Conversando Com Lukács

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Conversando com Lukács. Conjunto de entrevistas realizadas com o filósofo húngaro pouco antes de seu falecimento. O volume também é completado com entrevistas dos anos 1960.Marx, Filosofia, Ontologia, Manipulação, Marxismo.

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Série

RUMOS DA CULTURA MODERNA

Volume 32

Leo Kofler - Wolfgang Abendroth

Hans Heinz. Holz

CONVERSANDO

COM LUKACS

Tradução de

OISEH VIANNA KONDER

Paz e Terra

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Titulo do orJginal alemão: GF.SPRACHE MIT GEORG LUKACS

Rowohlt Verlag GmbH, Relnbek bel Hamburg, 1967

Montagem da. capa: EuNlcE DUARTE

Diagramação e supervisão gráfica.: RoBERTO PONTUAL

Distribuidora. exclusiva: EDrróRA ClVILIZAçÃo BMS1LEIRA S, A.

Rua 7 de Setembro, 97 RIO DE JANEIRO - GB - BMSIL

Direitos para a língua portuguêsa adqulrldos pela EDITORA PAZ E TERRA S, A.

Av. Rio Branco, 166 - 129 andar - s/ 1222 RIO DE JANEIRO

que se reserva a propriedade desta tradiição,

1969

Impresso no Brasil Printed in Brasil

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NOTA PRELIMINAR DA EDIÇÃO BRASILEIRA

Do PENSADOR hún8ªm-,._Georg Lukács - que muitos con­sideraram o maior filósofo marxista da-época presente - já foram lançados no Brasil diversos livros. A Editôra Civilização Brasileira publicou Ensaios Sôbre Literatura (já em segunda edição), Introdução a Uma Estética Marxista e Marxismo eTeoria da Literatura. Outras editôras publicaram Existencialismoou Marxismo? e Realismo Crítico Hoje. Além disso, foram ven­didos no Brasil numerosos exemplares da primeira parte _da monumental Estética de Lukács na edição em castelhano.

Lukács já é, portanto, bem conhecido do público leitor brasileiro. O presente livro do mestre húngaro, contudo, apre­senta características especiais, pois se compõe de entrevistas, textos de circunstância. Se esta forma carece de uma elabora­ção sistemátié.a mais desenvolvida, ela .tem, no entanto, a van- · tagem de trazer aos leitores a filosofia lukacsiana colhida ao vivo, em movimento ágil e variado do pensamento, tratando de

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problemas que vão desde a sociologia da moda (a minissaia) até a crise do socialismo, a manipulação e as modalidades sofisticadas da alienação no capitalismo contemporâneo.

O original das conversas gravadas que Lukács teve em se­tembro de 1966 com os professôres alemães Wolfgang Aben­droth, Hans Héinz Ho1z e Leo Kofler saiu em livro na Alemanha Ocidental (Hamburgo), A êsse texto tie GespTii.che mit Georg Lukdcs (que foi traduzido da ediÇãO italiana), resolvemos acres­centar na edição brasileira mais três entrevistas concedidas nos últimos anos por Lukács: 1) uma entrevista eminentemente teórico-política concedida a István Simon e Erwin Gyertyan, publicada originalmente pela revista húngara Kortars em maio de 1968 e republicada em Rinascita; 2) outra entrevista con­cedida ao escritor tcheco Antonin Liehm, publicada no prin­cípio de 1964 pelo semanário Literarny Noviny e republicada em La Nouvelle Critique; 3) outra, finalmente, concedida a Yvette Biró e Szilard Ujhelf, publicada em Film Kultura e re­publicada na revista italiana Cinema Nuovo em seus números correspondentes a dezembro de 1968 e a janeiro de 1969.

Agradeço a Carlos Nelson Coutinho pela permissão que me deu de incluir no presente volume a tradução da segunda entrevista acrescentada à edição brasileira e a Leandro Konder pela permissão de utilizar aqui a tradução que fêz do texto ita­liano da entrevista originalmente concedida a Kortars.

G, V. K.

CONVERSAS COM HOLZ,

KOFLER E ABENDROTH

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PRIMEIRA CONVERSA

Georg Lukâcs

Hans Heinz Holz

Ser e Consciência

HoLz - Senhor Lukács, na sua Estética estão presentes alguns pressupostos ontológicos que nem sempre são tratados explicitamente. Sabemos que o senhor prepara uma ontologià.�j sôbre bases marxistas e não queremos antecipar êsse livro, que '.\ leremos em breve. Queremos, todavia, abordar brevemente um problema: até que ponto certas posições de sua Estética são de­finidas e condicionadas por pressupostos. ontológicos que, tal­,·ez, possamos esclarecer melhor nesta conversa. Uma questão preliminar e particulannente atual, com a qual eu gostaria de começar a nossa conversa, é a questão que já se apresentou a mim numa discussão ocorrida �m Marburg, numa discussão que tive com os alunos do professor Abendroth, aqui presente. A questão é precisamente a seguinte: existe alguma coisa que se possa _definir como uma ontologia marxista? Que sentido pode

.fter o têrm.o "ontologia" numa filosofi� marxista? Foram os pr6-p1ios alunos de Abendroth que me objetaram: de um ponto de vista marxista, a ontologia se resolve na sociologia. As catego-

1 \ rias ontol6gicas deveriam, então, ser entendidas exclusivamente como categorias hist6rico-sociais. Todavia, para que o discurso de caráter ontol6gico possa ter um sentido, estas categorias onto­lógicas devem compreender algo que não se pode definir exclusi., vanJ.ente como economia e história. Interessa-nos saber o que pensa o senhor sôbre êste problema.

LUKÁCs - Suponho que sempre é preciso· começar - e isto vale. para os cientistas tanto como para qualquer outra pessoa·� por questões da vida cotidiana. Na vida cotidiana, os

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problemas ontológicos se colocam num sentido. muito grosseiro. Darei um exemplo bastante simples: quando alguém caminha pela rua - mesmo que seja, no plano da teoria do conhecimen­to, um obstinado neopositivista, capaz de negar tôda a reali­dade - ao chegar a um cruzamento, deverá po·r fôrça conven­cer-se de · que, se não paràr, um automóvel real O atropelará, realmente; não lhe será possível pensar que uma fórmula mate­mática qualquer de sua existência estará subvertida pela fun­ção matemática do carro ou pela sua representação da repre­sentação do automóvel. Tomo deliberadamente um exemplo tão

1 simples para mostrar como na nossa vida as diversas formas de ser estão sempre unidas entre elas e o interrelacionamento cons­titui o dado primário. Por isso, não posso considerar séria a pergunta sôbre o caráter sociológico ou ontàlógico de uma dada categoria. Hoje entre. nós tornou-se hábito representar qualquer disciplina que encontrou cidadania acadêmica como· uma esfera autônoma do ser. Até um filósofo inteligente como Nicolai Hartmann afirma que a psiquê deve ser alguma coisa autôno­ma, de vez que a psicologia já há duzentos ou trezentos anos constituiu-se como uma ciência particular, no âmbito das disci­plinas universitárias. -Ora, sou do parecer de que 'tôdas· estas coisas São histõricamênte mutáveis, e que, dêste ponto de vista,

I o ser e suas transformações são o fundamental. Na minha opi­nião, é daqui que se deve- começar e daqui comecei eu mesmo na minha estética.' Essa estética traz o título não de todo exato de Eigenart des Ãsthetischen (Especificidade do fato estético);dever-se-ia dizer mais precisamente: posição do princípio esté-; tico no quadro da atividade espiritual do homem. Ora, as ativi-:' dades espirituais do homem não são, por assim dizer, entidades da alma, como imagina a filósofia acadêmica, porém formas diversas sôbre a base das quais os. home�s organizam cada uma de suas ações e reações ao mundo externo. Os homens dependem sempre, de algum modo destas fonnas, para a defesa e a cons� trução de sua existência� Por exemplo; hoje, é quase certo que os maravilhosos desenhõs da idade da pedra, encontrados na França meridional e na Espanha, eram na realidade prepara� tivas mágicos para a caça; aquêles animais não eram pintados c:om finalidades estéticas, e sim porque os homens daqueles tempos acreditavam que uma boa representação de um, animal equivalesse a uma melhor possibilidade de caça. Esta pintura é,

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então, uma reàção utilitarista, ainda primitiva, à vida. Com a i' socialização da sociedade êste caráter se aprofunda. A repro­r dução imediata da vida é, pois, sempre �onclicionada. Quero

dar· ainda um exemplo bastante simples. Vai-se a uma loja e compra-se uma gravata ou seis lenços. Se tentar a representação do processo necessário para que o senhor e os lenços se en­contrem no mercado, então verá que se pode constituir um , quadro muito variado e complexo. Ora, e1:1, acho _q� _ êstes pro­cessos não podem vir excluídos da compreensão da realidade. :Êste é o primeiro ponto sôbre o qual me parece oportuno insistir.

O segundo ponto relaciona-se com a metodologia e em certo sentido já nos leva a um nível muito mais avançado. A ciência que progride tem de fato téndência a compreender cada aspecto, cada maneira de manifestar-se da vida, nas mais altas formas de sua objetivação e acredita que êste seja o melhor tipo de análise. Pense-se na teoria kantiana do conhecimento que, por um lado, parte da matemática daquele tempo e da física newtoniana como fundamento do conhecimento, e, por outro lado, assume a escolha moral num alto nível de desenvol­vimento como fundamento da prática. ,' Ora, creio que não é possível descer de uma forma mais alta a uma forma mais baixa. Não se pode descer da forma newtoniana da análise,

1 1da física newtoniana, às representações que permitem a umI caçador· primitivo Compreender, com base em certos rumores, o grau de aproximação de um cervo ou de um cabrito. Domesmo modo, s� tomo como ponto de partida o imperativo cate­górico, não poderei compreender as ações simples e práticas dohomem na vida cotidiana. Creio, então, que o caminho que de­vemos empreender, e com o qual já entramos de cheio nos pro­blemas ontológicos, é o da pesquisa genética� Isto é: devemostentar pesquisar as relações nas suas form�s fen_omênicas íniciais

I e ver em que condições estas formas fenomênicas podem tor­naÍ'-se cada· vez mais complexas e mediatizadas. Naturalmente,em certo sentido, isto é desagradável para o cientista. De fato,se considero o fator "ciência" devo perguntar-me: qual é a sua:origem? Em cada posição teleológica - e o trabalho é uma·posição teleológica - terilos um momento no qual o homem·.

·. :\ que trabalha, mesmo que se trate de um homem da idade da -<, : pedra, pergunta-se se o instrumento com que lida é apropriado· ou não ao fim a que se propõe. Se me reporto a um·

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anterior à produção dos instruinentos de trabalho e penso em uma época na qual o homem primitivo, para satisfazer a certas funções, limitava-se a recolher as pedras mais adequadas, posso imaginar êste homem primitivo que diz, observando duas pedras: esta é própria para arrancar um ramo e esta não ( ou qual­quer coisa no gênero: pouco importa que tenha formulado a

,�questão nestes têrmos). Com esta escolha da pedra inicial come­;' ça a ciência. Mas a ciência'. desenvolveu-se pouco a pouco em

um aparato autônomo de mediações, no qual os caminhos que conduzem às últimas decisões práticas são extraordinàriamente longos, como podemos observar hoje em tôdas as fábricas. :creio que é muito mais seguro reconstituir o caminho da gênese da ciência começando pela escolha da primeira pedra utilizada para funções de trabalho e terminando com a ciência, ao invés de começar pela matemática superior e tentar, retornar depois à escolha da pedra. Isto significa que, se quisermos compreenderos fen6menos em sentido genético, o caminho da ontologia é inevitável, e que se deve Chegar a extrair das várias circunstân­cias que acompanham a gênese de um fato qualquer os mo­mentos típicos necessários para o próprio processo.l Esta é, então, por assim dizer, a justificação do _por que eu considero essencial colocar-me a questão ontológica; e, d() ponto de vista ontológico, as fronteiras entre as ciências têm um significado secundário. Retorno agora ao meu exemplo inicial. Quando um automóvel vem ao meu encontro numa encruzilhada posso vê-lo como um fenômeno tecnológico, como um fenômeno soi.::io­lógico, como um fenômeno relativo à filosofia da cultura, etc.; no entanto, o automóvel real é uma realidade, que poderá me· atropelar ou não.,.. O objeto sociológico ou cultural "automóvel" é produzido, antes de mais nada, em um ângulo visual que de­pende dos movimentos reais do automóvel e é a sua repro- · . dução no pensamento. Mas o automóvel existente é, por assim

', dizer, sempre primário em relação ao ponto de vista socioló-gico a seu respi;_ito, já que o automóvel andaria mesmo que eu não fizesse sociologia alguma sôbre êle, ao passo que nenhum automóvel será pôsto em movimento a partir de uma sociolo­gia do automóvel. Há, pois, uma prioridade da realidade do real,

, 1 se assim se pode dizer; e, segundo penso, devemos tentar voltar , a êstes fatos primitivos da vida e compreender os fenômenos · complexos partindo dos fenômenos originários. t,;

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HoLz - Sim, a vida cotidiana é o ponto de partida, a base de uma espécie de compreensão natural do mundo. Dilthey ou Husserl já usaram esta expressão, se beni que em sentido diverso do seu.

LuKÁcs - A teleologia' também a usou ... HoLz - Ora, quando o senhor constrói geneticamente a

ontologia a partir da vida cotidiana, o problema que se coloca é êste: a ontologia é uma forma metodolõgicamente específica de aproximarmo-nos dos dados que formam· o conteúdo da ex­periência cotidiana de maneira a superar êste último, por assim dizer, em um sistema de consciência? A questão é, em suma, a seguinte: qual é, em sentido estrito, o objeto da ontologia? Na ontologia clássica êle seria, por exemplo, a teoria das categorias.

LuKÃcs - Direi que 'ó objeto é o que existe realmente; a ,i tarefa é a de investigar o ente com a preocupação de com­i preender o seu ser e encontrar os diversos graus e as diversas · conexões· no seu interior. "Daqui decorre um ponto que apa­rentemente nos leva um pouco longe, mas que deve ser igual­mente tratado no início. Penso num problema que em nossotempo, pelo que sei, foi colocado pela primeira vez por NicolaiHartmann; trata-:se do fato, já por êle descoberto na natureza

('jnorgânic'2 de que os fen6menos complexos tem uma existênciaprimária. O complexo deve ser estudado como complexo, paradepois chegarmos aos seus elementos e aos processos elemen­tares. Por isto, o problema não é o de encontrarmos deter-

//. 'i·',i; minados elementos para depois construirmos certos complexos t /•· ''-, a partir de sua ação recíproca, cOmo em geral pensam os cien­

tistas. O senhor se recordará que Hartmann viu complexos dêste tipo, de um lado no sistema .solar e, '!t outro, no átomo. Creio que é um pensamento muito fecundo. ];: claro que uma ciência

, jbiológica não é possível se não entendemos a vida como um · 'complexo primário. A vida do organismo inteiro representa ai',ifôrça que, __ em última instância, determina os processos sin-

gulares. A ·síntese 'dos movimentos de cada músculo, dos nervos,e de todo O- resto, mesmo que os conhecêssemos um a um comprecisão científica, a soma destas partes, diz, nunca poderia

,1fazer surgir um organismo. Ao contrário, os processos parciaissó são compreerzsíveis como partes do organismo completo.,,,

Chegamos agora ao nosso problema, isto é, à sociedade, na qual esta complexidade é um dado natural não só para a pró-

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pria sociedade em seu conjunto, mas já, por assim dizer, para o seu átómo. i.Õ homein é em si um complexo, no sentido bio­lógico; mas êomo complexo humano não pode ser decomposto; por isso, se quero compreender os fenômenos sociais, devo con-

11 ! siderar a sociedade, desde o princípio, :�mo um complexo com­. , posto de complexos. O problema dects1vo está em como são

constituídos êstes complexos e como podemos chegar à essência real da sua natureza e da sua função. Não se trata, como dis­seram alguns, das determinações sociológicas, etc., que vêm ).sempre depois, mas da compreensão genética da origem e da /formação dêstes complexos. Ora, se o senhor observa a socie­dade dêste ponto de vista, não tarda a perceber que o fenômeno

. absolutamente destituído de analogias com o ser orgânico é o, " trabalho, entendendo-se por trabalho, entre aspas, uma espécie

de átomo da sociedade e ao mesmo tempo um complexo extra­ordinàriamente complicado; êle é, ao mesmo tempo, uma posi-

.1 ção teleológica do trabalhador e a colocação em movimento de uma �rdem causal. O trabalho só pode ser frutífero se é pôsto cm movimento por uma ordem causal real e, além disso, na direção requerida pela posição teleológica. Ademais, se inves­tigo êss_e complexo, chego à constatação de que, na posição

. teleológica, o homem empenhado no trabalho não está nunca em situação de abarcar tôdas as condições da ordem causal pos­ta em movimento por êle mesmo; daí se deduz que, com o tra­balho, de modo geral, se dá origem também a algo diverso da intenção originária do trabalhador. Naturalmente, o afastamen-. to, em certos estágios iniciais, pode ser mínimo, mas é certo que o desenvolvimento total da humanidade depende precisamente .1 de uma série de variações mínimas. Digamos que Os homens , tenham encontrado, por purp acaso, a possibilidade de uma me-1hor maneira de polir a pedra; depois, reconheceram, pouco a pouco, êste melhoramento como tal, a ponto de adotá-lo como

f praxis geral. O progresso não pode ser pensado sem êste desen-' volvimento, ao qual é inerente o fato· de que, não sendo conhe­cidos os condicionamentos do trabalho, o resultado é sempre

ílalgo diverso. Mais precisamente, aparece também algo diferen­te daquilo que originalmente se pretendia fazer. :S um precon.:. ceito enraizado no cientificismo a crença de que, com a amplia­ção das experiências, com as suas conexões, se reduza o ter­reno do desconhecido. Creio, ao contrário, que êle se amplia./

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Quanto mais conhecemos a natureza, com a qual a ciência e o trabalho estão em relação de troca, tanto mais evidente resulta êste medium desconhecido, plen.o das conseqüências1mais impor­tantes pa;a o desenvolvimento posterior da humanidade. :Bste âmbito desconhecido e não matrizado da reprodução social não

·I está circunscrito aos estados primitivos, mas existe também nos : estágios mais evoluídos. O senhor compreende como isso se rela­ciona com as questões ontológicas em tôrno das construções dos complexos. O industrial, mesmo encarado isoladamente, domina melhor sua produção particular do que o artesão da antiguidade ou da época medieval. Todavia, do complexo capitalista da pro­dução e do consumo desenvolveram-se fôrças desconhecidas, que explodiram posteriormente nas crises. Creio que é um pre­conceito da moderna ciêncià econômica pensar, seguindo Key­nes e outros, que se tenha chegado a um completo domínio da economia. Precisamente os problemas, hoje tão atuais, que são colocados com o término do "milagre econômico" mostram quão pouco o domínio do andamento econômico é um fato dura­douro.1

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Volto agora a um problema ontológico: quanto mais uma ! coisa é complexa, tanto mais ilimitado, seja extensivamente

I seja intensivamente, é. o objeto diante do qual se encontra a consciência do homem, de modo que mesmo o melhor saber s6 \'\ pode ser wn conhecimento relativo e aproximativo. Se reconheço X e Y como propriedades de um objeto, nada me dará jamais·a garantia de que não estejam presentes também Z e outras pro­priedades, que �m determinadas condições podem produzir um efeito prático. 'Penso que a ontológica é a forma adequada para nos aproxI:marmos dêstes fenômenos. Nela interessam-nos,

:/ de fato, as conexões do ser, e fazemos abstração do fato de : que uma determinada conexão seja traia.da pela ciência atual

como algo de psicológico, de sociológico, de pertinente à teoria.1 do conhecimento ou à lógica. A conexão vem tratada como: conexão existente, enquanto é considerado secundário per­' .guntar-se qual a ciência que dela se ocupa. :Êste é, na minha

1 :opinião, o ponto de vista central do marxismo e posso lembrarfMarx a propósito da célebre definição segundo a qual as cate-1gorias são formas e determinações da existência; o que cons­titui uma: antítese direta da concepção kantiana e também da concepçã.o hegeliana �a categorial:S daqui que deriva o método

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genético como se pode constatar lendo o início do Capital,

'j, ónde nãb se começa pelo)1;:abalt!ç,,. porém da troca mais elemen­I tar de mercadorias. Da·._c,ntologia)da troca de mercadorias de­ccirre, finalmente, a determinação genética do dinheiro como mercadoria geral. Marx demonstra, depois, como o fato de que o ouro e a prata se tornem formas permanentes de dinheiro está em conexão ontológica com as qualidades físicas do ouro e da: prata. l!stes metais prestavam-se às condições de uma troca generalizada, de modo que foi principalmente com base nesta propriedade que surgiu a preponderância do ouro e da prata como meios gerais de troca, isto é, como dinheiro. Que seja êste o caminho real do conhecimento, é algo que pode ser visto nofato de que para a civilização antiga o dinheiro se transformanuma potência mística, fato sôbre o qual Marx retorna repetida­mente. O dinheiro nasceu ontolàgicamente, de maneira simples,a partir dos atos de troca. Mas os antigos ainda não tinhamchegado ao ponto de poder formular esta explicação ontológica.Em Homero e Sófocles podem ser encontrados contínuos lamen�tos elegíacos sôbre esta potência mística que persegue a socie�dade e que pretende dominar os homens, mesmo sendo matéria

I morta. Então, eis que um problema tornado incompreensível

r para épocas inteiras fica completamente esclarecido pela deter­I minação ontológica da gênese que Marx_ fornece no início do

Capital. A mesma coisa pode ser dita a propósito de um pro­blema insolúvel para um economista do nível de Ricardo: isto

� é, por um lado, o fato de. que as mercadorias se troquem sôbre o fundamento de seu valor-trabalho e, por outro, o fato -incompatível com o primeiro - da existência, na sociedadecapitalista, de um lucro médio. Considero que Ricardo já enxer-gava esta inexplicável oposição entre lucro médio e valor-tra­balho.

Mas Marx notou a êste respeito um simples fato onto­lógico-social que, com tôda probabilidade, Ricardo também conhecia: no capitalismo moderno, o capital se transfere de .um setor a outro. Esta transferência, que no capitalismo pri­mitivo e nas sociedades capitalistas só acontece em. medida ij�stante limitada, é um fato ontológico fundamental. Quero

1zer: um fato fundamental inerente ao ser do capitalismo desenvolvido. Se o senhor relê as explicações de Marx no terceiro volume do Capital, dar-se-á conta de que a derivação

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do valoi-trabalho, tanto do lucro como do lucro. médio, é uma simples .conseqüência da migração de1 capital. O grande en�gma é resolvido no exato momento em que encontramos a 1usta pers,E!;ectiva: ontológica.

_ r.,usalllos a bela palavra "o�tolo.gia", à q�al eu mesmo meestou habituando, mas dever-se-ta dtzer: o emgma se desvenda

1 , 1 no exato momento em que descobrimos. a forma de ser que 1111 , produz êste nôvo movimento do complexoJ O fato de que novos 1 · 1 1 . 1

fenômenos se deixem deduzir geneticamente sôbre o funda.: mento de sua existência cotidiana é apenas um momento de1: uma conexão geral, isto é, significa que o_ ser é um processo de tipo histórico. Um ser em sentido estrito não existe e, por.-isso mesmo, o ser que estamos habituados a chamar de coti-

\ diana é uma determinada fixação bastante relativa de deter­minados complexos no âmbito de um processo histórico. Marx, disse, na Ideologia Alemã, que a única ciência é a ciência da história e o senhor recordar-se-á com que entusiasmo, apesar das muitas reservas metodológicas, Marx saudará Darwin como

i O descobridor do caráter fundamentalmente histórico da vida orgânica. Quanto à natureza inorgânica, é àbviamcnte muito difícil determinar-lhe a historicidade. Sou um diletante em assun­tos de ciências da natureza, mas creio que estamos às vésperas de uma grande e radical revolução filosófica provocada preci­samente pelo desenvolvimento das ciências naturais, na medida em que a astronomia começa a empregar a física atômica nas suas observações. Começam agora a aparecer os primeiros sinais de que as leis da composição da matéria, que regulam o surgir de determinados complexos, como por exemplo o sol, não são uniformes no universo inteiro. Nos diversos sistemas estelares já foram encontradas formas diversas de composição da matéria.

11 Não excluo a idéia de que a ciência chegará a descobrir uma­hist6ria da composição da matéria. Se assim fôr, a famosa forma eterna da matéria ( o grande princípio revolucionário do tempo de Galileu e de Newton) revelar-se-á como um período ou uma época no desenvolvimento histórico da estrutura da matéria. Esta é uma afirmação totalmente incidental; é, por assim dizer, a expressão de uma esperança filosófica minha, porque neste cam-po sou um verdadeiro diletante. Entretanto, Goethe e Lamarck já haviam se encaminhado nesta direção, enquanto que uma representação histórica do desenvolvimento da natureza inorgâ-

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·:nica 1parecia impossív;l aos cientistas do Século XVIII e, portan­tp, ... também a Cuvier. A questão agora é saber se, em física, noscolo_caremos .em um ponto de vista, por assim dizer, ultrapassado,não 56 no que diz respeito à concepção do materialismo vulgar,como no que se relacione à concepção puramente manipulatória

li dos neopositivistâs, o.u se chegaremos a uma concepção histó­

I rico-genética da natureza inor?ânica. Neste caso a afirmaçãode Marx, segundo a qual só existe uma ciência unitária da his-tória que vai da astronomia à chamada sociologia, poderá ser verifi�ada à base desta estrutura fundamental do ser. O que não/exclw, poré�, 9ue a e.strutura d� ser revele três grandes formas fundamentais: morgâruca, orgâmca e social. Estas três formas são descontínuas urnas em relação àsoutras. Em geral, na esfera do inorgânico, não existe reprodu­ção temporalmente condicionada, não se dá esta forma de exis­tência determinada por um princípio e um fim que caracterizaos complexos orgânicos �ingulares; da mesma forma, não é pos­sível estabelecer analogias entre o mundo orgânico e a vidasocial. Creio que o que se chama sociedade animal é um pro­blema complexo. De qualquer modo, com a sociedade surgeum ser nôvo e específico. Mas não podemos representar o:salto de modo antropomórfico, _como quando me levanto da·mesa e corro ao telefone. Um salto pode durar milhões de anosco� vários pulos para a frente, recaídas, e assim por diante, ;creio que no mundo animal mais evoluído houve vários impul-.sos na direção da organização social, depois efetivamente reali-.zada numa espécie de macaco, a partir da qual, gradualmente,!

l se formou o homo sapie�. Por isso, a relação entre as div.ersas : I ílesferas pode também ser mterpretada em sentido genético. Aqui

entra outro fato da ontologia que, segundo penso, as ciências modernas têm �ubestimado. Quanto mais desenvolvida é aciência, tanto mais fàcilrnente os cientistas podem estabelecer emseus campós nexos precisos, exprimíveis matemàticamente. Nopensamento humano nasce assim a tendência: a considerar oacaso, por assim dizer, como alguma coisa de "ainda não conhe­cido." que será progressivamente eliminada por um conhecimentocada vez �elhor. Se levantarmos a questão ontológica da origem do orgamsmo, e só podemos leVantá-la cientificamente, cons­t;:itamos que as pesquisas atuais de Oparin, Bernal e outros,mostram como. UJ;n. fato que definirei como casual no sentido20

cósmico contribuiu, ·durante uma certa fàSe·dO prOCesso de'reS­friaménto da terra, para fazer com que. a pressão· atmosférica,a composição química da água, e assim por diant�, provocassemcasualmente a transformação da matéria inorgânica em maté,:.ria orgânica. A origem da vida é derivada . apenas de uma sin­gular Casualidade que não pode ser deduzida diretamente das po­tencialidades dos elementos, isto é, da combinação de- sériesevolutivas em si heterogêneas . É uma circunstância que é pi:�cisà ter sempre presente, mesmo porque o pensamento human·o;com os conceitos de "racionalidade" e "legalidade", pretendeuafirmar o predoinínio ontológico da racionalidade, porém, t;J.árealidade, se assim posso me exprimir, existem apenas neces�i.:.dades na forma do "se é isto ... então será aquilo". Uma neces;sidade ilimitada absoluta, é uma fantasia de professôres: creioque absolutame�te ela não existe. A história es�á cheia dêste9po, condicionàdo, de necessidade. Assim, n�o sabemos ao �rtóquantos planetas existem no mundo, no umverso, nos quais oacaso produziu vida; do mesmo modo som�s obrigados a pres:.

supor a ação necessária de uma série de condições casuais par­ticulares para explicar o aparecimento, em no�so pianêta, .deum tipo de macaco capaz de chegar ao trabalho. Amda aqu� oacaso tem um papel extraordinàriamente grande, papel que, comtôdas as conseqüências históricas, entra na historicidade do :de­senvolvimento concebido ontolàgicamente, no qual o ser setransforma em um processo. Voltemos agora a uma observaçãorelativa a Marx. O senhor se recordará que Marx, extraindolições do levante da Comuna, escreveu uma vz a Kugelmannque a história seria muito simples se não houvessem casualida­des como, por exemplo, as qualidades dos, �omens que, e� cadaépoca, estão à frente do movimento operano. É de todo tmpos�I i sível, por exemplo, deduzir do desenvolvimento do movimento

: 1 operário a qualidade de seus dirigentes, porque também aquiexiste uni ineliminável fator casual. Por enquanto, 1 limito-me -�concluir que apresel1tar a questão ontológica não sim""plifica artiij.­cialmente o problema; oferece, ao contrário, uma base cie�­Jíf�co-filosófica para compreender o processo na sua complexi­dade e racionalidade. Por "racionalidade" dev_e;;n.os sempre. con;i.­preender uma racionalidade sob a forma de "se é .�sto .. , entã,oser·á aquilo". De tal modo, a ontologia pode superar problemas--.que a divisão do trabalho nas várias disciplinas tomou insolóvel .. ·,

·21.

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; ,Nos -anos vinte,. Kelsen afirmou que o nascimento do direito ) coD.stiriúa um mistério para a ciência jurídica. Ora, é óbvio que a origem do direito não é, evidentemente, um mistério, . p ressu� pondo antes discussões bastante complexas e encarniçadas lutas 1, de -classe. A média dos comerciantes na República Federal da · Alemanha não considera um mistério a origem do direito; o que ela se. pergunta é se o seu pressure group pode exercer sôbre o ·govêrno uma pressão suficientemente forte ( e portanto uma pressão·.verdadeiramente ontológica) capaz de determinar uma proposta de lei a seu favor. Mas Kelsen não é um tôlo quando vê nestes fatos um mistério, porque@s reais problema s da vida não se resolvem no plano da teoria do conhecimento, nem no plano da 16gica. Teoria do conhecimento e 16gica, em deter­minadas condições - e se tratadas criticamente - podem ser bons instrumentos. Tomadas em si e por si e coagu1adas em método principal, como no kantismo, no positivismo e no neo­positivismo, as questões da teoria do conhecimento se tornam um obstáculo a um conhecimento real. :Êste é também um dos r l�mites -�ª �osofia hegeliana, q�e cav� um abismo entre filoso­fia e c1enc1a, enquanto o marxismo impulsiona continuamente a ciência na direção das soluções das questões ontol6gicas, co­mo, por exemplo, no problema de astronomia, do qual falamos. PAor outro la�o, a filoSofia pode exercer uma crítica ontol6gica sobre deternunadas hip6teses ou teorias científicas e demonstrar assim que elas se encontram em contradição com a estrutura efetiva da realidade.! HOLZ - O senhor respondeu à pergunta que indagava se é possível uma ontologia marxista esboçando uma ontologia já elaborada . Isto é, respondeu à questão indicando coIDo devaapresentar-se tal ontologia para ser possível. Assim colocavam­se em discussão, parece-me, alguns pontos centrais, ao� quaisdeve1?-os nos ater em nossa conversação. O senhor disse quetudo JSSo que acontece inicialmente no mundo é de natureza com­plexa e por isso referiu-se a Nicolai Hartmann. O problema ftm­damental da ontologia seria agora: como são constituídÓs êssescomple�os? Ou seja, é preciso, por assim dizer, considerar aontol�gia coI?o ]?ré-ordenada às ciências singulares, como umaespécie de c1êncJa fundamental? E ainda devemos considerarque, em conseqüência desta sua posição, a 'ontologia pode entrar

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nos· interstícios existentes entre as disciplinas, assumindo uma função mediadora?

LUKÁCS - Sim. HoLz - Ora, segundo a concepção marxista, e isto me

parece esséncial, esta ciência fundamental� é sempre uma ciên­cia histórica. O senhor citou a fonnulaçao de Marx segundo a qual s6 a hi st6ria é a ciência unitária, em sentido marxista. ,

LUKÁCS - Sim. -HoLZ - . . . e referiu-se ao darwinismo, depois a Goethe

e a Lamarck, para exemplificar êste problema com base nas ciências da natureza. Gostaria de ac rescentar, apenas, entre pa­rênte5es que a concepção hist6rica da natureza já se encontra 1. !lfl, ' · � d 1·1 1· ·1 .. t em certas. posrçoes a I aso 1a 1 umm1s �- ..

LuKÁcs - Naturalmente. HoLz - . . . assim, na Protega de Leibniz, foi feita a

tentativa de uma consideração hist6rica da natureza da terra. LuKÁcs - Certo. HoLZ - Talvez se pudesse considerar, em geral, tôda a

teoria daS mônadas como uma tentativa especulativa de com­preender e interpretar histàricamente o atomismo._ . . LuKÁcs - Sim; se posso fazer uma observaçao 1p-c1dental, creio que uma das mais grayes. culpa_s d.o �arxismo � a de terdescuidado o estudo de Le1bmz. Le1bmz e uma figura ex­traordinàriamente complexa e interessante e nós ( devo incluir­.me no número dos pecadores) não fizemos ainda um esfôrço para compreendê-lo . Estou inteiramente de acôrdo com o senhor. Estudar Leibniz é uma tarefa da qual não podemos ainda an­tecipar os resultados.

HoLZ - O senhor toca em um ponto delicado para mim porque Leibniz é agora o meu terreno direto de trabalho.

LuKÁcs - Muito interessante. HoLZ - E posso recordar que Marx apreciava muito Leibniz ...

LuKÁcs - Naturalmente. HoLZ - ... 1 e freqüentemente sublinhou êste apr�o. As

observações de Lênin sôbre o livro de Feuer_bach d�1ca�o a 1; . Leibniz, que é, aliás, de longe, a melhor coJSa escrita sobre , Leibniz na filosofia alemã . ..

LUKÁCS - O livro de Feuerbach ... HoLZ - O livro de Feuerbach e as observações de Lênin ...

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LUKÁCS - E uma observação muito inteligente. HOLZ - ... são contribuições esenciais para a interpre­

tação da dialética pré-hegeliana. Mas tudo isso é acessório. Co­meçamos então pela constatação de que a ontologia, como a

1·ciência fundamental, desenvolve determinados modelos concei­iltuais na base dos quais o nexo dos conhecimentos fornecidos pelas ciências singulares é fundado sôbre a natureza do ser .. Não uso aqui o conceito de modêlo numa acepção neopositivista, mas em sentido geral.

LUICÁCS - Sim, .. HoLz - Encontramo-nos, assim, novamente, com o pro­

blema estético, porque também as obras de arte, a rigor, são esboços de modelos; cada uma delas, cria, de cada feita, um pe­queno mundo determinado.

LUKÃcs - Sim, naturalmente. HOLZ - Então, cada obra de arte tem, verdadeiramente,

se assim podemos dizer, uma intenção ontológica ... LUKÁCS - Sim. HOLZ - . . . isto é, a intenção de criar um mundo pos­

sível, para usar novamente um têrmo leibniziano ... LUICÁCS - Sim. HoLZ - Então, da premissa ontológica, premissa que cer­

tamente não sai indene dos últimos desenvolvimentos da física, , ) ! resulta que cada mundo é, antes de tudo, o� e não ca9J!­: / ç_o. A obra de arte, porém, enquanto universo, pode conter em

si sempre e sômente relações de sentido ordenadas e então pressupõe que o que está desenvolvido nela já seja em si um cosmos e que neste cornos fechado tôdas as partes são recipro­camente conexas, através de relações e mediações màis Ou menos necessária çu, pelo menos, de uma contingência imposta pela necessidade._ Ora, isso poderia significar que qualquer relação formal na qual se manifeste uma totalidade fechada de relações poderia ser por nós considerada também como uma obra de arte. Evidentemente, nós não fazemos isso no uso linguístico nor­mal, quando falamos de urna obra de arte; nem, em sentido es-

\ ! J tritamente estético, consideramos qualquer totalidade fechada de·! relações uma obra de arte; pensamos antes que O pequeno mun­

do que nela é plasmado seja de qualquer modo representativo do mundo maior, que penetra nesta obra de arte e da qual ela

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r é reflexo· e representação. Devemos discutir então, antes de tudo, muito atentamente, êstes têr�os. Nós esperamos da obra de arte alguma coisa como a projeção de uma realidade maior sôbre uma realidade menor, fechada em si mesma, e que por isso é uma relação sintética. Quer dizer: o que para nós no.

· mundo é, por assim dizer, inapreensível na sua trama infinita,· na obra de arte aparece compreendido e trazido a nós numa

estreita ligação sintética. Quando consideramos, por exemplo,A Montanha Mágica como o quadro de uma situação do mun­do histôricamente determinada, vêma-la como um pequeno mi­crocosmos que retrata aquêle cosmos mais vasto. Do ponto devista ontológico se coloca agora a questão: qual é o status destarelação de representações? Que significado tem? O que signi­fica o fato de que uma relação universal infinita, cheia de acasos numerosos e inapreensíveis, possa ser representada me­diante uma relação finita, plenamente concluída em si?

LUKÁCS - Sim, veja, para responder devo novamente es-tender um pouco a explicação. :e urna característica do mundo

I .' social, no que diz respeito ao homem, que aquêles que agem: devem ter um quadro determinado de onde e como vão agir. Ora, a questão não está no fato de que os animais mais alta-mente desenvolvidos tenham ou não estas representações de­terminadas, porque, na minha opinião, .êles estão em condições de formar representações ( e, por representação, entendo um · certo tipo de fenômeno, eventualmente observado de modo ex­traordinàriamente agudo, em imediata relação com a vida ani­mal). Esta relação, o ·senhor a reconhece muito bem, obser­vando, por exemplo, que tôda galinha, quando passa algumaave de rapina sôbre o poleiro, faz um sinal aos pintinhos para

·1 que se escondam. Mas o problema é êste: o ser da ave de· rapina é nesse caso compreendido intelectualmente? Na minhaopinião, não. Na Estética citei o exemplo�da aranha e da-môscaque se encontra no centro de sua teia. A aranha, decerto, nãoreconhece a môsca no irÍseto que costuina devorar quando caiem sua teia. A môsca é para a aranha alguma coisa que é caça-

i! da na teia e se deixa devorar. A aranha não chega a um conceitoY de môsca e a êle não chegam sequer os animais superiores. Os r,. 1

conceitos sôbre as coisas surgem pela primeira vez, de modo necessário, no curso do processo de trabalho.�IPara que nasça um "conceito" é preciso que as percepções importantes para a

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, ..,.

vida se tomem autônomas em relação à causa delas; isto é, por i) exemplo, que· a ave de rapina que está na gaiola possa vir a� �er reconhecida como idêntica àquela que vôa em liberdade. Arepresentação não pode ainda operar esta identificação, a partir da qual se ·desenvolve o inteiro universo do mundo pensado. :este momento da compreensão, que está em estreita relação com o trabalho, se desenvolve cada Vez mais fortemente· no curso da socialização dos homens. Com efeito, não há dúvida de que ciências hoje tão desenvolvidas, tal como a ·matemá­tica e a geometria, odginàriamente saíram do trabalho;· creio que não nos será preciso acrescentar nada a êste respeito� Mas o processo de trabalho já transformou a ciência numa esferada vida. O momento que foi um simples aspecto do trabalhooriginário - isto é, o momento da consideração a respeito damaior ou menor adaptabilidade de uma pedra àquele deter­minado escôpo - transformou-se na ciência. ::Êste desenvolvi­mento transcorreu gradualmente e não pretendo examinar agorapormenorizadamente como se originou a ciência. [Gostariaapenas, sintêticamente, de observar que nos homens; atravésdêste desenvolvimento, chegamos a uma consciência da natu­reza objetiva do mundo; esta consCiência dá, pois, um quadroda realidade, naturalmente com Q.. .necess�io cogtr§Ie _ontoló­gico. Evidentemente, o R�-�prig contrôle_ ontoJógico é algo his­t§rico, na medida em que, em certas circúnstâncias, determinadasconexões que, objetivamente, não o são, aparecem como sefôssem necessárias divisões ontológicas"--

7 Penso, por exemplo,na antiga representação do mundo dividido em sublunar e su­pralunar. Naquela representação, a grande e unívoca orçlemmatemática do miíndo supralunar e o caos do mundo sublunarconstituíram para o homem antigo um obstáculo ontológico insu­perável, um obstáculo que o obrigava a recorrer a um dualismo,como podemos ver, entre outros, em Aristóteles. Com o desen­volvimento de uma cosmologia mais complexa e dinâmica, coma lei da queda dos corpos pesados de Galileu� êste dualismo desa­parece inteiramente e· na representação do homem de hojeêle não tem mais nenhum sentido. Com isso quero demonstrar /que a crítica ontológica da ciência não é uma simples crítica a!ribuída a qualquer professor, mas um grande processo histó-1 nco no qual, mediante o trabalho e a atividade histórica, certos modos de representação, ontolõgicamente falsos, vão sendo gra-

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c?t1,d� a c/�.4'10à. ,iv,,o.,.-«.: -?11pcr.>J J.r ,,tt:-,<:M,r Jé/Uffl.ÇJv- Or1. F',.;> 'f;1 fé,; o ;-iM_

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�· tdualmente .superados. Surge, assim, na ciência, uma consciênciada realidade que tende cada vez mais forteme'nte a destacar-se

1dos fundamentos histórico�ontológicos que determinaram suagênese. .Em gc:ande parte êsse processo de separação ocorreu

/'porque, para compreender a doutrina pitagórica, digamos, nós não temos necessidade de conhecer precisamente as condições da J)rodução com base nas quais ela se formou, se bem que,

1 certamente, de um ponto de vista objetivo, semelhante funda­, menta ontol6gico tenha efetivamente ocorrido.

