriamente esttico, em sua analogia com o mundo invertido e contranatural da economia capitalista .

Analisando as anotaes dos cadernos deixados por Marx, Lifshitz observou que as citaes reproduzidas do livro de Vischer centravam-se na questo das relaes recprocas entre a natureza fsica das coisas e sua importncia esttica. Esta no aparece como propriedade natural das coisas. Em sua materialidade no est contida nem um tomo daquilo que se chama beleza. O belo existe somente para a conscincia, assim interpreta Marx as idias de Vischer . Aos leitores de O capital essas expresses soam familiares: quando fala do valor enquanto realidade apenas social, Marx afirma que em contraste direto com a palpvel materialidade da mercadoria, nenhum tomo de matria se encerra no seu valor .

Ao considerar a beleza uma criao humana, as observaes de Vischer voltam-se contra o naturalismo, que a tinha como qualidade prpria do objeto, nivelando assim os homens s coisas. Essa diferenciao, segundo Lifshitz, faz com que Marx relacione a questo do valor esttico com o descobrimento do fetichismo mercantil e assim chega soluo do problema do subjetivo e o objetivo na economia .

Outro ponto que aproxima a esttica da economia so os captulos dedicados discusso do sublime, momento em que o qualitativo se transforma em quantitativo. Contra a unidade harmnica representada pela obra de arte, o mundo degradado volta-se para a destruio da medida. Hegel j havia observado a respeito que na sociedade capitalista reina o desmedido como medida. Marx retoma a dialtica da medida para caracterizar o movimento insacivel do capital e mostrar como ele se torna hostil atividade artstica.

Terry Eagleton, ao referir-se s pesquisas de Lifshitz, comenta que a mercadoria uma caricatura amedrontada do objeto artstico autntico, ao mesmo tempo reificada num objeto brutalmente singular e virulentamente antimaterial, na sua forma; densamente corprea e fugidiamente espectral. Como sugere W. J. T. Mitchell, os termos que Marx usa para caracterizar a mercadoria so tirados do lxico da esttica e da hermenutica romnticas. Em seguida, Eagleton avana uma caracterizao da mercadoria que antecipa os temas de que iremos tratar nesse captulo:

A mercadoria, para Marx, o lugar de uma curiosa perturbao das relaes entre o esprito e os sentidos, a forma e o contedo, o universal e o particular: ela , e ao mesmo tempo no , um objeto, perceptvel e imperceptvel pelos sentidos, como ele comenta em O capital; ela uma falsa concretizao mas tambm uma falsa abstrao das relaes sociais. Numa lgica mistificante agora voc v, agora voc no v -, a mercadoria est ao mesmo tempo presente e ausente; ela uma entidade tangvel cujo significado inteiramente imaterial e est sempre alhures, nas suas relaes de troca com outros objetos. Seu valor excntrico a si mesmo, sua alma ou essncia deslocada para outra mercadoria, cuja essncia est igualmente noutro lugar, num deferir incessante de identidade. Num ato de profundo narcisismo, a mercadoria considera todas as outras mercadorias como a forma da aparncia de seu prprio valor e vive impaciente em trocar seu corpo e sua alma por elas. Ela friamente desconectada de seu prprio corpo, j que a existncia das coisas enquanto mercadorias e a relao de valor entre os produtos de trabalho que as sela como mercadorias no tm absolutamente nenhuma conexo com suas propriedades fsicas e com as relaes materiais conseqentes delas. A mercadoria um fenmeno esquizide e autocontraditrio, um mero smbolo de si mesmo, uma entidade cujo significado e cujo ser so inteiramente divergentes e cujo corpo sensvel existe somente como um portador contingente de sua forma externa .

Perante tanto mistrio, diversos autores nem todos marxistas se deixaram cativar pelo fetichismo da mercadoria e introduziram novas angulaes e ingredientes no estudo do fenmeno. Veremos, em seguida, como Marx paulatinamente construiu sua teorizao sobre o fetichismo para, no captulo seguinte, focalizar a sua retomada em outros autores.

2.O crebro e a mo

A expresso fetichismo foi retirada por Marx do livro de Charles de Brosses, Du culte des dieux ftiches, publicado em 1760. A palavra fetichismo aparece assim empregada para designar a religio dos povos ditos selvagens. Em 1842, Marx leu a traduo desse livro em alemo e utiliza pela primeira vez a expresso fetichismo no artigo de 3 de novembro de 1842 sobre o roubo de lenha .

A atribuio de qualidades mgicas a produtos feitos pela mo do homem era acompanhada pelo esquecimento da origem humana desses produtos, adorados como divindades a que todos se subordinavam. Este significado original, que enfatiza a inverso produzida pelo fenmeno do fetichismo, acompanhar as teorizaes futuras feitas pela antropologia, economia e psicanlise.

Marx, como vimos, referiu-se tambm ao fetichismo quando estudava questes relativas arte. Segundo Lifishitz, Marx, em 1842, estava elaborando um Tratado sobre a arte crist e dois artigos, Sobre a arte religiosa e Sobre os romnticos . A leitura de De Brosses serviu-lhe ento para contrapor a atividade criadora do homem, tal como se expressava na arte grega, arte crist da era posterior clssica que havia regredido a um primitivo naturalismo fetichista. A cosmoviso religiosa, assim, barrava o desenvolvimento do que Lukcs iria chamar em sua Esttica de o carter antropomorfizador da arte, fazendo-a voltar contemplao dos objetos. Diz Lifihitz, resumindo as anotaes de Marx:

A essncia fetichista da religio reside na adorao da natureza material dos objetos, na transmisso de particularidades humanas a eles. Freqentemente, se supe que esses objetos de adorao so somente smbolos, a forma de imaginao na qual existe um sentido especial para os crentes. Mas isto no assim. Os objetos do culto fetichista no so smbolos, mas existncia real, no so forma, mas matria. Em seu carter de coisa como tal, o homem v a fonte de toda salvao, sua figura natural substitui para ele a expresso de suas prprias foras .

O jovem Marx, nesse perodo em que empreendia um combate com o legado hegeliano, socorreu-se diversas vezes na filosofia de Feuerbach, o primeiro autor a apontar a necessidade de se inverter a filosofia hegeliana que mistificava as relaes entre ser e predicado, j que derivava o mundo real das idias, transformando, assim, a filosofia numa teologia disfarada. A partir de ento, a proposta de inverso materialista serviu-lhe para denunciar as formas mistificadas de conscincia.

