LUKÁCS - NEOPOSITIVISMO

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A NEOPOSITIVISMO Georg Lukács Naturalmente não se trata aqui de tentar descrever, nem mesmo de modo indicativo, esta crise variada e multiforme. Desde logo suas causas sociais apresentam-se como extremamente divergentes e, ainda que fosse possível descobrir uma origem unitária sob essa heterogeneidade de superfície, mesmo assim não se suprimiria a especificidade e a autonomia - certamente relativa, mas extremamente importante nesta relatividade - das diferentes esferas. Neste contexto podemos apenas enumerar os componentes externos e internos mais fundamentais desta crise, em última análise contraditoriamente unitária em sua essência filosófica, sem poder examinar detalhadamente, em uma análise singular, qual o componente que em cada caso parece reivindicar legitimamente para si o caráter de momento predominante. Naturalmente, figuram aqui em primeiro plano as duas Guerras Mundiais, a Revolução Russa de 1917, o fascismo, o desenvolvimento do estalinismo na União Soviética, a Guerra Fria e o período do terror atômico. Seria porém uma unilateralidade inadmissível omitir, neste contexto, que a economia do capitalismo experimentou importantes transformações neste período, em parte devido a um crescimento qualitativo significativo no domínio da natureza e, em estreita correlação com este último, a um aumento inimaginável da produtividade do trabalho; e em parte devido a novas formas de organização destinadas não só a aperfeiçoar a produção, mas também a regular capitalisticamente o consumo. De fato, não se deve ignorar que a completa absorção da indústria de meios de consumo (e dos chamados serviços) pelo capital é um resultado dos três últimos quartos de século, e do qual se deriva a necessidade econômica de uma manipulação do mercado cada vez mais refinada, desconhecida tanto na época do livre comércio quanto no início do capitalismo monopolista. Paralelamente a isso - no fascismo e na luta contra ele - emergem novos métodos de manipulação da vida política e social, que intervieram profundamente na vida individual e - numa fértil interação com a já mencionada manipulação econômica _______________ Este texto corresponde à primeira seção do primeiro capítulo, Neopositivismo e Existencialismo, da obra de Georg Lukács, Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins, Darmstadt: Luchterhand, 1984. Tradução preparada por Mário Duayer, Departmento de Economia, UFF. Versão preliminar. Solicita-se não citar sem autorização do tradutor.

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PARA A ONTOLOGIA DO SER SOCIAL NEOPOSITIVISMO. * G. Lukács

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NEOPOSITIVISMOPRIVATE

Georg Lukcs

Naturalmente no se trata aqui de tentar descrever, nem mesmo de modo indicativo, esta crise variada e multiforme. Desde logo suas causas sociais apresentamse como extremamente divergentes e, ainda que fosse possvel descobrir uma origem unitria sob essa heterogeneidade de superfcie, mesmo assim no se suprimiria a especificidade e a autonomia certamente relativa, mas extremamente importante nesta relatividade das diferentes esferas. Neste contexto podemos apenas enumerar os componentes externos e internos mais fundamentais desta crise, em ltima anlise contraditoriamente unitria em sua essncia filosfica, sem poder examinar detalhadamente, em uma anlise singular, qual o componente que em cada caso parece reivindicar legitimamente para si o carter de momento predominante. Naturalmente, figuram aqui em primeiro plano as duas Guerras Mundiais, a Revoluo Russa de 1917, o fascismo, o desenvolvimento do estalinismo na Unio Sovitica, a Guerra Fria e o perodo do terror atmico. Seria porm uma unilateralidade inadmissvel omitir, neste contexto, que a economia do capitalismo experimentou importantes transformaes neste perodo, em parte devido a um crescimento qualitativo significativo no domnio da natureza e, em estreita correlao com este ltimo, a um aumento inimaginvel da produtividade do trabalho; e em parte devido a novas formas de organizao destinadas no s a aperfeioar a produo, mas tambm a regular capitalisticamente o consumo. De fato, no se deve ignorar que a completa absoro da indstria de meios de consumo (e dos chamados servios) pelo capital um resultado dos trs ltimos quartos de sculo, e do qual se deriva a necessidade econmica de uma manipulao do mercado cada vez mais refinada, desconhecida tanto na poca do livre comrcio quanto no incio do capitalismo monopolista. Paralelamente a isso no fascismo e na luta contra ele emergem novos mtodos de manipulao da vida poltica e social, que intervieram profundamente na vida individual e numa frtil interao com a j mencionada manipulao econmica se assenhoraram de setores cada vez mais amplos da vida. (O prprio estranhamento como fenmeno social , certamente, muito mais antigo; mas com a situao ora descrita ele transformado em problema cotidiano popular para crculos cada vez mais amplos). A moderna sociologia ocidental desenvolvese sempre decisivamente na linha de uma teoria geral da manipulao socialmente consciente das massas. Karl Mannheim j tentara h trinta anos elaborar um mtodo cientfico com este objetivo; significativo que ele considerasse como elementos estruturais dessa nova cincia o pragmatismo, o behaviorismo, e a psicologia do profundo (Tiefenpsychologie). digno de nota que Mannheim, que procurava uma fora no mundo democrtico que se contrapusesse influncia fascista sobre as massas, assinalasse a afinidade metodolgica entre a teoria behaviorista e a praxis fascista. Ele recusava, com toda razo, a identificao simplista das duas, mas com tal indicao colocava em evidncia a continuidade socio-econmica de certos problemas centrais da vida social, sobretudo a generalidade da manipulao como o "telos" da metodologia cientfica. H tempos que esta ultrapassou o terreno da experincia e do postulado e hoje domina a vida inteira, da praxis econmica at a cincia.

Como j visvel at aqui, a cincia contempornea no mais simplesmente um objeto do irresistvel desenvolvimento social no sentido da manipulao generalizada, mas participa ativamente de seu aperfeioamento, de sua difuso generalizada. Seria falso circunscrever este papel ativo sociologia e economia; esta mudana talvez seja mais ntida na teoria e na praxis polticas. De fato, enquanto em meados do sculo passado, especialmente no liberalismo, difundese um amplo ceticismo, ou mesmo um profundo pessimismo, como conseqncia da "massificao" da vida poltica e social (Toqueville, J. Stuart Mill, etc.), emerge nas ltimas dcadas uma confiana no poder ilimitado da manipulao das massas. Inclusive as indicaes de Mannheim mostram que neste processo cumpriram um papel importante, seno o principal, influentes tendncias filosficas (Pragmatismo, Behaviorismo). De um ponto de vista filosfico no h nisso nada de surpreendente. O princpio da manipulao j vem implicitamente enunciado na concepo do cardeal Bellarmino, a qual, conforme vimos, dominou por longo perodo as mais influentes correntes da filosofia burguesa. Se de fato a cincia no se orienta para o conhecimento mais adequado possvel da efetividade existente em si, se ela no se esfora para descobrir com seus mtodos cada vez mais aperfeioados estas novas verdades, que so de modo necessrio ontologicamente fundadas, e que aprofundam e multiplicam o conhecimento ontolgico, ento sua atividade se reduz em ltima anlise a sustentar a praxis no sentido imediato. Se a cincia no pode ou, conscientemente, no deseja abandonar este nvel, ento sua atividade transformase numa manipulao dos fatos que interessam aos homens na prtica. E isso mesmo que o cardeal Bellarmino requeria da cincia para salvar a ontologia teolgica.

J o positivismo do incio do sculo foi muito mais a fundo nesta direo do que as correntes que o haviam precedido. A gnosiologia de Avenarius, por exemplo, exclua completamente a efetividade existente em si, ao passo que as grandes revolues que se iniciavam nas cincias da natureza pareciam oferecer um fundamento completa excluso das categorias ontolgicas decisivas como, sobretudo, a matria, da gnosiologia positivstico-cientfica e da metodologia das cincias naturais. A conhecida polmica de Lenin contra esta concepo em essncia fundada na teoria do conhecimento, mas como toda gnosiologia marxista, em virtude da teoria do espelhamento, tem um fundamento ontolgico, Lenin teve que aludir diversidade filosfica existente entre o conceito ontolgico de matria e tratamento cientfico concreto de seus modos de manifestao apreensveis e, igualmente, inadmissibilidade do procedimento que, no campo destas novas e fundamentais descobertas, extrai concluses diretas sobre a prpria matria. Este desenvolvimento de modo algum casual. Se a ontologia negada por princpio ou pelo menos considerada irrelevante para as cincias exatas, a conseqncia obrigatria que a realidade existente em si, a sua forma de espelhamento hoje predominante na cincia e as hipteses da derivadas que praticamente se aplicam pelo menos a determinados grupos de fenmenos so homogeneizadas em uma nica e mesmssima objetividade. (Os pesquisadores que instintivamente refutaram este tipo de nivelamento, foram estigmatizados com a denominao de "realistas ingnuos").