Chego agora à arte; Não quero discutir a origem bastante heterogênea da arte, porque a arte, segundo penso, como se pode ver na minha Estética, não tem uma gênese efetiva mas chegou gradualmente a uma síntese que chamaria de relativa; por isso é que vemos nas mais diversas artes princípios comuns. Descrevi 1 também, na Estética, como a compreensão científico-:conceitual .,

( pressupõe uma WisiifltrõpOiiiõTJizàçãQ;, e como êste processo de 11 d�santropomorfizáÇã� compo:ta uma Jib�ração gradativa das bar-retras que as nossas unpressoes sens1ve1s e o nosso pensamento normal colocam diante de nós. O fato, por exemplo, de terem._ sjdo descobertos os raios infravermelhos e ultravioleta e de ter sido constatada a existência dos ultra-sons, e assim por diante, já nos peqnitiu sair dos estreitos limites antropomórficos da1 1

nossa· existência. Mas, na sociedade dentro d-ª qual fazemo� estas descobertas, vivemos uma vida humana .. fl, vivendo esta

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, ]A vida humana, pomos nela alguma coisa que nãõ existia absolu-.t�\,o� tamente na natureza, isto é, a contraposição entre valor e des- / ' �:" t.l. valor. Recorro novamente a um exemplo simples. O homem ·

.- h' ,_ primitivo, de que falava eu há pouco, encontra pedras em

qualquer lugar. Uma pedra pode ser adaptada para cortar um ramo e uma outra não; e êste fato - ser ou não ser ade­quado - é um problema absolutamente nôvo, de um tipo que não existe na natureza inorgânica, porque quando uma pedra rola de uma montanha não há uma questão de su­cesso ou fracasso no fato dela cair inteira ou se partir em dois ou em muitos pedaços . Do ponto de vista da natureza inorgâ-nica, isto é inteiramente indiferente; com o aparecimento do trabalho, entretanto (mesmo do trabalho mais simples),. colo­ca-se o problema do útil e do inútil, do adaptado 'e do não adaptado; um corlceito de valor. Quanto mais se desenvolve o trabalho, mais extensas setOrnam as representações de valor

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a êle relacionadas. E de um modo mais sutil· - e Sôbre um piàno filais alto - se coloca o problema de saber se uma dada Coisa, num processo que se torna cada vez mais social e com­-plexo, é adequada · ou não à auto-reprodução do honiem. :Êste é o meu ponto de vista sôbre a fonte ontológica daquilo' a que I chamamos valor.]pa contraposição entre valor e desvaler surge /agora uma categoria inteiramente nova, que se refere àquilo que na vida social pode ser uma vida significativa ou· sem signi­ficado. O senhor tem aqui à sua frente um grande processo histó­rico, no qual originàriamente, por muito teffipo, a idéia de vida ·significativa foi simplesmente identificada com a idéia ·.ae vidaconfpnnada, adaptada à sociedade. Recorde os famas.os epitá­fios dos espartanos que caíram nas Termópilas: uma Vida signi­ficatiya era a vida que devia estar pronta a se sacrifié:ar porEsparta. Na cultura antiga já aparecem algumas dissi,dências. Ohomem deve ter uma atividade coerente nos processos sociais ;mais diversos, mas deve reproduzir sua vida particu;ar. Surge I assim algo a que chamamos de personalidade ou individualidadedo homem. Ainda aqui, o senhor pode ver uma gradaçãO ontoló-'gica: Leibniz observo1,1 uma vez à princesa de Hanoover quenão existem duas folhas de uma árvore que sejam iguais. Re­encontramos estas folhas leibnizianas de nôvo no século XIX,quando aprendemos que não existem duas pessoas que tenhamas m_esmas _impressões digitais. Mas esta é apenas a categoriada smgulandade . E o fato de que a partir da singularidade r' 1 se desenvolva uma individualidade é sómente um problema do· · desenvolvimento social e ontológico.Penso que a arte, na sua forma desenvolvida,. representeuma tal relação ao homem. Não pretendo; é claro, represêntara realidade objetiva partindo do homem, na medida em que ela,��lidad�?

não depende do homem para existir: de fato, devo. procurar considerá-Ia como independente, de outra forma nãoiposso trabalhar. Se meus desejos, minhas tendências, etc., serefletem no meu trabalho, não na posição teleológica mas narealização dessa última através da colocação em mpvimento �euma ordem causal, é claro que fracassarei em meu intento. MasI existe êste outro ponto de vista: ou seja, que a totalidade des­tas posições teleológicas se refira ao homem. Dei.ta reférência. su_rge a unificação dos diversos estímulos que con�uzem à arte,tais como se revelam nas pinturas das cavernas, nas danças28

.... -.--

' .

primitivas, no processo de transformação da construção em arquitetura. Não devemos esquecer que o ato de construir só se transforma em arquitetura· muito mais tarde. Existe aqui uma tendência unificadora que relaciona a reali­dade total com o desenvolvimento do homem ou, como digo na E�tética, com a autoconsciência do homem. Por is�o direi 1/ cjue a arte, no sentido ontológico, é uma reprodução do proces­J so mediante o qual o homem compreende a própria vida, na J. sociedade e na natureza, como vida que se refere a êle mesmo,, com todos os problemas e com todos os princípios vantajosose todos os obstáculos, etC., que a determinam. Por isso, a arte _ e i$SO é de extraordinária importância para a ontologia -não está separada de sua gênese em sentido desantropomorfi­zador. Podemos compreender Homero, e refiro-me outra vez a uma formulação do próprio Marx, só como a infância da huma­

nidade. se procurássemos compreender os homens de Homero · / como homens de hoje, daí resultaria um total absurdo; mas nóssentimos Home�o e os outros poetas antigos corno o nosso pas­sado. De resto[só podemos chegar de fato ao passado. humano. através da aite; os grandes fatos históricos nos dariam, em geral, sõmente ullla variação de diversas estruturas. A missão da arte 1 1 ,1 é exatamente a de demonstrar que nestas variações há uma con­tinuidade �o comportamento do homem em relação à sociedade e à natureza.] HoLz - Posso lembrar, a êste respeito, um problema in­cidental? Creio que o conceito segundo o qual através da obra de arte do passado evocamos a consciência ou reproduzimos nosso próprio passado não resolve inteiramente a questão.. De fato, na obra de arte do passado, não em tôdas, mas em algu­mas, ':"iV(ll.).Os uma experiência que podemos definir como de atualização do tempo, para usar a expressão de Walter Benja­mim, isto é, operamos uma reativação do conteúdo daquela de­terminada obra de arte do passado que se torna para nós um problema atual. Assim o problema de Antígona em Sófocles poder-se-ia reproduzir ainda hoje em outras situações sociais como ·um problema atual e não como' um problema que tenha pertencido à infância da humanidade. �UKÁcs - Veja, eu gostaria de voltar por um momento à esfera da vida cotidiana . Cada homem tem uma certa cons­ciência, uma certa recordação da própria infância. Se o senhor

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considera as experiências de sua infância encontrará nelas di­ferentes espécies de experiências. Existem certas coisas que o senhor vê hoje, por assim dizer, só como anedotas e que não têm quase nenhuma relação com a sua atual natureza moral e espiritual. Por outro lado, lembrará de ter feito e dito, em sua

"infância, certas coisas que contêm in nuce todo o seu eu atual.Devemos entender o "passado" em sentido ontológico e não no sentido da teoria do conhecimento . Considerado do ponto de vista da teoria do conhecimento, o passado é o que já é intei­ramente transcorrido, Ontolôgicamente, ao contrário, o pas­sado nem sempre é algo passado, mas exerce uma função no

I pre�ente;. e não todo o passado, mas uma parte dêle que, aliás,varia. Ainda uma vez, peço-lhe para recordar o seu próprio desenvolvimento pessoal e verificar como nêle, em épocas dife­rentes, momentos diferentes da sua infância tiveram, também, influências diferentes.1-Na medida em que a arte é também recor­dação do passado da humanidade, o processo de conservação do passado na arte é igualmente um processo extremamente complexo. Lembro-lhe, por exemplo, como Homero, no final da Antigüidade, ficou quase esquecido e até os primórdios da era moderna conservou-se num plano inferior a Virgílio, porque a humanidade medieval encontrava em Virgílio a sua infância.

Foi preciso que surgisse a cultura burguesa, com os crí­Jicos inglêses que opuseram e preferiram Homero a Virgilio, \ cu \:om Vico, no século XVIII, para que a humanidade voltasse a--incontrar em Homero o seu próprio passado . Um desen­volvimento análogo ocorreu com Shakespeare. O que conside­ramos como literatura, ou arte mundial viva, é algo que se modifica continuamente. Pense, por exemplo, num historiador importante como Burkhardt, que rejeitou radicalmente o Ma­neirismo e q1 Barroco; compare com o atual ressurgimento do Maneirismo. :É claro para todos nós que êste "recordar" é um processo histórico, e que, se retomo determinadas lembranças do passado, sou obrigado, exatamente por isso, a entendê-las como momentos ontológicos do vivo desenvolvimento da hu­manidade e não como uma articulação teórico-cognoscitiva do temJ?o em passado, presente, futuro, articulação que só pode ter 5entrdo para certos aspectos específicos da ciência.,...Mas não é verdade, como pensava Benjamim, que aquilo que já-decorreu, quando se torna "presente", salte fora do passado. Minha maior

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expenencia infantil foi quando, aos nove anos, li uma versão húngara em prosa da Ilíada, O destino de Heitor, isto é, o fato de que o homem derrotado tinha razão e era o grande herói, foi determinante para todo o meu desenvolvimento posterior. Isto se encontra, naturalmente, em Homero, e se assim não fôsse, não poderia ter influído sôbre mim dês se modo. :É claro, todavia, que nem todos leram a !Uada assim. Pense na maneira como Brutus foi julgado por Dante e pelo Renascimento, e verá que há uma diferença substancial na avaliação. Trata-se

11 de um grande processo, um processo contínuo do qual cada! época extrai aquilo que lhe serve para seus próprios fins. Es­tamos em face, também aqui, de uma radical transformação da ciência habitual. ,fA história comparada da literatura considera tratar-se de influências que os diversos trabalhos exercem uns sôbre os outros: Goetz VOit Berlichingen influiu sôbre os roman­ces de Walter Scott e assim por diante. Creio que na realidade as coisas se desenvolveram de outro modo, como procurei mos­trar em meu livro O Romance Hist6rico. A Rev:olução France­§.ª,-ªs g�erras napoleónicas, etc., fi.ieram surgir para a literatura .o probl�ma da hi�toricidad_e_ que, como o senhor sabe, ainda-l1ão e�stia no Séclllo XVIII. Na llledída em (J.U-e foi Pessoalmente tocado por êsse problema, Walter Scott encontrou (segundo a frase de Moliêre: "Je prends mon bien oU je le trouve") um ponto de apoio no Goetz volt Berlichingen, se bem qu-e esta obra tenha surgido sôbre bases bem diferentes . .Êste fato tem para a ontologia da arte uma conseqüência extraordinàriamente im­portante: só podem ser· conservadas as obras de arte que, nwn : sentido amplo e profundo, se relacionam com o desenvolvi- 11 1menta da humanidade como tal e, por esta razão, podem re- : ! sultar eficazes sob os mais variados ângulos interpretativos. Se ! [ o senhor estuda o destino das obras de Homero, Shakespeare ou Goethe, verá que nêle SL!#let� o desenvolvimento total da csmsciêncic!, .c,las épocas posteriores, e isto tanto quando -essas-· épocas os aceitaram como quandO os recusaram��Chegamos ago­ra a um problema muito importante. As obras de arte ( ou con­sideradas como tais) que, embora reajam de maneira viva a certos problemas cotidianos, não estão, por outro lado, em con­dições de desenvolvê-los até tocar nos problemas decisivos do desenvolvimento da humanidade ( quer em sentido positivo, quer em sentido negativo), são obras que envelhecem num tem-

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po relativamente breve. Sou velho e posso falar com a auto­ridade dos anos. Escritores que na minha juventude eram fa­mosíssimos e acolhidos com entusiasmo, nomes como Maeter­linck, D'Annunzio, etc. tornaram-se hoje ilegíveis. Assim, na­tulamente/i história da literatura e da arte é em parte um! [processo vivo e em parte um enorme cemitério. Se nos basea- 1, mos apenas nas disciplinas especializadas, chegamos a uma falsa representação; e, de fato, cada ciência particular está em condi­ções de pôr em evidência qualquer acontecimento do passado, de modo que surge a ilusão de que estas coisas estão realmente em relação vital com a continuidade mnemônica do desenvolvi-

/1 menta humano. Não se trata simplesmente de uma questão deser bom ou de ser mau. Consideremos, por exemplo, os drama-turgos da época elisabetana. Muitos foram poetas importantes. Entretanto, com exceção de um ou dois casos episódicos de efi-

1 cácia momentânea, entre os artistas daquele período só Shakes­peare foi e tem sido uma fôrça viva. Seria agora interessante examinar porque só Shakespeare e não os outros possui esta eficácia. Certamente Marlowe, Ford e Webster estão ainda bas­tante vivos para um professor de filologia inglêsa, mas não es­tão vivos para o desenvolvimento do homem em geral. Aqui, então, a praxis científica obcurece novamente um nexo real, ao invés de esclarecê-lo., Mas para retomar à questão de Ben­jamim: êste fator da eficácia imediata sôbre o presente é um s.inal característico de tôda arte, e pode verificar-se num nível profundo ou supercial. Se se verifica num nível superficial, trata-se de uma moda passageira. Se se verifica num nível profun­do, o escritor resurgirá continuamente, ainda que com uma pausa de séculos. O elemento constante na literatura e na arte tem ver­dadeiramente uma estabilidade maior do que aqu'ela a· que esta­mos habituados a imaginar. Na antigüidade clássica, o sinal desta estabilidade de uma obra era simplesmente o fato de que viesse a ser conservada ou não num manuscrito. No nosso tempo, ocor­re uma certa escolha que, com segura inexorabilidade, exclui tudo o que atinge apenas os problemas puramente superficiais domundo. Recordo-me de que com 15 ou 16 anos li as primeiras obras dos naturalistas alemães. Fui tomado de um entusiasmointellso, ao verificar como essas obras podiam reproduzir as for:.mas particulares da língua cotidiana e nisso vi um grande pro­gresso artístico. Hoje sabemos que êste aspecto é inteiramente32

sem importância; e, se algumas obras do jovem Hauptmann fi­caram, isto se deu não. pela linguagem .naturalista, mas por vá­rias outras razões. Neste momento, assistimos a um fenômeno análogo: em conseqüência de uma manipulação extraordinà­riamente forte, a invenção de um nôvo meio técnico de ex­pressão, pelo próprio fato de que tal meio exista, é considerada como um valor. Veja a crítica alemã de hoje: geralmente os críticos observarão com uma certa benevolência um monólogo interior e considerarão antiquado o escritor que represente algo sem recorrer a êste tipo de monólogo. Mas a questão "monó­logo interior ou não" é uma questão formal, inteiramente se­cundária com relação à substância. Por exemplo, A __ .LQ11ga_Viagem de,_�elr!p.run: é um mon6logo interior e, segundo pen­So, ·éTambéiii-um dos produtos mais importantes - o senhor deve me desculpar, sou conservador e uso esta expressão -do realismo socialista. Portanto, mon61ogo interior e realismo so­cialista não se excluem, de modo algum.

HoLz - Neste ponto, podemos talvez esclarecer um equí­voco que aparece freqüentemente quando se discute o seu con­ceito de realismo. Normalmente, sua distinção entre arte rea­lista e arte não realista é entendida no sentido de que a arte realista conteria em si mais realidade do que a não realista. Mas, partindo da tese que o senhor enunciou aqui, a de que

li só sobrevivem as obras de arte ligadas ao desenvolvimento da humanidade por uma relação ampla e profunda, então não poss.o

I excluir que também as outras obras de arte tenham apreen-

I dido uma realidade bastante.profunda, embora se trate de uma realidade sem perspectiva para o futuro, sem uma perspectiva profunda. para o desenvolvimento da humanidade. Quer dizer, realismo e não realismo não se referem à realidade refletida hoje, mas à perspectiva do futuro que poderia estar contida nela.

LuKÁcs - Sim, veja, êste é um problema no qual, desde o início, oponho-me às posições que hoje prevalecem na his­tória da literatura e na história da arte. � um fenômeno sim­plíssimo. Dou um exemplo um pouco caricatural. Diz-se, porexemplo, Goetz von Berlichingen é realista e lfigênia não o é,porque é escrita em versos. Existem, naturalmente, concepçõesdêste tipo; e existem seguramente casos em que realismo e não realismo são contrapostos nestes têrmos; como se pode verem personalidades importantes como Schiller e Richard Wagner,

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qlle se descuidam do realismo em suas concepções, sob a in­fluência de idéias e -concepções teatrais idealistas. Pense, 'porexemplo,· em como Schiller modificou totalmente a rainha Eli­zabefo ém_ M.aria Stuart, por causa de -seus princípios moralis­tas. Pbr ·outro lado, e aqui está a verdadeira antítese da qual •/falo�; _áJnside�o ·a. op<;sição . entre ,n�turalismo' e_ realis1;10 como' uma,das maiores· antiteses da estet1ca. Nos meus escntos sôbreestética, o senhor encontrará contlnumente esta- contraposição;ao pa:sso que até mesmà impqrtantes histotiadoi;es da arte, comoaguêles da escola de Riegt; eriteildem nàturalismo e realismoquase como sinônimos. IsSo · é interamente errado. Sabemosque, noS iniciadores e nos precursores dà iinpressionismo ale­mãó, surgiram, ·por mais que isto possa ·parecer· estranho, mui­.tos elementos naturalistas. No Verdadeiro· ·impressionismo, aocontrári,o; :bem ·como em seus de·senvo1vill1eritos, uma · tendên­cia semelhante ao naturalismo ·em' geral não ·eXiste; ·não existeem Manet, nem em Monet (nO 'jovem Monet}, não- existe ·einSisley· ó'u em Pissarro e, menos' ainda, ·e_m CéZa:nne. A históriada -arte se descuida· de um. 'problema eSsencial qúando· identi­fica simplesmente os conceitos de realismo e- ilaturàlismo. Nãodesço a -particularidades pofcille o seilhOr· conhece meus escri­tos e sabe o quanto me é caro êste problema:. Quando, por exemplo, em meu breve trabalho sôbre a arte moderna Critico orealismo So'cialista da época staliniana, critico-o enquanto "na­turalismo fiscal". -Na minha opinião·, o que ·se costuma apre­sentar sob a bandeira do "realismo socialista'.> e que hoje seemprega para corilprometer êste têrmo -não é' realismo .socia­lista, mas um não realismo ou uin nàturalis'mo fiscàl. Falandodo conceitO de·.-realismo, p'enso enf um tipo de literatura que,l[·�Os- escritos p�Iêmic_os sôb:e -a épocà · dos s�viets,-_chamei"de 'r�a­·hsmo ·de Homero a G6rk1. · Isto 'deve ser entendido erh sentidoliteral, sem: querer ·coinparar-Górki :colll }IoniÚo, mà.S para fazersobressair Unia tendência cO�ull1 ;:i. 'ambOs,' unia tendência que

11.�ão con·siste ·nas 'técnicas ·expr'esSivas,"no ·estiló, etc.-, filas numamtenção voltada 'para . a' e�sência humana real ·e substancial, ·cj_uê é coriservada nO ptocesso "hiStóric'o·. A está essê.ncia está Tela:cionadO o -probleina· do realismo, 'entendido "realismo" ilão '�ófuó um cOnCeito estilístiéo; mas conio a arte de' qualqU:e"r épo'ca; li

e�:.?.9-lle é essell�ial, como.a arte ·que liga · os problemas imediatos do 'tempo ao desenvolvimento geral da humanidade, relacionan-

dd-os assim indissoluvelmente. Naturalmente, esta conexão podeestar inteiramente oculta ao próprio esc�itor.''tNão- sabemos�de fato se Homero tinha ou não uma idéia do que fôsse ahumanidade; mas na cena _em que o velho Príamo Vai a Aquilespara reaver O cadáver de Heitor, é colOc�do um gra_n�e _proble..:.má.'humano, que · ninguém, em certo sentido, pode hoJe -ignorar�[I quando, por assim diz:r, se·· propõe acertar suas próprias con!a_scom ·o pass·ado e consigo mesmo. Quando falo dasà recordaçoe�da humanidade, ·penso ne�te problema.,:..,Entre pa,renteses, aqutaparece uma referência à filosofia hegeliana. O senhor recorda�naturalmente, a- parte final da -Fenomenologia do Espírito, em que vem tratado ·o Espírito Absoluto;. le111:br�.:.se �.e ·que êste último é descrito como um "recordar- mtenorizado (Er-Ipne­

rung) em contraste com a "alienação'-': (Ent-ifusserung):'1

Bm Hegel, ·porém, o momento do passado resúlta"·ab'Sj?luJamented,Q_fl!i!J_ante, Chqúanto que, segund.o minha opinião, ó passàdo· porunÍ lado é' p_�ssado e e�periê'!_�ià' qe si' mesmo, ,e p�r ·outro '.éJJJ.Otivo-parà tõmar .P.osiç.ãO ·rio presente. ·E 'êste · motivo, até agora, dominou realineÍlte cada sociedade a' ponto:de fazê-Ia ·fe,;.tornar a certos momentos do passado.11 ,. Pense na . utilizáção dOs assuntos clásSicos ·na época da Revolução 'Francesa. ·Na prática, · é· indiferente estabelecer se a concepção que 'Robespierre e. Saint�Júst tinharil 'da Antigllidade

lera ou não era corr�ta. E�· todo. caso!. Rob.e�·pie_"rre' _e Saint­Jusf ·não teriam podido agir como ·agrram se nao tivessem, , então, escolhido a Antiguid.ade como ·ponto dé referência deseu pensamento, à base do inipulSO decofrei,.te· 'das suas posi­ções teleológicas. A recordação que a humanidade tem de seupassado Compreende, assim, também·, a arte; _é eu gOstaria de\1 acrescentar que, em ·alguns momentos, a vidâ·'humana· con­quista um significado semelhante· ao· da Obra "'de arte. Penso�por exemplo, na vida de ·Sócrates; e,· dêste po_nto de vista , éinteiramente indiferente que ·o Jesus dos· EVáD.gelhoS ·tenha exis­tido ou não.· Há um gesto de .Jesus, 'que· da .. ciise da economiaescravista ·em dissolução até hoje·· tem .. sido·' {pense apenasno GratÍde Inquisidor de Dostoiévski) uma· fôr'ça v'ital,-- coiµa qual� de algum modo, devemos sempre .nos relacionar. Enão' se'trata só de Dostoiévski: o paradigma moral· reage· Sôbrea própria ciêncià. Pense no escrito A Politica como Profissãode Max Weber, onde êle contrapõe a Realpolitik ao Sertnão-

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da Montanha para fornecer um ponto de partida à ação polí­tica. Independentemente da verdade histórica, isto mostra que a figura de Jesus teve um certo significado para a Humanidade, como as figuras de Antigana, de Hamlet, de Don Quixote e assim por diante. Acrescento ainda: essas figuras podem exercer uma forte influência sôbre as possibilidades de ação. Basta pensar,

I no século XIX, na figura de Napoleão que, de Rastignac até Raskolnikov, exerceu urna influência enorme, embora não exista uma só criação de ficção na qual sua figura histórica real apareça descrita em forma adequada. Tudo isto demonstra de fato a existência de uma necessidade ontológica cada vez maior, que é satisfeita nos seus aspectos fundamentais precisa­mente pela arte/' O que acabo de dizer sôbre Jesus não contra­diz de modo algum esta constatação: mostra apenas como as mesmas tendências, que do desenvolvimento da arte levam à formação dos mitos, podem criar, por sua vez, na arte, uma necessidade específica de atingir os mitos. E, de fato, em Ho­mero, podemos constatar a função específica que exerceu sôbre o comportamento de seus heróis homéricos os mode­los de heróis mais antigos

11Nas várias formas da técnica -

que, em cada caso, é sempre uma técnica que se atualiza - mas indep1::udentemente dessa técnica em seus efeitos finais, a

I j arte apreende com seus contúdos a essência do desenvolvimento h,u.mano. Daí a constância de sua eficácia.

HoLZ - Quando o senhor fala dos momentos realistas nas obras de arte, refere-se sempre a êste conteúdo, a êstes momentos estruturados, conteudísticos ...

LUKÁCS - Sim ... HoLz - Mas não há também um tipo de realismo que consiste em manifestar e tornar perceptível à humanidade de­terminados momentos formais? Penso, por exemplo, na litera­tura que trabalha com a linguagem; a conquista _de novas possibilidades lingüísticas e a elaboração de novos meios lin­güísticos para o uso dos homens devem ser compreendidas sob o conceito de realismo? Quero dizer: Gógora, no momento em que conquista com seu trabalho certas figuras e possibilidades da linguagem que virão depois a ser transmitidas às gerações futuras como formas expressivas do pensamento lingüístico? LUKÁCS -11A questão não pode ser colocada formalmente, e creio que uma das maiores desgraças do nosso tempo é a

de considerar a arte apenas de um p�nto d_e vistAa téc_nic,a�f�i;m�l.E assim como está na moda a d1scussao sobre a mm1ssa1a, a;sim também se discute sôbre a op-art1 sôbre a pop-art, e assim por diante, quase ao níve� dos desfiles da moda#" Esta concepção encontra a sua forma teórica na chamada Interpreta,..tionsschule, na qual os puros problemas for.i_nais de renovação lingüística são exageradamente ressaltados ate se tornarem pro­blemas autônomos.::1Volto novamente ao que é ontolõgicamente

r[primário: a língua é um meio de e1;1tendimento entre os homens e não de informação. De fato, se digo a uma mulher eu te amo,isto não é uma in(_ormação, é algo inteiramente diferente de uma informação. O p ·rofeSsor)iêllSê pode também elaborar uma teoria sôbre O fatg de que as declarações de amor têm um coeficiente 448 ou 487 mas isso nada terá a ver com o problema da decla­ração de a�or. O senhor entende o que eu quero dizer. Agora voltamos à sua questão. Esta renovação lingüística a que o senhor se referiu-traz algo de essencial para a justa e aprofun-

l dada W eltanschauu'ng> da humanidade? Em caso afirmativo, a · renovàção éntra na linguagem comum e perde, por assim �r,

sua componente de novidade. Ou s� conserva como �lgo exten,,,or.Por exemplo, nos diálogos dramáticos dos naturahst�s �lemaes do final do século XIX, a reprodução dos acentos silesianos eberlinenses repreSentou, sem dúvida, uma renovação lingüís­tica, que teve certa função como meio para. superar a artifi­ciosa uniformidade da linguagem teatral. Depois de certo te�po,essa tendência desapareceu completamente e, no lugar d�s diale­tos, outras possibilidades de caracterização foram sendo mventa­das sem o recurso a esta espécie de naturalismo: o senhor podever' o emprêgo das novas possibilidades, p�r exemplo, nos �iá­logos de Thomas Mann ou em outros escritores. P�nso, asslDl,que o conteúdo seja o principal. Não devemos partir dos fatostécnicos mas investigar que conteúdo importante de uma deter­minada 'época condicionou ou produziu uma determina.da técnicada linguagem� da pintura, etc., e o quanto dessa técmca passouao desenvolvimento posterior. Assim, considero um apaixonante

I problema técnico de at.elier investigar que coisa pode produzir" um poeta de hoje com a �inguagem de Góng�ra. :q_e fato,. na

minha opinião, é muito mteressante descobnr e determmar certos fatos técnicos que, depois, nas mãos de outros homens animados por tais descobertas, vêm a tornar-se algo inteiramente

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diverso do que eram na intenção originária de seus descobri­d.or:s, To�e, com� :xemplo, as descobertas da "linguagem sur­cealist�. �ao há �uv1da de que essa linguagem teve .grande in­fluência sob�e a Imgua�em de Eluard. Mas também é evidenteque �s I.'oesias ver�adeiramente grandes de Eluard constituem�go mt:iramente diverso da linguagem surrealista. Em tais poe­sias, a I1�guagem surrealist� se torna elemento de um complexoque expmne algo de essencial para a subjetividade contemporâ-nea.

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SEGUNDA CONVERSA

Georg Lukács - Leo Kofler

Sociedade e Indivíduo

KoFLER_ - SenhOr. Lukács,_ .ontem muito me impressio­nou .o fato de que o senhor·tenh_a_. c9meçado por temas simples para, em Seguida, a partir dêles,. chegar a problemas compli­cadíssimos. Hoje, gostaria �e empregar um método semelhante e começar .com algumas .questões simples ...

LuKÁcs· - De acôrdo ·: :· .---KoFLER - •.. para chÇlgarmos ·até as mais co_mplic!}das.

Desde .algllJ:!1 tempo, oCl!JÍO�Dle · d_ó seguinte ptoblelll:a:. �Ornou-se corrente identificar, .de rilod.o unilateral, a ideologia com a falsa c_onsciência e i_de0;tificà.i a consciêllcia separada· das .Íêla­ções sociais, isto é, aCJ.uela que se· pretende tal, com a cons�

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ciên�ia autônoD:ª•. para .extrair certas conclusões idelológicas que 1�teress�m a 1de�log1a burguesa . Surge, assim, a seguinte ques_tao: �ma-se trmnfalmente que a massa operária, que contmua amda a formar a metade da população, ter-se-ia abur­guesado. Com isto, quer-se dizer que o trabalhador teria tido primeiro uma falsa consciência de classe e hoje teria uma consciência correta, na medida em que teria aceito inteiramente a consciência burguesa. Aqui,. há uma contradição de vez que se atribui à classe operária uma consciência de ciasse correta quando ela não é independente, enquanto, ao mesmo tem­po, se define a consciência correta como consciência indepen­dente. Esta contraditoriedade é necessária ou casual para a ideo­logia burguesa? LUKÁCS - Permita que retorne a uma simplificação da questão . Creio que Gramsci tinha tôda razão quando observa­va .ª êste re.spe�to .�ue nós! e� geral, usamos a palavra ideo­logia em dois significados mteuamente diferentes. De um lado, trat�-se do dado real, elemfntar para um marxista, de que na sociedade cada homem existe numa determinada situação de classe à qual naturalmente pertence a inteira cultura de seu tem­p�; nã? pode as.sim haver ���um conteúdo de consciência que nao se1a determmado pelo h1c et nunc" da situação atual. Por outro lado, origin�m-se desta posição certas deformações, razão pela qual nos habituamos a entender a ideologia também como reação deformada em face da realidade. Creio que devemos

�anter. separad�s estas duas coisas quando usamos o têrmoideologia; por. 1s�o - volto agora à questão ontológica -devemos deduzir disso que o homem. é, antes de mais nada, como t��o organismo, um ser qu� responde a seu ambiente., Isto sig­nifica que o homem constrói os problemas a serem resolvidos elhes dá resposta com base na sua realidade. Mas uma consciênciapretensamente liv�e de liames sociais, que trabalha por si mesma,pur�ente a partir do interior, não existe e ninguém jamais con­seg�nu demonstrar sua existência. Creio que os chamados intelec­tuats desp�ovidos de vinculações sociais, como também o �!og�n, ho1e em moda, do fim da ideologia, sejam uma pura Íf!=!Çf.(?.!. que não tem prõpriamente nada a ver com a efetiva S!f}1,çao dos homens reais na sociedade real.

\ -:.�: .l_<-oFLE! - A .êste p�opósito, coloca-se o problema: não;1". existem fenomenos ideológicos sem conotações de classe, isto-i;,. 10�

é, fenômenos superestruturais que não são determinados a par­tir da situação de classe? O senhor mesmo, professor Lukács, sublinhou com muita agudeza nos seus primeiros trabalhos que o probleDla da ideologia não é absolutamente o problema. da refe­rência imediata à classe, mas algo que concerne à totalidade da sociedade de classes. Porém poder-se-iam descobrir certos fenô­menos ideólogicos que são efetivamente indiferentes ao ponto de vista de classe, na medida e no sentido em que êsses fenô­menos estão relacionados tanto à burguesia quanto à classe operária e à pequena burguesia. No âmbito lingüístico, sobr�­tudo no campo da terminologia que deriva do mundo da re1-ficação, temos êstes exemplos: "a técnica nos domina", "a bomba atômica nos ameaça", "a inflação encarece tudo" ou "a perda de nossa individualidade deriva da sociedade de massa" (Marx diria irónicamente: "a miséria deriva da pau­

vreté"). Assim, não devemos, com efeito, classificar estas for­mas reificadas da linguagem como se fôssem sumplesmente tlependentes de uma classe determinada; pelo co�trári�, tai� for­mas são indüerentes às classes, se bem que nao se1am mde­pendentes da sociedade cla:.sista, já que refletem certas formas de comportamento em uma situação social fetichizada e reifi­cada.

LuKÁcs - Irei mesmo um pouco mais além. Dado que a vida humana se funda num intercâmbio material com a natu­reza não há dúvida de que algumas verdades, das quais nos apr�priamos co� a realização dêsse intercâmbio .material, pos­suem uma validade geral: as·verdades da matemática, da geome­tria, da física e assim por diante. Mas êste fato foi fetic�zado em sentido burguês, porque estas verdades, em certas c1tcuns­tâncias, podem relacionar-se muito estreitament� co� as lutas _declasse. Se dizemos que as verdades da astronomia nao s� relacio­nam com as classes, dizemos uma coisa justa; mas, nas discussões

' sôbre Copérnico ou Galileu, tomar partido a favor ou contra · Galileu era um dos mais importantes elementos de uma escolhade classe. Desde o momento em que também o intercâmbio ma­terial da sociedade com a natureza é um processo social, há sem­pre a possibilidade. de que conceitos adquiridos dêste modoreajam sôbre as lutas de classe de uma dada socie?ade. Uso �goratêrmos um pouco menos exatos, tomando conceitos como evo-

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lução", "progresso", etc. Em si e por si, -a evolução é um fato qu�.podemos considerar .como.independente das classes, do mes­m_o .modo _que a evolução das esp�cies _em Darwin. Por. outro lado, e�_atam:nte a 9�estão do dW.:winismo foi por decênios obje­to de· �hscussoes sociais. A humamdade tem um desenvolvimento unihirio, _ciu_podemos _dizer· que.diversos complexos culturaiS ,têm, cada um por seu turno, inicio e fim, tratando-se assim de -um processo cíclico? .Êste não é, evidentemente, um .problema ao qual. se possa responder independem ente da estratificação em classes de. uma sociedade. Creio, então; que .aqui existem limites variáveis. Por um lado, o intelecto humano está em situação de estabelecer pontos que, independentemente da valorização das diversas. classes, são válidos em .relação à sociedade como um todo, eventualmente até-mesmo ,no que toca à inteira con­cepção da nàtureza. Po; outro lado, -porém, càda homem está empenhado na luta soi;:ml com a sua personalidade -inteira, de modo que potencialmente a concordância com ou· a recusa de cada teoria particular será··algo condicionado pela' sua illclusão numa classe. Creio, por ·isso, que não podemos chegar a uma de�imitação precisa: aqui cessa à ideologia e aqui inicia outra

1 :01sa. Tr�ta-se, antes, de alguma coisa de variável, que flrii, que e determmada pela estrutura atual da sociedade e pelo estágio das !�tas �� classe relativas a ela; alguma coisa que não se pode 1dent1flcar com uma teoria.abstrata que funda a si mesma. A mesma.c_oisa_é.verd�d.eira.para as, assim chamadas classes pri­".adas. de bgaçoes sociais. Nos ·penados, digamos, de tranqüi­hdade �u de ausência de_ tensões existem sem dúvida situaçõesnas quais uma classe pode manter-se completamente neutra dian­te das lutas dominantes. No entanto, creio poder afirmar comseguraf!Ça que na sociedade jamais se pode dizer a priori quealgué:111 se man_terá estranho e indiferente a todos os possíveisconflitos de classe. O ·fato de que sejam possíveis uma indüe­

trença prática e. até mesmo.as alianças·.mais incríveis é um fato-que determina ·exatamente a variedade de côres da história. Osenhor. se recordará de que em certas reformas s_ociais,. naInglaterra da primeira mentade do século XIX, a aristocraciaC_?nservadora tomou posição. contra_ a burguesia e tornou. pÓs­sivel uma redução das ,horas .de trabalho. Daqui a tirar a con­clusão de. que a aristocracia estivesse interessada, como classe;.

na redução do horário de trabalho, muita. distâ�cia. vai,, se. bem

que êste fato tenha sido não só uma reahdade mdtscuttvel �as

também uma ação da aristocracia que só pode ser compreend�da

relacionando-a com as \utas de classe de seu tempo. Pen�o, ass1�,

que devemos manter em vigor, também no c�so da ideologia, (um princípio. dialético fundamental: a verdade e concreta.

KoFLER - Creio que êste esclarecimento é_ de extr�°:ª

importância. Gostaria agora de toc�r n�a questao, pela. um­

ca razão de que é freqüenteemnte d1sc11;11:da ª': nosso ambu,:nte,

o senhor .fala do fluir, do passar, da afirmaçao dos conceitos,

de um processo .de generalizações ... LUKÁCS - Sim ...

KoFLER _ •. , por exemplo, do conceito de progresso.

Direi mesmo, eventualmente: conceitos abstr�tos. Perguntam­

nos cont1nuamente por que camin�o se .chega a !sso e de_p�ramo­

nos com O problema do irrac10nal1smo. Nao há duvida de

que O irracionalismo enquanto disposição da alma humana,

não tem porque ser' negado. Refiro:me à in_tuição, às idéias

indeterminadas, à criatividade, se qmser; Ora, nos s�us t�aba­

lhos O senhor tem cont1nuamente em mira o irrac1on:1tsmo,

do ci_ual mostrou os perigos também �a- âmbito d! .formaçao dos

conceitos da· concretização ideológica, na medida em: que o

fluxo int;rior no âmbito da _ vida psíquica é autonomtzado e

�upervalorizado em relação à racionalidade,- de modo que .a.ex­

periência vivida, a experiência vivida interior --' ês�es pro�le­

mas são muito atuais - é eleVada a· mundo au!êntico. par a

questão da mitização, da contraposição �ntre rafto e razao, de

um lado e verdade .interior, de outro. A isto est� também re!a­

cionado '0 fato de que a atitude irracionalista nega o conceito

de progresso. Como última conseqüência, encontr_amos· o _d�_sprezo pelo

humanismo, na medida em que êl� não. é _conciliavel c�m ·,�experiência vivida, com a "autê�t1ca . p�7mtl1d: de v�lores ,

com a "peculiaridade. do homem mtenor . . Entao, aquilo q�e

é humanista é considerado exterior, e o resto, de mo�o �uttl,

é Visto como 1ntimamente superior a êle. Ora, a prescm.dtr daproblemática irracionalista . na bistó.ria alemã, a respeito d.ac_iual voltarei a falar, me mteressarm. saber o que o sen1:_or �m a dizer para completar ou para mterpretar esta questao.