Nesse registro, a reflexo sobre o fetichismo inserida no interior de uma problemtica mais geral concernente a uma forma especial de inverso: a ideologia. desse modo que Marx e Engels criticam os jovens hegelianos: os produtos da conscincia, em vez de serem vistos por eles como reflexos do mundo real ganham autonomia, assim como o fetichismo nas religies primitivas. Como conseqncia, os verdadeiros grilhes que aprisionam os homens seriam os produtos da conscincia mistificada. Toda a luta social, portanto, reduzida pelos jovens-hegelianos luta contra essas iluses da conscincia, transformao da conscincia .

No preciso ser um fervoroso adepto da interpretao althusseriana do marxismo para se perceber que o tema da inverso reaparece em O capital num contexto terico bem diferente. No se trata mais dos produtos do crebro humano, que ganharam autonomia, vida prpria, mas sim dos produtos da mo humana. Diz Marx: Chamo a isto de fetichismo, que est sempre grudado nos produtos do trabalho, quando so gerados como mercadorias. inseparvel da produo de mercadorias .

Marx refere-se aqui sociedade que se dedica basicamente produo mercantil, ao capitalismo, uma vez que a mercadoria h muito existia nas formaes sociais anteriores. somente no capitalismo que o processo de mercantilizao invade todos os poros da vida social, em tudo imprimindo a forma-mercadoria, a comear pela fora de trabalho. Esta uma das caractersticas bsicas do capitalismo que no pde ser compreendida pela economia clssica, que tratava a produo de mercadorias como uma forma universal de produo.

A partir da entende-se a ruptura com a economia clssica e entendem-se tambm os temas centrais desenvolvidos por Marx. O valor, por exemplo, no se restringe mais ao trabalho em geral, como na teoria ricardiana. somente ao tornar-se mercadoria que a fora de trabalho pode ser pensada sob aquela forma abstrata que iguala os diferentes para, assim fazendo, comparar o valor dos produtos do trabalho. Na aparncia da coisas, como diz Marx, a igualdade dos trabalhos humanos fica disfarada sob a forma da igualdade dos produtos como valores .

A transformao do produto do trabalho humano em mercadoria faz com que esta ganhe uma qualidade social que no se confunde com a sua materialidade fsica. Como realidade puramente social, as mercadorias apresentam uma objetividade prpria, tornam-se coisas sociais, coisas sensveis suprasensveis.

O trabalho abstrato produz portanto um duplo resultado: ele abstrai as diferenas entre os diversos trabalhos humanos e, por extenso, abstrai os diferentes valores de uso das mercadorias para igual-los na troca. Nos dois casos, ocorre uma separao, seja das qualidades individuais do trabalho, seja dos valores de uso especficos de cada mercadoria trocada. Essa separao que abstrai as qualidades intrnsecas repe o tema da alienao num nvel de concretude bem distante de suas aplicaes filosofantes presentes nas obras juvenis de Marx. Observe-se tambm o retorno de um outro topos juvenil: a proposta da inverso materialista. O trabalho humano criador de valor de uso, a razo de ser dos objetos, transforma-se em mero suporte do valor. A inverso entre sujeito e predicado mote da crtica feurbachiana a Hegel reaparece para denunciar as fantasmagorias do mundo burgus. E estas so muitas: a mercadoria, uma coisa sensvel, um objeto, manifesta-se como representante do supra-sensvel (o valor); o trabalho concreto dos indivduos reaparece no mercado sob a forma de seu contrrio (trabalho abstrato); o trabalho privado dos indivduos desponta no mercado como trabalho social; enfim, tudo o que era meio transforma-se em fim: a mediao autonomizada parece comandar todo o processo de produo.

Assiste-se, assim, confluncia entre as teorias do valor, da alienao e do fetichismo.

Tanto a dialtica idealista como o empirismo sofrem assim uma inesperada subverso. A dialtica, posta com os ps no cho, afirma em sua verso materialista que a contradio est entranhada nas prprias coisas e, s por isso, pode ser depois reproduzida pelo pensamento. Essa coisa (mercadoria) que intrigava a economia clssica , portanto, a prpria expresso da contraditoriedade: a mercadoria , ao mesmo tempo, um ser sensvel, um corpo, um dado visvel e, tambm, um no-ser, uma alma, um segredo. A mercadoria enquanto valor de uso coisa fsica, captvel pela senso-percepo, mas tambm valor, algo que no se revela imediatamente aos nossos olhos.

Reside justamente a o fetichismo enquanto especificidade de uma forma de produo que esconde os seus vestgios, de uma realidade fantasmagrica na qual as relaes sociais entre os homens aparecem reificadas. Por isso, as mercadorias parecem movimentar-se por conta prpria. O fetichismo no , portanto, nem uma mistificao da conscincia, um erro do intelecto (algo que poderia ser corrigido) e nem significa a substituio da realidade social pelo jogo aleatrio das coisas que se autonomizaram. Marx foi claro quando lembrou que no com seus ps que as mercadorias vo ao mercado, nem se trocam por deciso prpria. Temos, portanto, de procurar seus responsveis, seus donos .

A fantasmagoria assim apresentada guarda uma analogia, mas somente uma analogia, com o papel desempenhado pela religio nas sociedades pr-capitalistas. Nestas, o poder estruturador da religio manifesta-se com sua conhecida eficcia. Mas, a religio um produto do crebro; a mercadoria, no mundo capitalista, como produto da mo humana, reveste-se de uma materialidade indiscutvel que em nada se assemelha s iluses da conscincia.

A contraditria dualidade da mercadoria valor de uso e valor marca tambm uma continuidade e uma ruptura com a perspectiva filosfica hegeliana.

A progressiva realizao da razo, em Hegel, aponta para um final feliz: o da reconciliao. Nesse longnquo momento, realiza-se a iluminao, a epifania, a superao de todas as alienaes numa unidade conciliadora. Karel Kosik observa a existncia de uma motivao literria comum a Hegel e Marx: a odissia, a viagem enriquecedora que proporciona o autoconhecimento. Na Fenomenologia do esprito trata-se, segundo as palavras do prprio Hegel, da viagem da alma que atravessa a srie de suas formas como uma srie de etapas para que, com plena conscincia de si mesma possa atingir o conhecimento daquilo que ela por si mesma .

Em Marx, a odissia narra a peregrinao do ser social, aquele ser que saltou fora da natureza atravs da criao dos instrumentos de trabalho, dando, assim, incio ao processo civilizatrio. Trata-se, aqui, de uma realidade material, posta em movimento pela prxis social dos homens e pelo desenvolvimento das foras produtivas e no mais pelo autodesenvolvimento da conscincia.