Esta concepo impera j no primeiro perodo do positivismo. As novas descobertas revolucionrias da fsica (Planck, Lorentz, Einstein, etc.) reforaram ainda mais estas tendncias. A matematizao crescente da fsica, que em si e por si constitui naturalmente um enorme progresso na metodologia cientfica, significa um passo ulterior nesta direo, mas que no quadro de referncia positivista contribui para bloquear ainda mais a relao da fsica com a efetividade existente em si. O incio deste desenvolvimento foi igualmente percebido por Lenin. Ele alude exposio do semipositivista francs Abel Rey, que escreveu o seguinte sobre esta situao: As fices abstratas da matemtica de certo modo erigiram uma barreira entre a realidade fsica e o modo como os matemticos entendem a cincia desta realidade ... A crise da fsica consiste na conquista da fsica pela fsica matemtica ... Ento comeou o perodo da fsica matemtica, vale dizer, da fsica matemtica puramente matemtica fsica matemtica no como ramo da fsica, mas como ramo da matemtica". Logo veremos como este mtodo retornar cada vez com mais fora ao centro do positivismo plenamente desenvolvido, o neopositivismo contemporneo, e como, desse modo, a exigncia de Bellarmino cincia realizase com o grau mximo de perfeio at ento alcanado.

Nicolai Hartmann, que dentre os filsofos de nosso tempo foi aquele que possua o mais vivo sentido para os problemas ontolgicos e que, igualmente, tinha um conhecimento realmente especializado em diversos campos da cincia da natureza (da sua teoria ontolgica nos ocuparemos a fundo no prximo captulo), nas consideraes introdutrias a sua ontologia encara este problema de uma forma sutilmente mais diferenciada do que, a seu tempo, o fez Rey. Hartmann escreve: "A exatido da cincia positiva se funda no elemento matemtico. Mas este, enquanto tal, no constitui as relaes csmicas. Tudo quantitativamente determinado quantidade de "alguma coisa". Os substratos da quantidade so tambm pressupostos em toda determinao matemtica. Os prprios substratos, enquanto tais, tratese de densidade, presso, trabalho, peso, durao ou extenso, permanecem idnticos na variedade quantitativa, e necessrio conheclos antecipadamente de qualquer outro modo, quando se deseja compreender o que significam as frmulas matemticas por meio das quais a cincia sintetiza suas relaes especficas. Por detrs destas frmulas, entretanto, h uma srie de momentos categoriais fundamentais que, em si mesmos, possuem um evidente carter de substrato e que se subtraem a toda compreenso quantitativa, porque so os pressupostos das relaes quantitativas reais". Obviamente, tais fatos to claramente expostos por Hartmann no poderiam ser ignorados por nenhum fsico inteligente. O problema reside, apenas, em como ele se posiciona teoricamente diante deste complexo de fatos. O fsico pode, por um lado, indagar criticamente quais propriedades quantitativas so a cada vez expressas matematicamente, e com o que concretamente se relacionam. Desse modo, estar ento em condies de observar e classificar, no interior da necessria homogeneidade metodolgica do espelhamento matemtico, as diferenas qualitativas de objetividade efetivamente presentes na efetividade existente em si. Somente deste modo o espelhamento matemtico tornase o veculo realmente adequado para uma reproduo ideal mais correta possvel da prpria efetividade (Wirklichkeit selbst); isto permite compreender, coisa de outra forma inatingvel, o carter e relao quantitativos, estticos e dinmicos, dos objetos e processos, enquanto que, por tal mediao, a objetividade e as relaes no quantitativas podem igualmente receber um espelhamento correto se a matemtica adotada criticamente. Em outras palavras, os fenmenos fsicos no recebem uma interpretao meramente matemtica, sendo antes interpretados nos termos da fsica com o auxlio da matemtica. Planck, no estilo dos antigos grandes fsicos, e que pertence ao grupo dos "realistas ingnuos", oferece um belo exemplo deste mtodo; ele diz o seguinte a propsito do comportamento do quantum de ao elementar: "Esta constante um novo e misterioso mensageiro proveniente do mundo real, que continuamente impunha sua presena nas mais diversas mensuraes e sempre reivindicou obstinadamente um lugar prprio ...".

A outra possibilidade intelectual consiste em absolutizar de algum modo o meio homogneo da matemtica, de encarla como a chave ltima e definitiva de decifrao dos fenmenos. isto o que sucede com o neopositivismo; mediante este mtodo foilhe possvel prosseguir com o programa bellarminiano no mais elevado grau at aqui alcanado: a "linguagem" da matemtica no simplesmente o instrumento mais preciso, a mediao mais importante para a interpretao fsica da efetividade (Wirklichkeit) fsica (i.e., fisicamente existente, existente em si), mas a expresso "semntica" ltima, puramente ideal de um fenmeno significativo para o homem, e mediante a qual este pode ser manipulado praticamente ao infinito. Interrogativas que, para alm disto, dirijamse a uma efetividade existente em si, segundo esta teoria no tm nenhum significado do ponto de vista cientfico. A cincia relacionase com estes fenmenos ontolgicos de modo completamente neutro. Emprega a expresso semanticamente correta dos fenmenos empiricamente captados sem considerar qualquer concepo "tradicional" sobre o carter ontolgico dos mesmos. Enquanto hiptese, a formulao "mais provvel", matematicamente mais simples, "mais elegante", exprime tudo aquilo que a cincia necessita, em seu grau respectivo de desenvolvimento, para dominar (manipular) os fatos. A generalizao destes conceitos em uma "viso de mundo" est completamente fora do mbito da cincia.

Que de tal modo se tenha oferecido para a religio a mais ampla margem para uma livre interpretao do mundo desde a crise do Renascimento, resulta evidente da exposio at aqui realizada. Se, entretanto, ainda hoje no se consumou uma completa restaurao da imagem pr-copernicana do mundo, isto no se deve ao novo mtodo do neopositivismo e aos novos resultados gnosiolgicos com ele adquiridos, mas ao prprio desenvolvimento das necessidades religiosas que, pela prpria lgica das coisas, no aspiram mais a uma tal restitutio in integrum. A runa da velha imagem geocntrica do mundo irremedivel; sequer a necessidade religiosa a reivindica diretamente. Contentase com um acordo espiritual-cientfico sobre o fato de que no h mais uma oposio aberta entre a mais avanada cincia natural moderna (em contraste com aquela dos sculos XVIIXIX) e a posio religiosa diante do mundo. Tudo o que de Demcrito e Epicuro at Darwin foi sustentado, parece, luz do neopositivismo, cientificamente superado e irrelevante. Como veremos pelo exame mais detalhado da metodologia neopositivista atual e da direo do desenvolvimento das necessidades religiosas contemporneas, h convergncias nas orientaes gerais, j que ambas esforamse de formas diferentes em conformidade com as diferenas de seus campos, porm coincidentes em ltima anlise, no sentido de superar a contradio herdada do passado; assim pode resultar muito fcil para ambas desempenhar uma misso social conjunta (gemeinsamer sozialer Auftrag) e sua respectiva realizao.

Esta conexo essencialssima aparece imediatamente com seu significado falsificado por completo quando concebida como direta ou mesmo intencional. Ocorre justamente o oposto. O neopositivismo no leva diretamente em conta as necessidades religiosas, sendo mesmo possvel afirmar que sua mais profunda tendncia consiste em ignorar por completo tudo aquilo que no pode encontrar expresso adequada na "linguagem" da cincia, semanticamente unificada por ele. Porm, de uma tal regulamentao da linguagem pode ao mximo resultar que uma srie de problemas, da qual a filosofia se ocupou at o presente, fique excluda do mbito desta regulamentao e, desse modo, desde a tica neopositivista deixe de pertencer srie de problemas cientficos. Com isso, porm, no se emite diretamente opinio nem pr nem contra as necessidades religiosas. Quando, por sua vez, os representantes espirituais das necessidades religiosas referemse a determinados resultados da filosofia neopositivista, isto no implica necessariamente uma concordncia com as intenes desta ltima, mas to somente uma utilizao de seus resultados.

Disso decorre, em primeiro lugar, a negao por princpio que da totalidade das cincias, de suas interrelaes, da complementao recproca de seus resultados e da generalizao dos mtodos e aquisies cientficas possa surgir um espelhamento correspondente efetividade existente em si, uma imagem do mundo. J o cardeal Bellarmino se opunha que isso fosse exigido das cincias naturais de seu tempo. Naquele tempo a renncia por parte da cincia em suprir ao menos elementos constitutivos de uma imagem do mundo devia servir na verdade para render inabalada e acima de qualquer dvida a imagem do mundo bblico-crist. O neopositivismo tambm renuncia voluntariamente a uma viso de mundo, no para ceder lugar a uma outra mas, pelo contrrio, no sentido da estrita negao da relao das cincias com a efetividade existente em si. Como freqentemente sucede na histria da filosofia, esta tomada de posio no de todo nova. A precisa separao entre a ontologia bblico-religiosa e o aperfeioamento prtico das cincias j fora percebido pelo nominalismo da Idade Mdia com a teoria da dupla verdade. A semelhana relativa de ambas as posies no deve, entretanto, velar suas fundamentais diferenas qualitativas. Ao tempo do nominalismo o domnio da ontologia eclesistica estava ilimitadamente assegurado, e no s no plano do poder poltico: a teoria da dupla verdade cumpria a funo de garantir neste ambiente social um certo espao para a livre investigao cientfica, ainda muito no incio e metodologicamente pouco evoluda. Hoje as coisas se inverteram. No existe mais um poder capaz de limitar seriamente o progresso da cincia. Considerando a coisa em abstrato, depende exclusivamente da cincia e da filosofia at onde desejam orientar ontologicamente as conquistas do pensamento, ou negar a cientificidade da ontologia. Quando hoje se torna cada vez mais forte a tendncia anti-ontolgica nas mais difundidas filosofias burguesas, isto representa um contraste direto com o nominalismo medieval. quela altura a cincia mais moderna e a filosofia, ainda que limitadas, uniamse por iniciativa prpria, e com freqncia restringiram o espao para a ontologia religiosa. Quando, pela eliminao de toda problemtica ontolgica de seu mbito, a cincia e a filosofia cientfica provocam o renascimento da dupla verdade, a cientfica e a metafsica (assim define o neopositivismo todo problema ontolgico), fica livre a religio para preencher este espao vontade e como puder. Assim, a lgica interna da formao conceitual (Begriffsbildung) cientfica e filosfica impulsiona espontaneamente para uma gnosiologia nominalista, com a qual decerto compartilha os ltimos princpios, dela diferindo qualitativamente entretanto nas aplicaes concretas.