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LuKÁcs - Sim, veja, gostaria ante d afastar uma idéia bastante difund· d . s e mais nada deintuição e dedução lógica Com 1 a, ist<_> é, ª c�n!tapo_.filção entrementa, ela é completam�nte f�conce1to da teoria do conheci­conceito puramente psicológico ª. etu

�e1!1 fpn�amento. Comoóbvio, que se produz continua ' a t 10 içao e alguma coisa deI conceito é preciso sublinhar- a °!e�t'- Contra a mitização dêstehomem está prêso a ai · ú 10 çao aparece sempre que um· tê-1? reelaborado incon=n:;�:� d� p;nsa;e°:to, e depois deper10do, "imprevistamente" - di : . en ro. e si, por um certo- chega a um resultado Pod g imprevistamen!e entre aspasgênero até mesmo na maÍemáti:se ei:contrar uma intuição dêsteque esta intuição esteja li gada a:� ª;':,? é �bsolut�ente verdadee aqui aparece O as ecto co s�� ao s 1:1en� a arte; mas _nada a favor ou co�tra um;°;scitivo - nao diz absolutamenteencontrada intuitivamente ou :_s� 0 fato de que ela tenha sido.. mente ou histôricamente nao, deve ser demonstrada lôgica-dependentemente do fat/ d� sua verdade .deve ser verificada in­vamente ou não Considero . que tenha sido encontrada intuiti­filosofia alemã, .de Shellin imp�:1ante esta distinção, porque naCrítica do Juízo de Kangt em

tr

_bia�te, e em certo sentido já na, a 1 um-se à consc1' A • • • • uma certa superioridade em f d '

A

• encrn mtmttvaN� minha opinião, porém, .nu!�: s: f��n!c:1:c!a não int_uitiva. criar urna fundamenta - t 6 . muna tentativa de a superioridade da iJi��çã: r�c� q�alquer de tal superioridade: camente . .::Êste é por as . d'o1 simplesmente aceita dogmàti-' sun 1zer o aspect b" ,· , ao aspecto objetivo, creio que h � º. su Je ivo. Quanto dade, uma diferença entre a ra ª!ª• na pr�1s real da humani-1; a razão tal como foi su ervalo z�o no senti�o �eal e racionale racional aquilo que der/ta d nzada por mllêmos. Penso quefronta com a realidade· e nosso trabalho e de nosso con­que funciona efetivame�t�or S ex�m_Plo, é. i;:acional uma conexãoela cai no chão· repetindo aÍgu

e eu� ca ir uma pedra da mão,tro urna conexão racional mas Y zes esta experiência, encon­rior na lei da ueda dos due Gahl:_u form�lou .em nível supe­encontramos naq vid , orpos. Toda rac1onahdadle real que[·l "se é isto ,- a e �emp�e uma racionalidade na forma do, ... en ao sera a "· ligada a efeitos concretos qu�� ' qualqu:r s1.tuação concreta éregularidade eh ' e, J que na vida isso acontece com' amamos com boas razões de racional tal cone-44

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xão. Mas, por um exagêro da lógica e pelo que se pode chegar a fazer nêsse terreno, criou-se a idéia de uma racionalidade geral do mundo, que de fato não existe11 Com base nas leis naturaishoje dominantes, o fato de que uma pedra caia no chão meparece racional. Num mundo imaginário, no qual a pedra voasseregularmente, os homens poderiam pensar êste outro fenômenocomo racional; assim - e isso está em relação com esta racio­nalidade na forma do "se é isto . , , então será aquilo" - a queda da pedra não é racional em virtude de certos fundamentos racio­nais, mas porque neste caso isso é prescrito pelo ser, pela natu- 1 reza, exatamente assim e não de outra maneira. Ora, na sacie- ' dade, no desenvolvimento social, surgem continuamente situa­ções nas quais o que ontem parecia rácional sUbitamente não está mais de· aCôrdo com os fatos. :S como se, na sociedade, nos encontrássemos diante de uma pedra que voasse. Neste caso,a humanidade pode assumir duas posições diversas. Uma ésemelhante. àquela que o homem assume regularmente, com o trabalho, diante da natureza: quando um material se mostra re­fratário, por assim dizer, às leis até agora existentes, procuramos outros tipos de explicação, até que seja descoberta a nova lei normativa. Isso acontece, continuamente, também no desenvolvi­mento social. Por outro lado, para certas classes - e voltamos outra vez à situação de classe - esta mudança da realidade Jsocial é algo de absolutamente incompreensível; do ponto de vista social, essas elas.ses só vêem nisto anarquia e desordem. Tome simplesmente a posição das classes na Revolução Francesa, quan­do os acontecimentos que par-eciam muito simples e racionais para a classe revolucionária pareciam caóticos e irracionais para as classes dominantes e seus simpatizantes. 'como o nosso pensa� menta está sempre na dependência da nossa situação social e em conexão com ela, surgiram sempre na história novas situações nas quais algumas classes e importantes pensadores que as re­presentavam reagiram em certos casos de modo tal que chega­ram a condenar as novas conexões e o nôvo curso da sociedade a partir do ponto de vista da velha razão. De fato, o senhor recordará como, na Revolução Francesa, os defensores da classe feudal daquela época colocaram-se várias vêzes numa postura irracionalista, enquanto que, ao contrário, o feudalismo, no tem­po de Tomás de Aquino, não era absolutamente irracional,../ To­más de Aquino, com boas razões, compreendeu o feudalismo

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simpJAesmente coi:no algo q_ue estava de acôrdo com a razão, por­que ele, na ·realidade ·social, expressou muito bem a racionali-

11 dade (na forma do "se é isto ... -então é aquilo") ·do ·seu tem­P�· Mas a praxis de �arat e de Robespierre não podia ser aco­l�1da !1º s1s!e�a ra�10nal das classes feudais: surge ·assim, da s1tuaçao social, aquilo que chamamos de·-irracionalismo. Por­tanto, é característico do desenvolvimento moderno o fato de

I que os 1:ensadores não se limitem a negar -ou a duvidar. çl--ª n�va �azao; forma-se, ao invés, um sistema espeçífico do irra-­�1onalismo, que depois se difunde amplamente - e leva - a con­

, seqüênc!as. que os iniciadores dêste sistema, se assim ·me pos­so exp�1mrr, não desejavam em absoluto. Esclareço esta idéia com _dois exemplos. Tome a sociologia política de Max Weber. Considere, em � Polltica como

. Profissão, a sua doutrina segun­

do a qual vános deuses dommam o ·mundo. Ela esconde O fato. de que· ·Max Weber,. na s�ciedade de seu tempo, não_ podia chegar a um conceito umvoco de razão na forma do "se é isto .-:. e_ntão será aquilo", e - por ·isso ficou prêso à luta entre as diversas fôrças que não queria racionalizar. De fa!o, u_ma raci?nalização teria conduzido a conseqüências ina­:e1_táv:e1s P,ª_ra ele. Max Weber recorre, então, por assim dizer, a 1dé1a· m1tica dos · deuses que na realidade lutam uns contra os o��os. Poder-se-ia dizer - e creio que podemos dizê-lo tranquilamente - que neste ponto o irracionalismo envolve t�mbém- o ·si�tema de Max Weber. Ou ainda: observe um

,: sist:ma. conceitua} como o do neopositivsmo, que reduz o· mun­'. do mte1ro a u�a. racionalidade_ I?-�nipulada e recusa tudo O que

escapa a seus limites. O ·neopos1trv1smo teve, no início, entre seus fu�dadores, um verdadeiro ·pensador: Wittgenstein. E Wittgen­stem, que fundou as teses- neopositivistas de -modo autêntica­mente filosófi�o, viu com bastante c1areza que nos seus limites estava

:.. se assim posso dizer, o ·deserto do irracionalismo, algo

que, nao pode ser expresso, com os instrumentos da racionali­dade _neoposit�vista. Mas Wittgenstein é muito inteligente para�c�ed1tar .9ue e_ste mun�o que �tá

,-além das afirmações neoposi-

r ttv_istas nao e:1sta. Assim, no l1m1te da sua filosofia, creio que e�1sta - e_?ªº. se trata de uma observação minha porque mui­tos outros Ja a fizeram - um campo de irracionalidade. · Creio, por isso, que no curso do século XIX e do sé­cuol XX tenhamos tido a experiência de uma grande onda de 46

irracionalismo nas mais diversas formas. O senhor tem tôda a razão; de fato, ·ninguém negará que o fenômeno tambéni -tenha se verificado fora da Alemanha:; ·por exemplo: o prag­matismo americano· tem aspectos irracionalistas. Bergson está muito tipicamente inclinado ao irràcionalismo; Croce (queiraou não) está cheio de aspectos· irracionalistas. O irI'acionalismo; pois, nã?·é abs�lutame�te um fenômeno pu��mente alemão,_mas um fenomeno mternac1onaL O fato· especificamente alemao é ,que o irracionalismo tornou-se aqui a ideologia das fôrças rea- ·. cionárias, e mesmo das fôrç·as politicamente mais reacionárias, o que não acontece nas outras nações.

KoFLER - A propósito; o senhor define êste irraciona­lismo alemão como fé numa inelutabilidade interior, precisa­mente como fé naquelas fôrças interiores que se contrapõe!ll às fôrças externas, · racionais. -Essa fé eX.cessivá na iri.terioridadeda alma permanentemente contraposta à exterioridade. social, não pod�ria taive'z··s�r relaciollàda .colll a ·histó;ria:· _alem�, como aliáS em certa·· medida; o senhor Já' fêz? Talvez, tambem; e� relaç°ão ao fato de··que .·a·' histó_ria ::áleniã···:seja_·:infe�ii ,emseu conjunto. Tomemos··a derrocadà da -ordem dos cavale1ros em 1410 e em 1466, depqiS a partilha de· seus'-territói"ios em 1561 o desvio dos caminhos·-com�rciais, a guer:ra,dós 30 anos, com Íôdas as suas conseC}üências, 'tôda: a tristé'·história da der­rota dos camponeses, o isolamentó'' do perfodo clássico, _ª. re­volução de 48 e seu fracasSO; São:· to�os po_!lto�· aos quais' o senhor já se referiu, numà.' ou noutra c1rcunstanc1�. -Ora, 'O que interessa freqüentemente aos estudànteS nas faculdades-' · é a sua demonstração de que na Alemanha predomina· a tendência a buscar irracionalmente a solução no enrijecimento ·dos pro­blemas não resolvidos e que isto está concretamente- relacio­nado ao fato de que na Alemanha · a ideologia "irracionalista, de um modo específico e ·anorm·a1, chegou a uma total hege­monia tornando-se um traço distintivo essenc_ial do povo alemão � ( considerado naturalmente em sentido hist�rico). . LuKÁcs - Creio que êste fato· este1a · realmente relacio­nado com os momentos específicos da história ·atemã e com

f O fato de que certas forma_s científicas, filosófica�· e sociais, que , podemos englobar agora sob o nome de razao,. nas · gran­

des nações ocidentais foram produto dos própnos homens; Creio que o desenvolvimento das nações como unidades polí-

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Page 23: Conversando Com Lukács

'�· .·

ticas esteja estreitamente correlacionado com o surgir da socie­dade moderna. Cada francês e cada inglês sentirá naturalmen­te, sem precisar refletir muito, esta unidi:J:de política como uma criação própria. Creio que tenha sido a razão francesa a impelir o povo francês a uma unidade, do absolutismo mais concen­trado à revolução e a Napoleão; a atividade particular de cadaum, o ser homem e o ser patriota, puderam imediatamente coincidir. Na Alemanha, ao contrário, ocorreu um desenvolvi­mento no qual o povo alemão foi incapaz de u_nir-se autônoma­mente em nação, numa nação moderna. Brotou assim da reali­dade uma dissidência, por assim dizer, entre o sentimento vivido interiormente do "verdadeiro" alemão que estava ainda no ter­reno da velha realidade, e o seu convencimento, quando era r8.zoável, de que essa realidade se tinha tornado insustentável, mas que era impossível encontrar uma solução politicamente realizável.

Houve assim uma contradição na Alemanha, que veio à luz no século XVffi com Justus Maser, Herder, e o jovem Goethe. Talvez isto pudesse ter sido mudado por uma revo­lução interna, mas não haviam condições internas e externas para ela. E não é um acaso que mesmo um grande adversário do irracionalismo como Hegel tenha visto em Napoleão, por um lado, o espírito do mundo a cavalo e, por outro, a grande encarnação do direito público em Paris, em condição de pôr ordem a qualquer preço nos problemas alemães. :Êste dualis­mo sobrevive ao fracasso da revolução de 1848 e, em sua essência, a chamada "revolução pelo alto" é uma solução com­plexa, na qual a aparência irracionalista de uma exterio­ridade que se transformou em interioridade, e de uma interio­ridade que é autênticamente exterioridade, faz com que as fôrças autônomas do povo alemão não sejam levadas em con­sideração. Surgem, assim, todos êsses dualismos que depois se consolidam sob o influxo de diversas teorias, provindas tam­bém em parte do exterior: haveria uma essência originária do homem que se coIOCa numa posição hostil ao desenvolvimento progressista do mundo exterior. Esta não é apenas a teoria de Hitler; já existe em Klages, na tese do espírito como adversário da alma; substancialmente, há também na ideologia de Heideg­ger, com o conceito de "derrelicção". Hitler fêz de tudo isso uma imensa demagogia, na qual relacionou essa interioridade aos 48

antigos alemães de raça pura. Co�o a l!-ªç!o ale?1ã se rorm�tardiamente e não por obra básica de forças mternas, da, advém um; situação social particular, que não entra em con­traste apenas com o Ocidente, mas também, d� J?Odo b_astan:e acentuado, com a evolução da Rú�sia. Na �uss1�,, ª. s1tua�ao social era mais atrasada, mas a umdade nacional !ª tmba sido criada desde o absolutismo; por isso, da Revoluçao Francesa, passando pelos dezembristas, até o ano d� 1917, houve uma cadeia incessante de revoltas contra o tzansmo. Nunca houve na Alemanha um movimento semelhante a êste. Por isso, con­tinuo a sustentar que houve um passado dos ale?1ães que nun_:a foi. superado, e êles não pode� romper com Hitler po.çque nao liqüidaram ainda tôda essa reabdade, �arque na Al�m�ha co�­tinua a não existir a consciência de Sl enquanto h1s!óna auto­noma e progressista. E uma criação puramente ale�a _apenas o reacionarismo, o Estado bismarkia�o, o Estado h1tlensta, :te.,que em certa medida são reconhecidos como pr°?utos, autono­mos; não é por acaso que· tod� o século.XX, .e isso e ampla­mente .vá1ido ainda hoje, considerou o li�erahsmo e a demo­cracia como mercadorias importadas do Ocidente para a Alem�­nha. Não é verdade que isso seja válido apenas para a perspe<:­tiva do socialismo. O senhor pode. encontrar em gr�nde quanti­dade teóricos que recusam lib.eralismo e dem<:crac,� enquanto mercadorias importadas do Ocidente, porque nao estao de acôr­do com a natureza real da Alemanha. A natureza real d� Ale­manha é, pois, a do compromisso .. surgido �om a forma b1sma:­kiana do Estado alemão graças a necessidade do desenvolvi­mento ecOnômico. Os historiadores, porém, não recqnbecem, absolutamente,- esta necessidade; acredito que entre dez v?lu­mes escritos sôbre Bismarck, o senhor. encontrará no máxi�o um no qual esteja quando menos constatado que o Est�d�. cna­do por Bismarck era fundamentalmente um Zollverem pru�­siano". Bismarck não uniu o Pº!º alemão num Estado_: umu o Zollverein "prussiano". Para mllll, trata-se �e um f�to Imp�r­tante· .mas a historiografia .alemã, em geral, nao leva isso mmto em donta. E sintomático que Treitschke não o tenha rec�nhe­cido· e que mesmo entre os historiadores mais progressistas, Mar�ks Meineck etc., êsse reconhecimento também estive�se ausente'.da mane�a mais total. Tôda a história alemã vem !ss�m a encontrar-se num tal"estado de confusão que, em sua essenc1a,

Page 24: Conversando Com Lukács

só uma solução reacionária e irracionalista é vista como adequa­da à essência alemã. Esta é uma característica específica do irracionalismo alemão, que não se pode encontrar de forma tão aguda nem mesmo no fascismo italiano. ·· KoFLER - Senhor Lukács, aproveito esta rara oportuni­d�e de estar c�m. o senhor aqui em Budapest para colocarainda uma questao hgada ao problema do irracionalismo. Embo­ra tal questão seja discutida pelos intelectuais, e se refira tam­bém a tôda filosofia ocidental, não está em relação com os pro­blemas . de �ocio�ogia, de fik�.sofia, de ciência e de poesia, mascom o rrrac1onalismo espontaneo das massas na sociedade alta­ment� industrializada. Tra�a-se de um irracionalismo de tipo esp�c1al q?e preocupa muitas pessoas importantes de origem �em1-;IDar�1�t� ou burgueses de esquerda: um irracionalismo que e mmto diflcil de esclarecer e que talvez por isso não seja ainda conhecido na sua essência; por outro lado, como representa um fenômeno da sociedade ocidental, completamente nôvo mal é referido em seus escritos. Prometi a meus alunos obter d� senhor urna tomada de J?Osição sôbre êste problema. Desejo formulá-lo d� melhor, maneira para esclarecer o que quero significar com êsse têrm?;1Trata-se aqui t�mbém de conceitos e r_epresentações que se afumam quase que mdependentemente das classes, ainda que não das sociedades classistas. Talvez, hoje "integração vo­luntária" não signifique mais para a consciên�ia espontânea e ingênua, como significava originàriamente, "participar essencial­mente das. reflexões e das conclusões racionais", mas "partici­par essencialmente de uma educação irracional, de um consenso cego". "Satisfação", hoje, não significa mais um acôrdo racio­nal �om .º destino, ou contentar-se com um sucesso palpável,mas IIDphca numa representação manipulada que se orienta se­gundo o motivo condutor da técnica do consumo, que por sua vez depende da manipulação. :É evidente que estamos aqui na presenç.a de process?s completam�te i?"acionais de limitação,1deolõg1camente marupulada, das exigências de consumo median­te um certo grau de rentíncia ascética. A tarefa desta última li é a de prod.uzir um equihôrio provisório entre a imposição del!ma ment.�lidade voltada para o consumo e a capacidade efe­tiva matenal de satisfazê-lo. Há ainda um outro conceito de ex�em� interêsse no estudo do mundo das representaçõe; ir­rac1ona1s das massas de hoje: o de "privado". "Privado" não 50

é mais contraposto a público, como outrora, mas compreen-de aquêle espaço da vida do indivíduo que, por obra da ideo­logia e com o esfôrço do próprio" indivíduo, está totalmente ocupado pelas influências do mundo exterior. Ou, ainda, to­memos o conceito de oposição. "Oposição" não significa mais recusa à participação, mas, ao contrário {penso na socialdemo­cracia), reivindicação de participação na praxis estabelecida. :É ·:.,{ isto o que se compreende por oposição. "Liberdade" não significa mais, por exemplo, direito de fazer o contrário daquilo que fazem, dizem, ou desejam todos ou a maior parte, mas o di­reito de escolher no âmbito daquilo que já foi declarado livre pela ordem repressiva1;Ainda, então, a ordem repressiva! Pode­ríamos continuar com outros exemplos, mas não vim a Bu­dapest para fazer discursos e sim para pedir-lhe que tome posição, detalhadamente, se possível, sôbre estas questões. Con­sidero êste um problema difícil, visto que, no marxismo tradicio-nal, com exceção de umas poucas contribuições e se imodeste- a .�I ? mente prescindo do meu nôvo livro, que será brevemente pu- ,(v1d

,

blicado, êle pràticamente ainda não foi levado em consideração. LUKÁCS - Isso é muito justo e, na minha opinião, relacio­

na-se com a transformação de alguns aspectos fundamentais do capitalismo ocorrida depois da grande crise de 1929. Não no Jsentido de que o capitalismo tenha deixado de ser capitalismo ou se tenha tornado uma espécie de capitalismo popular; mas, a meu ver, de um modo bastante simples que gostaria de explicar em poucas palavras.

Se recuarmos 80 ou 100 anos, ao tempo em que Marx tra­balhava, vemos que a indústria dos meios de produção estava, em sua essência, Iai:gamente organizada em uma escala capitalista; podemos observá-lo na indústria têxtil, na indústria de moagem, na indústria do açúcar, que formavam quase todos os setores econômicos da grande indústria capitalista. Ora, nos oitenta anos seguintes, o consumo inteiro foi absorvido pelo processo capitalista. Não falo sõmente da indústria de sapatos, confec­ções, etc.; é muito interessante o fato de que com tôclas j essas geladeiras, máquinas de lavar, etc .. até mesmo o âmbito doméstico começa a ser dominado pela indústia. Mesmo o se­tor dos assim chamados serviços torna-se parte da grande in­dústria capitalista. A figura semifeud'al do empregado domés­tico dos tempos de Marx torna-se cada vez mais anacrônica

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f. l lf e surge um si�tema _de serviços capitalistas. Quero, por ora,l�var em cons1deraçao º1?- aspecto superficial do problema. 1 o�emos ?m gra!1-de fabncante de máquinas ou qualquer ou­tro industrial d� epoca de Marx. :e claro que sua clientela era extremamente limitada, de modo que podia distribuir seus produtos sem pô;. em funcio?amento um aparato de maior en­vergadura. �as, com os meios da grande indústria, surge um produto de�tinado a� �onsumo de massa (basta pensàr em. produtos tais com? lammas de barbear) que torna necessário um aparato especial para levar milhões de lâminas de barba aos. consumidore� parti,;ulares. Estou convencido de que todoo s1ste?1a de mamp1:'1açao, do qual estamos falando, surgiu destan�cess1dade e" depois est�ndeu-se t�mbém à sociedade e à po­It_,ca. A�ora este mecamsmo domma tôdas as expressões da vida social,. desde as eleições do presidente até o consumo de· gravatas e cigarros: .Basta iopiear algumas revistas para encon­trar. exemplos suficientes deste fenômeno .. Mas encontramos aqui uma co.nseqüência posterior e diversa: a exploração da

I

cla�se o:perána passa cada vez mais da exploração através da: mrus;-valia absoluta para a que se opera através da mais-valia

. 1elat1va. Isto significa que é possível um aumento da exploração ao lado de um 8;umento do nível de vida do trabalhador. No tem­po ?e MNarx �avia algo semelhante, mas apenas em forma embrio­nária; nao digo que não existisse absolutamente. Marx reconhe­ce?, ·�O terreno da �conomia, e creio que foi êle quem O fêz em pnmerro lugar, a mais-valia relativa; mas êle mesmo fêz certa vez. �uma parte �e O ,,Capital não publicada, uma observação muit� u:teri;ssante; isto e: que �través da mais-valia absoluta a' produ-

I çao e apenas formalmente subsumida ao capital, de modo que a subsunção da :prodll:ção so� as ca!egorias do capitalismo só

1\ surge,, c�m a ma 1?�valia relativa, coISa que constitui uma ca­ractens�cas específica da nossa época. Todos êstes problemas dos qua1� o . senhor tratou agora nascem em conexão com êste !at�. O mterro problema da alienação adquire uma fisionomia mterramente nova. No tempo em que Marx escrevia os Manuscri­t<;s .E_conômJcos. e Filosóficos, a alienação da classe operária s1gnificav� ID1edrntamente um trabalho opressivo em um nível q_uas� ammal. Com· �feito, a alienação era, em certo sentido, smômmo de desumamdade. Exatamente por êste motivo a luta de classes teve por objetivo, por decênios, garantir, com reivin� 52

dicações adequadas sôbre salário e sôbre o tempo de trabalho, 0. mínimo de uma vida humana para o trabaihador. A famosareinvindicação de oito horas de trabalho colocada pela Segunda

Internacional é um sintoma desta luta de classe. A:gora,. emcerto sentido, a questão se modificou; só em certo sentido, natu-ralmente. <.

O senhor se recordará de que �ua!1do Erhard a;;iresentou·o seu primeiro plano de reforma, o pnmerro ponto d? Jll.esmo eraconstitu[do pela proposta de prolongamento de uma h?ra porsemana no horário de trabalho. Trata-se de uma medida cla­ramente destinada a aumentar a mais-valia absoluta. Se o se­nhor, além disso, analisa a polítiCa de Wilso_n na Inglat�rraverá a mesma coisa. A mais-valia absoluta nao. morreu, s1�­plesmente não desempenha mais o papel do?1mante; aquêl�papel que desempenhava quando Marx escrev1,,a os Manuscri­

tos Econômicos e Filosóficos. Orn, o que dai decorre? 9ue um nôvo próblema surg;e no horizonte do_s trabalhadores, isto ré, o problema de uma vida plena de sentido. A luta de. elas-ses no . tempo da mais-valia absolut:3- estava . voltada par� acriação das condições objetivas ind1spensáve_1s a 1;1ma y1dadêste gênero. Hoje, com uma semana de. :me? �ias e ut? salário adequado, podem já existir as cond1çoes mdispensáve1s

I para uma vida cheia de sentido. Mas surge U°;l nôvo probl��a:, aquela manipulação que vai �a co11;1pra. do c1g�� �s ele1çoes

presidenciais ergue uma barreira no mtenor dos md1�1duos ent�ea sua existência e uma vida rica: de sentido. Com efeito, a mam­'pulação do consumo não consiste, como se pretende �ficialmente,nó fato de querer informar exaustivamente os consumidores. sôbre-·qual é o melhor frigorífico ou a melhor lâmina de .�ar?ear; ·o 11)que está em jôgo é a questão do contrôle da consc1enc1a. Dou . ·,apenas um exemplo, o "tipo" Gauloises: apre�e°:ta-se um ho­mem de aspecto ativo· e másculo, que s� distingue porquefuma os cigarros Gauloises. Ou ainda, vejo numa foto de pu­blicidade não sei se de um sabonete ou de um creme de

' ·, barbear, um jovem assediado por duas belas gare as por causada atração erótica que determinado perfume exerc� sôbre el�. O senhor entende o que quero dizer. Por causa desta mam­pulação, 0 operário, 0 homem que trabalha, é af:i-stado do pr°i_ 1 1'blema de como poderia transformar seu tempo livre em _(!Jzum, porque o consumo lhe é instilado sob a forma de uma super-

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Page 26: Conversando Com Lukács

abundância de vida com finalidad . como na jornada de trabalho d

e em st �esma, assim, 1 rialmente dominada pelo traba�iº2!_ h;�s f vida er� ditato­' no fato de que deve ser organizad

· 1 cu dade esta agoratência. Se tomamos nã o o mar

. a uma nova forma de resis­ro marxismo, 0 m�xismo de

xismo vulgar, mas o verdadei-) todos os elementos necessár'

Marx, podemos encontrar Já, mas . de alienação. Penso ��s fa:�s�

ombater essas novas for­tercerro volume do Capital Ãb

. passagem de Marx noo reino da necessidade

' �

o re .º re!Do da liberdade e sôbrede Marx segundo a ua.l t

mmto importante a afirmação cessàriamente, reino d� nec�ssi�a::�?:fer��nec;

é se1?pre, ne­

te que êle acrescente uma outra afirm 5 _ e am m ID1portan­

desenvolvimento do socialismo intervé açao, _segundo a qual o

' formas humanamente ade m precisamente para dar

, mento da humanidade Istada� ao trabalho e ao desenvolvi­mação de Marx, conÍida �:ºe \�er completado com a afir­segundo a qual uma das condiç;:

s1;

ar:º Progra"!a de, Gotha,

trabalho se torne para O h om º co1;11umsmo e que O

existe uma ciência do trabalhem uma nece�s1?�e vi�l. Hoje

do trabalhador mas elas tê O e u

i;: i_i,ss1stencia psicol6gica

tável por mei� da mani uI m _como ahdade tornar-lhe acei­

tente, e não servem para �ri:çao, a tec��logia capitalista exis-/- paz de transformar O trabalho\���ontrar��· 11:ma _tecnologia ca­

vida pelo trabalhador Segundexpenen�,a digna de ser vi-

:�!,ª�:t�t

��:o;�;ãlá1::of6��1ti!:��

n

�;�i ;::::�oe(�:

lucro, enquanto todo O resto éO por m o aumento do

dária), a s determinações te ªfio.as uma c�nseqüência secun­ontológica, incondicionadame�:o gicas . estariam, por essênciaapenas um exemplo históric

. e ao serviço do _capitalismo. Citoressante que teve lugar na é

o . a tr�nsformaç�o bastante inte­surgindo o capitalismo ist�oca medieval tardia, 9uando estavaartesanato fêz com que'

... 1

é, quando o aperfeiçoamento dofalo da grande arte fal e

d e pe�tr�sse no âmbito artístico. Não

�{am feitos naquel; te�po�s

: v;is, mesa�, cadeiras, etc. como

lismo varreu com leta ' m esenvol�1mento que o capita-

1) talismo colocaram�se 0�ente, �or�u� precisamente com O capi-1 2,�Çíio técnica, di mos

tros prmc1p1os_ teleológicos para a reali­mesi;no modo co:C um ���!s:/��:lªºi d

Xe

Vuma �esa. Ora, docu o sentia certamente

\,-'M

os problemas do capitalismo nascente como um fenômeno abso­lutamente não natural, um técnico de hoje sentirá como algo inteiramente não natural e absurdo o fato de _que uma produção I seja projetada com o fim de torná-la sensata para o trabalhador. Todavia, êste tipo de posição tecnológica não é, em comparação com a técnica atual, mais nôvo do que era a tecnologia de mas­sa quantificante em face da tecnologia qualitativa e artística do

Renascimento. Em geral, esqúccemo-nos de que grande parte da tecno­

logia é nm gênero de posições socialmente condicionadas, ter­minando-se assim por considerar as posições tecnológicas do ca­pitalismo, em certa medida, como uma coisa em si, ligada à essência do homem. :Sste é o aspecto da questão que se rela­ciona com o trabalho. O outro aspecto é a transformação do tempo livre em otium, a qual, por ora, não pode ser mais do que um trabalho ideológico feito para tornar cada vez mais claro como esta manipulação é contrária a os interêsses prõ­priamente humanos. O senhor deve desculpar-me se escolho novamente um exemplo frívolo, tirado do campo da moda: devo confessar que leio sempre as informações sôbre moda 11 com grande interêsse sociológico. Há vinte anos, existe uma luta permanente na haute couture pelo fato de que ela, enquanto · manipulação do traje feminino, quer introduzir de qualquer modo as saias longas. f: claro que isto acontece porque o lucro da indústria textil seria maior neste caso. A moda -que como se diz, é onipotente - fracassa, porém, neste ponto. Há vinte anos, em Paris, nos _grandes desfiles de moda, con­tinua-se a profetizar o encompridamento das saias; porém, neste ponto, as mulheres defendem seus direitos, porque as saias longas não são adequadas ao trabalho ou às subidas em um trem cheio . O senh or compreende o que quero dizer c om Iêste exemplo: a manipulação, por princípio, não é onipo­tente. Naturalmente, é muito difícil despertar no homem as outras necessidades, aquelas necessidades reais do desenvolvi­mento da personalidade; creio que temos muito a fazer, num processo longo e interminável, mas em um processo que, em última análise, pode terminar por uma vitória. Além disso, trata-se verdadeiramente de um processo que não tem mais como único ponto de referência a classe operária; sob êste as­pecto, ou; seja, quaÍlto à. mais-valia. relativa e à manipulação,

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Page 27: Conversando Com Lukács

mesll?-� a camada_ in�elcctual e tôda a burguesia estão igualmen­te sUJe1tas ·ao capitalismo e às suas manipulações não menos do que .ª classe op�rária. Trata-s� por isto de d�spertar a ver-r dade1ra autonomia da personalidade, e para isso O desenvol­. vimento econômico realizado até o presente momento criou �s condições necessárias. De_ fato, não há dúvida de que a quan­tidade de trabalho· necessáno para a reprodução física do ho­mem deve diminuir constantemente, o que significa que para todos os homens pode ser encontrado o espaço necessário

_ para uma e;i.s_tência s_,;,�taJl!!_e_nte humana. Isto já aconteceu de-modo .. eJ:o�micamente limitado, como Marx disse uma vez com os pioneiros da civilização, quando, por exemplo, err{ At7nas, a es7�avidão �betou�do _trabalho uma camada privi­legiada perm1tmdo asslfll o nascimento da grandiosa cultura ª!eniense. � inegável que existem camadas para as quais · : : ainda são válidas, quanto ao .nível de vida as velhas categorias do capitalismo, e é naturalmente uma gra�de tarefa preparar Odesaparecimento delas e exigir para o trabalhador um outro nível de vida. Mas não há dúvida de que para uma grande massa de trabalhadores, empenhados intelectualmente ou fisicamente O trabalho necessário para a reprodução está criando co�diçÔes c�pazes de tornar possível uma vida livre e adequada às exigên­c�&s h�man_:1s . Por isso é necessário empreender uma ampla d1scussao sobre as formas atuais da alienação. Aprovo muito o fato de que hoje se comece a estudar o jovem Marx sob êste aspecto. Certamente é uma estupidez historiográfica insistir sôbre a contraposição entre o jovem Marx e o Marx da ·matu­ridade. Os Manuscritos Econômicos e Filosóficos podem nos 11;1osf;�r o fenômeno da alienação de modo bastante plástico e filosofI7�, mas. o I?roblema atual da alienação tein hoje uma outra f1Sionom1a, diferente daquela que podia ter há 120 anos, no tempo de Marx. A tarefa que se coloca é a de destacar es�a nova forma de alienação, mas para fazer isto é necessário esclarecer tôda .ª dialética histórica dêste complexo de proble­mas, porque hoJe existem muitíssimas pessoas inteligentes, boas, valentes, pela quais tenho a maior estima humana e intelectual, e q�e cae� no fetichismo, acreditando que o desenvolvimento técmco se1a um. Moloch�que tudo engole irresistivelmente. Isto·é. falso e· a falsidade pode ser demonstrada à base dos funda­mentos do marxismo. Há quarenta anos polemizei contra a con-56

cepção bukariniana �a _técnica .co�o f�rça produti�a determi­nante· boje êste êrro e amda mais difundido em relaçao às novasgrand�s invenções, como a utilização da energia atômica. A nossatarefa O que nos compete como marxistas seria, neste caso, l!�as- f 1 ,!·tar d� cérebro dos homens o fatalismo fetichizado e mostrar que a técnica· foi sempre e apenas um meio �o desenv?l�imento .�as , , ,fôrças produtivas, que as fôrças produtivas em ultima análise são sempre os homens e as suas capacidades, e que uma nova fase do marxismo teria início quando uma reforma da hum:­nidade fôsse considerada como a tarefa central. Penso nao

ter dito nada de antimarxista: o sellhoi- timbém se lembraráque, na crítica da filosofi,a hegeliana do direito, � o jovemMarx quem diz que a ra12 d,2 _hQ�m � --o. __ pr6_pru�. h9�.e_!!l.Este aspecto do marxismo deve ser �ô�to em pnmeiro planNo,não de modo inlltilmente propagand1st1co, mas com relaçao

ao capitalismo de hoje; poderá então �er encontra�a uma pase de luta contra a alien;;i.çãQ__ atual. Isto e o quanto tmha a dizer,'em linhas geÍais, sôbre êste problema.

KOFLER: Que a manipulação não é onipotente, prova-o nossa conversa. Mas tornou-se extremamente difícil explicá-lo, de uma maneira ou de outra. Talvez se possa retomar o seu con­ceito de ateísmo religioso, retirando-o da esfera de sua conexão com o puro modo de pensar intelectual ...

LuKÁcs: Sim ... KoFLER: ... e tentar demonstrar que hoje ganha um nôvo

valor para as grandes massas, que colocam no lugar de D:us não o eu espiritual, subjetivamente elevado a mundo ,auten­tico ...

LuKÁcs: Sim... . KoFLER:. . . mas o consumo, inclusive o do temp� h­

vre etc.' no modo manipulado já discutido antes. PartmdodêsÍe pr{ncípio, mesmo' se a êste · respeito não podemos tratarespecüicamente das cónexões intermediárias, podemos entre­tanto· nos deier momentâneamente no fato de que a perda deespiritualidade das massa.s . chega, em a_mpla �edida, a dissol­ver até a consciência religiosa! de trad1çoes tao profun<!._amen­te enraizadas, e para as quais Marx chamou a atenç�o. Aconsciência religiosa se dissolve antes do que Marx havia pre­yisto; não, evidentemente, na s<>:iedade sem. classes, mas. _embases opostas a ela. Ainda aqut estamos diante de um tipo

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de ateísmo religioso cuja manifestação consiste talvez no fato ,, de que hoje as igrejas de vez em quando ficam cheias, mas ficam cheias em parte de ateus. Contemporâneamente obser­vamos de modo bastante concreto recaídas singulares no pen­samento mágico. Isto significa que o pensamento mágico toma o lugar que originàriamente pertencia à religião; observe-se astentativas de mudar o destino através da loteria do futebol eda astrologia, que devem ser classificadas, do ponto de vistada moderna racionalização, como mitos mágicos ou quase re­ligiosos. A êste âmbito pertencem as tentativas de procuraruma vida digna de ser vivida através da droga. Penso no hojefamoso LSD. Devemos tomar essas coisas mais a sério, quan­do sabemos que foi escrito pelo filósofo Aldous Huxley umlivro que exalta a droga.

LuKÁcs: Eu o conheço ... KoFLER: Conhece-o? O que é que o senhor não conhece,

senhor Lukacs? Pensei dar-lhe uma informação que o senhor desconhecesse. Neste livro, As Portas da Percepção, Huxley cria a ideologia mítica de um "nôvo caminho", uma mítica re­denção do tipo puramente subjetivo, mas intensificada e faci­litada pela droga. Algumas pessoas, como o conhecido psicó­logo da Universidade de Hanvard, Leary, fundam colônias pa­ra educar para uma "vida transcendental"; existem efetiva­mente teólogos, como o professor de religião ClaI'k, que reali­zam experiências assim com estudantes de teologia (sublinho: estudantes de teologia). O resultado é que estudantes e teólo­gos afirmam estar mais perto de Deus com o LSD, e o próprio Clark confirma êsse juízo. Todos êstes fatos são bastante inquie­tantes.

LuKÁcs: :e verdade. KOFLER: Se prosseguimos nesta linha de considerações,

descobrimos um processo singular, do qual poderemos talvez

I definir a dialética como dialética de utilização das formas má­gicas, dos êxtases orgiásticos, para a solução dos problemas mo­dernos do homem. Recordemo-nos, por exemplo, dos fenôme­nos extático-convulsivos dos espetáculos dos Beatles. Quando esta problemática se retira para a privaticidade do eu, cria-se um nôvo Deus, uma nova consciência semi-religiosa, como resul­tado do fato de que o eu, sendo oprimido, não encontra uma satisfação vital no trabalho, na vida pública.e social. Por.fim,

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chocamo-nos com uma nova e moderníssima for!11a do irracio­nalismo e do ateísmo religioso que será . u� obJeto de estudo e de análise muito importante para o marxismo moderno, que hoje me parece mais do que nunca em desenvolvimento.

LuKÁcs: Acredito que o senhor tenha tôda a razão. Mas deve me desculpar se divido il. questão que o senhor tratou de maneira unitária em duas questões distintas. A primeira consis­tiria. em uma história geral das transformações, ocorridas entre lutas contínuas das formações econômicas nas quais nos encon­tramos hoje. Í:. ilusão pensar que tenham existido desenvolvi­mentos retilíoios, especialmente no que concerne à evolução d� fator subjetivo. Tenha presente, para tomar apenas o fat_or reh­gioso, que, na Idade Média mais avançada e no Renasc1mento, a religião diminuiu de importância e se transformou �m um tipo de indiferentismo iluminado, para inflamar-se de��1s,_ com a revolução dos camponeses e a Reforma, numa rehg;1os1dade que não era de fato imaginável nos séculos a�teriore!. � êste respeito considero o que se segue de extrema 1mportanc1a: no final do século XIX, na segunda metade do século, havia essen­cialmente uma luta de classes que se intensificava constante­mente e que teve s;u ponto culminante na Primeir� Guer:a Mundial e em 1917. Depois da Segunda Guerra Mundial surgm ela nova situação algo inteiramente nôvo, e os nossos, digamos, jovens impacientes e jovens �enraiv�cidos da esquerda incor.;em \em certa medida nas tentaçoes �hm(}_s_as, porque, segundo eles, , o desenvolvimento não se faz com suficiente rapidez. Sonham com que amanhã estoure a· revolução na �éri�a e querememiorar para a América do Sul para serem guemlhe1ros. O nosso

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dever de marxistas seria o de esclarecer to os os acontecimen-tos posteriores ao fim do primeiro grande pe�ío�o. Devemosanalisar o fato de que a transformação do cap1tabsmo em umsistema dominado pe1a mais-valia relativa cria uma situaç_ão ; nova, na 'qual o movimento operário, o movimento revoluc10- · nário é condenado a um nôvo início, durante o qual renascem, cm f�rmas· muito caricaturais e cômicas, certas ideologias ultra­passadas aparentemente há muito tempo, como o luddismo do fim do· século XVIIT. Isto talvez pareça um paradoxo. Nesta grande onda de sexo que hoje envolve mulheres e garôtas, !11ª­nifesta-se uma espécie de luddismo na batalha pela emancipa­ção feminina. No. primeiro momento isto parece um paradoxo,

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mas creio que no fundo haja mesmo algo de semelhante. Deve­mos convencer-nos de que hoje não podemos, em relação aodespertar do fator subjetivo, renovar e conti.Õuar os anos vinte,mas devemos recomeçar de um nôvo ponto de par'tida, utilizan­do tôdas as experiências que são patrimônio do movimento ope­rário, tal como se desenvolveu até hoje, e do marxismo. Deve­mos dar-nos conta, com clareza, que estamos em face deum nôvo início ou, para usar uma analogia, que nós agoranão estamos na década dos vinte, mas em certo sentido no iní­cio d_o século_ XIX quando, depois da Revolução Francesa, co­·meçava-se a formar lentamemnte o movimento operário. Creioque esta idéia é muito imJ?ortante para o teórico, porque aspessoas se desesperam mmto cedo quando a enunciação decertas verdades produz apenas um eco muito limitado, Não es­q?eça que as c?isas importantes ditas naquele tempo por Saint­S1mon e Founer encontraram lima ressonância limitadíssima,enquanto o .avanço real do mo�imento operário iniciou-se ape­nas no terceuo ou quarto decênto dó século XIX. Naturalmente

11 nã? se deve exagerar com analogias, e analogias não são para­. lelismos, mas o senhor compreenderá o que quero dizer quando

�UJt�nto a neces�idade ?e conVencermo-nos de que estamos nom1c10 de um per10do novo e que a nossa tarefa de teóricos é ade esclarecer as possibilidades do homem neste período, sendoconscientes de que a ressonância destes conhecimentos na massaserá por ora µ.imitada. Naturalmente, êste fato depende da evo­l�ção do stalinismo na União Soviética, da hesitação em supe­ra-lo, bem como do atraso no desenvolvimento do socialismoq·ue dêle decorreu. Grandes acontecimentos podem ter influên­cia muito negativa sôbre o fator subjetivo. Para dar ainda umexemplo histórico, só a heróica derrota dos jacobinos de esquer-

/ da na Revolução Francesa produziu, com o utopismo, a idéia. de que o socialismo não tinha nada a ver com o movimento

revolucionário. Penso que, em sua essência, esta idéia se redu­zia à desilusão em face da evolução francesa durante os anosde 1793-1794. Não obstante, ela teve efeitos bastante duradou­ros no movimento operário; em substância, Marx foi o primeiroa tratar com exatidão a teoria revolucionária da vitória da revo­l�ção democrática como primeiro passo na conquista do socia­lismo. Hoje, ainda não temos homens políticos com possibilida-60

d de transformar êsses conhecimentos em praxis política. Tra-ues úni · d f" tôll-se de um caso absolutamente. co, am a que �sse um' · emplo fascinante, o de termos tido entre nós, no pen<;>do de.;�17 com a pessoa de Lênin, uma fusão singular de um 1.Illpor-. !ante' teórico com um grande político. Disto não decorre ne_;c�S-, sàriamente, de nenhum modo, que também no futuro a polttica, consiga realizar por si mesma uma fusão dêste g�nero. Tem�s· agora esboços de teoria, e seguramente não há a.u:ida no hof!­, zonte um homem político que seja capaz de traduZU' esta teona

em palavras de ordem políticas; todavia, estou firmemente con­vencido de que com o fortalecimento do movimento surgirá tam­bém um político dêsse tipo.