O progressivo conhecimento e controle da natureza por parte dos homens no caminha para uma unidade, para a reconciliao. Para Marx, objetivao no o mesmo que alienao, como em Hegel. As objetivaes do homem na natureza e na sociedade no se confundem com o movimento sucessivo de perda e recuperao da conscincia. Se assim fosse, a superao da alienao implicaria no cancelamento da prpria realidade. As objetivaes, em Marx, tm um carter perene, pois dizem respeito s relaes entre o homem e a natureza mediadas pelo trabalho. J a alienao uma realidade adversa posta num determinado momento da vida social e que pode ser cancelada pela ao consciente dos homens.

De qualquer modo, a imagem da transparncia permanece em Marx nessa perspectiva de progressivo conhecimento da natureza e remoo dos entraves sociais decorrentes da alienao. O comunismo seria o momento em que a sociedade se torna plenamente racional, em que desaparecem as contradies que acompanharam at ento a produo social da existncia. Mas, antes disso, j na sociedade capitalista, com a dissoluo dos laos religiosos e da tradio nas guas geladas do clculo egosta, o carter social da existncia tornou-se finalmente visvel. Assim, afirma o Manifesto do partido comunista, dissolvem-se todas as relaes sociais antigas e cristalizadas, com o seu cortejo de representaes e concepes secularmente veneradas; todas as relaes que as substituem envelhecem antes de se consolidarem. Tudo o que era slido e estvel se dissolve no ar, tudo o que era sagrado profanado e os homens so enfim obrigados a encarar sem iluses a sua posio social e as suas relaes recprocas .

Esse otimismo ser, contudo, desmentido nas anlises sobre o fenmeno do fetichismo de que Marx trata a partir de 1857. A transparncia sugerida pela irrupo do capitalismo que obriga os homens a encarar, sem iluses, a sua posio social e as suas relaes recprocas cede lugar opacidade de uma realidade socialmente deformada. O carter social da existncia humana despregada dos vus do sentimentalismo e da tutela religiosa, sua racionalidade e frieza posta aos olhos de todos, convive com uma poderosa contra-tendncia.

Marx recorre novamente analogia com a religio ao dizer que o capitalismo um mundo encantado, distorcido e posto de cabea para baixo, um mundo em que as coisas (terra, capital) exercem suas fantasmagorias, tornando-se a religio da vida cotidiana .

Fetichismo da mercadoria, do dinheiro, da terra e de sua forma mais perfeita: o capital, o valor que se valoriza a si mesmo, que no traz a menor cicatriz de seu nascimento, que desponta como a prima donna do processo produtivo, relegando o trabalho humano a mero coadjuvante. Fetichismo e reificao surgem, assim, como os dois lados de uma mesma moeda.

No mundo encantado do capitalismo, o mercado, esta venervel entidade, o lugar em que os produtores se encontram, e parece que ele, o mercado, quem comanda a produo. tambm no mercado, isto , na esfera da circulao, que os compradores e vendedores da fora de trabalho realizam a troca de equivalentes. Essa igualdade entre os desiguais estabelece um tipo especial de sociabilidade em que os indivduos, como comerciantes, so transformados em sujeitos jurdicos. Pachukanis foi o primeiro a referir-se diretamente teoria do fetichismo para estabelecer o vnculo entre a forma-mercadoria e a forma jurdica. Atravs desse vnculo, d-se um quiproqu e o direito se autonomiza, sendo visto como resultado da norma e no das relaes sociais .

Marx, por sua vez, lembrou que nesse mundo abstrato o cristianismo em sua verso burguesa (protestantismo), ao fazer o culto do homem abstrato tornou-se a forma de religio mais adequada para essa sociedade . Nota-se que, para Marx, o esprito do capitalismo no provm de fora do sistema capitalista e nem lhe anterior, como preconizava Weber: ele brota das relaes de produo mercantis e, portanto, imanente forma mercadoria. Como clula germinal, a mercadoria contm, in nuce, todas as contradies do modo de produo capitalista. O estudo do capitalismo, comeando pela mercadoria, revela uma forma de sociabilidade prpria comandada pelo movimento incessante de autovalorizao do capital.

Cabe lembrar que a dominao, ponto de chegada da teoria de Weber, para Marx caracterstica das sociedades pr-capitalistas. As relaes entre o senhor e o servo, no mundo feudal, eram relaes pessoais de dominao. Lukcs observou bem a presena da coero extra-econmica ao lembrar que nas sociedades pr-capitalistas, as formas jurdicas tm necessariamente de intervir de forma constitutiva nas conexes econmicas. No h aqui categorias puramente econmicas (...). Falando em termos hegelianos, a economia no atingiu, nem mesmo objetivamente, o nvel do ser-para-si. No capitalismo, contrariamente, as articulaes puramente econmicas se impe a toda a sociedade obrigando os trabalhadores a livremente, sem nenhuma coao, venderem sua fora-de-trabalho ao capitalista. Passamos, portanto, da dominao explorao.

A determinao da economia repe outro tema caro a Weber num registro terico diferente a burocracia como a forma moderna por excelncia de dominao. Como uma mediao entre os indivduos e o Estado, os burocratas esto longe de serem os representantes do interesse universal, como quer a Filosofia do direito de Hegel; mas, tambm, no tm a autonomia que lhes conferida por Weber. O Estado, capturado pelos interesses dominantes, no exerce uma dominao impessoal, sem rosto, que a todos oprime e, portanto, parece no ter beneficirios.

3.Weber: racionalidade e dominao

A relao entre Marx e Weber um dos temas mais recorrentes da histria das idias sociolgicas. Esses autores se complementam ou, ao contrrio, seguem trilhas opostas? No cabe aqui entrarmos nessas complicada polmica. Vamos, em seguida, nos restringir a um brevssimo mapeamento das reflexes weberianas.

Em 11 de maio de 1909, numa carta dirigida a F. Eulemburg, Weber afirmou taxativamente: Duas vias esto abertas: Hegel ou a nossa maneira de tratar as coisas. A via hegeliana, como se sabe, buscava a conexo entre razo e histria, racional e real. Na inverso materialista de Marx, substituiu-se a marcha progressiva da realizao da razo na histria pelo recuo das barreiras naturais, ou seja, pelo desenvolvimento das foras produtivas. Esse processo objetivo e cego, que escapou do controle social, deveria voltar ao controle consciente dos produtores livremente associados.

justamente essa conexo entre razo e histria que foi o alvo da crtica tanto dos empiristas que negavam o sentido do processo histrico em nome do amor aos fatos coagulados quanto das diversas tendncias irracionalistas que, a exemplo de Nietzsche, negavam a prpria razo em sua pretenso de universalidade, considerando-a uma manifestao da vontade de poder; a prpria histria, nessa perspectiva, ficou relegada condio de mero discurso, portanto, entregue ao completo relativismo que negava qualquer pretenso de universalidade.