Este agudo contraste, porm existe apenas na superfcie imediata. Na realidade nem a religio nem a cincia e a filosofia constituem formaes completamente autnomas, dotadas de legalidade prpria, de modo que sua metodologia e contedo fossem sempre determinados com exclusividade pelo seu automtico desenvolvimento. Todas as trs possuem simultaneamente um carter social, no sendo possvel que suas posies de finalidade e seus modos de efetivao sejam de todo independentes de cada misso social (sozialen Auftrag) que, nos respectivos perodos, tem sua atividade condicionada pelas aspiraes da classe dominante: o influxo de importantes movimentos de oposio sobre a misso social (sozialen Auftrag) subentende anlogos poderes e legalidades sociais. Mas este meramente a extremidade ativa das variadssimas interaes dentro do complexo de foras constitudo pelas relaes humanosociais (ser social). Em particular, a qualidade singular da autocompreenso do homem decisivamente determinada pelos tipos de atividade que a respectiva estrutura econmica da sociedade promove ou inibe, permite ou impede, etc. Estas condies de existncia altamente complexas determinam para cada homem singular (no interior de sua classe, nao, etc.) o espao concreto de suas possibilidades de ao e reao. Entretanto, a dinmica interna da religio, da cincia e da filosofia no opera nesta interrelao como um meio que obedece passivamente; o passado, os mtodos e necessidades ligados tradio, os problemas agudos da atualidade, modificam com freqncia a atuao simples e linear da misso social (sozialen Auftrags). Mas este ltimo , em todo caso, para dizlo com Marx, o momento predominante. A dupla necessidade no desenvolvimento da burguesia de, por um lado, valorizar e utilizar ilimitadamente todas as aquisies da cincia na economia, na vida social, etc., e, por outro, de manter historicamente ativa entre as massas uma necessidade religiosa, todavia no exaurida, cria aquele campo de fora humanosocial do qual se desenvolve aquela misso social (soziale Auftrag) por ns descrito e que deveremos analisar mais com mais profundidade. Aqui no se pode fazer uma anlise compreensiva destas interaes, j que nossa ateno est voltada exclusivamente para o problema da ontologia em geral. Pois para cada viso de mundo religiosa, tambm para cada ontologia religiosa concreta, a importncia no reside meramente no prprio ontolgico, mas muito mais naquelas conseqncias prtico-morais que nele buscam e encontram sua base, sua realizao ltima. Por esta razo, esta decisiva interrelao s pode ser analisada no quadro de uma tica cientfica respectiva; somente ali possvel indagar quais os efeitos prticos que uma determinada ontologia religiosa pode ter e tem na vida cotidiana, na atividade cotidiana dos homens. A simples crena ou descrena em determinados fatos que se apresentam como ontolgicos produz necessariamente um quadro muitas vezes incompleto; mas aqui devemos contentarnos com isso.

O positivismo e, sobretudo, o neopositivismo ocupam neste desenvolvimento da filosofia um papel especfico na medida em que aparecem com a pretenso de perfeita neutralidade em todas as questes relativas concepo de mundo, de deixar simplesmente em suspenso todo o ontolgico, e de realizar uma filosofia que remove por completo de seu mbito o complexo problemtico referente quilo que em si, tomado como pseudoproblema, irrespondvel por princpio. Com isso o positivismo e o neopositivismo apossamse da herana do idealismo subjetivo. Este ltimo, com base em uma orientao gnosiolgica, combateu o materialismo filosfico por causa do empenho deste em derivar cada ser da materialidade. (Em que medida era intrinsecamente problemtica a ontologia materialista de Marx uma questo da qual nos ocuparemos inmeras vezes mas que, neste contexto, imaterial). Contra isso o idealismo subjetivo erigiu um singular mundo pensado, diverso para cada um de seus representantes de relevo, no qual a concreticidade, que se apresenta como uma efetividade dada, em essncia concebida como produto da subjetividade cognoscente, enquanto o emsi deve permanecer seja como um fantasma inalcanvel, seja como um alm mantido abstrato para todo conhecimento. Ainda assim, o emsi existe, ainda que parea por princpio incognoscvel, algo que apenas a f pode atingir. Kant j mencionara um "escndalo da filosofia" em Berkeley, no qual a existncia das coisas fora de ns era admitida meramente pela f. Sempre subsiste, portanto nos idealistas subjetivos, uma viso de mundo muito variada, ou mesmo contraposta que refuta apenas a "presuno materialista" de explicar o mundo por si mesmo.

Tanto desvaneceu o idealismo kantiano no curso do sculo XIX, e surgiu uma corrente idealista no positivismo que no se dirige apenas contra o materialismo, mas tem a pretenso de criar um meio filosfico que exila do campo do conhecimento toda viso de mundo, toda ontologia e, igualmente, cria um pretenso terreno gnosiolgico que no seja nem idealistasubjetivo, nem materialistaobjetivo e que, justamente nesta neutralidade, pode oferecer garantia de um conhecimento cientfico puro. Os momentos iniciais desta tendncia remontam a Mach, Avenarius, Poincar, etc.. Os denominados elementos do mundo (p. ex., a unidade de sensao e coisa) so declarados um terreno nem objetivo nem subjetivo, do qual esta corrente queria construir uma nova filosofia cientfica que exclusse toda ontologia. Com isso, evidente que o distanciamento em relao a Kant punha j de manifesto que a nova filosofia era adversria de toda viso de mundo, inclusive as idealistas, ainda que sua afinidade gnosiolgica com o neokantismo tenha sido muitas vezes energicamente acentuada. Ao mesmo tempo, a matematizao geral das cincias, que j acentuamos, desenvolveuse impetuosamente, da resultando uma nova lgica matemtica, uma cincia da semntica. O neopositivismo, em particular, recolhe na lgica matemtica sua "linguagem" e amplia em muito o terreno neutro de MachAvenarius, conferindolhe uma aparncia de objetividade sem, contudo, romper com o ponto de partida idealistasubjetivo do antigo positivismo as sensaes, os "elementos". Com isso a polmica contra a "metafsica" adquire tambm um novo acento. Carnap assegura de modo expresso que sua filosofia, a teoria da constituio, no se contrape ao realismo (i.e., materialismo), ao idealismo (e solipcismo) e ao fenomenismo, havendo concordncia em todos os pontos sobre os quais, em geral, possam ser feitas asseres cientficas. As divergncias aparecem somente com a transformao da filosofia em "metafsica". Deste modo, todo o campo da ontologia, e no apenas a religiosa, excludo da filosofia cientfica, qualificado como assunto privado.

Resta ento a questo sobre quais devem ser as conseqncias filosficas de uma neutralizao to radical. O neopositivismo consiste, sobretudo, numa regulao lingstica para a filosofia cientfica. A aceitao dos resultados da lgica matemtica e da matematizao generalizada de todas as cincias somente uma parte, ainda que extremamente importante, destes esforos. Mas j aqui aflora um problema que indica com clareza que as questes da efetividade existente em si no podem, mesmo com este mtodo aparentemente to exato, ser excludas das cincias exatas. O prprio Carnap afirma: "Para cada clculo dado h, em geral, muitas possibilidades diferentes de uma interpretao verdadeira". Seguese dai que cada fenmeno, mesmo tendo suas determinaes quantitativas expressas matematicamente de maneira to exata e correta, de modo algum compreendido em sua efetividade total (em seu ser em si). E isto no simplesmente no sentido filosfico, mas sim no que diz respeito cincia especializada, mesmo s fsicas. Os novos problemas fsicos que, por exemplo, receberam interpretaes fsicas fundamentalmente diversas por Lorentz e, em seguida, por Einstein, podiam ser expressos mediante as mesmas frmulas matemticas. A diferena entre as duas interpretaes de carter fsico e no implica alteraes nas frmulas matemticas, mas relacionase com a respectiva diferena de viso sobre o ser em si da efetividade. Carnap no aprofundou este lado do problema, decisivo no s filosoficamente, mas tambm do ponto de vista cientfico, fsico. Ele continua assim a frase acima referida: "Todavia a situao prtica se apresenta de tal modo que para quase todo clculo usada uma determinada interpretao, ou uma espcie determinada de interpretao, na grande maioria de suas aplicaes prticas".