Com relação a êste assunto, retomo agora a segunda parteda questão, isto é, o aspecto religios�. Tra�a-se .de um proble­ma muito interessante, que em geral amda nao fo1 abordado porninguém, menos ainda por nossos marxi�ta .. �, porqu� � mar­xismo dogmático não superou ainda uma ideia da rebgiao queremonta ao quarto decênio do século XIX. Em sua épo:_a, fo­ram lidos artigos sôbre satélites que voando no espaço nao en­contraram Deus, e poucos ateus acreditaram. que êste argumen­to pudesse convencer alguém, como se exis�is�e hoje apenasuma lavadeira que acreditasse no céu no sent1?0. �e Tomás ?eAquino, ou naquele céu ilustrado por Dante na Divm.a Coméd,�. Não.há dúvida.de que o inteiro fundamento ontológico da anti:\ ga religião entrou em colapso, e o fundame�to o�tológico ��1 ';sempre um dos móveis impulsionadores �ue deternuna� o agir. Os homens religiosos, não só os de hoJe, mas essencialmentea partir da doutrina de Schleiermacher da "?ependência nã.ocondicionada", encontram-se, simplesmente, diante da necessi­dade de pôr de lado a velha ontologia religiosa e por isso deprocurar uma nova ontologia.

E o que na minha -Estética c�a�ei. de e.x�gência religios�. Ora, 0 que é pràpriamente esta ex1gen�1a religiosa� :é o senti- ,mento vago do homem de que a sua vida é uma vida que ca- ! rece de sentido; e que êle não se pode orientar n�la porque a ·velha ontologia da religião desabou. Tal ontologia realmente desabou no sentido de que hoje nenhum católico ou protestan-­te poria'. mais o Velho e o Nôvo Testamento como fundamen­to histórico ou ontológico das suas ações . Assim, essas' pessoas

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hoje estão diante do nada, e essa tendência em direção ao sobre­natural, que, como o senhor disse muito justamente, chega qua­se à magia, não é outra coisa senão a tentativa de encontrar

. uma nova base, para utilizá-la em face desta perda de cami­nho e dêste sentir-se num espaço vazio. O que demonstra co­mo o problema da vida significativa, que levantei no sentido marxista em relação ao mundo manipulado do capitalismo, é em sua essência o mesmo problema que se coloca hoje à exi­gência religiosa: neste ponto devemos procurar a possibilidade de uma comunicação. Dois são os obstáculos que se contra­põem a isso. Um constituído pela concepção dogmática de muitos marxistas que recorrem aos velhos argumentos do ateís­mo do passado, já agora privados de qualquer eficácia. Por outro lado, não é por acaso que homens como Garaudy, algumas figu­ras como Teilhard de Chardin, tentem um encontro ideológico. Naturalmente, não existe nenhuma aproximação real e nós, com a aprovação de suas falsas posições, não podemos trazer nenhu­

: ma ajuda a estas pessoas, cuja exigência religiosa é autêntica mas .que para ela procuram apoios ideológicos errados. Para o marxismo, isto é um problema muito complexo e eu o caracte­rizarei recordando que não é casual que o jovem Marx tenha escrito a sua dissertação sôbre Epicuro: aquêle epicurismo se­gundo o qual, vivendo os deuses nos intermundia do universo, Deus, a natureza divina, o princípio transcendente, não. têm mais nenhuma influência e não podem ter influência sôbre a

li vida dos homens. O homem deve então resignar-se: o único que pode dar-lhe uma existência sensata é êle mesmo; nessa luta por uma vida mais sensata, como diz a Internacional, ne­nhum Deus o pode ajudar. Dando maior ênfase a êste ponto, devemos procurar transformar o ateísmo religioso num verda­àeiro ateísmo. Daqui surge uma série de problemas filosóficos e eu gostaria de chamar- a atenção para o fato de que, nesta

: como em muitas outras questões, é grande o lllérito de Nicolai 1• Hartmann, que, em seu pequeno volume sôbre teleologia, cha­mou a atenção para o fato de que os homens vivem os aconte­cimentos de sua vida cotidiana como se fôssem dirigidos por uma teleologia independente dêles. Se, digamos, morre o amigo de uma pessoa, a referida pessoa se colocará o problema de porque isto aconteceu, como se a morte de X fôsse um fato 62

teleológico tal que mudasse a vida moral de Z; isto, na minha opinião, é o ponto decisivo, dialético-epicur�sta, na .construção ·do marxismo, aquêle através do qual poderemos aJudar, com um trabalho de esclarecimento, tais ateus religiosos .

.Sem dúvida, tôdas as Igrejas atravessam uma crise ideoló­gica que poderia ser comparada à grande crise ideológica que se sucedeu à Reforma . Direi que a crise reformadora no cam­po católico surge do fato de que a Igreja católica estava apenas empenhada em sustentar o feudalismo: depois da crise, afirmou­se a grande ação de Loyola, cujo mérito está em ter compreen-1dido que a Igreja Católica podia conservar-se e desenvolver-se tão-sàmente aliando-se ao capitalismo que surgia. Ora, encon- · tramo-nos numa crise na qual a Igreja Católica e as outras Igre­jas começam a compreen?er qu: a alianç� de. vida e morte comO capitalismo é uma co1Sa perigosa. HoJ_e, 1sto aco�tece commaior diplomacia; o Papa João XXII! VIU com mmta clare� que esta orientação unilateral na direção de uma sustentaçao religiosa do capitalismo pode ser abandonada e pode ser pro­curada uma nova orientação . Falo a êste respeito de uma ana­logia com a ação de Leyola no século XVI.

Para responder à segunda questão, não deveremos fazer uma análise dogmática ou ideolàgicamente condescendente das exigências religiosas de hoje, porque para aquêles. que se en�on­tram hoje nesta crise religiosa só pode ser tra21da um.a aJu?acom o primeiro caiilinbo: isto ?, combate?,do so� as mais yar1a­das formas �ara que �eja poss1".el uma y1dª ��eia de .sentt_dot e / [ para que surJa uma aliança na qual possam entrar, como terc�1ro . ·,aliado, também aquêles marxistas que estão procurando liq�td� o stalinismo nos países socialistas. De fato, só através ·da liqui­dação do stalinismo podem ser realizadas hoje n_os p�íse� .soc!a­listas aquelas teJ!dências vitais que tornam � ��!'- �1�c-�!�Yª _e que, em si e- por si, no socialismo, poderiam abm cammho mais rápida e claramente do que no capitalismo. !"fas eJas fo_r9:m

(( sufocadas pelo sistema stalinista e pela forma ate agora stalm1s­ta de sua superação. Não sei se lhe parece claro que numerosas fôrças agem juntas e de modo bastante complexo, razão pela

Iqual esperar algum resultado espetacular da luta contra a m�-nipulação é uma ilusão. O mais importante "?-º momen.to :en.a alcançar uma maior clareza teórica sôbre aquilo que hoJe stgm-

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fica marxismo e sôbre os resultados a que êste último pode· levar.

KOFLER: Da sua exposição ampla e complexa três pontos me chamaram a atenção. Na realidade, gostaria de pôr em discussão um único problema, mas não gostaria de deixar de mencionar, pelo menos, outros dois. A sua, diria quase, dedu­ção da religião a partir da teoria do conhecimento e da antropo-\llogia deveria ser colocada também em relação com a definição marxista da religião como "suspiro da criatura oprimida". Cho­cou-me o fato de que o senhor, tanto no primeiro como no se­gundo volume da Estética, analise com muita profundidade o problema religioso, mas não faça nada para esclarecer esta refe­rência. Não creio, porém, que seja o caso de discutir aqui êste problema. Gostaria também de chamar a atenção sôbre o fato de que o luddismo das ·mõças e mulheres, ao qual o senhor aludiu, é tolerado de maneira verdadeiramente excessiva e é até mesmo favorecido, e eu pergunto a razão disso. E aqui surge a suspeita de que esta fornia, esta rebelião contra a aceitação dos tabus tradicionais, constitua igualmente um impulso à inte­gração nesta dialética singularmente complicada.

LuKÁcs: Veja, creio que o senhor tenha tôda a razão. Se comparamos, sob êste aspecto, a sexualidade ao luddismo, o paralelo se refere à motivação humana de fundo e não ao movi­mento enquanto tal.- -O luddiSmo riào l)odiã ser integrado ao capitalismo da época, mas talvez êstes movimentos ideológicos não totalmente claros possam ser bastante bem integrados.

Para dar um exemplo interessante, tome o famoso livro de Mannheim: êle é muito severo em sua crítica contra a ideologia, mas nutre um certa fraqueza conciliante e uma amável tolerân­cia pela utopia. Com efeito, entre essas duas coisas desaparece

1 1 a praxis revolucionária. Uma utopia, como utopia, pode ser mui­. to bem integrada, como disse o senhor. Na realidade, uma opo­sição que tenha objetivos tão vastos que tornem impossível, por princípio, sua realização pode muito bem ser integrada por- um capitalismo como o atual. Sei muito bem porque alguns pontos são aceitáveis, outros não. Se, para dar exemplo de um filó­sofo sério, Ernst Bloch diz que com o socialismo também a natureza será transformada, ninguém tem nada a objetar contra esta afirmação. E Bloch continua a ser um filósofo importante

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e apreciado, se 6eni que seu socialismo seja tão radi�al a po!l.to de transformar até mesmo a natureza. Se, ao contt:ár10, eu digo que entre Nietszche e Hitler existe. uma relação,,, eis q?e de ,_re­pente me transformo em "Conselheiro- de Estado e cmsas desse tipo, em alguém que destrói ?! mais s�gradas tra?ições. do espí­rito alemão, porque uma critica a N1etszche atmge vIVamente O nacionalismo alemão de hoje. O senhor deve desculpar­me se dei um exemplo pessoaj., mas êle mostra ( e isso é essen­cial para o desenvolvimento da luta contra a manipulação) que, por vêzes, no momento atual, coisas extremamente radicais po­dem ser reconhecidas como princípios interessantes, enquanto que outras mais simples, qu� até podem parecer prosaicas, são condenadas como limitadas, dogmáticas, envelhecidas, e outros tantos apodos . Hoje devemos ver esta situação de modo absolu­tamente claro.

KoFLER: Naturalmente, poder-se-iam fazer também outras alusões pessoais e não só a Bloch.

LuKÁcs: Posso dizer que citei Bloch porque o considero um dos melhores homens que conheço. Em outros autores, po­der-se-iam encontrar muitas outras coisas, bem mais fortes. Não se pod� duvidar da honestidade de Bloch, nem do seu tale�to. Mas chegarei a dizer que mesmo nêle podemos encontrar coISas dêsse tipo. Nos outros, Obviamente, em medida bem maior.

KoFLER: Existem, porém, escolas que geram um grande número de jovens enraivecidos, como dizia o se�or, que não querem ir combater no Vi�tnã, ?1ªs <,IUe 1:°!" �ua raiva ass�me� uma atitude meio revoluc1onár1a e Ilum1msticamente anttcap1-talista e meio resignada. Para falar com franqueza, é êste o /1caminho da escola de Frankfürt. E aqui chego a um outro pro­blema, que é também um problema tratado em sua� obras, ou sejà, não se tr�ta apenas do problema das p:s.soas sunplesmen­te enraivecidas, ou daquelas que, mesmo criticando, adaptam­se mediante uma forma qualquer de resignação, mas sim do probli::ma dos "modelos humanos". No seu livro Realistas ale­mães, quando fala de Gottfried Keller, o sen�or diz,.. qu� algu­mas tendências de sua arte têm uma grande 1mportanc1a para o futuro porque nos mostram figuras exemplares e verdadeirasda vida' numa sociedade democrática: as tendências realmente humanas e democráticas de tôda democracia autêntica conquis­tam para nós uma forma idçal sem perda de seu caráter rea-

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lista. Isto acontece de modo verdadeiramente singular, mas não é o caso de discuti-lo aqui; entretanto, o senhor sublinha expres ­samente: "sem perder o caráter realista". Trata-se então de verdadeiros modelos, sôbre os quais eu gostaria particularmente de insistir. "Sem perda de seu caráter realista", isto é, sem

.,; cair numa utopia abstrusa! Mas isso significa também que deva­I mos encontrar modelos exemplares de uma democracia verda­·'. deiramente humana mesmo na vida de hoje? Mais precisamen-

te: é possível encontrar essas figuras na vida totalmente defor­mada e fetichizada que caracteriza o nosso tempo? E se, em certa medida - o senhor me permita - ...

LUKÁCs: Sim ... KoFLER: . • . permanece dominante o método traiçoeiro

da integração repressiva, nós então não discutimos a doutrina de uma ideologia utópica que, para dizer a verdade, tam­bém pode realizar suas tarefas, mas que talvez se situe acima do processo global e acabe por lhe ser infiel? Gostaria de subli­nhar expressamente que êste não é meu pensamento. São ape­nas perguntas que gostaria de lhe fazer.

1 LuKÁcs: Direi que a formação de uma minoria consciente . é o pressuposto de um movimento de massa. Isto, na minha opinião, vem muito bem eXpresso no Que Fazer de Lênin. Volto ao exemplo de Keller e não escolho um motivo central, mas um pequeno episódio no qual êste fato está claramente caracteriza­do. Tomo a novela Frau Regei Amrein para exemplificar o pro­blema da educação. O que há de notável é que Frau Amrein mostra, ao analisar seu filho, a maior indulgência diante de tôdas as depravações e maldades dêste último, e só intervém energica­mente quando se manifesta nêle alguma baixeza de caráter.:! Esta novela aborda então o problema da exemplaridade e pou­co importa se Frau Rege! Amrein pertence a uma sociedade suíça hoje superada . '/o realismo é sempre representação, e aqui está descrita aquela sociedade superada; não obstante isso, êste problema moral da Juta contra a· baixeza é válido e é um problema que tem uma importante função e exemplo na nossa luta contra a manipulação., Também hoje isto é intoiramente pos­sível e demonstra-o um êxemplo atual: penso no romance de

lt Jor� Semprun A Longa Viagem, no qual existem muitos exemplos significativos . O senhor fala da situação de hoje e da literatura que a descreve. Eu considero um tanto humilhante,

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ao examinar a literatura dos últimos 20 anos, que �m livro .ma­ràvilhoso como àqUêle que reúne as últimas cartas dos antifas­cistas condenados à morte (publicadô nestes últimos 15 anos), um livro ·tão cheio de grandeza humana, de valor e fôrça de resistência, não tenha estimulado nenhum escritor. O livro de Semprun é na realidade um dos primeiros no qual a _literatura começa a aproximar-se do nível humano a que se_ chegou n_avida real e que é testemunhado por estas cartas. Nao estou di­zendo que não exista nada similar; há, por exemplo, alguns belos relatos breves, como Die Berliner Antigane, de Hochhutb, on O Billard um halb zehn, de Bem. Veja, agora não estou fa­lando no plano artístico, falo da vida. Em Bõll, aquela velha que é internada no manicômio e que, no final, tomada por um acesso de fúria acerta um tiro às cegas sôbre os soldados, re­presenta uma �utêntica forma de protesto contra o fascismo e um gesto pela sua liqüidação interior em oposição à vida que se desenvolve na Alemanha.

Em Semprun existem pontos sôbre os quais me deterei com prazer porqu; se referem a um aspecto daquele fenômeno terrível do fascismo, a questão judaica, que se revela mesmo como exemplo inexaurível de manipulação brutal. Entretanto, acho erradâ a tendência que existe boje na Alemanha no sentido de reduzir a superação do fascismo à questão judaica. Trata-se na verdade de apenas um aspecto, e Semprun descre­ve muito bem a situação, com grande coragem, tamqém no plano de uma autocrítica do judaísmo. Isto é, existe neste romance um judeu alemão comunista que vai para a Fr�nç�, combate com os guerrilheiros franceses, morre como guerrilhei­ro, e Semprun escreve a respeito dêle: "não quero morrer como judeu". "Morrer coino judeu" queria dizer ser caça�o e leva?o para as câmaras de gás sem _esboçar a menor tenti:ttva de. re�1s; tência como centenas de milhares e mesmo milhoes de md!Vl­duos. 'A revolta do gueto de Varsóvia f�i algo semelh:ante. Mas penso que, se o senhor compara a realidade com a litera-'­

tura, mesmo a propósito do juda.ísmo, perceberá como êst� gu�r� rilheiro judeu e comunista que morre na �rança é ? pruneiro !,que, no plano literário, está à al�ura ?aqu�lo que fo1 a revolt.a de varsóvia no plano da vida. Nao se1 se ficou claro o que_ quisdizer e de como isto constitui uma grande tarefa para a litera­tura.' Eu, por exemplo, num âmbito inteiramente diverso, cha-

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mei a atenção para o fato de que, se se· comparar o ro­mance Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch de Solzhenitzin com os outros roinances sôbre campos de concentração, pode-sé ver a diferença que existe nêle . De um lado, temos a descrição naturalista das atrocidades; de outro, o problema das formas -a astúcia e tudo o mais - mediante as quais um homem pode conservar em um Lager sua própria integridade humana. Por isso, o romance de Solzhenitzin é alguma coisa nova e revo­

r lucionária . .:9.ste é o terreno sôbre o qual a · literatura poderia · contribuir _muitíssimo na luta contra a manipulação, se não ca­, pitulasse literàriamente diante dela, considerando-a como umdestino. Dei êstes exemplos para mostrar que é possível, no pla­no literário, dar forma àquela revolta real que o senhor encon­tra nas últimas cartas dos antifascistas condenados à morte, de um modo exemplar para a ação dos home_ns de hoje na Juta con­tra a manipulação. E isto pode ser feito quer usando os métodos modernos e tratando de acontecimentos atuais, quer retor­nando aos acontecimentos de um tempo passado. Não há dú­vida de _que tal literatura exista. Há, por exemplo, o romance muito interessante do americano William Styron - Set this Hou­

fe on fire - que, à maneira de Dostoiévski, liga a manipula­:, ção a uma grande e explosiva tragédia humana. Em primeiro lugar, o autor mostra como o rico transforma-se inevitàvelmen­te em tirano manipulador e o pobre é sacrificado em holo­causto à manipulação, e, descrita esta situação, representa um delito cometido no final como protesto pessoal e fruto da re-

itolta do pobre contra a própria condição de objeto manipula­do; e é ainda muito interessante que, graças a esta ampla con­cepção, êle possa evitar as conseqüências do de1it9 por causa de circunstâncias favoráveis e possa depois levar uma vida sensata e feliz. Naturalmente, poderia continuar com êstes exem­plos, se bem que sejam raras obras dês te gênero. Creio, entre­

i tanto, que não devemos cair no pessimismo por causa da fra­. queza do movimento que se desenvolve contra a manipulação. Temos possibilidades, temos alianÇas, há, na minha opinião, muito mais gente interiormente infeliz do que se possa imaginar; e agora chegamos a esclarecer, do ponto de vista teórico e artís­tico, de que modo e em que medida estamos em condições de

\l' fazer um trabalho com possibilidades de despertar as consciên­cias. para. êste probJema.17

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KoFLER: A ·sua referência à capitulação frente à manipu­lação me lembra aquela -parte de sua análise de �honi�sMann, com·relação a Raàbe, onde o senhor'fala dos heróis pen­féricos ...

LuKÁcs: Sim ... KOFLER: Heróis periféricos ou figuras periféricas que em.

suas lutas procuram inlltilmente um caminho de acesso ao gr�­de mundo.

LUKÁcs: Sim ... KOFLER: A conseqüência é uma deformação particular do r

homem, e, no mundo de hoje, direi que é a figura do sectário: .Temos wna grande quantidade de figuras dêste �ipo, no nossó. tempo, que muito se esforçam para chegàr a esta via de acesso ....

LUKÁcs: Sim ... KOFLER: Mas ou êles se detêm em seus sonhos ...LuKÁcs: Sim ... KOFLER: ... porque, em seu dogmatismo, não entendem ,

as transformações históricas e acusam os outros de cometerem .traições ...

LuKÁcs: Sim ... KOFLER: ... ou então, ao contrário, tentam obter para si

mesmo, a partir da situação da vida burguesa e capitalista, !!1!:'

galhas de JJ.ma vida humana, de __ u�_!_.9em�c;:ra<?i_!l humana ...-·-LuKÁcs: Sim ...

KoFLER: . .. e finalmente resignam-se e apresentam entãoO mesmo aspecto caricatural dos seus presumíveis adversários.

LUKÁCS: Sim ... KoFLER: Agora, coloca-se a questão: o sectarismo não é

a manifestação de wn período de crise no.qual, entretanto, faz­se alguma coisa de nôvõ? Em primeiro lugar, o fraci�nament?destas fôrças progressistas, ou assim chamadas, de origem bur­guesa oti socialista, não é uma necessidade que se 'pode escla­recer apenas se se leva em conta a situaç�o de �ise das· �ôrça�progressistas? Em segundo lugar! o sect�1s111:o n�o poderia se:histàrica.Ii:tente eficaz no futuro, isto é, nao pO!lena �r alguw

ma coisa que seria talvez possível definir encarando-se a questão.numa perspectiva histórico-teórica? Parece-me ·que o problem_ados heróis periféricos na época presente deva ser colocado nestestêrmos. ' e

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LuKÁcs: Quanto menos se desenvolva um movimento real, verdadeiramente importante, tanto mais positivo pode ser o va- J Ior de uma evolução que se produza também através de êrros. Hoje, vemos com muita clareza que a concepção de Fourier, segundo a qual o trabalho estava destinado a. transformar-se em uma espécie de jôgo, estava inteiramente errada. E, não obstan­te, diante da glorificação cega do trabalho capitalista, típica da­queles anos, esta representação utópica de Fourier ( que aliás já tinha aparecido na estética de Schiller) teve um significado positivo. Ela só assumju um significado negativo depois de Marx ter descoberto o caminho justo. Naturalmente, as diver­sas tentativas que realmente se voltaram contra a manipula­ção (e eu não considero tôdas como tais). poçlem ter hoje um valor positivo. Eu ainda não li êste ensaio, mas é muito inte­ressante o fato de que no último .número de Temps Modernesseja colocado em discussão um texto no qual Teilhard de Char­din é criticado enquanto ideólogo da manipulação. Efetiva-

f mente, entre a concepção de Teilhard de Chardin e, digamos, i a Weltanschauung neopositivista da manipulação existe uma

relação muito estreita. Direi novamente, como Hegel, que a ver­dade é concreta, e que podem existir sectários que, em certo sentido, indicam positivamene o futuro, ao lado de outros sectá­rios que exercem uma influência negativa mesmo hoje.

KoFLER: Senhor Lukács, não gostaria de cansá-lo muito, mas talvez possa fazer-lhe uma pergunta, ligada também a uma questão sôbre a qual muito se discutiu, em um seminário diri­gido por mim. Na primeira parte do piimeiro volume de sua Estética, a respeito do problema do reflexo, o senhor fala da unidade do real.

LUKÁCS: Sim ... KoFLBR: A questão já foi discutida ontem. Hoje se coloca

o seguinte problema: no seu livro Hist6ria e Consciência de

Classe, de 1923, vem demonstrado como a filosofia clássica fa­zia depender a cognoscibilidade do real da "produção" dêstemesmo real. Na sua crítica a esta filosofia, o senhor sustentacom ,razão que o problema da cognoscibilidade do real só podeser resolvido no terreno do conceito de praxis histórica. Sem�evar em conta o co_nceito. de. "praxis", êste problema permanecemsolúveI. Então a pergunta é esta: não serão talvez os doisconceitos de "piodução", isto é, um relativo à teoria do conhe-

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cimento e outro relativo à sociedade, dois concéito's que se refe-/ rem a dois campos diferentes da realidade, isto é, um ao âmbito

da assim chamada produção material, O outro relativo ao obje-to da ciência da natureza e da matemática? A sua demonstra­ção leva à interpretação· de que não exista �e�huma ruptu­ra, mas na realidade pode-se talvez observar cnt1cament�, com relação a êste fenômeno, que nos defrontamos com d01s con­ceitos diversos de produção.

LuKÁcs: Devo logo começar afinnando que eu, como o senhor provàvelmente sabe, considero História e Consciência deClasse um livro superado. A definição que se encontra neste livro, portanto, na�a teI? a ver com ?s problemas de_:env_oh'.i�osna Estética. Ora, 1 a umdade de realidade e producao s1gruf1ca isso: a realidade é unitária no sentido de que todos os fenômenos da realidade (sejam êles inorgânicos ou sociais) desenvolvem-se segundo certos nexos causais em certos complexos, com ações recíprocas em seu interior e ações recíprocas de um complexo com relação ao outro . Esta identidade existe. Mas creio, com.o procurei demonstrar em meu livro sôbre Hegel, que �ma das mais importantes renovações trazidas por Hegel .à di:tléttc� cons­siste no fato de que a !ese fundamental da dialéüc� na� é a unidade dos contrários, mas o que Hegel chama de t-ª!ª!tdad� da identidade e da não identidade. Ora, eu penso que existe uma réiili(fade "llilitária:-uma identidade no sentido de um curso ( / causal da realidade independentemente de qualquer posição . , humana e sôbre êste ponto pretendo retornar. Daí decorre, então, antes de mais nada, que esta unidade se explicite em formas di­versas nas três formas diversas da realidade. No trabalho, natu­ralmente, a produção ocor:e no sentido de que o. trabalha�or coloca-se um fim teleológico que êle pensa reabzar. Assun, pode surgir algo inteiramente nôvo. Para is;o, não é necessá­rio recorrer à ciência nuclear. Em sua essência, na natureza que conhecemos não existe nenhuma roda, ao passo que os homens chegaram a construí-la já num estágio relativamente primitivo de seu desenvolvimento, criando assim um composto nôvo em relação à natureza. Uma das caracter!sticas essen�iais .da po�i­ção teleológica consiste na sua capacidade de deixar mterag1r, com a ajuda do conhecimento dos ordenamentos causais, êstes mesmos ordenamentos causais da natureza numa outra com- 1

binação, diversa daquela que SI? realizaria caso não existisse a ·

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1_\ pos1ça� teleoló�i�a: os nexos causais, porém, só podem ser · con�ec1dos e util!zados, ma� não muda.dos. Nos seus primeiros

escritos, H�gel diz com mmta razão que o trabalho do. homemc.om seus mst�umentos faz com que a natureza se esgote porsi mesma. Assim, nesta produção, o homem introduz uma iden­tidade de inden:idade e de não identidade, na medida em quea roda _é alg.o novo, um produto do homem e, apesar disso, naz?da nao �x1�te nada que não corresponda precisamente. às sé­nes causais mdependentes do homem e que dominam na na­tureza. O homem não poderia ter criado uma roda se de certo

' 1!1-odo não a tivesse reconhecido, de modo que esta produção e um processo complexo, que não contradiz a unidade da reali­dade. E se agora eu me refiro às mais altas formas de unidade do real? vol�o a tudo o que dissemos antes sôbre a questão religio­sa; isto e, ao fato de que, por exemplo, a natureza (tanto a na­tureza or?âni�a �uanto a in�rg�nica) se desenvolve segundo a sua pró.pna dialética e se rea!1za mdependentemente das posições teleológtcas do homem. Assim, a construção fisiológica do ho­mem e também o seu destino psicológico dependem, socialmente falando, do acaso .. Marx observa justamente, em relação a isso,

I que depende precisamente do acaso que uma determinada si­! tuação . revol�ci�n�ia enc�ntre à frente Qa classe operária um· determ�nado 1And1yiduo e nao outro (se bem que isto iá não seja

uma circunstancia meramente fisiológica ou psicológica). Em qualquer caso, resta um resíduo ineliminável de casualidade que decorre, porém, do curso meramente causal dos aconteci� IU_:ntos naturais. Sob êste aspecto, a praxis humana se contra­P.oe a uma natureza unitária e, se eu exeço uma atividade so­c�al, esta entra no âmbito de qualquer ciência natural, psicoló­gica, etc_; neste co�plexo, portanto, operam leis que não podem ser abolidas P.or °:un: Com ?�se nas coisas que conheço, possoI exercer certa mfluenc1a mod1f1cadora sôbre a realidade externa

, cujas leis ª?em independentemente de mim, de modo que, dêst; ponto de vista, enquanto produtor na economia, artista ou filó­sofo, encontro-me em oposição a uma realidade unitária, a qual, por sua vez, deve ser compreendida no sentido de uma· identi­dade çle identidade e não identidade. ." . KO_FLER: Que relação tem o que o senhor disse com a afirmaçao de Marx nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos,segundo a qual a natureza sem o homem não seria nada·?

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LUICÁcs: Dizendo que a natureza - da qual, p:raças a dis­versas casualidades, desenvolveu-se o homem - não seria nada, dêste ponto de vista, sem o próprio homêm, nada mais faço do que transformar um belo aforisma numa banalidade .. M�s Marx não pensou que a terra fôsse um ente realmente existente só por­que o homem nela age, e que se em Vênus e em Marte não vive nenhum homem, então Vênus e Marte não existem. Penso que aqui nos defrontamos com uma afirmação do jovem Marx, que continua a pensar na idéia epicurista da necessidade. Desde que os deuses vivem nos intermundia, isto significa que os

/ homens podem desenvolver uma ação transformadora sôbre a ' natureza apenas no quadro da praxis humana, e que, fora isso,

a natureza se desenvolve independentemente do homem . Não penso que Marx tenha querido dizer algo diferente disso.

KoFLBR: Certo; a afirmação deve ser assim interpretada. Gostaria agora de retornar à origem da questão, para fazer uma última observação . Hegel coloca a produção da �ealidade por parte de um espírito absoluto em relação com o p�oblema da produção na sociedade, como se êstes momentos estivessem num mesmo plano. Não é preciso fazer aqui uma distinção para evitar confusões e equívocos?

LuKÁcs: Veja, direi que sou muito cético em relação à importância das formulações da teoria do conhecimento. Receio que as questões da teoria do conhecimento, se não são conside­radas como um momento das formulações ontológicas, defor- '! ' mem o problema e coloquem uniformidade onde há dif�rença e ao contrário, diferença onde há uniformidade. :8 preciso ter �uita cautela em relação à teoria do conhecimento. Limito-ill:e a citar aqui um exemplo muito importante: para Kant, na reali­dade que para nós é pràpriamente real, desaparece. a dist�çãoentre fenômeno e essência, porque, segundo a teoria kantiana, o mundo que nos é dado é apenas fenômeno, ao lado de umacoisa em si transcendente e incognoscível; para Hegel, ao con-

11 trário, a realidade subsiste como essência realmen,te exis1_;Cnte ecomo mundo fenomênico, o qual, por sua vez, e tambem êle realidade. Basta esta diferença para nos fazer constatar como, :r.este caso, a tradição se limite à teoria do conhecimento. Quan­do falo da produção em sentido marxiano, naturalmente sob esta

I expressão devo compreender apenas os produtos do trabalho no sentido mais amplo. O produzir surge como ...

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KOFLER: ... produção da sociedade ... . LuKÁcs: , : . também, mas a produção da sociedade temorigem_ na ampliação da divisão do trabalho, em- seguida ao aparecimento de po:ições teleoló��as cada vez mais comple­xas, que se sobrepoem às pos,çoes teleológicas primárias for�ando um maravilhoso sistema de teses teleológicas. s;

�nahsásse�os realmente a sociedade, creio que chegaríamos,' ª. con�Jusao de que seu áton:.o constitutivo é a posição teleol6-,;-rC' \ gica smgular. E, entretanto, a síntese da sociedade não· é maisuma fonnulaç�o teleológica. Devemos insistir aqui no fato deque. ca_da ato sm�l:'ar de venda ou de aquisição de uma merca­doria e uma pos1çao teleológica. Se uma mulher vai ao merca­

�;l e compra cinco per�s, es!ª� é uma posição teleológica. Po-1.em, no mercado, das mil posiçoes teleológicas surge uma causa-lidade do mercado que se articula com outras causalidades deoutro� mercado�. Dêsse modo, só são eficazes as conseqüênciasca_usa1s das po�1ç�e.s teleológicas singulares. 'Um momento ineli-mmável da ob1etiv1dade e da normatividade das leis sociais éque o resul!ad? das pos_ições teleológicas singulares, que consti-tuem a ess�ncia da sociedade, representa algo inteiramente di-verso daquilo que era proposto através delas. KOFLER: Disso já falamos ontem.

_LuKÁcs: Por exemplo, a taxa média de lucro surge da ten­dên_ci� ao. superlucro; a procura do superlucro se realiza naspos1çoes smgulares, que no plano imediato podem até chegar aco�segui-Io, mas no desenvolvimento global, apesar de tudo,o s1tema da taxa média de lucro aparece como resultado de um proces�o de co�junto. O problema da liberdade e da necessida- 1 de soc�al �evena ser reexaminado filosõficamente, precisamente - " jª ... p�tir disso .. Portanto, sou levado a atribuir grande impor- s,, V tanc1.a a ª1:1 proble�a q�e nunca foi levado suficientemente em b'[rt ·

: { cons1deraçao pela fdosof1a: causalidade e teleologia devem sertratadas como duas formas do ser determinado wna junto à I '' outra e"':'ª i�d�pendente da outra. Houve um p�ríodo·no qual J a tel:oiogia foi_ s1mpe�l�ente nega�a, enquanto se afirmava que i em s1 e para st só. existia a causabdade; no ser social contudo 'i há também a posição teleológica, que só pode existir, porém: 1 em um mundo causalmente determinado. O senhor entenderá ,O q�e pretendi dizer antes, quando afirmei a possibilidade deanalisar, em têrmos gnoseológicos, causalidade e teleologia co-74

mo relações independentes uma da outra, Se, ao invés, parto de uma ar;iálise ontológica, vejo duas coisas IJ,ue só aparente- 1

mente se contradizem entre si. Por um lado, constato que a leleologia é submetida ao domínio da causalidade; por outro, devo reconhecer que na sociedade, os novos objetos, as formas e as relações, só podem surgir como conseqüência de posiç_ões teleológicas .. ,Do ponto de vista da teoria do conhecimento, �sto pode parecer paradoxal; mas, de um ponto de vista ontológico, é uma simples análise da posição do trabalho. .

KOFLER - Muito justo. Eu o interrompi apenas para evi­tar novos equívocos sôbre o conceito de produção ...

LUKÁCS - Sim, sim ... KOFLER - .•. como se o senhor entendesse sob êste têr-

mo apenas o trabalho, mas ... LuKÁcs - Penso que a posição do trabalho é ... KOFLER - . • • é o fator primário. LuKÁcs - Veja, a partir da posição do trabalho se de·

senvolve, por exemplo, o conceito da coordenação do traba- llho, o do trabalho intelectual que precede o trabalho físico,. ' etc. Se êste processo se desenvolve posteriormente como divisão social do trabalho, surge uma tradição específica e tudo o que dela possa derivar. Em uma etapa posterior surge o direito e tôda posição jurídica é também uma posição teleoló­gica. Tôda posição jurídica se reduz a isso: se Franz Müller roubou duas caixas de rapé, eu quero que êle seja prêso por três meses. Não há proposição jurídica que não seja também uma posição teleológica ou que nâo contenha o pressuposto de I posições teleológicas. Penso, por isso, que não podemos. pres· . cindir do problema das posições teleológicas até mesmo nas formas mais elevadas da ciência e da arte.

KoFLER - Quando o senhor fala de "ontologia", não pen­sa realmente em "antropologia"?

LuKÁcs - Não, porque penso que certas constelações ontológicas existem totalmente independentes do fato de que exista o homem. Se, por exemplo, estudo os diversos planêtas do nosso sistema solar para vérificar se nêles existe vida orgâ­nica, isso não tem, em geral, relação alguma com os homens. De fato, se a vida se desenvolveu num planêta, daí nã� se dedu_z '

[ 1 necessàriamente que a vida deva levar ao homem. Existe, aqm, . um segundo salto que, por falta de material, não podemos ana-

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lisar, se bem que eu esteja plenamente convencido a êsse.·respei­to. de que,. através de uma análise posterior, serão descobertascoisas mmt? .complexas .. Marx Obst?rvou com muita·· justezaque � darwnusmo_ é o aJ�ste d7 con�as com a teleologià., .Hojeem dia, na ev?luçao dos .seres vivos, Já.podemos ver que existembec.os sem sarda, e .Precisamente num estágio relativamente su­penor de desenvolvunento. A forma mais desenvolvida da cha-I mada sociedade animal é encontrada entre os insetos e não' �ntre os animais superiores. E, nos insetos, precisamente a socia­hdade aparece �orno um Iim_ite para uma evolução posterior. Defato, � �i�isão do trabalho, por exemplo, entre as· abelhas, é( · uma d1v1�ao d.o trabalho biológica e a colméia pode se renovar. a pen� . b:ológ,came?te, mas não pode evoluir no sentido dasubstitmç�o da subjugação ao poder soberano da rainha pelademocra�1a. Repito aqui, intencionalmente, um velho absurdo.Co� efeito, um dese�volvimento social posterior só é possívelpartmdo da constelaçao que aparece exclusivamente com ohomem, na qual a divisão do trabalho tem um caráter social enão um caráter biológico. KOFLER - ::Elxatamente, mas êsses problemas ·não são di­ferentes na filosofia tradicional? O que se poderia aceitar .nestepont?, aparec7 no ;ampo humano-social como algo inteiramen­te . diferente, isto. e, como antropologia. Por exemplo,-, o con­ceito de teleologia: se fazemos dêsse conceito· uma 'filosofia estaremos talvez trazendo a filosofia para um terreno no quaiela nos conduz a problemas aparentes e provoca soluçõesaparentes. LuKÃcs -. Hoje há, naturalmente, uma tendê�cia muitoforte para redu21r esta questão ao campo antropológico. Mas[ esta redução exclui todo o passado da natureza êxclui O fato· de que certos fenômenos, mesmo nos homens, Provêm única­mente das leis necessárias do mundo inorgânico. Uma vez umJ!o�em cheio de espírito fêz-me notar um fato muito intere�san­te, 1�to é, que não existe um único ser vivo no qual os órgãos domovimento tenham número ímpar. Números ímpares· apresen­tn,m-se e_m nós: temos um nariz e uma bôca. Mas ·temos doispes, e o senhor não poderá citar um único ser vivo que ténha 3( 1 �u_ 5 pés; terá dois� qua_tro, oito, dez pés etc., o· que· de'pénde· / simplesmente das leis físicas do movimento que são, réalizadasdêste modo nos sêres vivos. Posso chamar 'a isso de ·antropolo-

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gia? Acho que talvez seja uma ampliação um tanto abusiva. Creio que a acentuação da antropologia derive de uma orien­tação que acho justa e progressista; ou .seja, os ho�s chega- ! ram a pôr em dúvida a chamada ciência psicológica. A psicolo- · gia isolou certos modos de expressão do homem e por isso não percebeu que todo modo de expressão do homem é o resultado de uma dupla causalidade: por um lado, é condicionado pela constituição fisiológica do homem e pela ação das fôrças fisio- ·lógicas; por outro lado, é condicionado pela reação aos aconteci­rn.entos sociais. Na psicologia, prevalece uma expressão unitária. Se eu, por exemplo, digo que um perfume não me agrada, isso já não é mais um fato meramente fisiológico, porque o senhor sabe o quanto os perfumes dependem da moda, e sabe que o modo pelo qual os homens reagem aos perfumes é um fato social. :este talvez não seja um bom exemplo. Mas com êle desejo mostrar que não há uma só das chamadas reações psicoló- / gicas que não sefa s�multâneame,nte e inseparàvelmente fisipló- 1gica e social. Não quero, com isso, negar que se tenha for­riiado, éom o tempo, uma ciência antropológica concentrada sô­bre ações recíprocas destas duas componentes. Mas é uma ilusão pensar que com isto se resolvam problemas essenciais do desenvolvimento social, porque o desenvolvimento social se realiza (se bem que esteja ligado aos homens) sôbre a base de uma específica normatividade econômica_. Tenho muita curiosi­dade em ver de que modo, para voltar a um exemplo p.nterior, poder-se-ia deduzir antropologicamente o aumento da taxa de lucro.,,. .

KoFLER - Penso que sôbre isto poderemos discutir infi­nitamente. Agradeço-lhe muito, senhor Lukács, por sua pa­ciência.