Weber movimenta-se no interior desse denso contexto terico da dissoluo do hegelianismo. Contrapondo-se a Hegel, expulsa o universal de sua sociologia emprica; contra os empiristas, esfora-se por conhecer o sentido que os homens atribuem sua ao e, desse modo, vai alm do empirismo ao relevar o papel decisivo das idias nos processos histricos e na formao do destino reservado civilizao ocidental; contra o irracionalismo, constri a sua sociologia compreensiva que, como bem observou Carlos Moya, um esforo desesperado para formalizar cientificamente a realidade histrico-social, para explicar sua possvel racionalidade ou irracionalidade.

A sociologia weberiana, portanto, caminha numa direo contrria quela do primeiro formulador dessa disciplina: mile Durkheim. A compreenso do fato social como coisa - como resultado da sntese das aes individuais escapam dos indivduos ao se fecharem numa impenetrvel opacidade - cobrava do observador uma neutralidade e uma iseno comparvel ao dos cientistas naturais. Contudo, as regularidades da sociedade, desse organismo solidrio, podiam ser captadas pela observao emprica e pela estatstica. Esta, era empregada para constatar a recorrncia e concentrao dos fenmenos: chegar-se-ia, assim, descoberta das regularidades, mediania, aos tipos mdios responsveis pela reproduo do organismo social.

A sociologia compreensiva de Weber, ao negar a semelhana proposta entre as cincias da natureza e a cincia social, entende que o objeto dessa ltima o sentido da ao social. Assim, a intransparncia das aes humanas que no se reconhecem mais em suas obras (as instituies sociais), subvertida na obra de Weber. Como observou Adorno: ele realizou a reduo das instituies ao que humano por assim dizer involuntariamente, implicitamente, na medida em que imps a exigncia de compreenso de tudo o que social, servindo-se neste sentido com muita propriedade justamente daquele meio que efetivamente comum aos sujeitos e s instituies objetivadas, exteriorizadas (...) justamente a racionalidade .

Entramos assim no centro das preocupaes de nosso texto: racionalidade, opacidade realidades que despontavam, com outros nomes, nas anlises que Marx fez do fetichismo da mercadoria e seus efeitos sobre a conscincia dos homens. Entre o coisismo durkheimiano e o sentido humano de Weber, Adorno prope uma juno entre o que efetivamente se apresenta em sua opacidade, mas que, afinal das contas, pode ser reduzido ao que humano e, portanto compreensvel. Resta saber o que ir permitir essa simbiose entre universos tericos to diversos. Mas, no temos ainda condies de tratarmos dessa questo. Voltemos pois a Weber.

Os leitores de Weber sabem do empenho desse autor para construir uma sociologia compreensiva, capaz, em sua neutralidade cientfica garantida pelo mtodo, de captar o sentido da ao social visada pelos indivduos e, ao mesmo tempo, de fornecer a explicao (a descoberta, pelo cientista, das conexes causais dos fenmenos observados). importante lembrar que esses dois momentos da anlise compreenso e explicao no se identificam. A radical separao entre o conceito (o tipo ideal) e a realidade, pressupe a distncia entre a ao social, tal como vivida pelos indivduos, de um lado, e o constructo terico formulado pelo socilogo, de outro. Essa separao, como pode ser vista no texto do professor Francisco Teixeira, contm em si um paradoxo: a sociologia quer compreender o sentido da ao social, mas os indivduos reais dela no tem conscincia.

Weber inicia sua reflexo em Economia e sociedade partindo do conceito de ao social para, em seguida, perceber os limites de uma anlise centrada apenas nas aes individuais. Por isso, a partir delas, passa a enfocar a relao social e as formas de dominao. Sua obra culmina no estudo de um tipo especial de dominao, a racional, resultante do predomnio da ao racional com relao a fins.

O privilgio concedido racionalidade explica-se pelo fato de Weber ter como principal objetivo a captao da singularidade da civilizao ocidental. Por isso, pode-se ler, no primeiro pargrafo de A tica protestante e o esprito do capitalismo, que uma combinao de fatores permitiu que no Ocidente surgissem fenmenos culturais dotados (como queremos crer) de um desenvolvimento universal em seu valor e significado . com esse esprito que Weber detecta a presena da racionalidade em nossa cultura, visvel nas mais diferentes reas: matemtica, qumica, historiografia, direito, msica, cincia, religio, capitalismo etc. A parte mais conhecida da vasta obra de Weber justamente a que correlaciona a presena das seitas protestantes com a emergncia do capitalismo. Mas, trata-se aqui do capitalismo ocidental, j que Weber considera que o capitalismo e empresas capitalistas (...) existiram em todos os pases civilizados da Terra, como podemos julgar pelos documentos econmicos. Existiram na China, na ndia, na Babilnia, no Egito, na Antigidade Mediterrnea e na Idade Mdia, tanto quanto na Idade Moderna .

A especificidade do capitalismo ocidental explicada pela relao causal entre o moderno ethos econmico e a tica racional do protestantismo asctico. A procedncia do elemento cultural (religio) sobre o econmico afirmada em polmica aberta contra a doutrina do mais ingnuo materialismo histrico que considera a religio reflexo da base material. Para Weber, contrariamente, o processo geral de racionalizao, que atravessa todos os poros das sociedades ocidentais, tem no ascetismo protestante um dos ingredientes bsicos para a formao do capitalismo, aquele sistema econmico, segundo ele, baseado no clculo racional.

No plano geral da obra de Weber, o processo de racionalizao e o conseqente desencantamento do mundo, encontram-se com o tema das formas de dominao. O predomnio da ao racional com relao a fins assenta-se na dominao burocrtica e nos argumentos tcnicos, selando o destino inescapvel dos pases ocidentais. A famosa imagem jaula de ferro, que a todos aprisiona, inicia-se paradoxalmente com o ascetismo protestante, com a idia de vocao. Mas, uma vez realizada, ela deu vida s engrenagens terrveis que caminham por conta prpria, cada vez mais distanciadas e contrrias queles valores religiosos que as fizeram nascer. Como resultado, os homens esto condenados a permanecer num estado de surda semiconscincia e entregues a uma dominao burocrtica-racional desprovida de valores e postas em ao por especialistas sem esprito, sensualistas sem corao, nulidades que imaginam ter atingido um nvel de civilizao nunca antes alcanado . O triunfo da razo exemplifica uma das teses caras a Weber: o paradoxo das conseqncias. O sentido da ao social perseguida pela religio protestante teve resultados contrrios s intenes originais. Agora, so as razes cientficas e tcnicas, a servio da dominao burocrtica, que enquadram os homens numa priso sem sada e comandam seus passos.