Sob novas circunstncias e com nova terminologia, isto em nada difere do que era a seu tempo o convencionalismo, com Poincar, para a praxis cientfica: a questo da verdade (aqui fsica) era deixada de lado como desinteressante; importantes so somente os resultados da prtica imediata. Tal avaliao de todas as teorias foi simultaneamente elevada condio de doutrina e mtodo filosficos pelo pragmatismo e, posteriormente, aperfeioada pelo behaviorismo. Aqui o essencial para ns no a ligao ntima da teoria com a praxis j que isto para todo marxista uma obviedade por demais conhecida , mas com o estreitamento do conceito de praxis que assim consumado. Este problema, de decisiva significao para toda a filosofia, s pode ser tratado exaustivamente no captulo sobre o trabalho; todavia para poder iluminar criticamente a posio do neopositivismo indispensvel, desde logo, introduzir algumas consideraes sobre diversos aspectos da praxis, que antecipam as discusses efetivas. Toda praxis orientase imediatamente no sentido de alcanar um objetivo concreto determinado. Para tanto deve ser conhecida a verdadeira constituio dos objetos que servem de meio para tal posio de finalidade, pertencendo igualmente quela constituio as relaes, as provveis conseqncias, etc.. Por isso a praxis est inseparavelmente ligada ao conhecimento; por isso o trabalho, conforme procuraremos mostrar no captulo indicado, a fonte originria, o modelo geral, tambm da atividade terica dos homens. Os malentendidos comeam somente onde aparece a categoria da imediaticidade, se ento recebe um exame rigoroso ou negligenciada. Como todo trabalho concretamente orientado, orientase para uma conexo concreta, limitada, objetiva. Todo conhecimento que seja um pressuposto imprescindvel deste trabalho pode, em muitos casos, ser inteiramente realizado, mesmo quando se vale exclusivamente de observaes, relaes, etc., imediatas, o que pode ter como conseqncia em um nvel mais elevado de generalizao o fato de se revelar incompleto, ou at mesmo falso, no correspondente realidade, sem por isso impedir a efetiva consecuo da finalidade concretamente posta ou, pelo menos, sem perturbla dentro de certos limites. A histria nos mostra uma infinidade de exemplos de como, num contexto restrito, muitos resultados corretos e importantes foram obtidos na prtica imediata com falsas teorias. Para citar apenas de passagem o nexo entre o trabalho primitivo e as "teorias" mgicas, ainda que seus efeitos se fizeram sentir profundamente na praxis medieval, recordese apenas o sistema ptolomaico que, mesmo aps ter se mostrado cientificamente falso, funcionou por longo tempo de maneira quase impecvel para finalidades prticas (navegao, calendrio, etc.).

O conhecimento obtido na praxis seguiu, portanto, no curso do desenvolvimento humano, dois caminhos que freqente e certamente se entrelaaram: por um lado, os resultados da praxis, corretamente generalizados, integravamse totalidade do saber at ento obtido, o que se constitua numa fora motriz decisiva para o progresso da cincia, para a correo e alargamento verdico da concepo humana do mundo; por outro lado, permaneciase em essncia restrito direta utilizabilidade para a praxis imediata dos conhecimentos adquiridos na prtica, vale dizer, contentavase para empregar uma expresso moderna em poder manipular determinados complexos objetuais com a ajuda daqueles conhecimentos prticos. As duas tendncias comparecem ao mesmo tempo no passado, muitas vezes combinadas, e quanto menos desenvolvida era a cincia, tanto maior devia ser a freqncia com que se enquadravam em falsas teorias gerais, mesmo sem a inteno de manipulao, conhecimentos que funcionavam corretamente na imediaticidade.

Primeiro, a manipulao apareceu no positivismo, com o princpio da economia do pensamento, etc., como a linha diretiva suprema do conhecimento cientfico; em aditamento, o pragmatismo, que lhe era contemporneo e intimamente aparentado, construiu diretamente sua teoria da verdade. James afirma, por exemplo: ""A verdade", para dizlo brevemente, nada mais do que aquilo que nos conduz adiante na estrada do pensamento, assim como "o justo" aquilo que nos leva adiante em nossa conduta". A matematizao da cincia, reiteradas vezes mencionada, com a ambigidade, tambm j citada, da interpretao matemtico-formal sobre a realidade a que conduzem as frmulas matemticas, e a crescente difuso da semntica, que os maiores representantes do positivismo adotam, atuam efetiva, e cada vez mais decisivamente, na direo de elevar a manipulao em mtodo soberano da filosofia cientfica. A sua recusa a toda e qualquer uma ontologia significa, simultaneamente, a proclamao da superioridade por princpio da manipulao sobre toda tentativa de compreender a efetividade como efetividade. No que se refere ao fundamento metodolgico, tratase aqui de uma tendncia geral da poca e que, conforme j mostramos, atua tambm na vida poltica, econmica e social, mas que no positivismo recebeu sua forma mais ostensiva, sua mxima perfeio conceitual. Aquilo que nos nveis menos desenvolvidos da cincia era uma tendncia secundria mas inevitvel do conhecimento, vale dizer, permanecer sob o direto domnio prtico-concreto de um complexo real, independentemente do fato de se a generalizao dos conhecimentos praticamente obtidos desembocam em falsas teorias gerais, esta tendncia agora elevada a fundamento da doutrina geral da cincia. E com isso aparece algo de qualitativamente novo. No se trata mais de saber se cada momento singular da regulao lingstica cientfica do neopositivismo conduz a resultados prticos imediatos mas, pelo contrrio, do fato de que o inteiro sistema do saber elevado condio de instrumento de uma manipulabilidade geral de todos os fatos relevantes. Somente desde tal posio tornase possvel rejeitar a reivindicao de que o sistema de conhecimentos constitui uma sntese de nosso saber sobre a efetividade existente em si. evidente que a vanguarda desta concepo dirigese sobretudo contra a teoria e a praxis da filosofia da natureza desde o Renascimento at o sculo XIX.

Tratase da forma mais pura que se tem at hoje da gnosiologia fundada sobre si mesma. Durante longo tempo a gnosiologia foi um complemento e um acessrio para ontologia: sua finalidade era o conhecimento da efetividade existente em si, e por isso a concordncia com o objeto era o critrio de todo enunciado correto. Somente quando o emsi considerado teoricamente inabordvel a gnosiologia tornase autnoma, devendose classificar os enunciados como corretos ou falsos independentemente de tal correspondncia com o objeto: ela se funda unilateralmente sobre a forma do enunciado, sobre o papel produtivo que nela desempenha o sujeito para encontrar os critrios autnomos, imanentes conscincia, de verdadeiro e falso. Este desenvolvimento culmina no neopositivismo. A inteira gnosiologia transformase por inteiro numa tcnica de regulao da linguagem, de transformao dos signos semnticos e matemticos, de traduo de uma "linguagem" em outra. Com isso o elemento matemtico impe cada vez mais que a nfase seja transferida, exclusiva e crescentemente, para o carter formalmente no contraditrio dos objetos e mtodos da transformao, com o que o prprio objeto reduzse mero material das possibilidades de transformao.

Certamente tal linha no pode ser aplicada com total coerncia. Os fatos possuem sua prpria lgica nem sempre formal. Assim, Carnap afirma, improvisada e inesperadamente, que a coisa fsica existe independente da percepo e que na percepo, na qual objeto intencional, apenas reconhecida. Decerto, ele adiciona logo a seguir: "Porm a teoria da constituio no fala esta linguagem, mas neutra em relao aos enunciados metafsicos." Tais concesses so na verdade extremamente raras. Mas quando se l com ateno os escritos neopositivistas, programa nada agradvel, encontramse passagens que na aparncia so como deseja esta bela terminologia constitucional, semntica, logicamente, etc., derivadas e reguladas lingisticamente com exatido, nas quais porm a correo, a falsidade ou a absurdidade dos enunciados mencionados so determinadas exclusivamente desde a efetividade existente em si, nas quais estes enunciados so corretos, falsos ou absurdos, conforme correspondam ao objeto v l, intencional mas de toda forma efetivo. Carnap cita, por exemplo, no pargrafo sobre as funes propositivas o "signo no saturado" "cidade na Alemanha", e diz que se obtm uma proposio correta quando se a compe com Hamburgo, ou uma proposio falsa com Paris, ou uma proposio absurda com lua. Tudo muito bem, mas o fundamento determinativo destas funes proposicionais no o factum brutum existente em si que Hamburgo efetivamente fica na Alemanha, etc., ainda que Carnap cuide em evitar aqui qualquer enunciado "metafsico"?