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TERCEIRA CONVERSA

Georg Lukács

W olfgang Abendroth

Elementos

para uma Política Científica

ÀBENDROTH - Senhor Lukács, ontem o senhor IlOs ex­plicou que, no desenvolvimento da moderna sociedade indus­trial ao nível do capitalismo maduro, a diferença essencial em relação ao período precede11te consistiria no fato de que o pro­blema central do contraste de classe hoje não mais se refere à mais-valia aQsoluta, mas à mais-valia relativa. Em suas linhas fundamentais, a coisa é clara. O senhor extraiu também a con­seqüência disso, ou seja, a de qu"h_ dêsse modo, o problema da luta p'or melhorias se transhforma no problema da luta por um tempo livre, verdadeiramente livre, não mais manipulado, isto é, na questão de como utilizar a redução do horário de traba­lho. O que me parece plenamente justo e convincente, se bem que nos países de capitalismo madu"ro, naturalmente, o proble­ma da luta pelos aumentos salariais tenha ainda uma função e possa passar ao primeiro plano nos períodos de recesso. Ora, daí deriva uma série de problemas, aos quais não creio que atribuamos uma avaliação diversa, mas que seria interessante

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formular com maior clareza . O senhor sabe que a ciência bur­guesa dominante, compreendida a sociologia neopositivista ex­trai, da �bs�rvação de fenômenos exteriores desta problemática,cm substancia, a conclusão de que o problema da luta de classee� geral tenha terminado, e que, de qualquer modo, não maisexista como problema efetivo. Com efeito, para a ciência bur­guesa, a luta de .. classes era sõmente uma luta pela mais-valiaabsoluta. Consequentemente se conclui que a classe operária -envolvendo largas camadas e, sobretudo, os empregados - .nãomais seja o sujeito da luta pelo progresso. O senhor concordacom esta opinião? Lm(Ács - Evidentemente, não. Antes de mais nada, creio'.!ue - .se. se toma a situação da atual classe operária - a aná­hse obJetI�a mostre que êste modo de ver os problemas étotalmente mcorreto. Na classe operária de todo o mundo, pode­se certamente observar um indubitável retrocesso na consCiên­cia. Este retrocesso da consciência, isto é, a decadência do fatorsubje�vo, manteve s�a expressão_ mais exata naquele parâmetromund1al qu� é_ a socialdemocracia; esta não se colocou apenascontra o socialismo, como em. 1917, mas está agora tão inteira­mente no terreno da democracia manipulada que dificilmentese pode distinguir o discurso de um socialdemocrata alemãodaquele de um homem do Partido Democrata-Cristão (CDU).P:ra a soci.al�emocracia atual, não se trata apenas de uma rejei­çao do socmlismo, mas também da democracia entendida sêria­mente. Os problemas de uma democratização real isto é social de um desenvolvimento democrático, não desedipenhe� mai�para o Partido Soci�-Democrata Alemão (SPD) o menor pa­pel. Isso pode ser visto, com precisão, desde as leis de emer­gência até. os debates sôbre a situação militar. Os pÍoblemasda democracia real, aquêles que alguns velhos socialdemocratastinham enfrentado com a maior energia (pensemos, para darum exemplo, na atitude assumida por Jaurês no tempo do pro­cess? Dreyfus), não têm mais para a socialdemocracia impor­tãncm alguma e estão quase que inteiramente esquecidos . :e,entretanto, também evidente que, com tudo isso, a luta declasses no setor econômico não cessou; e é um sintoma inte­r�ss�te o fato de que em geral os sindicatos, ou uma parte dos smdicatos, se coloquem à esquerda do partido socialdemocrata,80

O que nunca tinha acontecido antes. A idéia de que a luta dost balhadores tenha deixado de ser um veículo da luta contraa:

ª

formas capitalistas de exploração, p�rtanto, é falsa. Po�:m�sas dizer que chegamos a um rebaixamento da consc1enc1a

!�enrelação a êste problema e que a situação apresenta sem­pre novos aspectos. Não há dúvida, porém, de que com ? pro­blema do tempo livre e do otium apareceram °:ovas questoes noprimeiro plano do movimento. As lutas anten�r�s pelo tempolivre conseguiram obter tão-sõmente . um horar10 que só demodo precário permitia uma vida. efetlv�mente hum_?-ºª para ,ºtrabalhador. Trata-se, hoje, de mmto mais. Da reduçao. do hora­rio de trabalho deriva um espaço no qual o tempo livre podeser transformado em otium. O capitalismo moder�o, entreta�to,faz tudo para impedi-lo. Não em bases ide�ló�cas

., mas sim­

plesmente porque o comércio ma?ipulado da mdu.stna d�s bensde consumo está ligado, necessànamente, � uma t���logta con­formista do desfrute. Daqui nascem, na mmha op1mao, p�o�le­mas completamente novos, que surgem da estrutura eco�om1:amundial não apenas em sentido imediato. Pelo contr�n?, saoêles uma indicação da necessidade da passag�m ª? socialismo .erepresentam algo nôvo no desenvolvimento h}st?nco. As. con�1-ções fundamentais de todo movime°:to econom1co e social sa;>sempre e apenas as posições teleológtc�s dos �o?1ens. Nest� m­vel, não faz nenhuma diferença que seJam posrçoe.s ;conôm1ca�,científicas ou morais. Trata-se sempre de uma pos1çao teleológi­ca ideal, pensada, que só se torna uma posiçã? real qua�do seexperimenta transformá-la em - realidade matenal no âmbito dapra.xis. Mas a estrutura geral da sociedade, como Marx dizmuito bem, origina-se independentemente d� vontade dos ho­mens. Assim, as formas da vida humana, s�Jam elas as f?rmasda vida da polis, do feudalismo ou do capitalismo, foram d1t�daspelo desenvolvimento econômico. Post�riormente, ela! reagiramsôbre as respectivas posições teleo!ógicas. Na questao que serefere à transformação do tempo hvre, da qual nos ocupam�shoje, aparece pela primeira vez uma situ�ção na qua_l � econoilllanão está em condições de ditar o contendo das �0�1çoes teleoló­gicas· são os próprios homens que devem dec1d1-lo. Dou umexem�Io: surge uma grande indústri� _de _discos para düusão damúsica. Para o manipulador, porém, e md1ferente que se compre

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jazz ou uma sonata de Beethoven; êle não conseguirá fazer comque se compre apenas jazz, e as estatísticas mostram com efeito que _mesm.? os _clássicos têm os seus best-selle'rs. Âqui cessa �mampulaçao drreta e não há uma orientação defmida nadireção de uma cultura deteriorada . Aqui, em certa medida,os homens devem chegar a decisões independentes. Para aeco!lo_mia, em sentido lato, isto tem um grande significado; 0socialismo representa um salto em relação às sociedades divi­didas em classe, às sociedades existentes até agora, a partir domomento em que o socialismo coloca a pretensão de submeter aocorrem forma: de transição deformadas e, econômicamentehumana. &te e um momento inteiramente nôvo na história enão é de espantar que os homens, que há séculos estão habi­tuados a um outro modo de ser, avancem com bastante es­fôrço no caminho dêste �ô�o desenvolvimento; tanto má.is queocorrem formas de trans,çao deformadas e, econômicamentefalando, muito produtivas. Enquanto permanecer a mais-valia absoluta, exceção feita às ameaças revolucionárias diretas àsociedade capitalista, a exploração é imediatamente reconhe­cida como . o princípio orientador dos capitalistas individual­mente considerados e dos grupos de capitalistas. Quando O con­sumo de massa, como conseqüência da mais-valia relativa, setorna um problema central da reprodução capitalista O capi­talismo passa a se interessar por êste consumo de m:ssa e decerta maneira, o capital global acaba por ter um interêsse i�e­diato num aumento relativo do nível de vida das massas. Nãodigo que o consiga sem maiores problemas. Se tomamos, porexemplo, uma figura como Roosevelt, ou em inenor escalaKennedy, o senhor pode ver o que os distingue dQs outros . �lesnão. representam apenas determinados ambientes capitalistasparticulares, mas tentam realizar os interêsses do capitalismoem seu todo. Naturalmente, isto não é elevado ao nível da teo­r!a, nem realizado de maneira pràticamente conseqilente. Gosta-na apenas de dizer que, em relação a tôdas estas questões, isto é,no que concerne à relação dos homens singulares com sua baseeconô�ica : com as conseqüências ideológicas que derivamdesta situaçao, encontramo-nos ainda num período de transição.� desenvo!v�ment� ?o marxismo, por causa do longo períodoe predomimo stahmsta e por causa dos efeitos que êste desen-'112

volvimento provocou também no mundo capitalista, nãà está r.in�a em condições c!e dar a esta.s n�vas pergunta� respostasclaras e cientificamente fundadas. HoJe! nos, ,m.arxistas, �sta•mos colocados diante da tarefa de anahsar teoricamente est�s novos problemas da sociedade e de tentai: encontrar, a partir dêsse trabalho teórico, novos pontos de apmo para fornecer res­postas.

ABENDROTH - Estou de acôrdo com o senhor. Dev�:m�os apenas, me parece, chamar a atenção par� u?1,ª. caracten.sttca dêste processo que torna extremamente mais dif1cd nossa situa­ção. Até aqui, o problema da luta de classes s: co�centravana luta pela mais-valia absoluta, baseava-se na identidade. de interêsse da classe operária em face da luta contra o �apita­lismo· e a transformação do capitalismo numa nova sociedade era p�ra todos um fato de evidência quase imedia!ª·. Na. novasituação, ao que parece, esta identidade não é mais 1m':'1!ª�ª e a formação da consciência de classe torna-se mm�ss'1!1o mais difícil sobretudo em virtude do fato de que a mdus­tria dos be:is de consumo, que manipula a liberdade no cam�oda literatura, por exemplo, conduz a uma per?1a.nente reduça? das potencialidades espirituais da grande maiona da popula­ção. Mesmo sem recorrer à consciência P?lítica dos manage�sdo capitalismo desenvolvido, empenhada diretamente na mani­pulação, o fundamento simplíssimo do fenômeno.ª. '!ue nos re­ferimos está no fato de que o aumento das aqms,çoes �ond�za lucros maiores. A busca do lucro, que. em sua es�ên�ia gmatôda sociedade capitalista, mesmo a sociedade capitab�ta d�­senvolvida, obriga-a continuamente a adartar-se. �o �ais bru­xo nível espiritual possível, para c�egar a �stab�rzaçao, e de­pois a uma posterior redução amda maior dest�. mvel

.._ A

Bild Zeitung de Springer Verlag é um exemplo típico d��e fenômeno. A atividade espiritual acaba, então, por, estabil�­zar-se num nível extremamente baixo e, de fato, o ruvel �p1-ritual das amplas massas é sempre o mais reduzido. A atitude de reflexão que leva à descoberta da necessidade de ref�zer a sociedade pressupõe a autonomia espiritual. Não há d.ú��a de que O trabalhador, no final do século passado e no _m1c10 do nosso século, não estava ainda submetido, em escala tao ampla, à pressão de uma indústria dos bens de consumo.

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.'Êle tinha, por isso, maior possibilidade de pensar de ma­�e�a autônoma do .�ue. tem o trabalhador de hoje. A aqui­s1çao de uma consctencrn de classe era, desta maneira mais fácil . Se, porém, os sindicatos querem existir devem �anter um mínimo resíduo de pensamento de classe'. Devem então compreender que a luta sindical só é possível se é também uma luta cultural e se se transforma, quando necessário também em luta política pela conquista da liberdade cultur�I. Daqui proyé� a interessante tendência presente em todos os países c�p1tahs�as, q�e .leva geralmente o movimento sindical a posi­ç.oes mais ra?17ais do que a dos correspondentes partidos polí­ticos. :&tes ultimos, no passado, defenderam os interêsses dos trabalhadores, mas nesse meio tempo se integraram no sistema degnenerando em instituições que querem dispor das larga� massas para manipulá-las e administrar politicamente o seu po­�en�ial. de votos. Também êles tentam, da mesma forma que amdustna dos bens de consumo, apelar ao nível espiritual mais baixo poss�vel, estabilizá-lo no interêsse da manipulação. Escla­rece-se assim a degenerescência dos partidos socialdemocratas d� socialdemocra�ia alemã,. que deriva não de uma traição ime�drntamente consciente da direção, mas desta situação. Em con­seqüência disso, o problema central se torna o de saber como podemos desenvolver uma consciência crítica dentro de uma situação complexa como esta . Podemos chegar, porém, a uma clareza conceituai sôbre esta complicada situação, não através da experiência imediata dos trabalhadores, mas apenas através de especialistas habituados ao pensamento abstrato . Daí surge um outro problema digno de estudo . Nos países industrial­mente avançados, cresce a importância de verdadeiros e ade­quados movimentos de intelectuais que tentam d�fender a tra­dição_ ct:mocrática e humanista em oposição crítica aos podêresconsht?�dos . do E:st�do, cada vez mais autoritários, e à direçãod� pohttca 1mpenalista e neocolonialista, mas também, e prin­c�p�lmente, em conflito com a manipulação da vida es­pmtual. �os Estados Unidos, êstes movimentos se expressam na rebeliao de estudantes e jovens universitários que vão à luta em favor dos . direitos civis dos negros e contra a políticaÁt é_ adotada �m relação ao Vietnã. Na República Federal

ema, que mmto se aproxima dos Estados Unidos quanto à

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estrutura econômica, os estudantes socialistas, os escritores e os professôres de formação democrática assumiram uma função análoga. Mas a aliança com a única, classe que realmente tem fôrça para mudar a situação, isto é, a aliança com os trabalha­dores, inexistiu inteiramente. Os intelectuais críticos só poderão vir a realizar algo de positivo quando conseguirem novamente mobilizar esta classe, que compreende a grande maioria da P?­pulação, contra a poderosa aliança dos managers da �conom1a com os do Estado. Da solução dêstc problema decidtr-se-á se o chamado "mundo ocidental" terá ou não um futuro huma­no. Poderão, no entanto, os intelectuais críticos resolver êsteproblema? A classe operária dos Estados Unidos e da Repú­blica Federal Alemã está ainda, em grande parte, num estadoletárgico, sua consciência é �anipulada. Enquanto uma es­tagnação ou uma recessão na vida econômica não romper o en­cantamento de uma prosperidade aparente, não terá origemna consciência dos trabalhadores nenhuma disposição espontâ­nea para novas formas de luta de classe,. de luta co':1tra a m�­nipulação espiritual e contra a desumamdade. Os mtelectuats isolados ameaçam, assim, muito freqüentemente, tornarem-se impacientes e se isolarem inteiramente num subjetivismo apa­rentemente radical, antes que análises corretas da situação pos­sam lhes possibilitar a maturidade espiritual ( e q�e muta!ões da situação econômica possam fornecer a oportumdade histó­rica) para poderem ganhar novamente os trabalhadores na bat�­lha em favor das tarefas históricas próprias. Não é possível, pois, chegar-se a uma situaç?-o sem esperanças?

LuKÁcs - Permita-me que comece a responder-lhe, por­que tantas questões se acumularam que se torna muito difícil reagrupá-las. Em geral, não tenho grande encanto pela.s �nalo­gias; existem entretanto certas situações sociais nas quais se repetem fatos conhecidos, se não nos detalhes, com certeza pelo menos nos problemas estratégicos. Num dêsses últimos dias, eu disse que, na minha opinião, o momento no qual nos encon­tramos não nos permite corrigir os prováveis ou efetivos erros dos últimos vinte anos, para depois, então, passarmos a cons­truir alguma coisa. Estamos, ainda, pelo contrário, num ponto de partida muito primitivo, no qual apresentam-se, mutati� mu­tandis, movimentos de rebelião que têm uma certa analogia, do

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pont? de vista s�ial, _com fe�ômcnos A como, por exemplo, oIudd1smo. O que ha aqur de notavel, do angulo teórico? O senhordiz, e c_om todo � direi�o, que a tendência da classe operária àrevoluçao era muito maior no tempo da mais-valia absoluta doque hoje. E é justo. Entretanto, as teorias revolucionárias atéMarx não surgiram, mesmo naquela época, diretamente da lutada classe operária, e Lênin não errou ao constatar retomandoum ponto de vista de Kautsky, que a teoria da rev�lução deveser levada de fora ao movb�1ento_ oper.ár1º· Parece-me que hoje,I_evan�o-se e!11 conta qu_; a s1tuaçao obJettva, sob vários aspectos,e J:?-UI�� mais �esfavoravel do que era no capitalismo anterior,o s1glllfic�do d_este "de fora" é extraordinàriamente mais impor­tante. Nao �;1s�e outra alternativa senão aquela de levar defora a co?sc1enc1a _de classe ao movimento operário, e creio quepara os mtelectuais de hoje, para os radicais, esteja colocadaa grande tarefa de elaborar os princfpios e os métodos (no mo­mento falo de princípios, e não ainda das palavras de ordemque emanarão daqueles). Creio que a estas conservações se devaacres�ntar um outro ponto importante, lalvez ainda hoje �ub­valonzado em virtude de notórios resíduos: precisamente asep:iração entre proletários e trabalhadores de colarinho brancoesta, do ponto de vista econômico objetivo, em vias de desa­parecer. Creio que em relação a êste problema seja interessan­te o fato de que o capitalismo de outrora, o das grandes crises,o das guerras mundiais, tinha uma base cxtraordinàriamentcampla numa camada de possuidores com um patrimônio, diga­mos, de duzentos a setecentos mil marcos. Naquele tempo haviau.�ª. ampla camada de intelectuais, especialmente de univer­sitanos, _que per�encia a esta camada, em virtude' da própriaautonomia matenal decorrente de rendimentos do gênero. Eraest� . �. situa?ão social real da "intelligentzia sem ligaçõessociais teonzada por Mannheim, se a consideramos de umront� de vista econômico. Agora chegamos a uma nova si­�açao segundo a qual, em parte por causa da desvaloriza­!ªº geral da moc?a, em parte por causa do papel cada vez mais1mportante dos intelectuais no capitalismo manipulado, lar­gas camadas renunciam à capitalização de uma renda cempregam A t d" h · · ca es e . m eira na mstrução de seus filhos: assim, esta·. mada de rentiers �stá cm vias de extinção. Não digo que nãoILl1 86

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exi:-ta mais, mas um homem que tinha anteriormente condições de economizar, digamos, quinhentos. mil marcos, acha agora mais importante empregar o conjunto de suas economias,. emparte para o consumo pessoal, em pa�te para os estud_os �ruver­sitários dos filhos. Creio que um efeito colateral mmto impor­tante dessa situação seja o fato de que, com esta mudança, tor­nou-se moda na França o sistema de limitar os nascimentos a um só filho. Naquele país existe hoje um incremento de população muito mais forte do que o que havia_ antes, e talvez isto tenha tido como conseqüência a extinção, já agora na prática, do típico rentier de Maupa�sant. lst? sign�fica q�c, mesmo se hoje êste fenômeno não tem amda mamfestaçoes muito claramente visíveis no ser social, existe um certo parentesco entre trabalhadores assalariados e empregados que vivem do próprio trabalho . No plano econômico, a distinção, que era importante no capitalismo anterior, está desaparecendo ca?a vez mais, e minha firme convicção é a de que o desaparecimento de uma distinção no ser social deve conduzir cedo ou tarde a uma transformação da consciência . Quero apenas lembrar com isto que na estrutura global estão presentes diferenças bastante grandes. Há muito tempo Marx já havia constatado que é necessário um certo valor m�ni

?Io para q�e o cap!tal

financeiro possa ter origem. f:stes hm1tes do capital, porem, estão em constante aumento. Por isso, a questão de se tal ou qual pessoa vive do capital ou do trabalho assalariado, toman­do êstes têrmos no sentido mais amplo possível, assume agora uma forma diferente daciuela que tinha no passado. f:ste estado de coisas 6 também constatado por alguns economistas e soció­logos burgueses, mas está ligado à idéia - que serve,, e_m min�aopinião, a um sonho capitalista - de que os operan?s, estaose transformando em empregados. Creio que se consegmra fazer prevalecer um desenvolvimento alternativo precisamente se 1:ão nos concentramos mais no tempo de trabalho e nas questoes salariais, porém no problema do tempo livre e o otium. Além disso, em primeiro lugar, a distinção objetiva entre empregado e operário se torna, de fato, cada vez menor. Hoje, do ponto .dC' vista, .subjetivo, nem tôdas as conseqüências disso �adem �serpercebidas, mas gostaria de lembrar ainda, em re�açao a este fato, que um desenvolvimento objetivo não pode deixar, a longo

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prazo, de ter conseqüências subjetivas. :Êste é um ponto impor­tante, que �eve fit:ar bem estab�lecido. De um ponto de vista puramente 1deológ1co, poder-se-ia supor uma situação inteira­mente sem _saída se a massa manipulada, compreendendo-se por mas�a �ampulada tant? os operários como os empregados, se se�tisse. mterra�ente feliz no estado de manipulação. Se O capi­talismo con,se�1sse faz�r com que �s pessoas não só compras­sel?- autom�ve1s,. gel�derras e televisões, mas também conse­gwsse torna-!as mteiramente satisfeitas com O modo pelo qual a�ualmente vrve

cm, entã� nada mais poderia ser feito. Mas isso

nao acontece. om efeito, mesmo a literatura não socialista e do�umentos _(relatórios, etc.) mostram como até nas camadas ma:s fa�orec1d�s manifesta-se uma crescente e profunda insatis­façao diante desse otium manipulado. Grande parte da litera­tur� e da arte moderna se esforça por representar esta insatis­faç�o :m f�ce do atual tempo livre manipulado e em face do va21? mtenor da existência humana. A popularidade de um escn�or como Beckett se deve, na minha opinião, ao fato de que ele ;epresenta a total falta de sentido da vida humana como um destmo fatal do homem. Isto mostra, porém por onde se deve começar a pôr em funcionamento a luta contra 'a manipulação do m�ndo. Devemos a�render a nos referir a esta insatisfação exi�tente, nas suas diversas formas . Permita-me uma outra ana­logia com o pasado. Exatamente nos velhos tempos heróicos da �elh� c!asse operária, digamos, no tempo da luta contra as leis anti-socmhstas na Alemanha, havia amplos setores de traba­lha�ores que tinham lido a Garten{aube, tinham ido à Igreja e. nao est�va� absolutamente interessados na luta de classes. Se­na uma, 1�usao pensar que naquele período heróico tôda a clas­s: ope_ran� tomava parte nessa luta heróica. Evidentemente �:� foi �sim. �enso, por isso, que as camadas que ainda hoj;

O 'f!lld Zeltung, e, como uma vez escreveu espirituosamen­te o Spzegel, têm no jardim anõezinhos de pedra não estão certam:nte em condições de preparar, de imedi�to, 0 salto d�s anoes de pedra para a luta contra a manipulação Por isso :"º

c está afastad�, de nenhum modo, a possibilidade de qu�

difuna:,-adas re_Iat1v'.1111ente amplas, entre as quais começa a se

f Ir esta insatisfação, possam se tomar disponíveis·· para

uma arma qualquer de movimento de massas contra a mani-

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pulação. Não posso diz�i: quais s�am estas, �armas. Infel�­mente sou apenas um filosofo e nao um polít1co; temos ho1enecessidade de um Lênin, que tivesse a capacidade de traduzirO estado atual da teoria marxista em· praxis política. Quanto a mim, neste ponto, devo depor as armas: e declarar que êstes problemas estão fora de minha competência. Foi realmente um feliz acontecimento, mas raro, para o movimento operário ter tido, um após outro, homens como Marx, Engels, Lênin, que reuniram em si as duas coisas. Hoje, entretanto, infelizmente todo primeiro secretário de um partido qualquer acredita ser um legítimo sucessor de Marx e de Lênin. Devemos ver com bastante clareza que aquêle foi um caso extraordinàriamente bem sucedido para o movimento operário e que muito dificil­mente se repetirá hoje. Darei um exemplo bastante significa­tivo: acredito que Togliatti tenha sido um dos dirigentes mais bem dotados, em matéria de capacidade tática, que o movi­mento operário gerou. Entretanto, devo dizer que, do ponto de vista teórico, as visões de conjunto que Togliatti nos deu não me parecem uma grande coisa. Togliatti era um tático extra­ordinário, mas não era de maneira nenhuma um Lênin do movi­mento operário atual. Não podemos neste momento citar um nome equivalente ao de Unin. Por outro lado, porém, não po­demos ficar esperando que surja um Lênin; devemos, ao con­trário, tentar, na medida das nossas possibilidades, destrin­char nós mesmos o nó dos nossos problemas. Como primeiro passo, a teoria pode apenas mostrar o que é socialmente e eco­nômicamente nôvo; e me parece que isto já é uma grande coisa. Já êste tipo de considerações mostra que, de fato, a rea-1idade econômica é diversa de como vem apresentada pela eco­nomia burguesa. Em segundo lugar, podem ser tirados dos en­sinamentos da história conseqüências que podemos apro­veitar crlticamente, com boas probabilidades de êxito, para um nôvo movimento . Gostaria de chamar a atenção para a pa­lavra "movimento": hoje em dia, parece-me na verdade ilusória a probabilidade de que num breve período de tempo se forme, em qualquer lugar do Ocidente,. um partido socialista radical. f: importante, então, criar um mov1men!o que coloqu� .permanente­mente estas questões na ordem do dia e que mob1hze contlnua­mente setores cada vez mais amplos para a luta contra a ma­nipulação . Não· se pode excluir a posibilidade de que quem

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hoje lê B�ckett !e transforme amanhã cm alguém que Juta con­tra a mampulaçao . Isto não significa, porém, que devamos olharBeckett como um aliado. Ao contríu-io; e com isso não me refüoà pcss�a ou à _sinceridade_ da arte de Bcckett. A transformaçãodo carater social da marupulação em uma condition humanineé u1?1a _fal�ificaçã�, é uma forma de ideologia que se traduz emaparo a p1�r realidade. Nas fases anteriores do capitalismo, jácsta�a contmuamente presente a tentativa de seus ideólogos nosentido de represe�tar c�mo dado genêricamentc humano aquê­les element�s 9ue 1?1pulsronaram, de um ponto de vista objetiva­mente econom1co, a luta de classes . Refiro-me novamente a umc�emplo; e, quando se fala em alguma coisa que causa dano, ter­mmo .�e�pre por citar Nietzsche. Nietzsche achou que tôda aconsc1encia de classe do proletariado é um ressentimento de es­cravos. � esta ideologia, que conheço bastante bem desde o tem­po de mmha juventude, impediu no passado muitos intelectuaishonestos de aderirem ao movimento operário. Conscientemente êlcs não podiam, com efeito, aprovar cm um homem de mora!clcvad� qualquer ressentimento, qualquer apoio a formas deressentimento. É tarefa nossa romper com obstáculos de tal�ênero. Não no sentido de que devamos mostrar às pessoas ainsensatez da manipulação apenas num plano abstrato; pelocontrário, com nosso apêlo, devemos alcançar as camadasbas�a�te amplas que experimentam, num nível sentimental, umae�pecie de de�co�fôrto, �lguma coisa de desagradável, de opres­sivo �m ::laçao a condição da manipulação. Creio que, a êsserespeito, Ja se possa falar hoje de uma sensibilidade coletiva. Nãosaberia dizer o quanto são amplas estas massas· certamente- . . ' s�� .mmto mais numerosas do que aquelas a que nos temosdmg,do. �t� agora; e permanece de pé, então, a grande tarefade mobiliza-Ias. Quando explode o descontentamento êle se es­tende ': n�ilhões de homens. Tomemos apenas, com; exemplo,a Republica Federal da Alemanha . Lembro-me ainda muitobem do tempo cm que o movimento contra o rearmamento a Ohne-mich-Bewegung, havia empolgado milhões de homens'.Como não recebeu �enhum auxílio interno, diluiu-se em poucotempo . Houve depois, novamente, uma explosão democrática,no tempo do caso do Spiegel, uma explosão que se diluiu damesma forma. A tarefa de um movimento consiste em infundiruma dinâmica permanente à fôrça explosiva dêstes movimentos90

de oposição. Pelo que posso ver, êsse me parece o problemantral: uma fixaçljo dêste gênero só pode ser levada a cabo

�: fonna de um movimento específico. ·�ão 9u�ro dizer que talmovimento deva continuar sem exercer mflu�ncia: Se começo asonhar com a possibilidade de se fundar imediatame�te umquarto partido na Alemanha, caio naturalmente .na utopia e �ailusão. Mas, depois de um certo tempo, o movimento podenatambém conseguir exercer uma influência sôbrc as pesso�s,orientando suas escolhas para certos deputad.os, em algumas cir­cunscrições . Esta não é mais uma ilusão. �ão _esque�a que. naAmérica os grandes partidos, em certas s1tuaçoes, sao obnga­dos freqüentemente a fazer algo no gêne��· . _ _ Penso que decididamente devemos cnttcar as ilusoes e naocontar com a possibilidade de criarmos uma ruptura. num b�e�eespaço de tempo; por outro, lado, não deve'?os ca!r na v1saopessimista segundo a qual e absolutament� imposs1vel. exerc:ruma influência, por menor que seja. Esta fora de d1scussaoque na América existem círculos que estariam di�p�stos a levara escalation no Vietnã até o uso da bomba atom,ca. Mas oscírculos que cultivam estas idéias não ousam apresentar-se aber­tamente· e esta é uma conseqüência do fato de que, neste ter-,

, b rena, já existe um movimento, embora ele permaneça a :m

dizer completamente informal e sem nenhuma coordenaç�o.Existe entretanto, e exerce sua influência, uma certa influência:não p�demos ser metafísicos e exigir �m. "sim" ou _um "não",sem uma certa matização. Trata-se de md1car a movimentos dogênero a perspectiva da luta contra a manipulaç?o, co� a cons­ciência de que não se pode fazer desenvolve; � id,eolog,_a a pa;­tir do interior do movimento, mas, ao contrario, e preciso leva­la do exterior. "Do exterior", porém, não quer dizer que 1:ósnão nos devamos ligar aos problemas concretos em questa_o,desde o momento em que êstes movimentos, estou certo, teraosucesso, ainda que não numa perspectiva de três meses, masnuma perspectiva de algumas décadas.

ABENDROTH - Senhor Lukács, estou de acôrdo com seujuízo estratégico e sua vis.ão de conjunto, �nclusive_ no que serefere às questões econômicas de fundo e as questoes do pro­cesso em seu conjunto. Particularmente, também penso queos intelectuais que têm cultura universitária e !l can:iada sup:­rior de empregados ligada intelectualmente a estes mtelectua1s

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estão na realidade inserindo-se numa situação social corres­pondente àquela da classe operária. LUKÁCS - Sim. ABENDROTH - Devo, neste ponto, fazer uma observaçãocrítica. A contradição que surge dessa situação é, nos doiscasos extremos dos países altamente industrializados em regime de capitalismo desenvolvido, isto é, nos Estados Unidos e naRepública Federal da Alemanha, bem mais acentuada, me pa­rece, do que o senhor imagina. A contradição está no fato deque, em virtude da transformação econômica da qual falamose em conformidade com o ponto de partida das camadas inte­lectuais que estão objetivamente ligadas aos interêsses dos tra­balhadores, apresentam-se cont'inuamente movimentos que em­preendem a luta contra a manipulação fora daquilo que atual­mente é o ponto estratégico central. Mas, por outro lado,mais ainda na República Federal da Alemanha do que nosEstados Unidos, por causa da peculiar tradição social alemã(da qual já falamos), processam-se reações espontâneas, queinfluem sôbre as camadas intelectuais, provocam uma inversãoideológica, criam uma consciência trágica e fazem com que aoposição apareça sem esperança em face de potências espan­tosamente fortes. Cada tentativa falida, cada fracasso de umaação espontânea significa para uma geração inteira, se porbrevidade falamos em têrmos de gerações, a mudança daconsciência trágica cm letargia. Na história da República Fe­deral da Alemanha já temos podido acompanhar muito bem êstefenômeno, precisamente nos acontecimentos da Ohne-mich-Be­wegung e, talvez em medida menos importante, da Anti-Atom­Bewegung. Do ponto de vista puramente ideológico (e sem dara êste têrmo o sentido de ideologia necessàriamente falsa, comofaz a escola de Frankfurt), a luta contra as alienações que de­semboca na consciência trágica e leva, infelizmente, a dire­ções sociológicas que menosprezam a dialética, é um proble­ma central e urgente na luta realmente ideológica contra o pes­simismo e a educação para a inatividade produzidos pela escolade Frankfurt. LUKÁCs - Estou inteiramente de acôrdo e gostaria deacrescentar que isto que indicamos genêricamente como inícioda crise da manipulação explicita-se Obviamente no plano na­cional em formas peculiares, e que êste desenvolvimento assume92

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a inteiramente específica. Exatamente na Alemanh� uma f�r: publicar na editôra Fischer uma P��e por êste !°ºti� �:��ruição da Razão e· escrevi um �-r�fac10 de roeu li�o d A Superação do Passado (Bewalt1gung coro o titulo _e or ue entendo que a grande massa d:>s der Vergangenhe!_l), P_ qpode analisar corretamente a questao· a]emaes nao f · intelectuais _ d to modo nem mesmo pode a enr seusda manipul3Jªº eocir:r a superação do pasado, isto é, se osefeitos se _nao pr enderem que devem repensar seu dcsenvol­alemães n�<:_ co:r�: aconselhando a voltarmos à guerra dos vimento. ao disse Humboldt em seu tempo: qm�ro ape� camponeses, co�do fato de que em 1848, o camml10 foi ese cons1ere o • . ,. - 'umanas �u C mo O senhor disse, esta ideologca trag1ca nao e perd1d�. o cola de Frankfurt, mas é o produto de um dua­invença? da a:s no desenvolvimento alemão, que se ap�ese�t�u!ismo s,.ngul 1848 Vamos dar apenas um exemplo hteraqo. já depms detinuam.cnte nas nossas histórias da literatura, e com Dizemos :_on uc os roblemas apresentados por Hebbel .e1? justa razao, 9 �m Gige e O seu Anel representam o m1-H ode e Marianna e N Com a. er lemática desenvolvida por Ibsen em ora. cio da p:ob a de que Hebbel apresenta êste problema comogrande d1ferenç enêricamente trágico, e por isso permanece umum problema g voltou contra a revolução de 1848, enquan� conservado\�ue

s�o a foi um veículo da liberdade real da mu­la que, em s-;n, dr roblemas portanto é também inerente lher. A êste nuctez d e p d al�mão e de 'tôdas estas questões. uma crítica cultura ºePx::tpl� por assim dizer, periférico, mas D i aqui apenas um ' l · t 1 mão e ' ' t mesmo onde o desenvo v1men o a e êste exemplo mos ra que, ro ressistas está sempre mesclado a apresenta ponto� altos u: �ol!tra o EsÍado, com a aprovaçã� doum conservadoni5m� � 1848 Isto hoje deve ser compreendido, fracass�dii� ri;:�ii�s :ntelecÍuais alemães radicais, _em face �a e na � 1 - Cm se limitado a uma crítica na realidade_ mu!t?evoluçao ª. emba, " l Se o senhor compara o livro tao uttlt'nue muito enevo a. · e '

saio pode ver em mmtos casosde Jaspers com meu pequeno en , t • d adiferen as. Jaspers arrasta consigo, em o a estas -!1�que�:Suns monienlos fatalmente trágicos, conservadores.sua cnttca, g E no entanto o livro de Jaspers é ... ABEfDRO� - muito útil muito útil. Antecipo que a crític;��e c�evem�s· fazer aqui deve ser aplicada também onde 93

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encontramos coisas úteis. Direi mesmo que, com êste ensaio, devemos considerar Jaspers um aliado.

ABENOROTH - Sem dúvida ... LUKÁCS - Entretanto, é justa a tática leninista da qual

me parece que já falamos. Desde 1905, Lênin considerava os socialistas revolucionários como aliados; entretanto, criticou ininterruptamente suas concepções da sociedade, precisamente na perspectiva dialética que um movimento do tipo que agora desejamos deve ter, ou seja, não devemos estar nem cem por cento de acôrdo nem cem por cento em desacôrdo. Isto vale igualmente para a tendência à. tragédia, porque penso que é dis­so que se trata quando digo que fenômenos sociais são aprenta­dos como condição humana. Um movimento contra a manipu­lação deve empreender uma luta intransigente contra esta ten­dência, que compreende um arco que vai desde a ideologia da inelutabilidade da técnica e por isso da inevitabilidade da guer­ra atômica até os nossos sutilísimos problemas éticos. Deve ser elaborada uma linha preliminar ainda puramente teórica que, de um lado, esteja em condições de considerar todos aquêles que se empenham neste movimento como aliados, e, de outro, de criticar êstes aliados de modo conveniente. Assim, podemos formar um núcleo capaz de empreender esta luta ideológica contra a manipulação e, ao mesmo tempo, mobilizar aquelas camadas que, sob forma de um obscuro mal-estar e dos modos mais variados, recusam o presente nos seus aspectos mais essen­ciais, camadas nas quais etá presente o sentimento de que esta felicidade manipulada não é absolutamente uma verdadeira felicidade.

ABENDROTH - Estou inteiramente de acôrdo� também em relação a êste último ponto . :e nossa tarefa desenvolver a partir da análise marxista uma consciência estratégica, e por esta razão, em primeiro lugar, aceitar como aliados aquelas fôrças que confusamente protestam contra a ·manipulação, mesmo partindo de posições ideológicas completamente diferentes das nossas. Em segundo lugar, devemos criticá-las de um modo inteiramente amigável. Coloca-se neste ponto um problema posterior, sôbre O qual tenho, concretamente, uma opinião diferente da de Lênin. O senhor conhece a tese com a qual, parece-me que no volume sôbre o imperialismo, Lênin identifica dei modo bastante acrítico a aristocracia operária com a parte mais bem paga da classe ope-

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rária, parte que teria sido, por assim dizer, a base da irrupção da ideologia burguesa no movimento operário. Nos países da ·Europa Ocidental, a realidade já mostrou outrora um aspectodiferente, e exatamente com relação ao problema da conquista.por parte da classe operária de uma plena consciência. Com efei­to, se nós investigamos concretamente, por exemplo, na situaçãoalemã, que parcela da classe operária começou a luta contra aprimeira guerra mundial, vemos que foram exatamente os operá­rios qualificados e, na verdade, pela razão bastante simplesde que eram também qualificados espiritualmente, sendo por issoos que melhor estavam em condições de desmascarar a aparênciaenganosa da guerra defensiva, da guerra nacional defensiva.Aqui surge o problema de levar uma justa consciência às mas­sas. Para que alguma coisa possa ser "levada" é necessárioum núcleo que seja portador dela. Um núcleo que, na situa­ção concreta da República Federal Alemã, a bem dizer, nãose deixa organizar partidàriamente . Um núcleo que, entretan­to, sabe ser uma unidade: a sua consciência unitária se desen­volve numa discussão permanente e isto significa que êle é umnúcleo organizado .

LUKÁCs - A organização não é, talvez, necessàriamente,algo partidário?

ABENDROTH - Ao contráriô, nós não temos até agoraencontrado as formas concretas; se o senhor preferir, direi queelas ainda são as formas ideológicas normais.

LuKÁcs - Desculpe-me se o interrompo. Até agora, tenhopensado freqüentemente que se poderia até introduzir no mo­vimento uma forma de organização inteiramente reacionária. Osestudantes são muito radicais e, terminados os estudos univer­sitários, se dispersam. Poder-se-ia, talvez, introduzir no mo­vimento estudantil radical alguma coisa semelhante ao que eramuo Alten Herren nas corporações estudantis. Por êste meio, po--·<leríamos, pelo menos, conservar no movimento a elite dos estu­dantes que têm um passado radical

1 Esta é, digamos, uma suges­

tão à qual não ·atribuo importância excessiva e principalmentenão dou significado especial à ·expressão Alten Herren, mas osenhor talvez compreenda ...

ABENDROTH - Na Alemanha, tentamos inclusive realizaresta experiência em analogia com o Sozialistischer DeutscherStudentenbund, que é o mais amplo, mas não o único movimen-

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to de oposição estudantil, embora seja o núcleo mais conscien­te, entre todos os ultra-radicalismos que inevitàvelmente apa­recem e continuamente se reproduzem. Paralelamente a êste SoziaUsticher Deutcher Studentenbund, formamos um Soziali­sticher Bund, como organização lateral, com o resultado de ser­mos expulsos do partido socialdemocrático. Esta forma possui naturalmente os seus limites, o problema ainda não está resol­vido, e, além disso, assim formulado, é um problema específico da Alemanha Federal. Atrás de tudo isto existe, poréin, uma questão que não é apenas nossa: a sociedade da República Fe­deral é na realidade apenas um dos problemas da organiza­ção social do capitalismo tardio. Em outros países, soluções dêste gênero podem ser possíveis e vemos numa série de países a constituição de organismos, inclusive de tipo partidário, com tôdas as contradições com que aparecem necessàriamente ...

LuKÁcs - A possibilidade de um partido se apresenta na França e na Itália de um modo inteiramente diferente do que na Alemanha, na Inglaterra ou nos Estados Unidos.

ABENDROTH - Podemos ver aqui, se quisermos empregar o têrmo policentrismo, falso porque terminolõgicamente con­traditório, a verdadeira face do problema. Isto é, devemos en­c�ntrar as formas concretas, a partir dos dados nacionais, mas nao podemos nos esquecer ...

LuKÁcs - Creio que êste é um fato muito importante. Volto à minha paixão hegeliana pela identidade, já que, por um lado, há um �roblema mundial da manipulação, razão pela qual os traços mais gerais são comuns a todos os países.