A submisso de todos burocracia explica-se pela superioridade desta forma de organizao - que se baseia em critrios tcnicos e cientficos - em relao s demais. As formas antigas so superadas pela racionalizao/burocratizao que aplica o conhecimento cientfico e a tcnica no processo de trabalho. A eficcia e a impessoalidade da dominao se sobrepem aos paralisantes impasses das organizaes democrticas e, assim, espraia-se por toda a sociedade, impondo sua lgica formal, suas razes neutras apoiadas em argumentos cientficos e tcnicos, aos partidos, associaes voluntrias, sindicatos etc. Todos se vm na obrigao de racionalizar burocraticamente seu modus operandi. E no h sada, pois as manifestaes de resistncia contra a burocracia, ao exigir desta transparncia e critrios precisos, acabam por enquadrar-se em sua prpria lgica, servindo apenas para aperfeioar essa forma inevitvel e insupervel de dominao.

O desencantamento do mundo, portanto, um processo que, semelhana da reificao, retirou dos homens a possibilidade de imprimir um sentido atividade. Os fins dominam os meios e os homens so obrigados a se enquadrar na realidade fria e sem perspectivas de um mundo sem valores que se reproduz automaticamente. A humanidade, nas palavras de Weber, ingressou definitivamente numa longa noite polar. Assim, observa G. E. Rusconi, Weber no aceita a explicao marxista da desumanizao como domnio das coisas sobre o homem, mas como domnio dos meios sobre os fins .

Vimos anteriormente que a emergncia do fetichismo da mercadoria, na obra de Marx, assinala uma nova forma de encantamento do mundo, o que contrasta vivamente com a tese weberiana do desencantamento. No mundo enfeitiado da mercadoria, o lugar deixado vago pela religio logo foi ocupado, gerando uma nova forma de opacidade que impede os indivduos de compreenderem o mundo por eles construdo. J o desencantamento, em Weber, o resultado do processo de racionalizao que caracteriza o mundo ocidental, que deixou os homens entregues a um estado de semiconscincia. Os estudos de Marx acompanham, at certo ponto, a caracterizao do processo de racionalizao. Basta lembrar aqui as clebres referncias s guas geladas do clculo egosta, ao papel civilizador do capitalismo e o espantoso desenvolvimento que ele trouxe s cincias. Mas, Marx procurou separar a racionalidade que conduzia internamente o funcionamento da empresa capitalista da irracionalidade de um mercado que, a posteriori, regulava a produo. nesse descompasso que surgem os momentos de crise e a possibilidade dos homens lutarem contra os fins que orientam a sociedade capitalista.

A racionalizao, em Weber, no comporta crises econmicas ou contra-tendncias polticas que questionem seus fins. Nas palavras de Jean Marie Vincent: ela [a racionalizao] pesa como um peso morto sobre a vida social e no pode ser seno um destino insupervel para o homem moderno. (...) Weber foi levado a privilegiar involuntariamente os comportamentos formalmente racionalizados na sua imediatez, fossem polticos ou religiosos, para fazer deles a realidade essencial da sociedade moderna. Ele os hipostasiava, e os tornava tendncias supra-sociais, explicveis por determinismos antropolgico-naturais, anteriores ou pr-existentes aos confrontos sociais .

Ressalte-se tambm que a racionalidade pensada por Weber e Marx a partir de registros tericos diferentes. Em Weber, ela decorre de um ethos cultural. Nessa perspectiva, o capitalismo entendido como o princpio de racionalizao baseado sobre o clculo, sobre a possibilidade de clculo. Em Marx, a racionalidade uma necessidade imanente ao modo de produo. E essa necessidade decorre do processo de valorizao. Assim, a nfase no aspecto subjetivo, que caracteriza a teoria da ao weberiana, cede lugar interpretao do movimento objetivo do capital s voltas com a realizao do valor.

4. A revolta do objeto

Aps o breve mapeamento que fizemos das idias weberianas, podemos seguir a sugesto fornecida por Adorno que, em relao a Weber, afirma o mesmo que havia dito a respeito de Thomas Mann: o decisivo o que no est no mapa, ou seja, aquelas coisas que contrariam a sua prpria metodologia oficial . Para um autor como Max Weber que tanto falava no paradoxo das conseqncias, a sugesto de Adorno bem apropriada.

Contrariamente a Hegel e a Marx que sempre afirmaram a prioridade do todo sobre as partes, Weber apegava-se singularidade (muitas vezes chamada por diversos autores de particularidade). Desse modo, a imagem da totalidade sai de cena. A sociologia est condenada a ser uma disciplina ideogrfica, restrita singularidade, diferente portanto das cincias experimentais, monolgicas, que enunciam leis gerais.

Perante a realidade vista como catica e infinita, o pensamento sociolgico de Weber realiza o giro kantiano ao voltar-se para si mesmo e perguntar sobre suas prprias possibilidades. A ferramenta para relacionar-se com esse cos que o mundo exterior o tipo ideal. Com o tipo ideal, essa racionalizao utopica, esse instrumento estranho realidade, seria possvel ordenar pedaos do real e conferir-lhes sentido.

No preciso insistir sobre o carter no ontolgico desse procedimento. Para tanto, basta lembrar a afirmao de Marx nos Grundrissse: as categorias so formas de ser, determinaes da existncia. Weber, ao invs de entregar-se ao automovimento do real como queria Marx e procurar reproduz-lo conceitualmente, preferiu conferir prioridade prpria conscincia (no caso, a formuo dos tipos ideais).

Quanto fabricao desses instrumentos mediadores forjados pela conscincia para, atravs deles, ter acesso realidade, vale para Weber a crtica feita a Kant por Hegel. Segundo este, a dualidade sujeito-objeto ganha em Kant um terceiro elemento mediador (as categorias a priori do entendimento) que, em verdade, um produto do pensamento e, portanto, pensamento. Assim, ao invs de nos aproximar do objeto, dele nos distancia, ao fazer do objeto do pensamento o prprio pensamento . Por outro lado, a criao a priori de categorias como condio para se chegar ao objeto, o imperativo de antes de conhecer examinar a faculdade de julgar, isto , conhecer antes de conhecer, um procedimento circular que condena o pensamento a permanecer na abstrao. Tal procedimento, para Hegel, absurdo, pois equivale a comear a nadar antes de lanar-se na gua..