Na verdade, a resposta de rotina do neopositivismo a uma tal objeo ser: o fato de que Hamburgo fique na Alemanha, e Paris na Frana, um fato emprico e nada tem a ver com "metafsica" (com ontologia). Por isso, se assim se desejar, pode ser manipulado matemtica, semanticamente, etc., ou traduzido numa "linguagem", sem com isso tocar no crculo problemtico da "metafsica" (da ontologia). O autoengano de que aqui vtima o neopositivismo e algumas outras correntes que, com ele, adotam uma orientao exclusivamente gnosiolgica, derivase do fato de que ignoram por completo a neutralidade ontolgica do ser em si em relao s categorias, diferentemente dimensionadas, do universal, do particular e do singular. Os objetos, as relaes, etc., so em si ou aparecem em um espelhamento independentemente de serem singulares, particulares ou universais. O neopositivismo sujeitase a este erro no apenas porque desconsidera por completo, como muitas outras correntes modernas, a riqueza categorial legada pela antiga filosofia, riqueza esta que decerto requer revises, ou porque apenas enriquece a "linguagem" da manipulao com regras tcnicas operativas, filosoficamente suprfluas, enquanto degrada a estrutura categorial da efetividade em um pseudoproblema metafsico, mas antes porque o neopositivismo em parte sobrevaloriza, em parte deforma, a participao do sujeito cognoscente na elaborao do espelhamento correto. indubitvel que a participao do sujeito cognoscente no espelhamento do universal no pensamento considervel: de fato o universal no aparece na efetividade existente em si de maneira imediata ou isolada, independente dos objetos e relaes singulares, sendo portanto necessrio obtlo mediante a anlise de tais objetos e relaes. Isto porm no suprime de modo algum o seu emsi ontolgico, mas apenas conferelhe um carter especfico. No obstante, destas circunstncias que surge a iluso de que o universal no nada seno um produto da conscincia cognoscente, e no uma categoria objetiva da efetividade existente em si. Tal iluso induz o neopositivismo a classificar o universal como "elemento" da manipulao subjetivstica e a ignorar, como "metafsica", sua objetividade emsi.

Com o singular surge uma iluso inversa: a de sua imediata dadicidade. Tambm aqui o neopositivismo segue ignorando a histria da filosofia, segue desprezando soberbamente todas as aquisies do passado na doutrina das categorias. Passa por alto da dialtica da imediaticidade e da mediao e, por isso, no compreende que o singular em si tanto quanto o universal, no sendo menos mediado do que este e que, por essa razo, para conhecer o singular se faz necessria uma atividade mental do sujeito, tal como ocorre com o universal. Isto muito claro nas percepes mais simples. Basta pensar na celebre anedota de Leibniz que solicita a seus interlocutores que observem e pensem atentamente de modo a induzlos ao conhecimento de que cada folha de uma planta uma folha singular. Isto ainda mais evidente nos casos de singulares complexos como Hamburgo e Paris. Com isso, acentuamos apenas algumas categorias descuradas deste variado processo cognoscitivo; todavia, este breve procedimento indica j claramente que se trata de uma iluso crer, como quer o neopositivismo, que a dadicidade dos objetos singulares no levanta questes ontolgicas. Do ponto de vista da "economia de pensamento" certamente confortvel circunscrever a luta contra a ontologia s questes muito complicadas, que ainda hoje permanecem insolveis, em especial quando a pretenso de uma explicao ontolgica est em aberta contradio com o conhecimento cientfico, como ocorre por exemplo com o vitalismo na biologia. Mas tambm quando a causalidade ontolgica substituda pela manipulao por meio da dependncia funcional, quando o paralelismo psico-fsico transformado em fundamento da manipulao de um grande complexo objetivo, patenteiase como o neopositivismo contorna com indiferena todas as autnticas questes do conhecimento para, assim, render plausvel a imediata manipulao prtica dos problemas.

Prescindindose destes inevitveis problemas de detalhe neste belssimo quadro, devese conceder ao neopositivismo o fato de ter levado adiante, e de forma mais coerente do que qualquer outra corrente precedente, a unilateralidade da orientao exclusivamente gnosiolgico-terica e lgica em relao efetividade. A conseqncia extraordinria da resultante consistiu no enorme esforo do neopositivismo, coisa que jamais ocorrera antes dele, em cancelar toda distino entre a prpria efetividade e suas representaes nas diversas formas de espelhamento. A gnosiologia imperante, realizada de modo coerente, confunde por princpio tal distino; as categorias da coisalidade (Gegenstaendlichkeit), da objetividade, etc., que constitui parecem ser igualmente aplicveis em ambos os campos, sem diferenciao. claro que, no caso especial em que ambas encontram uma expresso matemtica, para a mera manipulao esta diferenciao parece desaparecer por completo; a diferenciao aflora somente quando um problema fsico ou biolgico deve ser interpretado no apenas em termos matemticos, mas fsica ou biologicamente. O carter reacionrio do neopositivismo, num sentido meramente cientfico, manifestase com mxima intensidade no fato de que ele fortalece as tendncias, de toda forma hoje existentes, manipulao formalista, ao fornecerlhes uma pretensa fundamentao filosfica. A confuso que ento se produz mais grave porquanto inmeros estudiosos de relevo so contagiados por tal concepo e induzidos a acolher posies cuja contraditoriedade, que s vezes chega absurdidade, so sustentadas pela autoridade cientfica de autores justamente clebres, de modo que ningum tem a coragem do menino de Andersen para proclamar que o rei est nu.

Sejame permitido citar como exemplo um famoso experimento ideal de Einstein, que para nossas consideraes apresenta a vantagem de ser retirado diretamente da vida cotidiana, e no da praxis cientfica, pois neste caso seria feita a fcil objeo por seus defensores de que o crtico nada entende de fsica. Einstein desejava tornar popular, universalmente compreensvel a conexo da geometria com a teoria da relatividade. Seu experimento ideal ilustrativo comea assim: "Iniciemos com a descrio de um mundo no qual vivam apenas seres bidimensionais e no tridimensionais como no nosso. O cinema j nos habituou a ver seres bidimensionais agindo numa tela bidimensional. Imaginemos agora que estes fantasmas (Schattengestalten), vale dizer os atores sobre a tela, efetivamente existem, que pensam e podem criar uma cincia prpria e, ademais, que a tela bidimensional constitui o espao geomtrico. Tais seres no esto na posio de imaginar, de modo plstico, um mundo tridimensional, assim como ns no podemos formar nenhuma imagem de um mundo quadridimensional. Eles so capazes de curvar uma reta, eles sabem o que um crculo, mas no podem construir uma esfera, porque para tanto deveriam sair de sua tela bidimensional." Einstein quer usar este experimento ideal, conforme vimos, para ilustrar a relao entre a geometria e a fsica, para tornar compreensvel o fato de que o espao da fsica no euclideano. Por isso ele prossegue em sua exposio: "Ns estamos numa posio semelhante. Podemos curvar e torcer linhas e superfcies, mas nos custa imaginar um mundo tridimensional encurvado e retorcido."

Desde logo devese enfatizar que a teoria de Einstein no est aqui em discusso; o presente autor no se sente de modo algum competente para externar uma opinio sobre tal questo. Entretanto, o experimento ideal tambm no se refere a qualquer problema concreto da fsica, mas quer apenas tornar compreensvel um "ser bidimensional", porque para ns seres tridimensionais nos custa imaginar um espao no euclideano. Todo leitor do experimento ideal einsteiniano, caso conserve algo de seu senso comum e no se submeta cegamente s concepes da moda de uma autoridade cientfica justamente reconhecida, deve se dar conta imediatamente que os seres bidimensionais einsteinianos no so nem seres, nem bidimensionais, mas sim espelhamentos bidimensionais de seres tridimensionais normais e que, em conseqncia, no se movem num mundo bidimensional, mas que, em lugar disso, agem num mundo tal cuja ao, ambiente, mundo objetivo, etc., igualmente nada mais consistem do que espelhamentos bidimensionais de nossa normal efetividade tridimensional. Que esta pode ser espelhada bidimensionalmente e que os homens o percebam precisamente como um espelhamento de nossa efetividade tridimensional, coisa sabida h longo tempo, desde a inveno do desenho e da pintura, sendo que no cinema temse de novo apenas o fato de que tambm a mobilidade pode ser espelhada de modo anlogo, que, entretanto, em nada altera a questo fundamental quanto tri ou bidimensionalidade da efetividade e formas no espelhamento. Os seres bidimensionais einsteinianos no habitam ento um mundo bidimensional, nem refletem sobre ele. Pensamentos e sentimentos, etc., so decerto representados no cinema, mas so pensamentos e sentimentos de homens tridimensionais num mundo tridimensional. (Apenas quanto estrita manipulao tcnica o cinema bidimensional, quando por exemplo a tela substitui o palco tridimensional, ou as pelculas bidimensionais so embaladas, etc.). A essncia do cinema consiste em evocar, com a ajuda de uma projeo bidimensional, a experincia de um mundo tridimensional, o destino de homens tridimensionais neste mundo. Conseqentemente, os espelhamentos no podem ter noes prprias, mas apenas espelham as noes que seus modelos tiveram na efetividade. Caso contrrio, poderseia dizer seguindo a lgica deste experimento ideal que a Mona Lisa no podia imaginar um mundo tridimensional, mas que a Vnus de Milus poderia fazlo. Neglo ou afirmlo seria igualmente absurdo; o rei deste experimento ideal estava realmente nu.