ABENDROTH - Porém a verdade é concreta. Lu.KÁc.s - Mas em cada país singular apresentam-se pro­

blemas mte1ramente novos. Tomemos os Estados Unidos: aqui se dcsfêz a ilusão de 1945 de uma marcha triunfal no mundo do american way of life e com ela tôda a política do roll backpelo que hoje, na América, apesar de tôda a sua potência ecO-: .nômica, política e militar, todo o mundo de ilusões derivado da vitória de 45 ficou reduzido a pedaços e devemos nos de­frontar com uma situação inteiramente nova. Alguns jornalistas americanos e alguns senadores como Mansfield, Fullbright, etc. não exp�imem nada mais do que as conseqüências desta pro­funda cnse que, por um lado, tem suas raízes na crise da ma­nipulação, mas que possui, por outro lado, a sua forma espe-

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cificamcnte americana. No momento, não quero aprofundar-me no exame dos pormenores. As formas inglêsas atuais têm suas causas específicas, como também as formas francesas e tôdas as outras.

ABENDROTH - Sim, participo plenamente da opinião de que se deva ver a diferença mas também a unidade da conexão. Uma palavra, ainda, sôbre o problema geral. O senhor disse, com razão, que o movimento operário internacional teve a sorte de ter primeiro um Marx e depois um Unin. Acen­tuou, assim, a função da personalidade na história, função que não deve ser evidentemente subvalorizada. Parece-me, porém, por outro lado, que não se deva tampouco ignorar o fato de que o processo histórico, em ambos os casos, valorizou estas personalidades, se assim quisermos chamá-las, quase post-fes­tum. O Lênin dos anos situados entre o Que Fazer e a revo­lução de 1917 -do ponto de vista do movimento operário inter­nacional de então e de seu nível de consciência - era um entre muitos, era um dirigente discutido ...

LuKÁcs - :é verdade, só que naquele tempo certas coisas sôbre Lênin não foram compreendidas, mas se tivessem sido teriam sido bastante úteis. Isto é, penso que a tática leninista, que consiste em "aliança + crítica", teria sido extraordinària­mente útil para o partido socialista francês no tempo do caso Dreyfus, época em que ocorreu uma falsa polarização que cau­sou bastante dano à fôrça de penetração do partido.

ABENDROTH - Sôbrc os anos que se seguiram, existe agora, além do mais, uma nova, pesquisa, um ensaio de Czempliel que acredito que seja muito interesante, mesmo para o senhor. Mas sua observação também é válida para o movimento ope­rário alemão e na realidade para todo o movimento operário. Entretanto, não subsiste o mínimo fundamento para cultivar o pessimismo só porque, como disse o senhor, não vemos oLênin de hoje. Devemos, porém, levar em conta um problemaestratégico e creio que se trate de um problema geral, mesmofora da República Federal da Alemanha: isto é, em nenhumpaís de capitalismo desenvolvido foi resolvido o problema dacomunicação entre o movimento operário do velho estilo e omovimento sindical, bem como todos aquêles humores inte­lectuais que têm por alvo a manipulação e que confluem nosmovimentos sem ter encontrado um fator próprio de estabili-

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.... , ....

zação. Sem comunicação com as grandes organizações dos tra­balhadores, as massas não têm a fôrça necessária para se faze­rem valer.

LUKÁCs - Justíssimo. Gostaria apenas de voltar à ques­tão colocada por Lênin, exatamente quando propõe um pro­ble'11a organizativo de tipo inteiramente nôvo, problema que adquire uma atualidade crescente no capitalismo, tão logo uma tendência demostra representar não interêsses capitalistas sin­gulares, mas o capitalismo em seu conjunto. Penso naquilo que no Ocidente se costuma indicar com a expressão brains trust.Kennedy sabia bem que não era um teórico ou um cientista mas, ao contrário do que sucede na Europa e principalmente na Alemanha, não identificou o expert com o alto burocrata. Sabia de fato que dêste gênero de especialistas burocráticos não podia receber substancialmente nada, e que ao invés deveria fazer uma seleção de intelectuais e de teóricos, independente­mente do fato de que os tenha escolhido mal ou bem, coisa que aqui não nos interessa. l::stes teóricos não devem fazer mais do que empregar seu saber e sua reflexão na investigação de pro­blemas gerais; dêste material, o político retira depois as pala­vras de ordem para o movimento. Ora, acredito que a consi­deração particular do caso de Marx e de Lênin nos países socia­listas os tenha levado à fantástica supervalorização das virtudes teóricas dos primeiros secretários dos diversos partidos. Por exemplo: Rakosi, que entre nós se apresentava como herdeiro de Lênin, tinha traços bastante cômicos.

ABENDROTH - Mas também, infelizmente, muitos traços trágicos ...

LuKÁCs - Sim, com relação a êste problema há também um importante problema organizativo, também para o movimen­to operário futuro . Se não podemos esperar que o grande líder político, que pode ser também um político importante (basta. pensar numa figura como a de Togliatti), seja também um gran­de teórico, há então necessidade de introduzir uma forma nova no movimento radical e no movimento operário. Por isso, uso o têrmo brains trust; sem dar excessiva importância à palavra,quero apenas dizer que com isto aparece um nôvo princípio.organizativo que consiste numa duplicidade e numa colabora­ção entre teoria e praxis política. Do momento em que elas nãoestão mais unidas na mesma pessoa, ou que isso só possa aconte-

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cer de maneira inteiramente casual ( também por causa da extra­ordinária extensão das tarefas atuais), a questão só pode ser resolvida através dessa forma dúplice. �atnos outra v�e� o exem­plo de Lênin. No início da década de vmte, o que Lem? conhe­cia do moviemnto colonial bastava amplame�te para .fixar c':r­retamente as posições que os partidos comu�1stas devta?1 ent�o assumir na propaganda em relação ao movimento anticoloma­Jista. Hoje, quando na luta de libert�ção se apresentam pro­blemas políticos e econômicos específicos para cada pequeno país, seja êle Gana, Zâmbia ou qualquer outro, não há um só indivíduo, mesmo que fôsse da estatura de um Marx, ou de um Lênin capaz de dominar todos êsses problemas. Deve com­preender �gora porque dou ta.nta. importânc!a ao pr,oblema d�s brains trust como forma orgamzattva. Gostana tambem de subli­nhar o fato de que, se há uma camada inadaptada para esta tarefa esta é exatamente a da burocracia de Estado ou das organÍzações dos operários. Exatamente porque estão habitua­das à manipulação, estas entidades não consegu:m, , .no momento, considerar de modo imparcial e c1entíf1co tudo aquilo que não está sujeito à manipulação. Para o aspecto intelectual daquele I?ovimeAnt� que os tra�alhado�esdesejam isso tem uma enorme 1mportancta. �ste m�v1?;ento m­telectual pode, por um lado, ser � pon!o de trrup.çao do e:xt:­rior" do nôvo movimento revoluc1onár10 no movimento opera­ria; por outro lado, pode formar um am�lo pessoal para . obrains trust, enquanto que atualmente º. brams trust pode exis­tir apenas se alguém, por·conta própna, es.creve al�um Abo?Ilivro sôbre o Egito ou a Síria, e�er�endo assim. un1:a 1�fluenc1aindireta sôbre a política anticolomamsta do partido mgles ?u do partido francês. Não sei se o senhor repara que para mim os intelectuais têm hoje diante dêles uma grande tarefa. E, A se. onosso movimento começa a compreender que uma polem1c.a justa, suponhamos, contra . � !eoria manipuladora do conhec1-mento, típica do neopos1t1v1smo, pod.� A s:r alg?. que nospróximos vinte anos terá grandes consequencias poht!cas, pod:­remos conduzir uma parte - a melhor parte. - dos mtel:c�uais para fora do academicismo. Quero me refenr ao academ1c1smo do qual O senhor falava quando disse, com muita razão, 9-ue a escola de Frankfurt gera um tipo interessante de academicismo; se assim me posso expressar, um academicismo de oposição.

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ABENDROTH - Não gostaria de ser mal interpretado; pen­so que talvez para os jovens intelectuais da República Federal da Alemanha, apesar de tôda a sua contraditoriedade ...

Lurdes - Contraditoriedade no sentido de que aqui se pode aprender alguma coisa, mas se se quer realmente apren­der é preciso romper com a escola de Frankfurt.

ABENDROTH - Sim. Entretanto, no início dos estudos uni­versitários, com muita freqüência, se vai a Frankfurt. Para tôda uma geração de estudantes socialistas, Frankfurt foi uma etapa de transição, uma das mais importantes. _ LuKÃcs - E: certo e não vou negá-lo; além do mais, hoje

nao me desagrada ter aprendido os primeiros elementos das ciên:ias S?Ciais c?m �immel e M�x �eber e não com Kautsky. E nao se1 se hoJe nao se poderia dizer que para minha evo­lução essa foi uma circunstância favorável.

ABENDROTH - Sim, mas não devemos esquecer que· para � senhor foi decisivo o último Kautsky. E o primeiro Kautsky trnha urna posição ainda mais vigorosa.

LUKÁCs - Está certo, não tenho qualquer intenção de fazer de minha biografia uma lei geral de desenvolvimeD.to. Quero apenas confirmar o que o senhor disse, isto é, que os es­tudantes passam os primeiros anos em Frankfurt e depois de­

vem afastar-se dela. ABENDR,?:'H - Estou inteiramente de acôrdo, mas o pro­

blema estrateg,co permanece. A sua idéia do brains trust é também na minha opinião, um dos tênnos decisivos do proble� ma, e talvez pensemos do mesmo modo em relação às fôrças progress�st�s socialistas d� Alemanha Federal. Mas para nós, na Republ!c� �ederal, . ha uma enorme dificuldade, que não ocorre em 1dentica medida nos outros países do mundo ociden­tal, onde existem movimentos operários que realmente funcio­nam. E não citarei apenas o partido comunista italiano, ou mes­m�, apesar de certas contradições, o francês; mas também se se quiser, o partido socialista popular dinamarquês e outros 'seme­lha�tes. Na Alemanha, pelo contrário, se fôssem formados êsses brams trus�, não poderíamos, num primeiro tempo, fazer mais do _que co�1�har na própria panela, enquanto o problema estra­t�gico dec1S1vo !eria de pôr um brains trust que se formasse, digamos, espontaneamente, em comunicação com as organiza-100

ções dos trabalhadores que sempre existiram, isto é, com os sindicatos.

LuKÁcs - Sou do parecer de que, s� na Alemanha surge um movimento dêste gênero, êle não deve se esquecer de liqui­dar espiritualmente a velha Alemanha, compreendida na velha Alemanha a socialdemocracia que dela faz parte. Parece-me que na Alemanha existe uma ininterrupta crítica ao comunis­mo, mas que pouco se tenha dito a respeito da problemática da socialdemocracia alemã anterior à 1914 e seus precedentes, que geraram (e não foi por acaso) a guerra de 14.

ABENDROTH - Não porém tão pouco quanto o senhor pensa. Na realidade até me�mo os i�tele:_tuais bur?ueses come­çam hoje a saber alguma c01sa a mais a este respeito. . . é ver­dade que começam por um estudo puramente positivista dos do­cumentos. Penso em Fritz Fischer e em sua história ...

LUKÁCS - Sim, êle é um antecipador e mostra que nos movemos num terreno real, que absolutamente não inventamos uma falsa ideologia qualquer da velha socialdemocracia, e que, ao contrário, existe um movimento real. Penso, porém, que devemos chamar a atenção - e procuro sempre fazê-lo - pa­ra o fato de que, na crítica do programa de Erfurt de 1890, Engels já havia visto e criticado com muita agudeza esta situa­ção, quando dizia que no meio do socialismo teria crescido a "vigorosa, piedosa, alegre e livre" sujeira.' Assim, Engels. equ_a­cionou êste problema já em 1890 e, se procuramos uma hgaçao com o movimento operário, é preciso ter continuamente pre­sente esta problemática.

ABENDROTH - Sim, ma·s com a nossa idéia do brains trustenfocamos, a bem dizer, apenas o programa estratégic� ge�al; ainda não encontramos, porém, uma solução. Porque aqut existe ainda um outro obstáculo, que se coloca do modo mais agudo e constitui, por assim ·dizer, um problem_a sério na situação da República Federal, mas que também _ ex,�t� de modo paral�lo, mesmo se se manifesta de forma mais deb1l, nos outros paises capitalistas europeus. Com justeza, o senhor há pouco chamou a atenção para O sentimento anticomunista, que na verdade está em retrocesso, mas que ainda permanece dominante e central na Re-1 Frisch fromm, frl:Jhlich, frei; eram as palavras de ordem das as�

sociaçÕes ginásticas alemãs da época, irônicament.e retomadas por Engels a propósito da "sujeira." soclaldemocrata.

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pública Federal da Alemanha. Não se deve esquecer, com re­lação a êste problema, que os aspectos negativos da ditadura stalinista, que degenerou numa barbárie brutal, agiram forte­mente. sôbre a situação do movimento operário dos países capi­talistas e tiveram naturalmente um efeito ainda maior na Re­pública Federal, por coexistirem, um ao lado do outro, os dois Estados alemães. Esta situação constitui um problema material que concerne às grandes massas do movimento operário alemão e também aos intelectuais que trabalham nas universidades . Em resumo, o problema é o seguinte: através do mecanismo da re­construção e da conjuntura ( e do desenvolvimento sindical, não absolutamente por concessão voluntária dos capitalistas) pôde ser oferecido aos trabalhadores das diversas categorias da Re­pública Federal, apesar de tôdas as diferenças entre as diversas camadas, um nível de vida imensamente superior àquele que desfrutavam os grupos correspondentes na República Demo­crática. �ste é um problema que se vai atenuando, mas que ainda não está resolvido, se bem que esteja perdendo terreno desde o momento em que a República Democrática Alemã se beneficia de um nôvo impulso econômico. Por parte dos capi­talistas êste problema foi, naturalmente, transformado em ideo­logia, falsa, porém eficaz; serviu para que se invocasse a pre­tensa superioridade da economia capitalista sôbre a economia socialista, sem levar em consideração as mediações concretas históricas dêste problema na Alemanha. Combater esta situa­ção é uma das nossas tarefas ideológicas.

LUKÁCS - Sim, e gostaria ainda de tornar a sublinhar, com relação ao que foi dito, o imenso significado que poderia ter para os países capitalistas a liqüidação real do stalinismo nos países socialistas.

O que houve até agora foi o início do processo - para dizê-lo de um modo brusco - de desaparecimento do ·stalinismo na forma do stalinismo. Eu digo sempre que, por ora, devemos destruir o stalinismo nas suas formas stalinistas e que, depois, então, seguir-se-á uma destruição. real se rompermos radical­mente com os métodos stalinistas. Gostaria apenas de acres­centar que também êste é um processo para o qual não chama­mos suficientemente a atenção. Tomemos dois exemplos: a po­lícia política como Estado dentro do Estado foi liquidada na União Soviética em 1953 e Beria precisou ser executado para

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que esta liquidação pudesse seguir seu cur�o. Em 1966, �a Iugoslávia, Rankovic foi simplesmente remov1�0 e _a, a.uto'!_omia de sua organização foi anulada. Só qu�ndo este !01�10 for le­vado adiante com energia em todos os Estados sociahstas é que poderemos falar de uma verdadeira liquidação do stalinismo sob êsse aspecto. Evidentemente, deve-se obf�rvar que! mesmo no Ocidente, a organização secreta da policia tem s1_do b�s­tante tolerada como Estado dentro do Estado; chega mclus1vea ser exaltado, nos filmes policiais, o Estado dentro do Estad_odos Estados Unidos, e êste fenômeno me parece que sob mm­tos aspectos está se ampliando; a polícia política dos EUA não tem a potência, digamos, da NKYD no tempo �os process�s de Moscou, nos anos 30, mas muitos fatos. ocorndos na_ Ame­rica do Sul, como, por exemplo, os acontecimento� de Sao Do­mingos, são empreendimentos autônomos dos Serviços Secret�s, assim como os grandes processos foram o produto de uma açao autônoma das organizações secretas stalinistas ...

ABENDROTH - E podemos dizer que, em São Domingos, se bem que em escala reduzida, foi cometido, pelo menos, um ato de barbárie igual ...

LUKÁCS - Sim; e diga-se de passagem que, no probl�ma da luta contra a manipulação, não se trata apenas da mampu­lação dos consumos, mas também da forma d� manipulaçã� _ da política pela qual, por exemplo, a democratic1dade -�ª pohttca externa dos Estados Unidos se transforma frequentemente numa política antidemocrática. Podemos ver isso muito bem na questão de Cuba, no tempo de Kennedy, que ap�sa� d� tud_o travou uma batalha ininterrupta contra as intromtssoes ilegais dos Serviços Secretos, ao passo que hoje sua influência e a d_a burocracia militar no regime de Johnson cresceram extraordt­nàriamente. Aqui se pode ver como o problema da manipu­lação opera também no terreno da grande política. <:reio! aêste respeito, que os intelectuais ocidentais tenham nao s�� atarefa de continuar a tradição de luta contra a NKVD na Umao Soviética à maneira de ·Kõstler, para falar de um modo esque­mático �as também a de demonstrar que o fenômeno não existe apenas' nessa forma, mas, em outras formas, exis_te também emoutros países. Que êste sistema não se tenha amda desenvol­vido a tal ponto na Alemanha Federal é coisa que tem depen-

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dido, em parte, de certas explosões da opm1ao pública. Creioque se a opinião pública não se tivesse manifestado ao tempo�o caso do Spieg:I e ?ão tivesse levado à queda de Strauss, poB­t1camente ter-se-ia tido na Alemanha um sistema macartistamoderado. ABENDROTH - Acho que não teria sido assim tão mode­rado . ..

. 1:-,UKÁCS - Creio, e acho que o senhor me entende, quesena 1mpo�tante chamar a atenção para alguns traços do siste­ma da ma�ipulação e para os perigos que daí podem surgir, Che­g�mos assim .ª algumas conseqüências que se relacionam tam­bem com a vida em geral na República Federal da Alemanha.Pens� agora, por exemplo,. em uma questão que só conheçoatr��es de .c�rtos casos particulares e sôbre a qual não posso emit�r ?m JUJZo comp�eto . Faço alusão à praxis judiciária naRepubhca Federal. Ah se faz um· fetiche do veredito de umj�i� .e da p_erícia de um especialista, pelo que se torna muitodificd a revisão de um julgamento evidentemente injusto. Creioque o senhor conhece muito bem esta matéria, com certeza me­l�o: do que eu. Tenho, porém, a impressão de que sení neces­sano travar à u�a bata�ha �ontra êste tipo de comportamento.Em sua essencia, ela e hoJe travada apenas pelo Spiegel, pelomenos em certos casos e nem sempre extraindo dêles as conse­qüências �ece!sá:ias .. Por exemplo, toquemos aqui num pontoque tem hgaç�o imediata com a vida de tantos homens. O se­nhor tem aqm um problema destinado a suscitar movimentosde massa; �ão. ��r. acas�, na sociedade burguesa, já no pas­sado, erros 1ud1cmnos evidentes foram a causa de movimentosde massa: basta pensar no caso Dreyfus como o caso mais cla­moroso. Temos um exemplo literário da eficácia· de um movi­mento dê�te gênero no i:omance de Arnold Zweig sôbre o sar­g:nto Grncha, que no fmal das contas me parece útil e bom;nele chegamos de modo mais do que evidente a um juízo sôbrecertos aspectos do aparato administrativo alemão, Creio que para uma melhor conscientização dos aspectos apenas aparente�m_ente democráticos da República Federal da Alemanha, tam­be� possam ser úteis as análises de certos vereditos, recusas derevisa_o de P;?cessos, etc., mas do que as digressões sôbre asquestoes �ohtt7as; e .tenho a impressão de que na RepúblicaFederal ha mmto mais podridões e erros do que nos dizem os104

·ornais ou do que seja do conhecimento da opinião pública. Não!ei sua opinião a êste respeito. . .

ABENDROTH - Concordo inteiramente com o senhor; everdade que acontecem mesmo muitas coisas erradas, coisas q�emuitas vêzes nem chegam ao público. O s�nhor sab� que o pn­meiro elemento a incentivar a crítica foi proporctonado pe­los processos políticos, mas verosslmilmente poderíamos tornarmais evidente o problema para as massas se outros processosfôssem também compreendidos. Aqui, porém, se coloca umproblema bastante geral que me parece ser importante I_11esmofora da República Federal da Alemanha, um. problema impor­tante para tôdas as sociedades d? ?lesmo �1po. ? problema,em suma, de que a defesa, na ma10na das vezes, e apenas for­malmente democrática. O ponto decisivo é o de passar do usodos instrumentos defensivos do direito democrático, P!incipal­mente do direito democrático-burguês, à ação ofensiva con­tra a manipulação.

LuKÁcs - Estou inteiramente de acôrdo. Gostaria ape­nas de sublinhar a característica especificamente alemã de queO especialista nomeado pelo juiz para fornecer uma p�rícia �e­presenta, desde o início, a autoridade do �stad? e nao em!teum parecer científico sôbre o qual se possa d1scut1r; nasce assimuma decisão autoritfüia; e quem protesta contra_ ela apare:elogo como um mau cidadão. Não sei, ten�o)éss1ma m:_mónapara nomes, mas em algum lugar da Re�ama_ houve, nao fazmuito tempo, um processo contra um c1dadao, que se�u�docreio tinha fama de ser. um desordeiro. :Êsse homem fm sim­plesmente encerrado num manicômio por um certo_ tempo porestar implicado em um caso de mor!e; soube-.s: mais tard7 queas autoridades tinham conduzido murto superficialmente a mves­tigação sôbre o delito. Direi que é um fenômeno tipicamentealemão de autoritarismo por parte do Estado o fato de que umprocurador ou um juiz que erra, apesar de tudo, continue arepresentar mesmo nos seus. erros o ca!áter sagrado do Es�ad?,O caráter sagrado da auto�1dade; e Aex1ste. uma ce_rta t�ndenc1ano sentido de encobrir fenomenos deste genero, nao deixar queêles chenuem ao conhecimento público. Creio que, na Alema­nha um0 movimento contra a manipualção possa desempenharum 'grande papel neste terreno, �ois se t�ata de pr�blemas fl:OSquais todos estão interessados. Nao acredito que a este respeito

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sejam mais interessantes os casos singulares do que o desmas­carame�to do modo de proceder do aparato judiciário. Isto é,que.ro dizer que o terreno da luta contra a manipulação é muitomais amplo do que se pode perceber à primeira vista. ABENDROTH - Estou inteiramente de acôrdo com O se­nhor. tCreio �orém que não se trata de um problema especifi­camen,e a!emao, se bem que se apresente de modo particular­i:11entc agudo na, �!emanha, por duas razões: a tradição do pen­samento esta�ol�t�1�<:>, de um la�o, e ayermanência dos quadrosdo aparelho Jud1ciano do Terceuo Re,ch na República Federal de outro. Mas êssc tipo de problema existe em tôdas as sacie�dades burguesas. , . LUKÁCs - Disto estou plenamente convencido, mas nãoe evidentemente por acaso que o maior escândalo dêste oênerotenha explodido no caso Dreyfus, na França, enquanto"' estoucerto de que na Alemanha daquele tempo aconteceram vintecasos Dreyfus, mas ninguém se preocupou com isso. O caso�reyfus é, por assim dizer, um caso generalizável, mas a eclo­sao do caso Dreyfus evidencia a diferença entre a França e aAlemanha. , ABENDROTH - Pense na situação dos Estados Unidos;la, no� grandes processos sôbre questões dêste gênero, accntua­se mais fortemen�e o aspecto político imediato; temos entãoproblemas em tudo semelhantes, sem que porém tenhamos che­gado a a!gum resultado através de movimentos de oposição. LUKACS - Não contesto êste fato, evidentemente. Creioapenas que não devemos limitar o terreno da luta contra a ma nipulação ao problema do tempo livre em sentido do estrito

­nem reduzir a manipulação Uniçamente ao plano econômico'.Dev:mos, _ao contrário, darmo-nos conta de que a técnica da mampulaçao - que em parte já é uma herança dos temposprecedentes e só recebeu, agora, uma forma nova - invaderea�mente a totalidade da vida de cada indivíduo; e por isto,enta?, nasce o problema de atingirmos o mais ràpidamentepassivei as camadas sociais nas quais já se manifestam umacerta insatisfação e um certo mal-estar. ABENDROTH - Mas a êste respeito permanece um proble­ma !undamental ( e agrada-me que cheguemos às mesmas con­cl_usoes); na l��a contra a estrutura social do capitalismo tar­d10, esta em Jogo a defesa e a construção dos direitos do106

1 indivíduo como singularidade, enquanto garantia de defesa dosingular, isto é, de direitos democráticos. E aqui aparece nova­mente o problema geral: é preciso compreender que, apesar dalegalidade do Estado burguês capitalista enquanto legalidadedemocrática revelar-se amplamente manipulada, a construção,a ampliação e o impulso sôbre a base dêsses direitos democrá­ticos pode, eventualmente, se tornar, mesmo no Estado burguês,O ponto de virada imediato para a transformação da socie­dade burguesa cm sociedade socialista. E isto também pelo fatode que a sociedade burguesa, a sociedade capitalista, mesmoaquela do capitalismo tardio, concede decerto os direitos indi­viduais para usá-los como meios de integração dos indivíduosem seu próprio proveito, mas depois, com o aguçamento de taisproblemas, não só torna tais direitos inoperantes, ao manipu\á­los, mas chega mesmo a anulá-los quando a situação se tornaséria.

LuKÁcs - Sim, êste é um problema que surge continua­mente também da liqüidação do stalinismo; ou seja, o problemada distinção entre situações revolucionárias e situações que ex­primem uma sociedade consolidada. Não há dúvida de que,para uma situação revolucionária, é válida a frase pronunciadaem certa ocasião por Lênin contra Gór.ki; quando êste se lamen­tava de uma injustiça ocorrida em um lugar qualquer da pro­víncia, Lênin lhe dissera, rindo: "Quando há uma briga numrestaurante, como fazer para distinguir quais os tapas neces­sários e quais os que não o são?" Pode soar como um pensa­mento um pouco cínico, mas creio que Lênin não pretendeusê-lo. Quando se trata de uma luta de vida ou de morte, emque está em jôgo a existência ou o aniquilamento, certas coisasaue numa situacão normal são absolutamente necessárias, comoâ forma legal dÔ Habeas-corf}us na Inglaterra, podem ser cons­cientemente postas de lado por uma classe que luta por suaexistência. Porém é um outro caso que Stalin os tenha pôsto delado num período no qual isso não era necessário . Os trotskis­tas e os bukharinistas já estavam politicamente eliminados quan­do começaram os grandes processos e a êstes processos poder­se-ia aplicar a frase de Talleyrand: é mais do que um crime, éum êrro. No momento, estamos numa situação relativamenteestável e por isso é plenamente válido o que o senhor disse.Devemos apenas compreender que, àbviamente, quando surge

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um perigo para a vida, as situações mudam. A tarefa dêste mo­vimento contra a manipulação deve, no momento, ser subli­nhada com ênfase, tanto mais que a burguesia, principalmente a alemã, mas também a americana, usando a palavra de ordem "A pátria está em perigo", tende a transformar situações nas quais a pátria não corre perigo algum em períodos de opressão. Antes, quando eu falava da praxis jurídica, é preciso notar que não se trata tanto de estabelecer a maneira pela qual os fatos se desenvolveram, realmente, como de experimentar a firmeza da autoridade da côrte. Aqui, aparecem novamente problemas com os quais, através de um tratamento histõricamente concre­to, podemos nos aproximar dos problemas gerais dos homens ...

ABENDROTH - ... sim, e com isso se torna mais clara para nós a atualidade na República Federal de hoje (mas os proble­mas, de modo paralelo, se manifestem em tôda uma série de outros Estados) da luta pela defesa da lei constitucional contra as leis de emergência. NeSta luta poder-se-ia criar com sucesso uma ampla frente única.

LUKÁCS - Na realidade, a existência destas leis não é mais do que a preparação jurídica da completa supressão dos direi­tos e das liberdades democráticas almejada pela burguesia. Sim, não esqueça um traço muito importante do desenvolvimen­to ·alemão: Bismark assimilou muito hàbilmente certas formas democráticas do Ocidente ...

ABENDROTH - O próprio direito de voto de 1867 para o Reichstag da Alemanha Setentrional ...

LuKÁcs - ... o próprio direito de voto, mas o fêz de modo com que na Alemanha estas formas permanecessem intei­ramente ineficazes. Voltemos agora ao aspecto principal da questão, isto é, ao fato de que se trata de lutar por Uma demo­cracia efetiva e não apenas por uma democracia fictlcia. De fato, hoje, em todo o mundo, poderíamos dizer que reina uma democracia fictícia . Mesmo na época stalinista havia no papel um misterioso direito de voto e mais uma série de coisas . Hoje, uma palavra de ordem eficaz e um ponto de união de tôdas as fô�ças deve ser a transformação da democracia fictícia, que existe em todos os lugares, em uma democracia efetiva.

ABENDROTH - Justo! E aqui está novamente colocada con­cretamente para a República Federal a necessidade de ligar a nossa luta em defesa da Constituição e contra a lei de emer-

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· gência com a luta si:1dical pela part�cipação. nas deci!õ� e co�a luta pela ampliaçao da democracia na vida economtca. Evi­dentemente, e as duas coisas estão ligadas.e é tarefa nossa trazê ­las a um mesmo denominador, formando, por êste caminho,um núcleo que torne estável a ligação entre o problema relati­vamente popular da defesa da lei constitucional, o problemageral da democratização da sociedade e, junto a isto, o da tran­sição para o socialismo.

LuKÁcs - Sim, veja agora em que tênnos estão coloca­das as coisas: uma democracia efetiva só pode ser defendidaem casos concretos. De fato, com a palavra de ordem geral da"democracia efetiva" todos estarão de acôrdo: de Adenauer aWehner, não creio que exista alguém que afirme claramentequerer abolir a democracia efetiva. Poderiam até dizer que que­rem salvar a democracia efetiva mediante leis de emergência.Dêste modo a questão não está na palavra de ordem, porém nomostrar esta contradição na vida de cada homem.

ABENDROTH - Aqui também aparece um outro lado doproblema. Na realidade, esta luta pela transformação da demo­cracia fictícia, gerada, ao que parece pela sociedade burguesa,numa democracia efetiva, que torne vivos os direitos demo.cráticos para todos e emancipe as massas, também cultural­mente, tornado-as assim capazes de autogovêrno, não é nadamais que a luta pela transformação das formas sociais do capi­talismo superdesenvolvido em relações de tipo socialista.

LuKÁcs - Certo. E aqui encontramos um problema inte­ressante, que a ciência soei� pode ajudar muito a esclarecer.De fato, na minha opinião, a Revolução Francesa introduziu ocontraste entre sociedade liberal-capitalista e sociedade demo­crática que antes podia ser apenas pressentido. No início deséculo '.xix, revela-se que o ideal da burguesia, o capitalismo li·beral, estava cada vez mais ameaçado pela democracia; e se di­fundiu um pessimismo que bem pode ser estudado em teóricosimportantes como Tocqueville e John Stuart Mill. Do outrolado - e isto na minha opinião tem um significado internacio­nal - surge a crítica democrática russa: Bielinski, Tcherni­cheviski e Dobroliubov. :SStes representaram com grande fôrçaa alternativa democrática. Atualmente, esta batalha, em certosentido, perdeu seu caráter agudo. A socialdemocracia sustentoude modo interamente insuficiente, no plano prático, a neces-

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s1dade de uma democracia real como pressuposto do socialis­mo; S?b êsse p�nto �e vi�ta, creio que o lado positivo da in­fluencia de Jaures seja hoJe subvalorizado. Com o desenvolvi­men!o da _:'Ociologia m_oderna torna-se possível uma técnica da�tamp�laçao em seus diversos aspectos e uma reconciliação entrehber�lism<: e democracia na ideologia burguesa sôbre a base da mampulaça?. Esta reconciliação desaparece no momento em que a democracia cessa de ser uma democracia manipulada. E creio que a êste propósito uma visão histôricamente correta do proble­ma. em, �elação com as lutas de classe do século XIX possa sermmto utd para convencer certos setores de intelectuais. Devemos destruir o desprêzo pelo século XIX, que estêve muito em moda por um longo período. Marx também pertence a êste século e sem uma história do século XIX as nossas questões ficam s�s­pensas no_.,,ar .. Se dissermos que a manipulação apareceuem consequencta do desenvolvimento técnico, então, para com­bater a . manipulação, deveremos nos transformar numa espécie?e !ud�1stas em luta contra o desenvolvimento técnico . Se, aomv� disso, vemos que êste desenvolvimento representa a con­c1usao de uma grande evolução global da sociedade, evolução que tem como pontos de partida as contradições da Revolução :'rancesa, chegamos a uma posição completamente diversa sôbre este problema. Um tratamento dêste tipo do movimento social e da história das ciências sociais constituiria uma tarefa muito importante.

A��r:1DROTH -. Sim. Não é por acaso que as tendências neoposJt1v1stas da soc10Jogia, bem como as correntes paralelas em economia, são hoje utilizadas para desistoricizar e portanto para ocultar os verdadeiros problemas. . .

' '

LUKÁcs: - óbviamente! ABENDROTH - :este é o aspecto metodológico do proble­

ma . Estou ple�amente de acôrdo com o senhor quanto ao fato de que esta seJa uma das nossas tarefas principais como cien­t!stas e como mediadores entre o resultado do trabalho cientí­f1�0 e sua �plicação à sociedade. Porém o problema tem tam­be� um aspecto de atualidade política . O bárbaro atraso da s _oc1e�ade russa antes da grande revolução fêz com que a re­voluça? russa atra_v�ssasse, e não por acaso durante o primei­ro pen?do do stahms�o2 uma _fa�e certamente evitável, porémdetermmada por cond1çoes ob1et1vas, determinada pela neces-

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;,., . .,._,

sidade de resolver o problema da acumulação primitiva .!.em o capitalismo.

LUKÁCS - No essencial, estou. de acôrdo com o que o senhor disse. Permanece, porém, uma questão: independente­mente do fato de que a liquidação do stalinismo ajudará, em parte, os movimentos revolucionários eruropeus e americanos, originou-se a partir daquela base uma deformação teórica. Por isso, os movimentos marxistas ocidentais devem esclarecer cor­retamente êste estado de coisas, do ponto de vista teórico e histórico; de fato, com mínimos retoques, já se estava antes em condições de deformar completamente os problemas. Permita­me extrair um pequeno exemplo da praxis de Marx. Marx cri­ticou James Mill. Em certa medida, Mill tinha visto na troca o movimento elementar do capitalismo, e, tomando a fórmula M-D como fórmula isolada, daí extraía a correta conclusão de que tôda compra é uma venda e vice-versa, e que então deve haver necessàriamente uma harmonia entre compra e venda. Polemizando contra êle, Marx pôs no lugar do M-D um M-D-M, esclarecendo a desagradável conclusão de que se alguém recebe dinheiro por uma mercadoria, daí não se depreende necessària­mente que deva comprar uma outra mercadoria. M-D dá lugar, então, a uma conclusão na forma da identidade; M-D-M dá lugar a uma conclusão dialética. Ora, êste é um exemplo pura­mente metodológico. Estou convenpido de que, se empreen­dermos uma análise real das verdades atuais, consideradas como "estabelecidas", sejam elas de natureza sociológica ou eco­nômica, etc., chegaremos a um série completa de fatos, aos quais pode, mutais mutandis, sêr aplicado êste esquema. Um movimen­to capaz de fundamentar as tarefas práticas, tal como nós dois as entendemos, tem um grande trabalho teórico a desempenhar aqui. Pense só como no stalinismo a concepção do "partidaris­mo" se transformou em caricatura. Em lugar da ligação ontolõ­gicamente necessária entre a superação da realidade no pensa­mento e a praxis, que em Lênin não significa apenas um au­mento da responsabilidade humana, mas também um aumento da objetividade no conhecimento, estabeleceu-se a manipulação burocrática de cada afinnação. Não é caso para nos espantar­mos se -a fé dos homens insatisfeitos com o capitalismo na capacidade de orientação da teoria marxista, da praxis socialista, sofreu repentinamente profundos abalos. Só uma ruptura radical

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e universal, tanto prática como teórica, com todos os métodos stalinistas pode restaurar a confiança. Não estou em contradição comigo mesmo porque disse antes que devemos fazer um apêlo aos homens para a superação da manipulação, mas êste apêlo só se tornará realmente operante quando estivermos em condi­ções de mostrar teôricamente que não estamos diante de um curso inexorável do processo econômico ou tecnológico. Ao contrário, é preciso mostrar que o que está em desenvolvimento é um processo manipulado por uma classe determinada, de um modo bastante preciso, e que a manipulação parte de certos pretensos axiomas que são incapazes de resistir a uma obser­vação mais atenta. Citei antes o caso de James Mill porque nêle o problema se apresenta de uma maneira mais fácil de ser compreendida. Estou convencido de que a nossa economia e a nossa sociologia estão cheias de casos dêste gêneero e que aqui a crítica teórica e a análise histórica podem prestar grandes ser­viços.

ABENDROTH - Sim, devemo-nos colocar problemas bem concretos, como, por exemplo, o da democracia. Conhecemos, por exemplo, a importância da análise teórica no tratamento da ideologia do totalitarismo, que as classes dominantes, sem nenhuma consideração pelo conteúdo histórico, alargaram até chegarem a identificar, de acôrdo com seus interêsses, stali­nismo e fascismo. Mas a êste respeito devemos observar também um outro aspecto: a teoria, que formu_lamos e devemos analisar científica e histôricamente, torna-se uma fôrça capaz de em­polgar as massas quando corresponde a uma necessidade prá­tica e também à sua capacidade prática de conhecimento. Neste ponto encontramos um nôvo aspecto do problema da democra­cia. Uma fórmula que conseguisse ser traduzida corretamente em realidade seria uma das contribuições mais importantes para a nossa batalha atual.

LuKÁcs - Estou inteiramente de acôrdo com o senhor; gostaria apenas de chamar a sua atenção para uma conexão estrutural entre teoria e prática. Isto é, se procuramos um caso particular que mova imediatamente as massas, não o encontrare­mos. Se .nos dedicamos a uma ampla pesquisa científica, entre­tanto, encontraremos trinta, quarenta, cinqüenta problemas do mesmo gênero, e entre cinqüenta haverá um através do qual po­deremos chegar às massas. A idéia de que através de uma aná-

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lise da economia chegaremos ao problema que transforma em praxis O mal-estar das massas é, na minha opinião, inteiramente ilusória. Devemos desenvolver um grande e ".asto trabalho cien­tífico a fim de que o dirigente político que emerge das nossa fi­leiras', ou qualquer outro, possa perceber que determinada crític_aestá apta a pôr as massas em movimento e também em condi­ções de arrancar delas um comportamento pràticamente políti­co. A palavra de ordem que leva ao movimento deve ·ser pro­duzida através de uma cooperação entre ciência e vida, isto é, entre ciência e processo econômico. Não se esqueça que, de fato, nenhuma das palavras de ordem com as quais Lênin subverteu o capitalismo russo era uma palavra de ordem sociali�ta. � . f imimediato da guerra não era uma palavra de ordem soc�ahsta, assim como não o era a distribuição da terra. Mas Unm era um teórico extraordinàriamente arguto para encontrar êstes elementos adequados entre os'fatôres de uma crítica da sociedade capitalista semifeudal. A teoria é muito necessá:ia também n_êssesentido, pois sôbre o seu terreno acontecem mais fatos e a histó­ria demonstra continuamente que qualquer setor do trabalho teórico chega a um ponto qu_e provoca uma �up�:a, É muito inte­ressante notar como teorias puramente científicas como a de Galileu ou, alguns séculos depo�, � de. Da�n,, condu.ziram -por assim dizer - a uma explosao ' sem1pobtica . Por isso , pen­so que um trabalho teórico excepcionalmente amplo e pr�fundo seja o pressuposto indispensável da praxis. Nenhum de nos, re­fletindo sôbre êste problema, pode saber qual será a palavra de ordem que levará a posição antimanipulação a um ponto explo­sivo. Podemos apenas fazer tentativas � deve�os pr_?curar lev�r à.:: massas os resultados da nossa pesqmsa. É unposs1vel detern11-n�r, sobretudo a priori, que palavra de ordem virá depois a pre­valecer.

ABENDROTH - Estou inteiramente de acôrdo com sua opinião mas a esta problemática está ligada uma grande difi­culdade: Apesar da fase de degenerescência stalinista, existe °:ºs países socialistas uma base social para um grande tt:abalho 1�­telectual se bem que ainda deformado. Os dotes mtelectua1s podem ;er postos a disp�sição �e �m trabalho crítico, te�rico. Mas precisamente nos paises socialistas, por causa dos res1duos stalinistas e de sua tendência a interessar-se sômente pelos seus próprios problemas, falta a base intelectual para a solução di;iS

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questões. O contrário acontece nos países capitalistas e de, nôvo o fato é particularmente agudo na República Federal da Ale­manha. A base social para um comportamento intelectual.crítico,enquanto comportamento puramente teórico, é extraordinària­mente restrita e só casualmente pode ser adquirida. Na RepúblicaFeGeral esta situação é ainda pior do que nos Estados Ui:tidos.

LuKÁcs - Concordo plenamente; apenas não se esqueça de que em certo sentido esta situação é característica de todos os tipos de capitalismo. Tome, por exemplo, a representação da França do tempo de Balzac, que inspirou as Ilusões Perdi­das: nela, um pequeno grupo que se reúne à volta da figura do próprio Balzac é um grupo isolado, para o qual a corrup­ção descrita magistral e amplamente por Balzac é um fato de lite­ratura. Assim, um genêro de manipulação se cria sôbre o funda­mento do capitalismo daquele tempo que é naturalmente diferente da manipulação moderna, Pense nos três artigos que Lucien de R�bempré escreveu sôbre o mesmo romance em diferentes jor­nais ...

ABENDROTH - Conheço exemplos tirados da situação da República Federal. ..