Convm sempre lembrar o carter ontolgico (no epistmico, portanto) do recurso abstrao na dialtica. Quando Marx, por exemplo, se refere ao trabalho abstrato ou ao valor, pressupe sua existncia na prpria realidade, antes de ser captada pela conscincia dos homens. Trata-se, em suas palavras, de abstraes razoveis ou, como quer Lukcs, de abstraes determinadas no a partir de pontos de vista gnosiolgicos ou metodolgicos (e menos ainda lgicos), mas a partir da prpria coisa, ou seja, da essncia ontolgica da matria tratada.

A criao de tipos ideais, em Weber, ao contrrio de Kant, volta-se para o campo material da histria. A espantosa erudio do autor, sua ternura pelos fatos, fez com que ele, algumas vezes, se afastasse de sua metodologia oficial. Assim, no incio de Economia e sociedade, os tipos ideais aparecem originalmente como instrumentos vazios e a-histricos, como hipteses que possuem apenas um valor heurstico e que devem ser abandonadas no momento seguinte. Num outro livro, A tica protestante o e esprito do capitalismo, o objeto da pesquisa insurge-se contra o carter abstrato e formal do mtodo. A longa citao de Benjamin Franklin, nesta obra, desponta como a prpria sntese do esprito protestante: como se Weber involuntariamente quizesse nos mostrar a realizao do universal num objeto singular, transformando assim o tipo ideal num tipo tipico: um singular portador de tendncias universais.

Atento aos freqentes deslizamentos no interior da obra weberiana, Adorno enfoca uma outra curiosa passagem em que o tipo de dominao carismtica manifesta uma tendncia para se converter em dominao tradicional. E conclui: Se tomo o conceito de tipo ideal de modo to rigoroso como o exposto no texto das categorias da Teoria da cincia de Max Weber, ento um tipo ideal assim de maneira nenhuma pode ter uma tendncia a transitar a algum outro tipo ideal, porque ele algo inventado de modo inteiramente monadolgico e ad hoc para subsumir certos fenmenos. E j se atribuiu a ele quase alguma coisa da substancialidade hegeliana do conceito, da objetividade do conceito que justamente Max Weber contestou em unssono com o positivismo dominante do pensamento sociolgico de seu tempo e inclusive de nossa poca. Em outras palavras: ao olhar com mais ateno seus prprios tipos ideais, ele levado para alm de sua definio ou de seu postulado do tipo ideal enquanto um tal instrumento conceitual estritamente abstrato, arbitrrio e efmero, em direo ao que na Teoria Crtica se designa como uma tendncia necessria de que tal tipo ideal transite para alm de si mesmo e mude em outro tipo ideal, ento isso no abala somente a estrutura monadolgica e absolutamente singularizada desses tipos ideais, mas ao mesmo tempo propriamente introduz algo como o conceito de lei social do movimento e nessa medida inclusive uma espcie de estrutura objetiva da prpria sociedade, que a rigor negada por princpio pelo tipo de teoria correspondente a Weber .

5.De Marx a Nietzsche

Numa conversa com Oswald Spengler, Weber, alguns dias antes de morrer, observou: A sinceridade de um intelectual hoje, particularmente de um filsofo, pode ser medida pela maneira como ele se situa em relao a Nietzsche e a Marx. Aquele que no reconhece que, sem o trabalho desses dois autores, no poderia realizar grande parte do seu prprio trabalho engana a si mesmo e aos outros. O mundo intelectual no qual vivemos foi em grande parte formado por Marx e Nietzsche .

A forma como Weber se situa perante a obra de Marx conhecida: a determinao em ltima instncia pela infraestrutura serviu-lhe como hiptese para as suas primeiras pesquisas para, depois, ser posta de lado. Essa explicao que lhe parecia monocausal, foi substituda posteriormente pelo pluralismo de causas e pela autonomia concedida s diversas esferas da vida social. Mas, assim fazendo, Weber posicionou-se ao lado de Nietzsche que propunha no lugar da sociologia uma doutrina das configuraes de domnio . Num ensaio esclarecedor, Eugne Fleischmann apontou o deslocamento da categoria de causalidade dos fatores econmicos, que nortearam os primeiros trabalhos de Weber, para a causalidade atravs da vontade - a passagem de Marx para Nietzsche. A ao social dotada de sentido, que norteia a ao dos indivduos, apoiava-se, desse modo, num princpio irracional: os valores, a fora da convico, que expressam apenas a nietzscheneana vontade de poder.

No conhecido texto sobre a objetividade do conhecimento na cincia social, publicado em 1904, Weber afirmou: A premissa transcendental de qualquer cincia da cultura reside no no fato de considerarmos valiosa uma cultura determinada, mas na circunstncia de sermos homens de cultura, dotados da capacidade e da vontade de assumirmos uma posio consciente em face do mundo e conferirmos um sentido .

Conferir sentido. No se trata, porm, de desvelar o sentido imanente do processo histrico que escapa da conscincia emprica dos indivduos. A distino weberiana entre cincias naturais, aquelas que descobrem as leis que governam os fenmenos naturais e as cincias humanas, aquelas que constroem o objeto a ser pesquisado, conduz o pensador para uma concepo prpria do que vem a ser o sentido das coisas. Lucio Colletti, em seu materialismo avesso dialtica, tem suas razes quando afirma: o homem aparece configurado unicamente como um Sinngeber, isto , como um generoso doador de sentido realidade; desta forma, esta ltima se reduz, por sua parte, a ter significado no somente enquanto exclusivamente um produto humano, mas enquanto um produto do obrar consciente ou cultural do homem . Presena comum tanto ao pesquisador quanto do sujeito da ao, o sentido, contudo, permanece indefinido ou, como quer Gabriel Cohn, preso a um raciocnio circular: o sentido o que se compreende e compreenso captao de sentido .

Nessa impreciso conceitual, a crtica ao determinismo econmico monocausal, conduz Weber a entender o capitalismo atravs de seu esprito, como resultado final e involuntrio do comportamento intencional, dotado de sentido, daqueles calvinistas virtuosos. Por outro lado, a ao racional com relao a fins, a mais compreensvel das aes humanas, que caracterstica da sociedade ocidental, aparece como destino universal das civilizaes. Esta viso eurocntrica, como se pode ver, ao trazer em cena o universal que havia sido expulso do mtodo oficial, mais um dos paradoxos ou, se se preferir, mais uma vitria do positivismo contra o neokantismo essa dualidade contraditria que compe o pensamento de Weber.