Poderseia retrucar: ainda que tudo quanto dissemos contra o experimento ideal de Einstein fosse justo, isso no afeta a essncia de seu argumento, qual seja, que a geometria constitui uma parte da fsica. Por conseguinte, a geometria no um espelhamento da efetividade, abstrado de forma brilhante e, por isso, infinitamente fecundo para a cincia, e cuja aplicao crtica a fsica promoveu extraordinariamente e ainda hoje promove, mas, pelo contrrio, seus objetos so realmente corpreos como os da prpria fsica. Sabidamente esta suposio constitui um momento da teoria geral da relatividade. Como pretendemos agora considerar mais de perto, no plano filosfico, as concepes de Einstein a este respeito, desejamos enfatizar uma vez mais que nossas observaes de modo algum tm o propsito de questionar se a teoria geral da relatividade, do ponto de vista da fsica, correta ou incorreta, quanto mais no seja pela incompetncia do autor neste campo. Aqui tratase exclusivamente com o auxlio de algumas observaes de Einstein da questo puramente filosfica: a geometria um espelhamento da efetividade ou os seus objetos e respectivas conexes so partes constitutivas reais da efetividade fsica, como a dureza, o peso, etc.? Pouco aps as suas consideraes supra citadas, Einstein assim se exprime sobre esta questo: "O que significa afirmar que nosso espao tridimensional euclideano? Nada mais que todas as proposies corretas, logicamente provadas, da geometria euclideana devem poder ser confirmadas atravs da experincia prtica. Com objetos rgidos ou com raios luminosos podemos construir objetos que se assemelham s figuras idealizadas pela geometria euclideana. Assim, a aresta de uma rgua, ou um raio de luz correspondem a uma reta, a soma dos ngulos de um tringulo construdo com hastes delgadas e rgidas e de 180m, e a relao entre os raios de dois crculos concntricos produzidos com fio delgado e no flexvel igual relao entre as suas respectivas circunferncias. Encarada deste modo a geometria euclideana tornase um captulo, sem dvida muito simples, da fsica. Entretanto, podemos imaginar tambm, neste contexto, a ocorrncia de discrepncias como, por exemplo, a de que a soma dos ngulos internos de um grande tringulo cujas hastes, tidas at ento como rgidas, no totaliza mais 180m ."

Se as expresses claras possuem algum sentido, ento Einstein considera a geometria euclideana uma hiptese, um modelo para o conhecimento dos fenmenos fsicos. Sendo suas proposies corretas, logicamente demonstradas, ento devem admitir sua comprovao por intermdio da experincia prtica. Antes de mais nada, as hipteses da geometria de modo algum podem ser demonstradas logicamente. De nenhuma lgica do mundo poderseia obter a proposio de que a circunferncia do crculo igual a 2pr. Por outro lado, tais proposies no precisam ser comprovadas na efetividade fsica. Pelo contrrio, a geometria espelha uma efetividade reduzida pura espacialidade e, portanto, homogeneizada, investigando neste meio homogneo conexes legais de configuraes puramente espaciais. Esta homogeneizao verificase j no fato de que as dimenses do espao adquirem deste modo um puro ser para si, enquanto que na efetividade fsica impossvel, por princpio, obter tais coisas. Uma linha, por exemplo, tem apenas uma dimenso, uma superfcie somente duas, etc.. Isto algo que no pode existir na efetividade fsica objetiva; no espelhamento tornase uma abstrao razovel, e sua razoabilidade revelase precisamente no fato de que prescinde por completo das qualidades e relaes, reais e objetivas, das coisas efetivas. Por mais delgado que possa ter sido feito o crculo einsteiniano, ainda assim o fio teria trs dimenses, e no somente uma como a linha geomtrica.

Esta razovel homogeneizao no espelhamento geomtrico permite ento um alto grau de matematizao das relaes espaciais assim descobertas, uma racionalizao expressa em termos matemticos de conexes puramente espaciais, que jamais poderiam ter sido obtidas por meio da mera observao, etc., das prprias coisas. E como falamos aqui de matematizao, devemos acrescentar de imediato que tambm a matemtica, obviamente, baseiase no correto espelhamento da carter quantitativo das coisas e relaes na efetividade. Quando falamos, para limitarmonos ao mais elementar, de 40 pessoas ou de 50 rvores, os nossos pensamentos espelham o puramente quantitativo dos objetos, o nmero de exemplares presentes em tal grupo de objetos, prescindindo de qualquer outro carter qualitativo. Em nosso exemplo, este ltimo est presente sob a forma de um resto abstrato, na medida em que falamos de homens e rvores. Se daqui desejamos prosseguir at a mais simples das operaes matemticas, a adio, devemos eliminar tambm este resto qualitativo, ou ento substitulo por uma abstrao que suprima ainda mais as qualidades. Podemos dizer, ento, que 40 seres vivos somados com 50 seres vivos perfazem 90 seres vivos. O desenvolvimento homogeneizante da matemtica confirmou brilhantemente a correo e a fecundidade desta abstrao homogeneizante e ajudou a sondar conexes quantitativas da efetividade de extrema complexidade, coisa que no teria sido possvel por via direta. Desse modo, repetimos, sobre a base do espelhamento abstrativohomogeneizante foi possvel tambm a matematizao das puras, e geometricamente espelhadas, relaes espaciais.

Todos estes triunfos das abstraes razoveis no alteram em nada o fato ontolgico fundamental de que tanto a geometria como a matemtica constituem espelhamentos, e no partes, ou "elementos", etc., da efetividade fsica. Porque espelham momentos importantes e fundamentais, respectivamente puras relaes espaciais e puras relaes quantitativas, a geometria e a matemtica so excelentes instrumentos para conhecer toda efetividade cuja essncia consiste de relaes espaciais ou quantitativas. Mas a despeito de todos estes brilhantes resultados no se deve esquecer a verdade, muito simples, de que tais formas de espelhamento podem espelhar somente determinados momentos da efetividade, enquanto que a efetividade existente em si possui uma infinidade de outros componentes.

O prprio Carnap, conforme vimos, deve confessar que as frmulas matemticas relativas a um setor da efetividade permitem uma multiplicidade de possveis interpretaes fsicas. Aquilo que efetivo num fenmeno efetivo, pode ser pesquisado somente mediante o espelhamento e a anlise da totalidade dos momentos. E em uma tal anlise desde que se trate de inquirir o carter da efetividade e no de sua mera manipulao, a filosofia pode com razo exigir que a cincia distinga entre a prpria efetividade e seus espelhamentos usados com finalidade cognoscitiva. Estas consideraes no pretendem igualmente afirmar o que quer que seja sobre a teoria fsica de Einstein. Sustentam apenas que o seu experimento ideal no agrega nenhuma prova filosfica a favor da tese segundo a qual a geometria um "captulo da fsica". Parecenos muito mais que, neste particular, o importante fsico fez uma concesso teoria da manipulao do neopositivismo, favorecendo com sua autoridade a tendncia fundamental deste ltimo em fazer desaparecer da cincia a efetividade. E desde este ponto de vista, as consideraes sobre os homens bidimensionais do cinema no se apresentam apenas como uma casual falsa colocao (Zungenschlag), mas como um sintoma da confusa influncia do mtodo da manipulao geral do neopositivismo sobre todo o pensamento contemporneo.

Confuses anlogas sobre fatos filosoficamente importantes e ofuscamentos de questes filosficas fundamentais poderiam ser observadas em quase todas as tomadas de posio do neopositivismo. caracterstica essencial da manipulao, enquanto mtodo universal do neopositivismo, eliminar por inteiro tais questes subttulo "metafsica" da cincia, para que assim nenhuma reflexo sobre reais problemas da efetividade perturbe ou mesmo impea o funcionamento ilimitado do aparato manipulatrio. Basta recordar o j citado tratamento conferido ao chamado paralelismo psico-fsico. Neste particular, a resposta efetiva a uma das mais importantes questes da vida organizada superior descartada como no cientfica, toda busca de prioridades efetivas, sobre interaes efetivas, etc., difamada como "metafsica", para elevar a fcil e confortvel manipulao de resultados isolados ao grau de exclusiva unidade cientfica admissvel. Quanto aos detalhes, impera o princpio do todo.

interessante e significativo que o problema da unitariedade da cincia seja hoje levantado com mxima nfase pelo neopositivismo E no subsiste qualquer dvida de que h algo de legitimo nesta exigncia. A diferenciao das pesquisas singulares cresce desmesuradamente e vai to longe que, s vezes, mesmo eruditos de grande capacidade no mais entendem a "linguagem" de reas limtrofes. E esta situao parece ainda mais grotesca e intolervel, porquanto precisamente a pesquisa cientfica da efetividade, simultaneamente especializao, rompe cada vez mais com as fronteiras das disciplinas acadmicas, iluminando mais e mais suas ricas ligaes, interaes, etc. Por esta razo, a efetiva exigncia que hoje se pe retornar efetividade existente em si, indiferentemente de onde e como seus grupos de fenmenos isolados so academicamente classificados. Poderia e deveria resultar da um novo tipo de universalidade na cincia: a da multilateralidade intensiva e concreta na compreenso dos fatos singulares concretos. Algumas tentativas nesta direo j existem hoje, entretanto sob a condio do afastamento da realidade, do verdadeiro ser em si dos fatos concretos em questo. Fosse esta realidade compreendida de modo correto, as fronteiras artificiais erigidas pelo espelhamento baseado na diviso do trabalho no poderiam constituirse num impedimento para o progresso do conhecimento. Tais tendncias j existem na atualidade; todavia, em geral nascem de modo espontneo, sem que se tome conscincia de que a clara viso ontolgica do complexo em questo proporcionaria a bssola mais segura para a orientao sobre quais devem ser as interaes, combinaes, etc.,