LuKÁcs - Certo, . . Creio que não devemos nos esque­cer de que o capitalismo manipulatório é uma nova forma es­pecífica de capitalismo, mas é sempre uma forma capitalista. Evidentemente é tolice imaginar que nos encontramos em uma situação inteiramente nova e representar então o século XIX como um idílico reino da liberdade ou não sei do que mais. Não pense que sou um fanático da ciência se acredito que o desenvolvimento das pesquisas científicas é seguramente o pres­suposto de um desenvolvimento anticapitalist�. Dever-se-ia tra­balhar na Alemanha, como em parte já se faz, no sentido de serem conhecidos os resultados já obtidos em outros países. Pen­so, por exemplo, nas pesquisas excepcionalmente interessantes feitas pelo falecido C. Wright Mills, que em vários lugares for­neceu uma notável crítica da manipulação americana.

ABENDROTH - E no que se refere a Wright Mills é mui­to interessante que êle inicie sua crítica conhecendo Max Weber, mas desconhecendo a análise de Marx, para depois, no fim, de­frontar-se com o problema real através dos resultados da sua própria crítica.

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LuKÁcs -....:: Sim na minha opinião parece· formar-se de '

. .

modo espontâneo na América, nos Estados Umdos, um mt:-rêsse pelo marxismo. Portanto, é muito iT-portante que os �0�1-mentos da renovação, que em cada pais são bastante debe1s, aspirem a uma união internacional. Por isto, deviam ser tradu­zidos em alemão os melhores trabalhos que aparecem em. to?oO mundo, quer nos países socialistas quer nos p�íses 'cap1t�hs­tas. Quanto falei antes de um brains trust, quis precisamente dizer que a ajuda geral ao movimento por par_te de �m� ciência que queira descobrir a realidade como ela e constitm um pre�su­posto imprescindível. O movimento nã�Apo_de romper seu ,1�0-Jamento atual sem apoiar-se numa nova c1encia e sem uma cnt1ca às velhas ciências, da filosofia às outras discipli�as.

ABENDROTH - Estou plenamente de acordo com o se­nhor, devemos porém ver as dificuldades que existem. A n�cessi­dade da internacionalização, por assim dizer, dos contatos mtelc­tuais de todos os que se orientam nessa díreção, creio, é t�oto mais forte quanto maiores são as dificuldades para consegui-la. As dificuldades hoje são maiores do que as que se apresentavam aos intelectuais que estavam próximos de Marx e Engels e, n� início da Segunda Internacional, organizados em tôrno do movi­mento operário. De fato, hoje estamos diante de um problema muito mais complicado e devemos nos d�frontar com uma m�t�­ria muito mais ampla do que aquela CUJO exame era necessano em outros tempos. . _ LuKÁcs - Isto é extremamente verdadeiro, mas nao ,;am­pararia a situação atual com a de Marx e de Engels, porque .ºsenhor não deve se esquecer que, quando Marx e Engels surgt­ram, já tinham havido grandes g;eves na F:ança e, na Ing)a­tcrra, já se tinha iniciado o movimento car�1sta. _ Ao contráno,devemos comparar essencialmente a nossa s1tuaçao com aqn_elana qual, no início do século XIX, se encontraran:i Founer, Sismondi e outros, Nós, realmente, só poderemos agir se t"om­preendermos que nos encontramos numa situação assim e que, em certa medida, (creio que o senhor coi_npreenderá o que quero dizer), 0 caminho que conduz de Founer a �arx - q_u�r doponto de vista teórico, quer do ponto de vista da at1V1da�e prática - ainda é uma tarefa do �uturo. No 1� Brumárw,Marx, depois de ter comp�rado o ápice d_a revoluçao _burgu�sacom as revoluções proletanas, prossegue dizendo a êste respeito

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que a autocrítica é a essência da revolução proletária e que as revoluções proletárias criticam os erros das épocas passadas e retorn� aos seus estágios precedentes com uma desapiedada autoc�1t!ca de fundo. Parece-nos muito interessante notar que o stahmsmo fêz grande uso da autocrítica mas que na sua teo­ria da autocrítica falta e não poderia deixar de faltar aouilo que Marx disse sôbre ela. O senhor entende onde quero �he­gar: penso que devemos chegar a ver sem ilusões qual é a nossa atual P?Sição; dêste modo podemos realizar, na verdade, aquilo que hoJe deve r�almente ser feito. Portanto, hoje ( e sublinho a palavra hoje) não se deve subvalorizar a eventual importância para o futu�o .de resultados teóricos que atualmente não podemser l�go assimilados pe!as. �assas .. Creio que não há contradiçãose digo que �ara um ·s1milt�r movimento contra a manipulação, para um movimento no sentido de uma democracia real, a queda num excessivo praticismo pode significar a condenação à inati­vidade. A eficácia potencial dos conhecimentos teóricos pode efetivamente não ser valorizada de modo adequado. Por exemplo a propósito �a influência dos movimentos religiosos ainda hoj; · existentes, dissemos anteriomente que é inteiramente necessário um esclarecimento teórico realmente filósofico, teórico, e que - de uma ângulo teórico - não se pode simplesmente assumirem palavras os atuais fenômenos de crise. Reporto-me novamenteao �as<: Garaudy-Teilhard de Chardin. Emana dêle um complexo de Iiusoes que na�a. produz, enquanto é altamente provável que, através de uma cntrca correta, através de uma análise realmente filosófica daquilo que, por exemplo, na igreja protestante se apre­senta como desmitização, possa ser exercida uma acão imensa inicialmente sôbre indivíduos singulares, depois sôbfe camadas inteiras. Nós, hoje, temos a tarefa de preparar exatamente um movimen.to dêste gênero. Não m: entende mal. Com isto cÍueroapenas dizer que devemos aproveitar qualquer ocasião, mas, por outro lado, também não podemos subvalorizar a importância da p:squisa puramente teórica para o movimento que desejamos. E nao podemos cair no êrro de considerar essa questão como ape­nas uma quantité negligeable. óbviamente, nem todos os traba­lhadores socialistas alemães leram todo o Marx e compreenderam a teoria da mais-valia em sua totalidade, mas creio que o movi­m:n�o fran�ês, alemão e italiano, sem O Capital, nunca teria existido. Existem complicadas conexões a êste respeito. Para o

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movimento com o qual o senhor e eu (juntos, eu diria) sonha­mos a fundamentação teórica terá uma função extraordinária.

'ABENDROTH - Sou-lhe muito gr!lto por esta sua conclu­são. Por êste caminho chegaremos mesmo a transpor para a vida real o puro sonho.

LuKÁcs - Certo, certo ... ABENDROTH - E isto requer um trabalho intelectual ex­

traordinário. Um trabalho intelectual, entretanto, que se reclame de Marx, Engels e Lênin. Devenios criar uma consciência his­tórica da peculiar identidade mesmo na diversidade.

' LuKÁcs - E devemos, e naturalmente isso é muito difí­cil, suscitar nos intelectuias e nas grandes massas uma novaconsciência histórica, porque, como o senhor demonstrou commuita razão falando da consciência trágica e dos fenômenos dogênero, a manipulação leva continuamente a ver nos estados

uma forma de existência ontolõgicamente irredutível, quandoa real forma ontológica da existência é o processo. Se o senhorestuda a análise do fenômeno e da essência em Marx, vê que acaracterística essencial do fenômeno é que nêle o processo desa­pareceu. A propósito do dinheiro e de outros problemas, Marxchama repetidas vêzes a atenção para o fat� de que os home:1ssabem manipular muito bem essas coisas, para usar a expressaohoje corrente, mesmo tendo transformado o processo real numestado reificado. Uma grande tarefa, na direção da qual devemosdirigir nossos esforços, consiste em demonstrar, antes de tudo noplano teórico, que tôdas estas condições estáticas e re_ificadas

são apenas formas fenoménicas de processos reais. Assim, tor­naremos, pouco a pouco, Os homens conscientes da nec':ssid�dede viverem suas próprias vidas como um processo h1st6nco.Esta é uma tarefa terrlvelmente difícil, mas creio que como pers­pectiva de futuro não é impossível.

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QUARTA CONVERSA

Georg Lukács

W olfgang Abendroth

Hans Heinz Holz

Balanço Provisório

HoLz - Senhor Luk�cs, nos dias anteriores examinamos de diversos ângulos vários problemas ligados à essência das suas concepções filosóficas que estão em relação com uma gama de interêsses bastante vastos: da fundação geral de uma ontologia

do ser sociall até os problemas de atualidade colocados pela história que se realiza no presente político.

Foram assim abordadas muitas questões fundamentais, Hoje, que estamos juntos pela última vez, ficam talvez ainda por precisar alguns temas que já foram tratados nos dias ante­riores sem chegarmos a um completo esclarecimento. Nesta

I l:!'.ste, precisamente, é o titulo da primeira parte da ttica de Lu­kács, que começou recentemente a ser publicada em alemão (N. da T.)

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série lle conversas, achei bastante importante a questão (na qual continuei depois a pensar) da liberdade no plano subjeti­vo, isto é, da problemática das possibilidades, do ponto de vista da �rganização social. Como se pode considerar êste problema,partmdo de uma visão marxista da história, isto é, de uma visão que c0nsidera o processo histórico sob o signo da necessidade? Creio que nas suas posições se encontram algumas perpectivas e linhas indicadoras no sentido de uma resposta a esta pergunta.

LmcÁcs - Sim; acredito apenas que a êste respeito se deva reinterpretar Marx de uma maneira mais correta e fiel. Na minha opinião, a grande dificuldade está no fato de que, de um lado, o marxismo descreve determinadas linhas funda­mentais do processo histórico considerando-as como operantes independentemente do que os homens querem ou se propõem ao atuarem. Por outro lado, faz igualmente parte da essência do marxismo a afirmação de que as escolhas das classes, dos povos, e em certas circunstâncias até mesmo dos homens singulares, têm uma função determinante na história. Disto pode decorrer: de um lado, um certo voluntarismo, do voluntarismo anárquico ao voluntarismo burocrático (que dominou no período stalinista); de outro lado, pode decorrer o culto mecanicista da necessidade(bastante difundido, por exemplo, na Segunda Internacional). Ora, contràriamente aos teóricos dêsse período, no qual ( como o demonstram os textos de Plekanov, por exemplo) encontramosem certa medida um dualismo de necessidade no plano econô­mico e decisões com alternativas no plano ideológico, creio quepodemos observar um duplo movimento na própria economia.

Como o senhor certamente deduziu de todo o que eu disse anteriormente, penso que a economia se constitui a partir das posições teleológicas dos indivíduos e que isto forma o conteúdo objetivo das decisões em cada ato econômico; a explicação pode então versar sôbre decisões tecnológicas no processo produtivo ou sôbre o fato de que alguém compre esta ou aquela mercado­ria. O espaço no qual jogam as decisões se estende a tôda a economia. Ora, creio também poder afirmar, com base no es­tudo dêste assunto e no estudo de Marx, que na economia exi�­tem, podemos dizer, três grandes complexos dinâmicos desen­volvendo-se ininterruptamente no curso da evolução da huma.­nidade, independentemente daquilo que querem ou quiseram os portadores dêsse desenvolvimento. :Êstes complexos dinâmicos

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podem parecer, a uma primeira vista, muito simples e elemen­tares.

O primeiro fator é que a quantidade de trabalho necessário à reprodução física do homem tende continuamente a dimi­nuir. O homem primitivo estava interamente ocupado no curso de sua vida em reproduzir-se fisicamente. f: evidente que hoje a reprodução da pura existência física representa, ao con­trário, uma parte mínima da atividade laborativa de uma so­ciedade. Se, porém, examinamos a história, vemos que neste processo ocorreram reviravoltas muito importantes: por exem­plo, a escravidão começa a surgir, em substituição à morte dos prisioneiros de guerra ou até mesmo ao canibalismo, quando o escravo está em condições de produzir mais do que é necessário à sua manutenção. Antes não teria tido nehum sentido manter os escravos, e de fato, naturalmente, êles não existiam. Ora, creio que houve um desenvolvimento dinâmico ininterrupto neste sen­tido, da idade da pedra até os nossos dias. Deixemos de lado a questão de saber se êste 'desenvolvimento foi ou não linear. Na minha opinião, êste é um fato que cabe aos historiadores deter­minar.

O segundo fator é que, Obviamente, no trabalho domina em sua origem o dado natural. Se penso nos tempos primitivos, as pedras, tais como eram encontradas, eram o ponto de partida do trabalho. Daí em diante, teve lugar um desenvolvimento no qual o trabalho, a conseqüente divisão do trabalho e todo o resto, tornam-se cada vez mais socializados. Isto significa queas categorias sociais formam uma trama de nexos que se elevasôbre a existência humana fisiolõgicamente considerada e che­ga mesmo a modificá-la. O senhor se lembrará de que umavez Marx disse, muito bem, que a fome é a fome, ressalvandoporém que a fome que é satisfeita mediante um almôço à basede carne cozida, garfo e faca, é muito diferente da fome que sesatisfaz no ato de devorar carne crua. Estudando a satisfaçãodas mais profundas necessidades fisiológicas, isto é, o alimentoe o sexo, pode-se observar melhor como estas funções humanassão, em certa medida, cada vez mais fortemente socializadas.Marx chama a êste processo um recuo dos limites naturais. Ea palavra "recuo" é necessária, porque o limite natural - con­siderado o simples fato de que o homem é um ser vivente fisio­lõgicamente determinado - nunca é inteiramente abolido. En-

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tretanto, ninguém negará que um tal desenvolvimento ocorra; basta pensar na passagem da locomoção originária do homem ou seja, do caminhar, aos modernos aviões. Assim torna-se clar�que uma evolução dêste gênero ocorre na huma�idde illdepen­cTente do fato de tal movimento ter sido querido ou não. De fato . . . , . ,

' ex�stt�am 1mportant1ss1mos penados nos quais muitos homens,I?rmc1pal°:1ente das classes dominantes, quiseram deter êste <.1t::senvolv1mento, como na Atenas do último período, em certos períodos_ da Idade Média, no tempo da R�stauração, depois daRevoluçao Francesa, etc. Mas, exatamente aqui, é importantemostrar como é impossível deter o desenvolvimento, como teve�ugar �m desenvolvimento ininterrupto, se não nos problemasideológicos da superestrutura, certamente nesta efetiva socializa­ção da sociedade.

O te�ceiro fator, que está muito estreitamente ligado a êstesoutros dms, é a integração cada vez JJtaior das sociedades quese encontram em relação recíproca. Acredito ·que as tribos ori­gi�almente fôssem muito pequenas, mesmo porque de outra ma­nerra. não poderiam existir. A partir dêste estágio, através daGrécia, de Ro_ma, da Idade Média e assim por diante, tem lugarum desenvolv1mento no qual, com o mercado mundial, se cria­ram os fundamentos econômicos para a unificação da humani­dade. O senhor deve pensar apenas no fato de que se tomamosa A!1-ti�idade como exemplo, vemos uma grande civilizaçãomed1terranea que se estende do Oriente helenístico até Roma;No mesmo período houve na China uma civilização muito im­Rortante. Poderíamos dizer, ademais, "que estas civilizações nãotiveram nada em comum, enquanto o que hoje acontece no maisremoto lugar da Ãfrica não pode deixar de exercer certa influên­cia, �ig�mos, na vida do trabalhador alemão, mesmo que estamfluenc1a nem sempre seja imediatamente perceptível.

Deve, então, ficar claro que êste processo de integraçãoocorre necessàriamente e que as reações humanas em face domesmo não estão em relação direta com o comoortamento cons­cient� dos ho�ens. Isto é, não se trata de que oS homens tenhamquer!do consc1ente��n!e êst� desenvolvimento; por exemplo, arelativa· e apenas m1cial umdade da Grécia manifestou-se na!�ta encarniçada entre as cidades-Estados particulares. E é notó­no �ue as mais recentes integrações (pense na constituição dasnaçoes modernas, que foi conquistada através de uma luta/22

encarniçada contra o feudalismo e seu particularismo) tornaram­se uma emprêsa .Consciente relativamente tarde. Ainda hoje é um fator de fraqueza para a Alemanha o fato de que esta luta não tenha sido conduzida com a energia· com que foi conduzida ua França ou na Inglaterra. E, se o senhor pensar na atual uni­dade mundial, perceberá que ela está emergindo de uma soma de revoluções e contra-revoluções; pense, por exemplo, na re­volta dos brancos-contra os negros e dos negros contra os brancos nos Estados Unidos. É preciso não esquecer em re lação a êste ponto que, quando a integração era menor, como na época da escravidão imperante no sul dos Estados Unidos, êstes contras­tes eram muito menos agudos do que hoje. Mas, com o aguça­mento das contradições, seu reflexo ideológico se torna, êle tam­bém, um processo de integração que não pode ser detido. Em todos êstes pontos, devo sublinhar que não se trata do produto de uma atividade unitária dos homens, na qual êstes tenham tido sempre clara consciência de querer uma humanidade unida, como por exemplo acontece em certos movimentos da época romana, graças a algumas correntes estóicas. O que se realiza é, antes, um processo contínuo de integração, que naturalmente também tem seus portadores ideológicos. Trata-se, porém, de um processo que se realiza não obstante agudos contrastes ( que se tornam ainda mais agudos com o aumento da integração) e se concre­tiza até mesmo contra a vontade dos homens. Creio que, do ponto de vista objetivo, ou seja, do ponto de vista econômi­co, podemos cónstatar estas três grandes tendências e que pode­mos considerá-las como necessárias. Não estou querendo fazer uma dedução lógica ou qualquer coisa do gênero: o processo histórico torna possível a constatação simplesmente empírica destas necessidades, desde que as tomemos como necessidades econômicas . Ora, existe uma relação dialética entre esta ,essên­cia do desenvolvimento econômico e o mug__do fenomênico, to­mando-se esta expressão em seu significado hegeliano, segundo o qual o fenômeno é um certo tipo de realidade, e não no sentido kantiano, para o qual o fenômeno seria um produto do ?ornem que se contrapõe à coisa em si. Neste mundo fendmêmco, há um contínuo vai e vem de influências que s� contrapõem: quando falei de essência, desprezei as diversas formas nas quais a coisa se manifesta e que fazem com que o fenômeno, inclusive no inte­rior do mesmo processo, possa ser uma coisa tão variada. Pense,

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apenas para dar um exemplo simples, no contraste entre Atenas e Esparta, na Antigüidade; e pense nas .contradições do desenvol­vimento do capitalismo inglês e francês. Do ponto de vista eco­nômico, é claro que o desenvolvimento do capitalismo é algo unitário; entretanto, tendo sempre em vista que permanecemos no campo econômico, o capitalismo inglês levou um século para eliminar a forma parcelada da propriedade da terra expressa pela Yeomanry, cujos representantes tinham combatido a favor da revolução inglêsa, enquanto que a revolução francesa colo­cou os fundamentos de uma propriedade caamponesa que, em suas linhas essencias, existe ainda hoje. Penso, então, que a lei da inexorabilidade do desenvolvimento capitalista, econômi­camente falando (e sublinho o têrmo econômicamente), assume formas fenomênicas inteiramente diversas em dois países tão importantes quanto a Inglaterra e a França, para não falarmos das formas ideológicas.

HoLz - De qualquer modo, essas diversas formas feno­mênicas têm sempre uma necessária fundamentação.

LuKÁcs - Ambas são fundadas sôbre o mesmo desenvol­vimento essencial, porém cada desenvolvimento essencial é um acontecimento concreto e único na história e assume, por isso, no mesmo período e nas mesmas fases de desenvolvimento, tra­ços fenomênicos muito variados. Acho que em relação a êste aspecto devemos distinguir ontolôgicamente, no interior da eco­nomia, entre a parte constituída pelas leis essenciais e o mundo dos fenômenos. Hegel disse muito bem que a essência é"-Uma for­ma em repouso do fenômeno. Parece-me, por�m, que nesta for­mulação hegeliana, enquanto expressa em tênnos da teoria do co­nhecimento, esteja escondido, no fundo, muito no fundo, ainda algo do motor imóvel ·de Aristóteles. Para exprimir esta questão na nova terminologia radical da ontologia, deveríamos dizer que se trata, ao contrário, da progressiva incontrastabilidade do pró­prio processo, em contraposição à variada diversidade de signifi­cados de suas formas fenomênicas.

HoLz - No interior das formas fenomênicas aflora tam­bém o contingente.

LUKÁCS - Sim, naturalmente, e aqui, na minha opinião, colocam-se em primeiro plano as complicadas operações de inter­câmbio com a natureza, nas qÕais, Obviamente, o momento eco­nômico-social é novamente dominante; de fato, a economia deci-

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de se uma fôrça natural ou um elemento da natureza servem de ajuda ou são Obstáculos. Depende da produção e não do carvão o fato do carvão ter ou não uma importância central para a riqueza de um país. Parã se estabelecer se um pa1s é rico ou pobre, não se recorre à presença ou à ausência do car­vão; pelo contrário, a sua importância é definida pelo nível de desenvolvimento econômico e social no qual o país se encon­tra. E, hoje, isto pode ser melhor observado porgue o carvão saiu de moda.

HOLZ - Sim ... LuKÁcs - Depois de ter representado por dois ou três

séculos o fato dominante, a disponibilidade de carvão deixa de ser um dado positivo para uma economia e antes mesmo se torna um entrave, como o senhor pode constatar agora na re­gião do Ruhr.

ABENDROTH - Gostaria, em relação a êste problema, de retornar a uma objeção que, mesmo pela metade, é também um esclarecimento. No início do processo de socialização da humanidade os fatôres naturais podem ter uma grande impor­tância para a atividade produtiva. Mas, assim como, em sentido geral, o trabalho produtivo dos homens faz com que recuem os limites naturais, assim também diminui a dependência de uma economia de certos dados naturais, por exemplo, neste caso, da existência de jazidas carboníferas a serem exploradas. A existência de uma reserva natural (por exemplo, de carvão) podia e pode fornecer o impulso para o desenvolvimento de um processo concreto a partir das formas fenomênica� do processo global mediante o qual a socialização da humamdade se desenvolve a partir do trabalho produtivo ...

LUKÁCS - Certamente ... ABENDROTH - ... para, mais tarde, perder progessiva­

mente qualquer importância. O predomínio da economia neste processo é assim, no início, mais escasso do que no fim.

LUICÁcs - Sim, é possível. Por outro lado, eram cer­tos fundamentos econômicos que davam importância ao carvão. E são ainda fundamentos econômicos ( e tão econômicos que essencialmente não se trata de um mero problema tecnológico, mas da maior conveniência dos óleos combustíveis) que fizeram o carvão perder sua importância. Do ponto de vista tecnológico,poder-se-ia ainda fazer funcionar muito bem tôdas as fábricas

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com car.vão, mas, mesmo que não me seja possível aqui forné"' :c�r as cifras, certamente os óleos combustíveis são mais conve� men�es nas .atuais condições econômicas e por isso suplantam Ocarv_:10. Assim, substancialmente, não se verifica uma luta entre as forças da n�tureza; elas são, pelo contrário, peças de xadrez que a economia de mercado manobra numa ou noutra direção segundo suas conveniências.

A�ENDROTH - Sem dúvida, mas aqui também tem im­portância o fato de que a socialização do processo produtivofaz recuar em medida cada vez maior o elemento natural en-quanto condição dêste processo. '

LUKÁCS - Creio, porém, que se analisássemos, suponha­mos, a passagem da idade do bronze para a idade do ferro em úl!ima análi_se enc�ntraríamos o mesmo predomínio da ec�no­mia que existe hoJe. Sõmente que, e aqui estou inteiramente �e �côrdo com o senhor, o predomínio da economia é quan­ttta�1vamente cada vez mais maciço. Podemos observar O mesmo f�n?meno no . terreno social das ideologias: aqui também os J1m1tes naturais são cada vez mais afastados e então assumem formas fantásticas que levam certos filósofos· a acreditarem que o espa'?o se ten.ha tornado mais estreito e o tempo maisveloz,. e assim p.9r �iant�, .º que não é nada mais do que umapura mterpretaçao 1de0Iog1ca dêste processo. Gostaria agora de retornar ao fato de que êste irresistível processo s; reflet� n� � m�ndo fen?m,e�ico de diversas maneiras e que, em conse­quencia do prmc1pio �a s�cialização, estr!ltifica-se uma supra­estrutura cada vez maior sobre a base econômica. :S fàcilmente compreensível que, enquanto um pequeno grupo humano conso­me o que êle mesmo produz, tenha podido permanecer de acôr­d;> co� a tradição, .respeitando a memória dos· antigos, etc. Po­r�m, tao logo na penfena das pequenas comunidades, graças a um simples c:escimento quantitativo, surge uma forma de comércio, que depois acaba por permear tôda a comunidade dela advém

' . . ' necessariamente o nascimento de um sistema jurídico. Parece-me que êste seja ,?-Renas um ex:mplo de como a complicação do m�n�o. fenomemco, que denva necessàriamente daqueles três prmcipios, envolve também a supra-estrutura. Sôbre aquela es­sência em repouso, para dizer como Hegel ( que na realidade é apenas um movimento unívoco da essência), constrói-se um mundo fenoménico complicadíssimo, multilateral e multifiorme.

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�te P.Onto, as posições teleológicas singulares ·não são fàcilmen­eé:IÍstillguíveis, mas apesar de tudo exercem uma enorme função. ssilll por exemplo, era absolutamente inevitável que, em decor­

ênCia"' dÓ desenvolvimento das fôrças produtivas, a escravidão Hesaparecesse e fôsse substituída pelo trabalho feudal dos ·servos aa'. gleba. Mas, sem entrarmos em particulares, as formas que a cervidão da gleba assumiu nos diversos países foram uma conse-9.üência das diversas formas de atividades dos homens em cada região. Quando chegamos a tal variedade, chegamos a uma cÕnstatação muito bem observada por Marx: os homens fazem êles mesmos a sua história, mas em circunstâncias que não foram éscolhidas por êles. As circunstâncias não escolhidas livremente, ·ho fundamental, pertencem aquelas leis econômicas, aquela-�ssência da economia da qual falamos anteriormente. f: por,:'isso que nós, para o desenvolvimento da sociedade, podemosi .traçar êste grande quadro geral sôbre a base de um únicoi pólo, isto é, sôbre a base de um desenvolvimento social

essencial que é incontrastável. Os diversos povos podem en­tão construir as formas mais variadas. Fazem também o apartheid na África do Sul: entretanto, é mais do que certo que um dia chegaremos à integração de tôda a humanidade, se bem que não seja predeterminada ( e aqui volto à questão de fundo) a forma que esta integração assumirá. Ora, aqui tem o�i­gem a importante pergunta que na minha opinião é decisiva para a concepção marxista: o socialismo deve ser visto como uma con­sequência necessária e inevitável da essência das coisas? Ou acreditamos que o desenvolvimento essenci�l delineie apenas as tendências de fundo através das quais é dada a possibilidade eco­nômica do socialismo? Neste ponto, creio interpretar correta­mente Mar_x, porque mesmo nos escritos p�líticos como o Mani­festo o êxito da luta de classe é sempre visto como um.o alter­nati:a. Assim, acredito que o desênvolvimento econômico crie apenas as condições para a vitória do socialismo. Além do mais, penso que não se trata, no que diz respeito a Marx, de uma obser­vação incidental do Manifesto; podemos ver que na critica mar­>.:iana do programa de Gotha é mencionado ent_re as condiçõesdo comunismo o fato de que o trabalho deva deixar de ser uma obrigação para se tornar a principal necessidade da vida. O de­senvolvimento puramente objetivo do trabalho faz, na realidade, com que a quantidade de trabalho socialmente necessária seja

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c?da vez �eD:or, ª!? passo que, no plano ontológico, o desenvo}. vnnento ob1eJ1vo na? está em condições de transformar o trabalho numa necessidade vital. Num certo grau do desenvolvimento os hom�ns devem, pelo contrário, trabalhar para as necessid�des da vida.

HoLz - E há também um trecho do terceiro volume doCapital ... LUKÁCS - Sim, também ali ... . �01;z - ... onde o momento da coerção é definido comomsupnm1vel, mesmo para o trabalho. LuKÁcs - Veja, Marx se exprime ainda mais concreta­mente quando diz que o socialismo tem a tarefa de tornar O tra­balho cada vez mais digno do homem, mas isso não será umproduto automático do trabalho e sim o resultado da atividadedos homens.

. ABE�ROTH - Por sua vez, naquele trecho, Marx diz umacmsa muito razoável e concreta quando coloca a redução dotempo de trabalho socialmente necessário como condição destahumanização do trabalho.

LuKÁcs - Certamente ... mas esta redução do tempo detrabalho é um processo que tem um curso espontâneo. ABENDROTH - Mas tem também altos e baixos senhorLukács, porque sôbre êste assunto permanece válida e�ta idéiade Marx: quando em tais processos, sobretudo através dosrevezes das classes progressistas oprimidas surgem tendênciasho�tis à explicitação da essência do process;, passa a ser obsta·cuhzada, também, a ampliação do processo de reduções estáveisdo tempo de trabalho socialmente necessário e a civilização poderecuar vários degraus. . . �_uKÁcs - Não excluo esta possibilidade; creio que a irre­s1st�b1hdade de que fala?J,OS deve ser concebida num períodomuito l�ngo e to�no a dizer que, quanto mais alto é o grau decomplexidade social de uma comunidade, tanto mais forte é Ocaráter necessário do seu movimento. O senhor deve desculpar.me, mas é uma boa tradição marxista apelar continuamenteao e�emJ?lO de Balzac quando se fala de realidade. :Êste gran­d� his�on_ador d8: Resta�ração que foi Balzac mostrou que navi.da publica a anstocracia tinha se tornado uma fôrça hegemô·�tca, demonstrando ao mesmo tempo como esta aristocraciatmba agora assumido traços inteiramente capitalistas e como

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-àquele período, se nos atemos ao essencial, os represe�tantes�a aristocracia eram capitalistas agrários capaze� de llrar a·naior rentabilidade possível da Restauração. Precisamente em

�alzac, os poucos personagens do cabinet antique ( os velhos s�­;nhores feudais que retornaram ou permaneceram presos asI suas características feudais) não são mais d_s> que Do� Qui­

' xotes, cômicas figuras na época da Restauraçao. Recordei tudo· isto pelo seguinte motivo: nos romances de Balzac aparece a

: contradição entre a pretensão de restaurar �a Franç� as con­. <lições existente antes de 1789 e a degradaçao a cômJcos Dom

Quixotes dos partidários desta tendência. Sob êste aspecto, con-sidero Balzac um graóde historiador que, sem ter entrado umaúnica vez em contato com o pensamento de Marx, percebeu o

· dualismo contraditório existente entre a irresistibilidade do desen·volvimento econômico e a vontade, os desejos, os pensamentosdos homens que produzem êste desenvolvimento. B�ac retr�­ta numa belíssima forma exatamente esta contrad1çao. Creioque na história revivemos continuamente fenômenos dêste' ' , d d gênero, embora devamos levar sempre em cont:i per10 <:5 eretrocesso, que muitas vêzes duram por decêmos. Se 1so2a­mos dados singulares, chegamos naturalmente a representaçoesinteirameilte erradas. Creio que neste nível se coloca o proble·ma da história e da possibilidade de alternativas no interior doespaço estabelecido pelas grandes leis do de!envolvimen�o: Umaliberdade em sentido absoluto, portanto, nao pode extstir: talliberdade é simplesmente uma idéia de professôres e na rea­lidade nunca existiu. A liberdade existe no sentido de que avida dos homens Coloca alternativas concretas. Creio, e pare­ce-me já ter usado esta expressão, que o homem é um ser quedá respostas e que sua liberdade consiste no fato de que devee pode fazer uma certa escolha no interior das possi�ili�adesoferecidas dentro de uma certa margem. Acrescentarei, ainda,qlie na cómplexa continuidade do desenvolvimento humano,êle pode escolher em certas circunstâncias uma alternativa que,em si de certo modo, está implícita nas relações existentes, masa Ion'go prazo e com mediações não claras, tornando--se umaalternativa real, plenamente conscient�, apenas e!ll. épocas muitoposteriores. Pe�o, p�r exe�plo, nas. mt�ressantiss1�as. tomadasde posição da filosofia estóica e ep1cur1sta na Ant1gu1dade doúltimo período; o que os estoicos e os epicuristas queriam não

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era absolutamente uma alternativa real para a vida efetiva da­quele mo�ento, �as uma alternativa no desenvolvimento geral da humamdade e isto explica porque as idéias estóicas tiveram e�icácia e vitalidade até a Revolução Francesa.e. mesmo poste­normente.

. HoLZ - Neste ponto, gostaria de voltar à origem da alter­�ativ:t e �o lugar que ela ocupa num sistema ontológico realista d�. hrstóna. Se compreendi bem o que o senhor disse, a possi­bilidade que torna uma alternativa objeto de escolha consciente p�r parte dos homens é produzida quando as posições teleoló­�cas _se fundam �o curso objetivamente necessário do processo histórico e,. por isso, podem reagir sôbre êle. Ora, é precisoantes d<: mai� nada sublinhar que a reação ativa de uma posiç.ão t:Ieológrca poe por sua vez uma nova relação objetiva de condi­cionamento. Isso significa que as relações de condicionamento se tornam cada vez mais complicadas. E preciso deduzir daí então u!Il. aµmento progressivo da complexidade das relações de con�d1c1onamento. Isto significa que um aumento quantitativo des­tas �elações produz, e� c.erto ponto, uma mudança, que torna possrvel um salto quahtat1vo imprevisto.

LUKÁCS - Engels escreveu numa carta que o desenvolvi­mento é um desenvolvimento social, mas que seria um êrro re­duz� a zero os fenômenos individuais. Se o senhor me permite, darei novamente u� exemplo bastante banal. Suponhamos que em algum lugar esteJa havendo uma reunião. O orador fala. As pessoas que estão reunidas divergem e contestam as alternati­vas propostas pelo orador. Entretanto a reunião é calma não há vaias ou. assobios, as pessoas �stão sentadas e quie� tas. O orador sabe, entretanto, muito bem que suas teses não serão acolhid_a�. Creio que falo de uma experiência comum, dealgo que cot1d1anamente qualquer musicista pode experimentar �urante um con�êrto e ;cada ator pode viver no teatro, porqueeles podem sentrr perfeitamente se sua atividade é aceita ou se é recusada. A grande fraqueza dos mass media está no fato de que tornam impossíyel êste efeito imediato da recepÇão. Mas� com meu exemplo, queria dizer-lhe que a decisão alternativa do i�d!víduo nã.o se reduz a zero. Mesmo que não esteja em cond1çoes de externar-se numa atividade, o complicadíssimo desenvolvimento da sociedade repousa exatamente no fàto de que as decisões dos indivíduos sigulares, mesmo sem se reduzirem

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a zero, não são de modo algum onipotentes e que a sua efi­cácia é e_xtraordinàriamente variável, conforme estejam integrtl­dàs numa ação histórica eventualmente importante ou não. De fato, por exemplo, o descontentamento da população parisiense antes da Revolução Francesa era enorme, tanto é verdade que um belo dia as pessoas se decidiram a destruir a Bastilha. Tem pouca importância se isto está ou não de acôrdo com a lenda de Camille Desmoulins, etc. A tomada da Bastilha ocorre, então, no dia em que as posições dos indivíduos se integraram em algu­ma coisa de extraordinàriamente importante do ponto de vista social.

HOLZ - Um dia os homens se decidiram. . . isso assume um ar terrlvelmente existencialista.

LuKÁcs - Veja, direi que Obviamente no existencialismo há qualquer coisa de justo . No meu livro anterior contra o existencialismo, afirmei inclusive que nós marxistas tínhamos fei­to mal em subvalorizar, apesar da advertência de Engels, a im­portância das decisões individuais. Não sei se o senhor se recorda de que naquele livro eu dava êste exemplo: se numa fábrica os operários decidem fazer uma greve, isso quer dizer que existiram quarenta mil decisões individuais. Na verdade, não há uma deci­são coletiva de quarenta mil, porque as decisões foram tomadas por quarenta mil homens singulares e foram depois integradas na decisão de tôda a comunidade operária. Por isso, Engels tem razão quando diz que não podem ser reduzidas a zero as decisões individuais. Pode tratai.:se de um número tão pequeno que, em determinadas circunstâncias, pràticamente não conte, mas isso em nada altera a. questão do ponto de vista ontológico. O senhor compreende ...

HoLz - Mas os críticos marxistas de Sartre sempre opu­seram uma nítida recusa ao esquema sartriano da decisão indi­vidual: Garaudy, na França, e também os soviéticos ...

Lmúcs - Olhe, devo dizer que isso me interessa muito pouco. 8 evidente que as pessoas tendem a ver regularidades mecânicas onde a necessidade se desdobra em múltiplos ma­tizes. O matizes são tais que é difícil saber se em 1917, caso Lênin não tivesse lutado com tanta energia e obstinação pela insurreição a 7 de novembro, teria mesmo ocorrido uma insur­reição ...

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ABENDROTH - ... pelo menos uma insurreição vito­fiosa ...

LuKÁcs - ... e se dois meses depois uma insurreição teria o sucesso que teve. O problema se coloca novamente nestestêrmos: um desenvolvimento das fôrças sociais de produção daRússia que ultrapassasse o nível conseguido em 1914 era abso­lutamente necessário. :Êste é um efetivo dado econômico. 1::, po­rem, um resultado da escolha dos homens o fato de que êstedesenvolvimento tenha assumido uma forma socialista. Natu­ralmente é de todo estranho às minhas intenções fetichizar aimportância da decisão de Lênin. Sem os movimentos revolu­cionários, sem a formação do Partido Bolchevique, sem as guer­ras mundiais, e assim por diante, não se teria produzido umasituação na qual uma decisão como a de Lênin pudesse ter umaimportância tão grande. Volto, assim, ao conceito marxiano.!iegundo o qual os homens fazem êles mesmos a história, mas emcircunstâncias que não escolheram. Eu o expresso agora com afórmula: o homem é um ser que dá respostas. Um ser que dárespostas é um ser que reage sõmente às alternativas que lhesão colocadas pela realidade objetiva. Mas, fazendo isso, êsteser abstrai certas tendências contidas no processo espontâneopara transformá-las em peguntas e encontrar para elas uma res­posta. Por isso, esta reação não é puramente espontânea. Umleão, ao devorar um antílope, constitui um processo puramentebiológico, no qual não está presente qualquer alternativa. Quan­do, ao contrário, o homem, através de seu trabalho, eleva àabstração sua relação de intercâmbio com o ambiente parafazer dela um problema ao qual deve ser dada uma reposta,esta alternativa é inserida no processo histórico. A contraposi­ção metafísica entre liberdade e necessidade p'ertence àquelegênero de coisas que herdamos do passado, mas que não devemser mantidas na forma em que o passado as transmitiu, do mes­mo modo como, por exemplo, não se pode continuar a acharpossível uma teleologia independente da causalidade, admitin­do-se que existam de um lado conexões teleológicas e, do outro,conexões causais. Na realidade, existem conexões causais queoperam de modo espontâneamente causal, e existem conexõescausais que são postas em movimento, de um modo particular,sôbre a base de uma iniciativa teleológica, sem com isso perderseu caráter de necessidade causal. Ora, creio que, a partir destas

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:;

conexões causais, a relação entre liberdade e necessidade devatambém ser colocada em uma nova forma concreta, que não anule a liberdade mas a concretize .. Creio que já dissemos que, se se formula o problema da liberdade de modo puramente abstrato, chega-se ao asno de Buridan, 1 que está diante de uma falsa alternativa, à qual não é possível dar resposta alguma. Tais alternativas não existem na realidade; nesta existem sempre alter­nativas concretas de vários gêneros, objeto de decisões concretas. Por isto, é inteiramente natural que subsista uma enorme gama de matizes, desde a decisão do indivíduo na vida normal ( que não é redutível a zero) até aquêles grandes momentos históricos nos quais a tomada de posição de um indivíduo singular tem uma importância decisiva. Nisso reside, exatamente, o funda­mento da inevitável desigualdade e descontinuidade do desen­volvimento histórico. De fato, nas alternativas e nas decisões a elas relativas interagem sempre componentes heterogêneos que, por causa desta heterogeneidade, têm um insuprimível caráter de casualldade. Gostaria de sublinhar, a êste respeito, como foi precisamente Marx a fazer notar a casualidade da presença ou não de um determinado tipo de · personalidade à frente de um movimento revolucionário. Parece-me que Marx se recusou a tirar daí deduções, mesmo se, do ponto de vista social, não pode certamente ser considerado casual o fato de que a Revolução Francesa tenha encontrado uma camada tão vasta de intelectuais de talento, não integrados na sociedade em que viviam. Dentro de certos limites, então, podemos determinar sociolõgicamente os fenômenos dêsse gênero. Mas a tentativa de deduzir sociolõgi­camente personalidades concretas como Danton, Marat, Robes­pierre, Saint-Just, etc., e de estabelecer detalhadamente de que modo as características gerais do campo de ação real agem sôbre êles, seria uma loucura. Aqui, existe uma insuprimível casualida­de na história, que é, também, um fator de desigualdade do de­senvolvimento, cómo o são as variadas heterogeneidades e discre� pâncias no mundo fenomênico da economia. l::stes fatôres da

I Para provar a existêncla do llvre arbítrio e desvincular a liber­dade de sua conexão com a neceS$ldade, Burldan concebeu a se­guinte situação: wn asno com fome, situado entre dois montes de feno iguais, colocados a igual distância em direções opostas, que razão (necessidade) teria para escolher wn dêles? CN. da T.)