Manifestao consumada da racionalidade, o capitalismo parece assim encontrar a sua legitimao, pois afinal ele , ao mesmo tempo, o resultado e o fomentador de comportamentos racionais. A dominao agora no mais o corolrio da explorao econmica. Razo dominao: ambas expresses da vontade de poder. Estamos assim condenados para sempre ao politesmo, luta entre os diferentes deuses, aos diferentes sistemas de valores manifestaes disfaradas da irracional e obscura vontade de poder. CAPTULO TERCEIRO

GUY DEBORD: UM NOVO CAPTULO NA HISTRIA DO FETICHISMO

1. Esttica e poltica

A expresso sociedade do espetculo, ttulo do livro mais importante de Guy Debord, teve ampla divulgao na mdia a ponto de destoar inteiramente do sentido que o autor lhe atribuiu. Conheceu, desse modo, a sina de outras expresses famosas como democracia como valor universal e idias fora do lugar que, usadas de modo abusivo, quase como slogans publicitrios, ganharam sentidos distantes e freqentemente contrrios s intenes originais de seus criadores.

O caso de Debord mais gritante: o que era uma crtica mordaz sociedade capitalista e ao domnio da imagem passou a ser entendido, implicitamente, como apologia da espetacularizao promovida pelos meios de comunicao de massa. Torna-se necessrio voltarmos s idias efetivamente defendidas pelo autor e o contexto em que elas nasceram.

A teoria debordiana sobre o espetculo formou-se atravs da confluncia entre as idias estticas do autor e o desejo de emancipao social. Essa teoria procura, de forma original, acompanhar as metamorfoses do fetichismo da mercadoria no capitalismo tardio.

Enquanto ponto de encontro das preocupaes estticas com a reflexo poltica, a teoria do espetculo trouxe uma herana romntica expressa no desejo de realizar uma revoluo integral para por fim a todas as formas de alienao presentes na vida cotidiana. Desse modo, a reivindicao das vanguardas estticas - suprimir as barreiras que separam a arte da vida cotidiana - invade a esfera poltica dando um novo significado ao revolucionria. O desejo de integrao, de plenitude, com o qual a arte pretendia restaurar a unidade de um mundo cindido pela dominao mercantil, transfere-se para a arena poltica. As mediaes que estruturam a vida social so rejeitadas em bloco, nessa exigncia voluntarista de reencantamento da vida cotidiana.

Debord iniciou sua vida intelectual como crtico de arte e diretor de cinema. A constatao da crise da comunicao artstica e do predomnio da imagem serviu de ponto de partida para preparar os fundamentos da teoria sobre a sociedade do espetculo .

Desde os anos 50 Debord participava de um grupo de crticos de arte que se autodenominava Internacional Letrista. O que movia aqueles jovens contestadores era o desejo de superao da arte a ser realizado atravs da autodestruio da poesia moderna. Anselm Jappe assim resume o projeto dos letristas: a reduo da poesia a seu elemento ltimo, a letra. Esta um elemento grfico a ser utilizado na colagem e, ao mesmo tempo, um elemento sonoro a ser utilizado na declamao onomatopica, ligando, assim, a poesia, a pintura e a msica .

A quebra de fronteiras entre as formas de expresso artstica fez-se acompanhar do desejo de superar a diviso entre o artista e o pblico, diviso que condenava este ltimo passividade. Esse movimento contestador, por sua vez, perseguia o ideal romntico de tambm superar as barreiras entre arte e vida. Se o movimento autodestrutivo dava prosseguimento s experincias estticas da vanguarda, a aproximao da arte com a vida cotidiana, o desejo de realizar a arte na vida (e, assim, modificar o mundo), aproximou progressivamente Debord e seus companheiros do marxismo. No se tratava mais do apego a uma concepo esteticista, mas do projeto de realizar na vida a promessa de felicidade contida na arte, de se encontrar uma nova maneira de viver .

Esse movimento da esttica para a poltica reflete-se nos textos escritos para o boletim editado de 1954 a 1957 pelos letristas que levava o sugestivo ttulo de Potlach. Esta expresso, como se sabe, foi popularizada pelo antroplogo Marcel Mauss no livro Essai sur le don. Trata-se de uma prtica comum entre os aborgenes da Austrlia que consistia na troca de presentes cada vez mais valiosos entre os participantes, visando, com isso, obter prestgio, mesmo a custa de sua runa econmica. Este cerimonial indgena de extrema generosidade um verdadeiro escndalo para a razo econmica, centrada, como dizia Weber, no clculo racional. Nessa troca, inexiste tal racionalidade e quem oferece no espera receber um valor equivalente quilo que foi ofertado. Se a lei do valor o que regula a troca no mundo capitalista, entre os indgenas o prestgio social que irrompe para opor-se a qualquer considerao de ordem econmica.

O boletim Potlach foi concebido nesse esprito anti-capitalista: seus nmeros eram distribudos gratuitamente aos interessados, no entrando, assim, no crculo mercantil, pois se recusava a ser uma mercadoria vendvel como as outras. Na apresentao dos textos do boletim, posteriormente reunidos em livro, Debord observou que a inteno estratgica de Potlach era de criar certas ligaes para constituir um movimento novo, que deveria ser a primeira tentativa (demble) de reunificao da criao cultural da vanguarda e da crtica revolucionria da sociedade .

No mesmo perodo, Debord colaborou com a revista Les lvres nues, publicada pelos surrealistas da Blgica. Alm de temas estticos, o autor enfrentou questes mais gerais como urbanismo e, tambm, exps suas idias sobre a deriva os passeios aleatrios para flagrar a vida urbana numa outra perspectiva. Debord, assim dava seqncia, ao seu modo, tradio da vanguarda na prtica da deambulao, cujas referncias mais prximas apontam para a flanrie de Baudelaire e s teorizaes de Walter Benjamin.

A radicalizao de nosso autor levou-a a criar, a partir de 1958, um novo movimento, a Internacional Situacionista que ficou conhecida por sua participao incendiria no movimento estudantil de maio de 1968.

O projeto de realizar na vida cotidiana as promessas contidas na arte ganhou as ruas. Olhando para esse perodo tempos depois, em A sociedade do espetculo, Debord comenta que o dadasmo quis suprimir a arte sem realiz-la, enquanto o surrealismo quis realizar a arte sem suprimi-la. Esses dois movimentos artsticos, observa, foram contemporneos da ltima investida do movimento revolucionrio proletrio, e o fracasso deste deixou-os encerrados no prprio campo artstico do qual haviam proclamado a caducidade .