No caso destas questes os neopositivistas apresentam, igualmente, um programa apropriado para produzir e fixar confuses dificilmente destrinveis, efeito tanto maior quanto mais influente se torna o programa. Nos artigos programticos de uma enciclopdia publicada nos EUA apresentam a exigncia de uma cincia unitria. Neste caso, os neopositivistas invocam Leibniz e os enciclopedistas franceses do sculo XIX, mas sem levar seriamente em conta que o ponto de partida destas tentativas iniciais, por isso prematuras, de unificao da pesquisa cientfica e de sntese de seus resultados era diametralmente contraposto ao deles: qual seja, a convico sobre a unidade do mundo existente em si, sobre a unitariedade de suas leis, unidade que, portanto, pode e deve receber sua imagem consciente numa cincia unitria. A proposta neopositivista de uma cincia unitria e de uma enciclopdia unitria esta ltima como uma espcie de realizao a prazo da primeira derivase de pressupostos diametralmente opostos. Carnap afirmou: "A questo da unidade da cincia concebida como um problema da lgica da cincia, no de ontologia. Ns no perguntamos: "o mundo uno? Todos os eventos so elementos de um mesmo gnero?" ... de todo modo parece duvidoso que pudssemos encontrar um contedo terico em tais questes filosficas, discutidas no monismo, no dualismo e no pluralismo. Em todo caso, quando perguntamos se existe uma unidade na cincia, entendemos esta como uma questo da lgica, relativa afinidade lgica entre as terminologias e as leis dos diversos ramos da cincia." A demanda pela unitariedade da cincia significa portanto uma manipulabilidade unitria da totalidade do material cognoscitivo, independentemente de como a prpria efetividade se constitui, como se no existisse no plano do ser (ontolgico) estrutura e dinmica prprias e, por conseqncia, com legalidade prpria.

A rejeio desta antirealstica que se diz puramente neutra unitariedade da manipulabilidade daquelas proposies nas quais nosso saber conservado e concentrado, no significa naturalmente adotar um posicionamento contrrio a toda construo unitria do conhecimento cientfico. Pelo contrrio. Toda autntica filosofia aspirou pelo menos compreender num plano geral os princpios de uma tal unidade. Desde Hegel, entretanto, no se deve falar nem de uma unidade absoluta, que exclua diferenciaes ltimas, nem de oposies absolutas, de heterogeneidades incondicionais e desvinculadas (bergangslosen). Em sentido filosfico a unidade consiste na verdade de uma unidade de unidade e diferena. Esta unidade dialtica, porm, somente pode ser encontrada na prpria efetividade. Somente quando conseguimos descobrir na prpria efetividade os princpios da estrutura e da dinmica de uma tal unidade da unidade e da diferena e a elevla conscincia, s ento possvel nascer uma unidade do conhecimento cientfico do mundo; a unidade subsiste embora no violente em parte alguma as diferenas de estrutura e de dinmica. Somente pois, para concretizar um pouco mais nosso pensamento quando se torna possvel afirmar o ser inorgnico como o fundamento de todo outro ser, sem com isso destruir no pensamento o carter especfico do ser orgnico e do ser social (...des Seins in Leben und Gesellschaft), quando, simultaneamente, a diversidade dos modos de ser for concebida em sua incindvel associao e diferenas qualitativas, s ento pode surgir uma cincia internamente unitria. A tentativa dos antigos materialistas, com o seu monismo mecanicista, tinha que fracassar, e devem fracassar ainda mais aquelas teorias que, como o vitalismo, a cincia do espirito (Geisteswissenschaft), etc., absolutizaram os diferentes modos de ser em sua diversidade.

O neopositivismo, como vimos, deseja resolver esta questo pela excluso de toda ontologia, pela simples unidade da "linguagem" cientfica, e pelo seu tipo de manipulao logicista. Desse modo, todas as formas especficas de ser devem perder sua particularidade interna, devendo ser tratadas segundo o modelo conforme a interpretao neopositivista da fsica moderna. Na superfcie imediata pode surgir a impresso de que se trata de uma repetio modernizada da antiga idia mecnico-materialista de reconduzir legalidade da mecnica no mundo fsico todos os fenmenos cientificamente compreensveis do universo. A evidncia da primeira impresso cresce mais ainda com o extraordinrio progresso que, neste intervalo, teve o mtodo matemtico na compreenso da legalidade do mundo. Basta recordar os resultados da biofsica e da bioqumica, o emprego freqentemente bem sucedido do mtodo matemtico no campo da economia, etc. Com isso, o mtodo unificante, que no materialismo mecanicista fracassou diante das diferenas qualitativas existentes em si dos diversos dos modos do ser, parece terse tornado efetivvel a um nvel mais elevado mediante a matematizao generalizada, mediante a "linguagem" cientfica semanticamente unificada. Mas se trata aqui apenas de uma aparncia. A diversidade ontolgica dos modos do ser s pode ser eliminada do aparato conceitual da cincia por meio de um nivelamento homogeneizante que violenta a particularidade efetiva. "Naturam expellas furca, tamem usque recurret". Por mais que ambas as tentativas de unificao sejam contrapostas, fracassaram diante da mesmssima resistncia, qual seja, a da efetividade existente em si, cuja autntica constituio resiste tanto violentao grosseira, como refinada. Isto se manifesta de imediato nas insolveis contradies que sempre emergem dos enunciados unificadores, programaticamente dirigidos, e tais contradies, que atingem diretamente o centro do programa, precisamente o aspecto prtico-realpoltico, expulsam o anti-ontolgico para o reino da utopia.

Atualmente podese dispensar, sob este ponto de vista, a crtica ao materialismo mecanicista. Quanto ao neopositivismo, herdeiro do pragmatismo, a resistncia da efetividade exibese na inexeqibilidade prtica do programa, na inevitabilidade pragmtica de seu fracasso. Sem dvida, esta falha nem sempre admitida. Carnap na verdade se ofenderia se comparado com o metafsico Fichte, mas suas interpretaes lembram incontestavelmente o fichteniano "tanto pior para os fatos". Tambm aqui a contraposio no deve ser omitida: Fichte pronunciou abertamente estas palavras com um pathos animado pela Revoluo Francesa, na esperana de uma revolucionria renovao do pensamento, Carnap a pronuncia com a confiana representativa do manager que, seguro pelos sucessos anteriores, insiste em dominar futuramente todo o mercado, hoje apenas parcialmente manipulado. O instrumento mgico para tanto a unidade da "linguagem" cientfica, dito concretamente, a possibilidade de traduzir enunciados de um setor na terminologia de outro, na qual a fsica matemtica deve servir de modelo para toda cincia. (Dai o termo "fisicalismo".) De fato, Carnap afirmava que todos os enunciados da biologia poderiam ser "traduzidos" sem mais na "linguagem" da fsica e desse modo demonstrada a existncia da cincia unitria. "De acordo com nossas consideraes anteriores, uma lei biolgica contm somente termos que so redutveis a termos fsicos." Certamente Carnap deve acrescentar de imediato que isso ainda no soluciona satisfatoriamente o problema. Ele indica o nmero crescente de leis biolgicas que podem ser derivadas das leis da fsica e da conclui, com toda razo, que a contribuio da fsica e da qumica deve constituir uma fecunda tendncia da pesquisa biolgica.

Com o que, porm, o problema da biologia nem sequer formulado, quanto mais resolvido. Porque Carnap e todos os neopositivistas, como vimos, no se interessam pela interpretao fsico-real dos enunciados fsico-matemticos, remetendo a resoluo disto para a conveno cientfica, resulta bvio que de modo algum interessalhe a interpretao biolgica dos fenmenos biolgicos que podem ser expressos por meio de uma frmula fsico-matemtica (a qumica includa). Assim, um outro colaborador da mesmssima enciclopdia, Felix Mainx, declara francamente que toda biologia geral suprflua num plano cientfico; ela possuiria apenas um significado pedaggico, mas no constituiria um campo prprio de pesquisa. Aqui os neopositivistas colocamse numa confortvel posio, na medida em que simplesmente identificam o campo problemtico da biologia geral com teorias cientificamente comprometidas e liquidadas como o vitalismo. Porm, com uma polmica to caricata no pode este problema ser desterrado da cincia, podendo quando muito ser contornado, e sempre em prejuzo da biologia como cincia da vida. De fato, a despeito dos enormes resultados da pesquisa singular, permanece sem o devido esclarecimento a questo central da vida refirome aqui apenas problemtica cientfica da reproduo ontogentica e filogentica, e no ontolgica , porm ningum pode negar que se trata de uma questo efetiva. Todos os resultados singulares que devem ser obtidos, freqente e fecundamente, por intermdio da biofsica e da bioqumica, servem em ltima anlise ao conhecimento do que a vida em si, do que ela tem em comum com outras formas de ser, e qual o elemento especfico distintivo de seu ser. Que teorias como o vitalismo deram respostas completamente falsas a tais questes um lugar comum: mas o fato de que no tenham at hoje encontrado uma soluo adequada, de modo algum confere ao neopositivismo o direito de eliminlas da cincia.

O desenvolvimento do pensamento mostra e retomaremos estas consideraes com freqncia que as questes ontolgicas afloram muito antes da possibilidade de serem respondidas cientificamente, que tal desenvolvimento elimina passo a passo as falsas concepes para substitulas por outras mais corretas, e que com isso surge uma ininterrupta interao com a cincia. Mas uma especialidade de nosso tempo a decidida radicalidade com a qual procura separar a cincia da efetividade. Quanto mais isto costuma ser feito em nome da "pureza" da cincia, mais a prejudica. Pois o nosso saber deve confrontarse com estes fatos reais, e no est escrito em nenhum lugar que uma premissa ou uma resposta ontolgica tem que ser necessariamente confusa ou reacionria como a vitalista. Um fsico importante como Schrdinger, por exemplo, procurou responder a questo ontolgica fundamental da biologia a essncia da vida trabalhando com a hiptese de que a inverso da entropia o fundamento da vida. Naturalmente, no h aqui a inteno de tomarmos partido a favor ou contra a hiptese de Schrdinger. Ns a mencionamos apenas porque ela mostra como possvel encontrar, sem o abandono do terreno da cientificidade controlvel, e at mesmo eventualmente com o auxlio de categorias fsicas (ou qumicas), uma soluo para a especificidade da essncia da vida, que conceitualize tanto sua continuada conexo com a efetividade inorgnica, como sua particularidade em relao a esta ltima. A eliminao de tais problemas por meio do ttulo "metafsica" leva portanto ao estreitamento e desfigurao da biologia como cincia.

Naturalmente no se pode aqui lidar de maneira pormenorizada com tais questes. Desejamos apenas mencionar mais uma vez uma categoria da efetividade, j aludida em outro contexto, a singularidade. Que a singularidade, em razo do processo de reproduo ontogentico, cumpre na esfera da vida um papel muito mais destacado do que na efetividade inorgnica de tal maneira evidente, que a prpria regulao lingstica do neopositivismo no pode contornla. Felix Mainx, por ns j citado, fala da multiplicidade descontnua dos animais e plantas, razo pela qual estes no puderam ser classificados de uma maneira meramente quantitativa, tal como, por exemplo, os elementos qumicos com Mendelev, e que por isso, ao contrrio do que ocorre no caso dos elementos qumicos, para os animais e plantas impossvel fazer previses sobre formas ainda desconhecidas. Abstraindose o nivelamento aqui envolvido admissvel s para fins manipulatrios de elementos simples com organismos muitas vezes altamente complexos, pelo menos se reconhece um lado do complexo, mas no ocorre aos neopositivistas extrair destes fatos, forosamente reconhecidos, conseqncias metodolgicas sobre a diversidade das formas do ser, da qual provm aquela diversidade. Alm disso, a maior importncia da categoria da singularidade manifestase tambm na interpretao terica de questes biolgicas eminentemente prticas. Basta pensar na cincia da medicina. Seu objeto sempre inevitavelmente um paciente singular. Ainda que fosse possvel investigar e identificar todos os sintomas de seu estado de sade por meio de mensuraes quantitativas, possibilidade da qual ainda estamos distantes, mesmo assim o decisivo para a correo do diagnstico e do tratamento continua sendo em ltima anlise a especfica constituio do singular. O ideal neopositivista, hoje sempre reafirmado, de substituir por uma mquina ciberntica, considerando o nmero crescente e a preciso das pesquisas de detalhe quantificveis, o diagnstico pessoal do mdico que, evidentemente, deve estudar e avaliar com cuidado aquelas pesquisas, revela em termos caricaturais a peculiaridade metodolgica do neopositivismo. Por um lado, a singularidade do paciente desprezada consciente e metodologicamente; por outro, como j assinalamos, menosprezase a interpretao biolgica dos nexos singulares, quantitativamente fixados, em favor do emprego exclusivo da "linguagem" quantitativa em comum. No necessrio ser mdico para saber que todas as pesquisas quantitativas, seja cardiogramas, mensuraes do nmero de glbulos no sangue, da presso arterial, etc., devem ser interpretadas biologicamente, quer dizer, individualmente baseadas na personalidade, na histria da doena, etc., do paciente singular a fim de que se possa estabelecer um diagnstico correto. ( O fato de haver desenvolvimentos tpicos, etc., no altera em nada esta decisiva importncia da categoria da singularidade).

Mais grosseira ainda se apresenta a unidade neopositivista da manipulao cientfica quando o homem, as relaes humanas so o objeto da pesquisa. Aqui pela omisso dos resultados efetivos das cincias sociais, sobretudo a economia a estrada no conduz apenas na direo da reinterpretao, da inadmissvel simplificao dos mtodos e resultados cientficos efetivos, mas ligase diretamente moderna filosofia da manipulao. Carnap, em artigo por ns j citado, distingue o individual e o social de maneira meramente behaviorista. Enquanto na psicologia ele discute ainda algumas dificuldades de classificao, parecelhe que a situao nas cincias sociais no carece nem de uma anlise pormenorizada: "Cada termo deste campo redutvel aos termos de outros campos. O resultado de toda pesquisa sobre um grupo de homens ou outros organismos podem ser descritos nos termos de seus membros, de suas relaes recprocas e com o meio ambiente. Em seguida podemse formular as condies para o emprego de qualquer termo nos termos da psicologia, da biologia e da fsica includa a linguagem coisal. Muitos termos podem ser definidos sobre esta base, podendo o resto ser certamente reduzido a ela." Carnap admite mesmo "que, atualmente, psicologia e cincia social no podem ser derivadas da biologia e da fsica. De outra parte, no h qualquer razo cientfica para admitir que uma tal derivao seria por princpio e em definitivo impossvel."

Tal dogmatismo da manipulao universal francamente desarmante. Por isso no daremos seguimento polmica com as afirmaes de Carnap. Para muitos estas se eliminam por si prprias. Outros leitores devemos remeter para o conjunto das consideraes que se seguem, as quais, sem uma crtica explcita s posies neopositivistas, contm implcita porm sua refutao.

Mannheim, K. Mensch und Gesellschaft im Zeitalter des Umbaus, Leiden, 1935, p. 182.

Lenin, V.I. Materialismus und Empiriokritizismus. Smtliche Werke XIII, WienBerlin, 1927, pp. 2612.

ibid., pp. 31112

Hartmann, N. Zur Grundlegung der Ontologie, Meisenheim am Glan, 1948, p. 7.

Planck, M. Wege zur physikalischen Erkenntnis. Leipzig, 1944. p.186

N. do trad.: nesta passagem a edio italiana referese ontologia prmarxiana.

Carnap, R. Der logische Aufbau der Welt. Hamburg, 1961, pp. 2489.

Carnap, R. Foundations of logic and mathematics. In International Encyclopedia of Unified Science I, Chicago, 1955, p. 171

James, W. Pragmatismus, Leipzig, 1928, p. 140.

Carnap, R. Der logische Aufbau der Welt, op. cit., p. 204.

ibid., p. 38

Nota do trad.: neste trecho parece haver um erro tipogrfico no original em alemo pois se escreve "ungesttigte Zeiten" quando pelo contexto fica evidente que o autor se refere a signo, i.e., "Zeichen", correo que a verso italiana faz sem se referir ao problema no original (no italiano "segno no saturato"). De passagem cabe mencionar, tambm neste mesmo pargrafo, o que parece ser um erro da edio italiana. Onde no original alemo se l "Aussagefunktion", na verso italiana se diz "funzioni proporzionalli" quando, a nosso ver, o correto seria funes proposicionais.

N.do trad: a edio italiana traduz "plastisch" por "in forma concreta".

Einstein, A. & Infeld, L. Die Evolution der Physik, Hamburg, 1956, pp. 149150.

ibid., p.150.

Nota do trad.: fazse necessrio conferir este trecho na medida que difere substancialmente da edio italiana.

Nota do trad.: difere da edio italiana.

N.do trad.: difere da edio italiana.

ibid., p. 151.

Carnap, R. Logical foundations of the Unity science. In International Encyclopedia of Unified Science I, op. cit., p. 49.

ibid., p. 60.

Mainx, F. Foundations of Biology. In International Encyclopedia of United Science II, op. cit., p. 626.

Schrdinger, E. Was ist Leben? Bern, 1946, p. 112.

Carnap, R. Logical Foundation of the Unity science, op. cit., p. 59

Nota do trad.: a edio italiana menciona aqui as leis da psicologia, da cincia social, da biologia e da fsica.

ibid., p. 61.

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Este texto corresponde primeira seo do primeiro captulo, Neopositivismo e Existencialismo, da obra de Georg Lukcs, Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins, Darmstadt: Luchterhand, 1984. Traduo preparada por Mrio Duayer, Departmento de Economia, UFF. Verso preliminar. Solicita-se no citar sem autorizao do tradutor.