O situacionismo surgiu para afirmar que supresso e realizao so aspectos inseparveis de uma mesma superao da arte e que a integrao desta na vida cotidiana exigia revolucionar as condies sociais de existncia. Superar, agora, sinnimo de realizar ouvem-se aqui os ecos do apelo revolucionrio das Teses sobre Feuerbach de Marx conclamando realizao da filosofia.

No perodo de vigncia do movimento situacionista encontram-se as primeiras formulaes a respeito da sociedade do espetculo, bem como reflexes sobre a vida cotidiana. Sobre esse ltimo tema, vale lembrar a aproximao ocorrida entre Debord e Henri Lefebvre, suas experincias na deriva e a estreita colaborao intelectual entre ambos. Lefebvre era bastante conhecido pela sua vasta produo terica. Em 1946, publicou o primeiro volume de sua Critique de la vie quotidienne num momento histrico de grande otimismo, como foi aquele do ps-guerra. Na poca de sua convivncia com Debord, retomou o tema de forma mais crtica, em funo da emergncia dos mecanismos de controle social que ento j se faziam visveis, e publicou o segundo volume da obra. Debord, no mesmo perodo, tambm escreveu artigos e proferiu conferncias semelhantes sobre o tema, j que o cotidiano, para quem quer a integrao entre arte e vida, no deve ser pensado mais sob prisma heideggeriano como o local da inautenticidade. A suspeita de plgio nas reflexes sobre o cotidiano, levantada por Debord, envenenou a convivncia entre ambos e ps fim amizade entre o jovem rebelde e o velho mestre.

De qualquer modo, o projeto de uma nova vida cotidiana conduziu o nosso autor militncia poltica. Em 1967 ela publica A sociedade do espetculo. A presena de Histria e conscincia de classe marcante e fundamenta toda a dmarche de nosso autor. Assim, retoma-se a crtica reificao, ao fetichismo e racionalizao. Mas Debord, escrevendo vrias dcadas depois de Lukcs, acrescenta uma contribuio original ao tema da inverso presente na crtica marxiana inverso produzida pela sociedade mercantil. o que tentaremos mostrar em seguida.

2. A dominao pela imagem: a inverso da inverso

1.A inverso e a vida semovente do morto

Como vimos anteriormente, o tema da inverso esteve sempre presente nas vrias aproximaes do fenmeno que Marx denominou fetichismo da mercadoria.

Antes de dominar plenamente a economia poltica, Marx j perseguia esse leitmotiv. Inicialmente, criticando a inverso entre ser e predicado na filosofia de Hegel; depois, caracterizando a ideologia alem dos jovens-hegelianos, que substituram a crtica da realidade social pela crtica das idias. Situadas no mbito geral da problemtica ideolgica, a inverso reaparece na economia poltica marxiana para caracterizar uma ordem social em que os produtos da mo humana, aparentemente autonomizados, parecem governar a vida social.

Em Max Weber, num registro totalmente diferente, o estudo da racionalizao (o modo como o autor se refere a um fenmeno que guarda semelhanas com a reificao e, por extenso, com o fetichismo), aponta para o paradoxo das conseqncias: a mutao do sentido da ao social (orientada inicialmente pela ascese intramundana), para um resultado que a contradiz: a dominao burocrtica. Os indivduos, de portadores de sentido, transformaram-se assim em agentes condenados surda semiconscincia, a meros suportes empricos de sentidos alheios e hostis inteno original que presidira suas aes. A inverso, aqui, manifesta-se como uma reverso das expectativas, um resultado que inverte radicalmente a inteno inicial.

Lukcs, Goldmann e Adorno/Horkheimer, reunindo Marx e Weber, procuraram assinalar a inverso produzida pelo capitalismo: o predomnio do valor de troca sobre o valor de uso e da quantidade sobre a qualidade.

Guy Debord insere-se nessa problemtica geral. Vivendo um perodo posterior, tentou acrescentar novos ingredientes ao fenmeno do fetichismo e, com eles, atualizar a crtica da inverso.

No por acaso que o livro A sociedade do espetculo apresenta como epgrafe uma frase de Ludwig Feuerbach. Este filsofo ligado esquerda hegeliana tornou-se famoso com sua teoria da alienao referida ao fenmeno religioso. Para Feuerbach, com se sabe, a religio um processo de separao entre o homem e seus atributos que foram transferidos para a esfera celestial. Toda a sua filosofia, seguindo a tradio iluminista, busca a reconciliao do homem consigo mesmo atravs da recuperao de seus atributos alienados na esfera transcendente. Encontra-se aqui o ponto de partida do jovem Marx em sua crtica filosofia de Hegel, filosofia que Feuerbach denunciara como uma teologia disfarada: o movimento de inverso aquele movimento que desce do cu para a terra, das idias para a realidade material.

A frase escolhida por Debord, retirada de A essncia do cristianismo, assinala uma outra inverso que seria prpria de sua poca (e no s dela!): o nosso tempo prefere a imagem coisa, a cpia ao original, a representao realidade.

J nesse incio percebe-se a concepo que orientar Debord: o empenho de realizar a crtica da aparncia alienada da realidade. E ele o faz seguindo o estilo aforismtico de Feuerbach, combinado com o emprego do dtournement (desvio): recurso utilizado pelas vanguardas estticas que consiste na citao de fragmentos de outras obras feitas por meio de uma descontextualizao do original (o mesmo procedimento est presente no Drama barroco alemo, de Walter Benjamin, que concebeu o livro como um mosaico de citaes e fragmentos postos em tal ordem que ganhariam sentidos novos). Tal recurso, que confere ao texto uma sensao de falsa familiaridade e uma beleza surpreendente, torna a leitura um difcil quebra-cabea, exigindo um esforo de adivinhao das fontes originais.

O primeiro pargrafo do livro ilustra a tcnica do desvio ao glosar a frase com que Marx inicia O capital: Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condies de produo se apresenta como uma imensa acumulao de espetculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representao.

Na seqncia, afirma: o espetculo em geral, como inverso concreta da vida, o movimento autnomo do no-vivo ( 2). Nesse movimento, a imagem se tornou a forma final da reificao.

Estamos aqui diante de uma engenhosa extenso da teoria marxiana do fetichismo da mercadoria. A objetividade ilusria que o autor alemo atribua mercadoria retomada para dar conta de um novo momento da histria do capitalismo, quando aquilo que era uma tendncia no sculo XIX efetiva-se plenamente. Assim, Debord pode falar no espetculo como a forma tomada pelo capitalismo avanado, na qual a mercadoria chegou ocupao total da vida social. Com ela, ocorre um deslizamento que redimensiona a aparncia do mundo mercantil. Nas palavras de