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cai;ualidade e da desigualdade crescem de importância na medi9a em que os problemas passam do plano efetivo ao plan.o da ideologia. Seria, de fato, inteiramente errado ver a ideologia, nas formas concretas que assume, como um produto_ :çiecessá­rio do desenvolvimento econ�mico. Está fora de dúvi9a qlle a ecOnomia capitalista tem necessidade de uma regulamentação jW'ídica racional do movimento diferente daquela, suponha­mos, de que teve necessidade o feudalismo primitiro� Mas que êste processo tenha acontecido em certos países media­te a assim,ilição do direito romano, enquanto na Iogl_aterra os fatos ocorreram de maneira diversa, é algo que mostra que, .mesmo em casos dêste gênero, a satisfação ideológica das necessidades não é absolutametne unívoca. Não se pode dizer que o capitalismo inglês, pelo fato de não ter assimila­do o direito romano, não se tenba tornado um verdadeiro capitalismo ou que tenha deixado de funcionar. Neste caso, a desigualdade de desenvolvimento aparece de maneira par­ticularmente evidente. Para um dese11volvimento da religio­sidade feudal, através do Renascimento, até a época moderna, temos dois magníficos exemplos ideológicos: a pintura florenti­na e a pintura veneziana, que reagiram de maneira inteiramente diferente a êste desenvolvimento, sem que ambas deixassem de expressá-lo. Em certo sentido a pintura veneziana e a floren­tina pertencem ao mesmo âmbito, mas precisamente em conse­qüência de sua diversidade. Naturalmente, podem ser encontra­<las as razões mais diversas para êste fenômeno; podemos dar-lhe uma explicação precisa aprofundando nossa análise do real es­paço social que se vai configurando em Florença e em Veneza.

HoLZ - Mas, naturalmente, também os dados paisagísti­cos da Toscana operaram sôbre a sensibilidade visual de modo diferente dos de Veneza.

LUKÁcs - Sim, porém acredito que o estímulo visual que existia mesmo anteriormente só se transforma em arte no interior de determinadas condições sociais.

HoLz - Naturalmente. LUICÁcs - O senhor não acredita que as condições de luz

existentes na Holanda do século XIII fôssem exatamente iguais � do tempo de Rembrandt? Mas foi necessária a revolução holandesa para que elas pudesesm ex�rcer sua influência sôbre Rembrandt, Vermeer, etc. Assim, também em face dêsse proble-

{34

· direi que quanto mais se desenvolve a sociedade, tanto maisma, , . . claro" apàrece o ""recuo" dos limites naturats. . A •

HoLZ - Mas o senhor pode constatar a pr�extstencia de uma mesma forma de desenh�1 nos e�r�:cos, !1ª pmtura fl�ren­tina do Renascimento e, na mmha op1mao, ate em Mag;1elh.

LuKÁcs - Gostaria de fazê-lo, mas no momento n�o posso aprofundar-me numa discussão sôbre êste assunto. Creio que a tese Segundo a qual o objeto da figuração é semJ?re o mesmo se baséia numa abstração muito grande. Obviai_nente, em certo sentido, existe uma continuidade no des�nvolv1mento hu­mano. E é óbvio que há uma síntese gramatical �as palavras em fra:ses Significativas, uma síntese q�e no _essencial é a �es­ma em Homero e em nós. Neste sentido, nao nego . que existauma constância. Mas creio que vale a pena refletir sôbre. ofato muito interessante de que, no interior desta permanência, cada caso singular ( e, para permanecer no nosso terreno, cada fenômeno artístico) fornece uma resposta concreta a uma alter­nativa concreta, mesmo que estejam presentes e�ementos de _con­tinuidade. Nós possuímos uma literatura excepcionalmente rica e multiforme, mas hoje, em todos os casos, acentua-se �emp;� a "modernidade" sem que realmente as três formas da épica, lmca e drama tenha� sido destruídas: êste continua a ser o problema mais importante. De fato, não conheço nenh�. exempl� de ruptura destas três formas. Até mesmo os atuars literatos mo­dernos" escrevem "anti-romances:• e "anti-dr�m�s", reconhe­cendo tàcitamente com isto que existe uma contmutdade da for­ma romanesca e dramática. Creio que Beckett pode escrever um ''anti-drama", mas trata-se de um "anti", com relação. a certo desenvolvimento que vem de Sófocles ate ;1s nossos dias, que não deve ser confundido com o desenvolVIillento que vem de Homero até os nosso dias. De fato, em outra ocasião, um outro colega de Beckett escreverá um "anti-romance". Creio que, aqui, revela-se clar�mente co!Ilo a imensa tra?sform,!ção das determinações sociais e, por isso, das altern��vas, nao é umfluxo sem direção e sem margens; ao con�ran?, e ui_u fluxo que, depois de ter produzido certas d:termmaçoes mmto pre­cisas continua a manter-se em seu leito. Chego agora. a um outr� problema profundamente ontológico do desenvolvmtento

I Em italiano, no texto.

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social, problema a ser pôsto em relação com a estrutura da socie­dade, isto é, com a sua característica de ser um complexo de com­plexos extraordinàriamente rico e dotado de dois pólos em re­lação recíproca: de um lado, a totalidade da sociedade, que e?1 última análise determina a ação recíproca dos complexos smgulares; de outro lado, o complexo constituído pelo indiví­duo humano, que forma a unidade mínima irredutível do pro­cesso. E ambos os pólos, através de sua ação recíproca, deter­minam o processo no qual se realiza a humanização do homem. Engels descreve muito bem êste desenvolvimento, em seu iní­cio, quando fala do trabalho e da origem da linguagem, O "recuo" dos limites naturais, do ponto de vista do homem, significa uma progressiva humanização da vida. Uma conseqüência da desi­gualdade do desenvolvimento é que a humanização cada vez maior da vida produz, do outro lado, fonnas cada vez mais desenvolvidas de desumanidade, Nunca pude admitir que o horror gerado, por exemplo, pelo fascismo tenha sido apenas uma espécie de recaída na Idade da Pedra ou qualquer coisa do gênero. O fascismo é a atrocidade, a desumanidade, de uma forma de capitalismo altamente desenvolvido, Um fenômeno humano como Eichmann nunca existiu no tempo dos canibais, no qual, acredito, não teria podido surgir um homem em condições de fazer do aniqüilamento em massa dos homens uma operação tranqüilamente burocrática, Trata-se de um pro­duto da época imperialista, como nunca existiu antes; nem mesmo a Inquisição produziu figuras semelhantes: sõmente fa­náticos e políticos. O senhor compreende o que pretendo dizer quando procuro definir esta característica: o processo de huma­nização do ,homem é um processo cheio de contradições, queproduz contllluamente, e que deve mesmo produzir, o seu pólo oposto, até o seu êxito final. Mas, desde que em certo sentido êste processo nunca é um processo acabado, creio que Marx faz bem em considerar a economia, o processo de humanização do homem, como domínio da necessidade. Mas, para lá dêsse dado efetivo, nasce um complexo de problemas que se relacio­nam ao homem que chegou à humanidade e a partir do qual se ?esenvo!vem as mais altas formas ideológicas. Entretan­to, estes dms processos estão em conexão recíproca e só podem se tornar problemas geralmente sociais no comunismo desenvolvi­do. Marx chamou continuamente a nossa atenção para o fato

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de que nos processos anteriores são possíveis resultados limita­dos, ou, como ocasionalmente êle se exprimiu, relativos, e em certa medida contraditórios com relação a um maior grau de desenvolvimento social: resultados que,"porém, também são ante­cipações. Penso em Atenas, em Florença, em Veneza, na Holan­da do século XVII. Pode-se perguntar, nesse ponto, quando é passível nascer, de tais momentos, algo universalmente social. A resposta é: sômente no comunismo. Mas o desenvolvimento so­cial pode criar tão-sômente as condições objetivas do comunis­mo: se, depois, dessas condições, surgirá um coroamento da humanidade ou o máximo de anti-humanidade, isso vai depen­der de nós, dos homens, e não do desenvolvimento econômico em si mesmo. Quando nego que o desenvolvimento econômico produza automàticamente o socialismo, creio estar reproduzindo corretamente, sob êste aspecto, a concepção do socialismo como alternativa contida no Manifesto. As pessoas inteligentes nunca pensaram o contrário.

HoLZ - Para voltarmos a um conceito hegeliano, pode­ríamos formular esta questão dizendo que a relação entre neces­sidade e liberdade ou entre necessidade e possibilidade equivale à relação de identidade entre identidade e não-identidade,

LUKÁCS - Por isso, parece:-me que o fator liberdade adquiriu um significado cada vez maior, cada vez mais ampl:>, que abarca a humanidade inteira. Quanto às formas ideológt­cas mais altas ( em certo sentido não só a arte e a ciência, mas inclusive a ética) chegou-se a pensar, numa certa ocasião, que se_u significado estivesse limitado à apreciação de uma pequena mi­noria. As antigas éticas eram aristocráticas, não no que se refere às suas origens mas no sentido de que não era possível a cada homem ser um estoico, um sábio estoico ou epicurista. A enorme importância ética de Goethe pode ser colhida, na minha opinião, no aforisma segundo o qual o homem mais limitad_o tem, entre­tanto, a possibilidade de se completar, de se realizar. Do que se conclui: a inteireza ética do homem não depende de sua capa­cidade intelectual, de seu talento.

ABENDROTH - Porém, esta tese não tem ainda um valor prático para o tempo de Goethe; a época capitalista não pode produzir ainda esta possibilidade para todos os homens.

LuKÁcs - Não, mas na minha opinião Goethe j{1 coloca poêticamente esta exigência; e a grande importância de figu-

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ras como a de Kfürchen do Egmont, a Dorotéia de Anntnio' ·epo1:otéia, a Philine de Wilhelm Meister, demonstra como tal mte1reza moral e humana é possível para sêres· bastante ·sim­ples em 7ondições. muito limit�das, inclusive em choque com osprecopce1tos morais da comunidade, como é o caso de Phillne. Sob este as�ect?, considero G�the uma figura exemplar, por­qu_e pela primeira vez esta atitude geral democrática torna-se evide�te em todo o seu trabalho, conquistando assim um valor ta��em para o futuro. Antes de Goethe, isto nunca se tinha venf!�ado, ne!11 em escritores singulares nem em qualquer siste­ma etico. Creio que, para o desenvolvimento dessa idéia Goethe teve uma importância semelhante à dos maiores morai'istas do passado. Com isto quero �ostrar como todos êsses problemas tenham se tornado possíveis sôbre a base da economia mas como depois só podém ser efetivamente resolvidos através das opções humanas.

ABENDROTH - Eventualmente na forma de antecipações no pensamento; a realidade econômica oferece apenas alrunS elementos que tornam possíveis tais antecipações.

· .,

. LuKÃ�s - :É certo. As antecipações no pensamento sãommto frequentes na humanidade. A continuidade do desenvol­vimento espiritual d� huma�ida�e repousa· no fato de que exis­t:m, na verdade, tais antecipaçoes; e, por esta razão, cada pe­n�o, �scolhe o �?e Ih� serve em todo o passado seguindo Oprmc1p10 de Moliere: Je pren<ls mon bien oU je le trouve".A �ontinuidade não significa, então, imortalidade permanente. Crem. que basta pensar no caso de Homero ou de Shakespeare par� �os darmos conta de que certas posições podem entrar em d�chmo por séculos. E, não obstante, esta recordação da huma­mdad� existe objetivamente, em sentido análogo ao cj_ue havía­mos dito antes; na sala de reuniões e no teatro existe um senti­mento,. ainda que ninguém o externe. Penso que esta presença

P_otenctal de certas tendências seja algo que caracteriza· cm altís­simo grau a evolução da humanidade.

�ENDROTH - Esta consideração é o segrêdo de tôda recepçao que se torna possível mediante a retomada de urna ante:ipação no pensamento, reatualizada através dos paralelos r�lativos entre os problemas socialmente objetivos de um pc­nodo precedente do desenvolvimento histórico e as questões 138

do presente. Freqüentemente, desenvolvem-se - a partir dessas recepções - novas respostas, com as quais cai-se na ilusão de prosseguir os processos dos pensamentos precedentes na velha forma que tinham na antecipação, oti- seja, retomando-se a antecipação de um modo literal e dogmático.

LuKÃcs - Para voltar ao que eu disse antes, acredito que não exista no homem qualquer órgão capaz de garanti!" fun­cionalmente a continuidade, órgão que deveria existir caso fôsse êle um. ser que produz originàriarnentc e não um ser que for­nece respostas. Diante dos problemas reais colocados pela vida, aquilo que é cspeclficamente necessário para as alternativas atuais é selecionado no fluxo da continuidade ideológica, atra- · vés de atividade dos homens individuais.

HoLz - Creio que não devemos nos descuidar também de uma outra conclusão, que se deve extrair daquilo que o se­nhor disse . O senhor se referiu à forma desigual do processo histórico . Mas, ao lado desta forma genericamente desigual, pro­duz-se também uma desigualdade temporal que é objetiva, so­cial. Tomemos fenômenos formalmente sincrónicos, como, por exemplo, a existência, um ao lado do outro, de estágios de de­senvolvimento social temporalmente diferentes em países dife­rentes, países que devem,· entretanto, ter também contatos recí­procos, como acontece atualmente com os países subdesenvolvi­dos e os países altamente industrializados. Ou, então, tomemos o exemplo de um país no qual se tenham conservado resíduosde modos de produção e de instituições sociais anteriores aocapitalismo, a despeito de sua já dominante estrutura industrial.Fenômenos dêste gênero levam a complexas contradições, sejano processo ideológico, seja no processo da história real, aumen­tando assim a importância do momento da casualidade e d.aimprevisibilidade do desenvolvimento.

LuKÃcs - Estou inteiramente de acôido com o senhor; protestaria apenas contra a terminologia, creio que introduzida por Bloch, da desigualdade temporal, porque a essência do tem­po é tal que, mesmo passando, perrrianece no presente . Os es­tágios sociais mais- diversos e contrastantes, presentes num país ou no mundo, são interessantes exatamente pelo fato de serem contemporâneos.

HoLz - Não cireio porém que, com isso, possa ser refu­tada a importância do fenômeno.

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LUKÁCS - Não; refiro-me apenas ao têrmo. Só protesto contra o têrmo porque, de Einstein em diante, tornou-se grande moda trabalhar com um tempo subjetivo e subjetivamente ani­mado, quando o "tempo", na verdade, é uma categoria onto­lógica inteiramente geral, que não se relaciona absolutamente com o desenvolvimento da sociedade. Nós trabalhamos no tem­po, mas a idéia de que o tempo passa mais ràpidamente hoje e mais lentamente nas épocas primitivas, ou algo assim, é mani­festação de um einsteinismo vulgar que o próprio Einstein acredito, teria recusado com desgôsto . Todo o problema da; culturas subdesenvolvidas nasce, aliás, do confronto; enquanto não havia uma economia mundial e, por isso, não havia sur­gido ainda um confronto efetivo, ambos os tipos de cultura tinham vivido pacificamente um ao lado do outro, não tendo surgido nenhum problema para os países mais atrasados. O pro­blema surgiu quando o desenvolvimento autóctone dêsscs últi­mos foi interromipdo pela colonização, O confronto se apre­sentou como uma nova questão, nascida com o início do capita­lismo.

ABENDROTH - Como Marx escreveu com muita razão em seu Manifesto, êste fato nos permite compreender como e por­que os países atrasados, numa primeira etapa, parecem trans­formar-se em puro objeto do mercado mundial capitalista, do­minado por uns poucos países industrialmente desenvolvidos. Ma_s, ao mesmo tempo, êstes países atrasados, que numa pri­meira etapa foram passivos, transformam-se, através do próprio confronto, em sujeitos do processo. Neste ponto, o problema do confronto assume imediatamente formas novas e complexas.

LUKÁCS - Sim; trata-se apenas de recolocar um problema histórico ontológico, que foi colocado até agora por nós, na Europa, de uma maneira errada. Na Europa tivemos sem dú­".ida um desenvolvimento histórico que, visto de longe, parece lmear: Grécia, Roma, cristianismo, invasões bárbaras, feu­dalismo, capitalismo, socialismo, etc. :e muito fácil imagi­nar, à base dêste desenvolvimento, uma razão teleol6gica, como de fato sucedeu na filosofia da história de Hegel. Ora, as outras fonnas de desenvolvimento são ricas em ensinamentos para nós porque permitem-nos ver como, já na diferenciação do estágio m�is primitivo (penso na origem e na dissolução das gens),existam alternativas objetivas. Por isso, o desenvolvimento da 140

l

E ropa não obedeceu a uma necessidade teleológica, por _excm­t à necessidade das diferenciações do trabalho na sociedade

fu�dada sôbre as gens; o que ocorreu f�i. que, em certas condi­ções ( que a ciência deve ainda �etermi.?ar em seu� pormeno­res), surgiu uma certa forma de drssoluçao dessa soc1e�ade q_?e, ntre nós levou a êsse desenvolvimento. Em outras c,rcunstan­

�ias, porém, chega-s� �quilo que Ma�:X �isse a propósi!o das chamadas relações astáticas de produçao, isto é, a nao dissolu­ção da sociedade gentilica, sôbre a qual pode elevar-se uma superestrutura estatal. A análise de Marx é sempre fundada no fato de que esta base, quando desaba a superestrutura, repro­duz-se sempre no mesmo nível e, em certa medida, :por si mes­ma Falo aoora de um modo inteiramente genénco, exata­me�te para ;_ostrar como a tendência que caracteriza o desen­volvimento típico da civilização mediterrânea resulta certamen­te de posições teleoló?icas, mas en'l;ua�to totalida.de não tem características teleológtcas. Marx atnbutu a Darwm o grande mérito de ter libertado a origem das espécies da teleologia. Deve­mos estender êste tipo de consideração �o pr�cess_o histórico. E disso surge agora uma outra categona murto mteressante. Creio que, observando a origem das espécies, poderemos ver nela claramente o caráter não teleológico do surgimento dos bec�s sem saída �a evolução. Há um beco sem saída, por exem­plo, na sociedade dos insetos, ond� vários insetos d�monstram em geral um grau evolu:iv_o maravtlhosamente _ combm':d':1 com paralisação em certo estagto

_. Negar ª. conotaçao !eleolog,ca de

um processo evolutivo equtvale a dizer que e�rstem �orre�­tes capazes e correntes inêapazes de desenvolvimnto, isto e, correntes que se reproduzem continuamente sem chegar, po­rém, àquele desenvolvimento dialético superior a que chegou, por exemplo, a civilização mediterrânea. Devemos constatar esta grande diferença entre nós e os chamados povos atrasados. E isso não tem nada a ver com o fato de que êstes povos tenham tido em certos períodos uma produção artística, filosófica e científica altamente evoluída. De fato, isto é inerente à essên­cia do desenvolvimento desigual, para voltarmos agora ao pon­to do qual partimos. A pintura das cave:na� d? pescador. e d_o caçador primitivo criou uma arte que f01 atmgtda, apr�>Xlmatl­vamente, apenas muitos milênios mais tardf. Gordon Ch!lde des­creveu muito bem êste período como uma epoca que devia entrar

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em colapso através de um cataclisma geológico. Por isso, o nôvo , desenvolvimento, em seus inícios, ocorre culturalmente em um·, estágio muito mais primitiv?. Mas, desde que a caça e a pesca.· eram completadas pela agncultura e pela criação dos animais êste nôvo impulso se encontrou, do ponto de vista objetivo' A • , • • •

• econom1co, em um estagio supenor. Se qmser, temos aqui um grande exemplo do desenvolvimento da nossa cultura já emseus estágios mais primitivos. . H?LZ - Por outro lado, estamos em condições de. apre­ciar h�Jei em outro estágio inteiramente diferente, êstes produ­

tos art1st1cos como arte. . LmCÁcs. - :e. certo; e isto mostra apenas que o desenvol­Vllllento desigual é ao mesmo tempo uma evolução continua

que tem por objeto o tornar-se homem do homem. ' ABENDROTH - Exatamente. Por outro lado, isso nos leva

também ao problema atual. De fato, tendo-se em vista que êsses chamados becos sem saída do desenvolvimento social ( ou seja a estagnação do desenvolvimento das fôrças produtivas e� tôdas as culturas p<;>ssíveis, hoje, em confronto com a civilização t�nica do capitalismo industrial) são, de qualquer modo, civi­lizações humanas, o nôvo problema do mercado mundial que decorre do nosso desenvolvimento conduz à integração· da huma­nidade em uma nova unidade. Por isso, mesmo para essas civi­lizações, surge a possibilidade de responder e de inserir-se como sujeito em um nôvo estágio do problema humano em seu todo isto é, de ser incluídas, com iguais direitos, na mais alta form� representada pela unidade global do processo histórico do desen­volvimento da humanidade.

LmCÁcs - Estou inteiramente de acôrdo com o senhor. Creio, porém, que precisamente neste ponto a questão deva· ser reexaminada, de modo a aparecer claramente a diferença entre um beco sem saída (para continuar a usar esta expressão) ·de natureza biológica e um beco sem saída de natureza social. Um beco sem saída biológico é insuperável e não pode seÍ:' mudado em nehuma hipótese, enquanto que no desenvolvimento humanoo fator dominante é o social e, por isso, um beco sem saída de tal tipo é sempre relativo. Se me permite, direi que, se imaginás­semos o desenvolvimento greco-romano sem as invasões bârba­ras, a escravidão teria sido um beco sem saída na evolução da humanidade.

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. ABENDROTH - Se bem que outras tendências do desenvol­,Vím.ento, imanentes a êste processo, já nos teriam levado a uma 1'tapa superior à da escravidão, como aparece em muito_s aspec­·�ÕS da evolução da Antigüidade tardia. ·

LVKÁCS - Creio, porém, que a contradição entre a exis-. iência econômica das colônias e as tendências centralizadoras da . 6ur0Cracia do Estado Romano era insolúvel para êste último

e que, portanto, as invasões bárbaras e a queda do Império Ro­mano eram necessárias para escapar dêsse beco sem saída. Com esta explicação fica esclarecido o que defino, do ponto de vista filosófico, como beco sem saída, o qual, do ponto de vista social, é sem saída apenas relativamente. Ora, não diria que a nossa relação com os povos atrasados seja algo semelhante às invasões bárbaras; ao contrário, é algo inteiramente diver­so. Entretanto, aqui está naturalmente presente a possibilidade -objetiva de que êstes povos saiam do isolamento de seus impas­ses através do confronto com a nç,ssa cultura. Neste pontosurge a questão mais importante. No prefácio ao primeiro vo­lume do Capital, Marx sublinhou que o desenvolvitnento é ne­cessário, mas acentuou que através do conhecimento científicoo desenvolvimento pode ser abreviado e podem ser mitigadasas dores da transformação. Creio que esta tese de Marx é extra­ordinàriamente importante. Marx sublinha que o conhecimentocientífico do processo é um elemento essencial. Ora, adquiri-lo era, na realidade, uma tarefa grande demais para um só homem.Marx esclareceu o desenvolvimento capitalista e, mediante bre­ves observações, o seu passado próximo e até remoto. Marxnão pôde ocupar-se a fundo, ·mas só de modo periférico, dasrelações asiáticas de produção. Mais tarde, neste campo, foramfeitas descobertas da maior importância, mas desconhecemosinteiramente quais foram as relações de produção na Africa.Devemos confessar abertamente que, em relação a êste assunto,somos inteiramente ignorantes e trabalhamos mal com juízosinteiramente provisórios, fundamentados em artigos de jornais.Creio que isso deva ser dito de uma vez por tôdas, sem ro­deios, para chegarmos àquele grau de honestidade recomen­dado por Sócrates: a distinção entre aquilo que sabemos eaquilo que não sabemos. Neste caso devemos pôr claramenteem primeiro lugar o não-saber. E aqui vejo-me novamente

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obrigado a fazer uma severa crítica ao stalinismo. Nas dis­cussões da década dos vinte, creio que nas discussões sôbre os sindicatos, Lênin, falando sôbre a situação chinesa, dizia nada saber sôbre o que acontecia na China meridional. Lênin o disse com brutal franqueza, mas isso não o impediu de defi­nir claramente, nas teses do Segundo Congresso, as tarefas dopartido dos trabalhadores diante da revolução chinesa. Entre­tanto era dever da ciência marxista descobrir o que realmenteaconÍecia de particular naquelas regiões. E não é ainda muitotarde para se fazer êste estudo. Mas devemos constatar que omarxismo stalinista, assim como se descuidou de publicar todosos escritos de Marx, coisa que teria sido extremaI?ente fácil ( e ainda hoje só temos à disposição uma parte redu21da das obras completas de Marx), também não levou avante êste trabalho. Os textos não publicados de Marx estão no Marx-Engels-Ins­t1tut e Riazanov disse-me uma vez, na década de trinta, que o manuscrito de O Capital enchia por volta de dez grossos volumes. Entretanto, êles nunca foram publicados. Pudemos constatar como a publicação dos chamados esbôços propedêuticas às obras de Marx nos permitiram conhecer tantas coisas novas sôbre o marxismo. Pois bem: o stalinismo não assumiu nem mesmo esta tarefa elementar. A constatação nos leva agora a concluir que, depois da correta definição de Lênin das tarefas dos partidos operários no plano geralmente político, depois dos contínuos progressos dos movimentos de libertação nacional anticolo�ia­lista, um sistema socialista podia e devia oferecer �o mínimo uma análise historiográfica marxista do desenvolvzmento de todos os povos atrasados. De fato, se nos defrontamos com êste problema apenas no plano político, se� conduzirmos esta aná­lise de maneira cientüica, ficaremos simplesmente no terreno do diletantismo.

Imagine, por um instante, que O Capital e os outros escri­tos de Marx nunca tivessem existido . A nossa política no ter­reno do trabalho não teria ficado, talvez, num puro diletan­tismo?

ABENDROTH - Sem dúvida. Mas na minha opinião o pro­blema tem também um outro lado, que deveria ser esclarecido. O problema geral do qual partimos conduz à possibilidade obje­tiva de chegar, meSmo em condições inicialmente não previstas, ao limiar de uma evolução em sentido socialista que se realiza

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no desenvolvimento prático, mesmo se numa forma no início bárbar'a e destorcida. Nem o marxismo russo nem o europeu puderam oferecer uma receita estratégica à Revolução Chinesa. Nos países anexados ao capitalismo primeiramente apenas na qualidade de objetos desenvolveu-se uma teoria revolucionária, que se tornou uma ·realidade no palno das idéias. Ela assimila os elementos do marxismo, ainda que numa primeira etapa o faça de forma bastante diletantesca. Mas estas nações devem dar sua resposta aceitando como um fato consumado que, even­tualme1ite, ela comporte contradições grosseiras e erros, levando também em conta grandes sacrifícios.

Lmúcs - Justamente . Veja, estou inteiramente de acôr­do com o senhor e acrescentarei apenas um elemento à nossa posição·. Este elemento se encontra na tese do Segundo Con­gresso Mundial do Comintern, onde foi definido com muita exa­tidão. Não se pode dizer que a colonização tenha sido apenas um choque violento de dois sistemas . Pelo contrário, os dois sistemas entraram numa certa relação usando a mesma for­ma de que já se tinha beneficiado a Companhia Inglêsa das Ir.dias Ocidentais, e que consistia no seguinte: a intervenção capitalista contra tôdas as aspirações de reforma dos povos atra­sados, por mais confusas que elas fôssem inicialmente, devia apoiar-se nas camadas que queriam manter o antigo estado de coisas e para isso se dispunham a entrar em acôrdo com o país colonial. Esta foi, por exemplo, a política realizada por War­ren Hastings na fndia. Se consideramos a situação atual e a po­sição dos Estados Unidos da América, não apenas no Vietnã, mas também na América do Sul, veremos que é o prossegui­mento atual da pol1tic� de Warren Hastings. l';:ste problema, nós bem o conhecemos. E, de fato, pelo menos em relação a êle, podemos tomar uma posição precisa. Quando os democratas europeus dizem "basta com a tradição de Warren Hastings", exprimem algo importante e cientificamente correto, mesmo se hoje não estão em condições de dizer o que deve ser feito em Zâmbia Ou na Somália, no lugar do que foi feito até agora. Nisto co_nsiste, na minha opinião, a grande falta, e muitos jo­vens desiludidos com esta situação e prontos a oferecerem com sincero entusiasmo sua contribuição deveriam ao menos em­pregar urna parte de seu talento científico para ajudar êstes po­vos atrasados com um trabalho de pesquisa. Creio que se, das

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amplas camadas de jovens que nos países europeus. ficam irritadas com a atual situação existente no Vietnã, ap;treces­sem dez ou quinze boas monografias sôbre determinados países, poderíamos falar de uma ajuda extraordinàriamente eficaz tra­zida às fôrças realmente progressistas em ação nestes países.

ABENDROTH - Estou inteiramente de acôrdo com o senhor; por isso, no nosso instituto, por exemplo, o trabalho de Kurt Steinhaus sôbre o Vietnã representou o início de um pequeno .auxílio nesta direção. Mas, pelas escassas possibilidades de uma análise marxista nos países industriais da Europa Ocidental, tais iniciativas permanecem necessàriamente conio um caso mais ou menos excepcional, que só pode ter lugar em condições excep­cionais, particularmente favoráveis. A situação é a que é; por outro lado, nestes países, é inevitável que continue por enquanto a identificação do capitalismo ainda imperialista das grandes

nações com as camadas reacionárias dominantes da burguesia compradora dos países atrasados, etc. Enfim, no país atrasado, as fôrças progressistas devem responder por uma reação às inter­venções imperialistas, embora possam fazê-lo de modo diletante e com uma assimilação ainda superficial do marxismo. Por tôdas essas razões, �s fôrças progressistas devem cometer freqüep.te­mente grandes erros, que comportam também efeitos secundá­rios desumanos. A diferença entre o desenvolvimento chinês e o indiano depois da Segunda Guerra Mundial mostra-nos que,apesar de todos êstes erros, em muitos dêstes países a alterna­tiva socialista oferece possibilidades de maior progresso do quea alternativa que leva a tolerar posteriormente as posições defôrça das camadas dominantes e o seu acôrdo com as novas clas­ses capitalistas mais ou menos abertamente disJ)o�tas a deixa­rem-se guiar pelos Estados ocidentais de capitalismo desenvol­vido. A conseqüência necessária de semelhante situação parece­me ser esta: nós devemos tolerar e não podemos acusar deheresia os erros que as revoluções socialistas que tiveram êxitocometeram nos países em vias de desenvolvimento. Tambémas .atrocidades que acompanham os processos revolucionáriosdêste gênero devem ser criticadas, mas não podem ser tomadascomo pretexto para denegri-los.

Lu.KÁcs - Se o senhor diz que essas revoluções não po­dem ser desmoralizadas pelos erros que cometeram estou intei-

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�tamente de acôrdo. Por outro lado, existem erros tãó evidentes que devem ser criticados com todo o rigor ... .. .ABENDROTH - Certamente. . .

LuKÁcs - ... e no interêsse do país atrasado em ques­tão ...

ABENDROTH - Obviamente ... LuKÁcs - ... mesmo no caso de que a crítica não traga

hoje qualquer efeito útil no plano imediato. Retorno ainda uma vez a Lênin, a cuja política exemplar volto sempre a me referir . Desde 1905, Lênin tinha visto no partido camponês dos socialis­tas revolucionários um aliado potencial; entretanto, não deixou: de criticar com a maior severidade sua falsa ideologia. Deve­mos romper com as idéias erradas que surgiram nas frentes populares stalinianas: por exemplo, com a idéia de que as pes­soas que nunca assinaram um manifesto sejam, só por isso, irremediàvelmente reacionárias. Uma frente popular, querendo empregar êste têrmo, que se refere a êste problema, só é possí­vel se os elementos conscientes lutam juntos segundo sua capa­cidade atual, mas exercendo uma crítica recíproca. A conexão dêstes dois momentos me parece ser um dos problemas mais importantes do desenvolvimento futuro. Do contrário, origina-se um amálgama sem princípios, cujo aspecto mais deletério n�o consiste em considerar uma heresia a não-participação ( o que Já seria um mal), mas em não criticar os que participam. Creio que isto nos leva outra vez ao mesmo tema, porque se há um momento no qual o reconhecimento destas conexões é uma ne­cessidade prática irrecusável (visto que mesmo nos países indus­trialmente desenvolvidos a fota pela transformação das estrutu­ras torna necessárias as alianças), êste momento é o nosso mo­mento atual. Trata-se de uma questão tão complexa quanto a da relação com os povos atrasados . Aqui, cada um deve esfor­çar-se por chegar ao máximo de clareza, e a meu ver o pri ... meiro pressuposto necessário é o de distinguir bem o "isto eu­conheço" do "isto eu não conheço".

ABBNDROTH - Estou inteiramente de acôrdo com o se­nhor. Mas o ponto de partida do "isto eu não conheço"· é provi­sório. :e. limitado pelas experiências concretas de cada desenvol­vimento. A extensão do "isto eu conheço" e do "hoje quero isto concretamente", que resulta daquele, traça os limites necessários das alianças que substituem, na luta, as velhas constelações do

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tipo frente _popular; mas depois recolocam-se necessàriamente novas questões do gênero "isto eu não conheço", em um nível nôvo e mais elevado. Por isso, em qualquer frente popular, tor­na-se indispensável uma discussão interna e uma crítica recí­proca para depois tornar possível reagrupamentos do mesmo gê­nero sem mútuas acusações de heresia.

LuKÁcs - Sim, posso dizer, novamente, em relação a êste assunto: "não o conheço". Não me lembro ao certo se trata­mos dêste tema nas conversações anteriores; tenho a impressão de que sim. Um .dos traços ontológicos gerais de tôda decisão parece-me ser êste: no curso do desenvolvimento humano nun­ca foi tomada ·uma decisão com plena consciência de todos os fatôres subjetivos e objetivos . E hoje, com o aumento da com­plexidade das condições atuais, o percentual dos elementos rião dominados conceitualmente é talvez imensamente maior do que antes. Não nos esqueçamos, porém, de que isso absoluta­mente não é suficiente para produzir uma situação ontologica­mente nova. Esta é de fato a condição na qual tôda atividade se desenvolve. Além disso, constata-se histôricamente que, com freqüência, os indivíduos agiram corretamente à base de uma falsa ideologia,, a começar pela travessia de Atenas a Alexan­dria, para dar apenas um exemplo grosseiro, realizada à base dá astronomia ptolomaica e entretanto perfeitamente bem suce­dida, tanto na ida quanto na volta, apesar do êrro do funda­mento teórico de tôda a viagem. Devemos ter sempre diante de nós esta estrutura do agir humano e compreender que exis­tem situações nas quais devemos agir necessàriamente, inde­pendentemente da medida em que as situações são conhecidas. Se me perco num bosque por causa da neve, devo tentar encon­trar o caminho de casa . Posso conseguir isso· mais ou menos bem, em têrmos que vão do 6timo ao péssimo, mas certamente não me· sentarei para esperar um bàm mapa do local no qual me perdi, senão morreria de fome . Se com as minhas idas e vindas, de um lado a outro, encontrarei ou não o caminho, é uma outra questão, mas andar às apalpadelas para cima e para baixo é sempre melhor do que ficar simplesmente esperando um mapa completo do local. O exemplo é bastante grosseiro, mas creio que o senhor compreende o que eu quero dizer. Com isso não quero afirmar que um jovem, desiludido com o colonialismo e entusiasmado com a revolta dos povos oprimidos, deva par-

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tir imediatamente para a Somália, para lá organizar um movi­mento armado.

ABENDROTH - B preciso su.blinhar esta observação por­que, na atual estagnação dos conflitos nos países capitalis'tas aI�mente desenvolvidos, a atividade da juventude conduz muito fàcilm.enthe a f�s�s identificações. Nos países coloniais, o'u melhor, neocoloma1s, a ação é absolutamente necessária e tam­bém a s?Ii�ariedade em face dêles é indispensável; porém a tà­refa mais importante para os jovens intelectuais críticos deve ser desenvolvida nos seus países de origem.

Lu_KÃcs - S�. Creio apenas que é tarefa das pessoas maisesclarecidas do Ocidente oferecer a êstes jovens impacientes uma linha de conduta razoável e mostrar-lhes que podem ser da maior utilidade ao movimento através de um comportamento que não esteja limitado a um ativismo cego.

Presenciei, no passado, o nascimento do fascismo na Ale­�anha e _sei. muit:> bem como muitos jovens que partiram entãoae uma md1gnaçao honesta contra o sistema capitalista ternii­�aram..po: aderi� ao fas�ismo. Na verdade, freqüentemente, esta1mpac1encia, umda. à mcapacidade do partido comunista de mudar a sociedade e o desenvolvimento alemão ( devido a certas condições históricas), jogou-os no campo do fascismo a des­peito,. por vêzes, da honestidade dêles. Não devemos no� esque­cer disto, e devemos fazer todo o possível para canalizar essas energias numa direção em que possam ser de efetiva utilidade. Neste contexto coloca-se, lôgicamente, um problema que deve­mos discutir aqui: a utilidade pura ou a pura correção tática d.e uma revolução não bastam para despertar nos jovens O entu­siasmo necessário à ação prática. A fraqueza dos movimentos de esquerda, em geral, consistiu e consiste no fato de que êles têm poucas condições para despertar um entusiasmo dêste gê­nero.

Do tecnicismo moderno, do neopositivismo do comporta­mentismo e assim por diante, origina-se uma t'endência prati­ci�ta que. i?ftuencia, em cer�o sentido, até mesmo homens quenao participam daquelas onentações . .:Bstes pensam, na reali­dade, que a atividade prática se esgota em certos aspectos táti­cos, aspectos que possu�m estas ou aquelas características, por certas ou erradas que seJam.

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Ao contrário, não há dúvida de que todo movimento que realizou, efetivamente, alguma coisa, atingiu o entusiasmo ao qual deve a sua eficítcia graças à sua perspectiva histórica e não a simples frases. É interessante notar como, inclusive exa· minando o destino do fascismo, verificamos que o entusiasmo suscitado inicialmente por Hitler foi produto não tanto das fra­se� puramente demagógicas quanto das grandes perspectivas (amda que falsas, de um ponto de vista histórico-objetivo) con­tidas no fas.cismo. Assim, não podemos sair do dilema histó­rico: o despertar do entusiasmo só é possível se fundado sôbre uma perspectiva. Só partindo desta perspectiva, um homem po· de compreender que, com ela, também a sua vida pessoal será mudada. Para que num homem concreto possa nascer um movi­mento de entusiasmo, a perspetciva deve ser ad hominem. A grande fraqueza dos movimentos de esquerda em todo o mundo atualmente é a incapacidade de desenvolver um entusiasmo dêste gênero pelas nossas perspectivas. Isto é válido também para os movimentos de reforma nos países do campo socialista. Em relação a isso, devemos reconhecer os nossos limites e nos­sos erros com muita clareza, para podermos estar em condições de fazer alguma coisa para eliminá-los.

ABENDROTH - Entretanto, a razão disso está em grande parte no fato de que nós mesmos não tenhamos desenvolvido as perspectivas: existe, por isso, o perigo de que no lugar das perspectivas reais apareçam perspectivas aparentes ou a pura e simples resignação. Esta falha transparece claramente do exemplo com o qual iniciamos nossas considerações, o exemplo do confronto hoje em ato no mundo unificado pela indústria ca­pitalista, isto é, do processo mediante o qual as sociedades dos países que já foram colonizados e atrasados se tornaram sujei­tos. O processo atual que ora se realiza em todos êstes países oferece uma perspectiva imediatamente evidente a grande parte da nova geração, que passa a ter uma visão crítica e tende para a esquerda. Daí a tendência a esquecer muito fàcilmente a pró­pria identidade subjetiva e a identificar-se a tal ponto com as tarefas subjetivas do movimento revolucionário anticolonialista que chega-s� mesmo a não ver mais e não mais reconhecer que a tarefa mais urgente dos jovens intelectuais ativos e dos tra­balhadores dos países de capitalismo amadurecido deve ser levada a têrmo no próprio país dêles. A pura aclamação às

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rcvoluÇ.ões coloniais por parte dos jovens intelectuais dos países capita\istas ainda não é uma praxis verdadeira e própria; se as relações de fôrça não mudam, ou se a intervenção dos países imperialistas não encontra sérios obstáculos, esta ati­tude se reduz objetivamente à resignação sob uma aparente atividade. Nisto consiste o lado negativo, que hoje estamos reco­nhecendo, da grande influência de Fanon sôbre as jovens ge­rações doS Estados Unidos e da República Federal da Alema­nha. Devemos ajudar os jovens, esclarecendo às novas gera­ções que a perspectiva da luta pelo socialismo e pela democracia nos países industriais de capitalismo desenvolvido, nas socie­dades altamente industrializadas, serve também aos movimen­tos dos países que o capitalismo oprime, porque uma socicôade socialista altamente industializada poderia ajudar de maneira mais eficaz as nações subdesenvolvidas.

HoLz - Sim, a situação atual é a seguinte: no trabalho científico do mundo ocidental, predomina um tipo de metodo­logia científica absolutamente inadaptado para indicar perspec­tivas e, por isso mesmo, fechado a tudo o que registrou a observa­ção. �ste é o problema do neopositivismo, não só no campo lógico e filosófico, mas também no campo das ciências sociais.

LuKÁcs - Falando de modo geral, trata-se fundamental­mente da tentativa de eliminar tôda ontologia, de eliminar todo aspecto ontológico da praxis do homem. Ora, como já foi dito, é possível, e o neopositivismo se vale dêstc fato, encaminhar uma justa praxis através de uma teoria errada. Quanto mais nos aproximamos, no desenvolvimento da ciência mo­derna, da prática real, ·econômica, por exemplo no aperfeiçoa­mento técnico de um processo de trabalho, tanto menos impor­tante se torna na elaboração das leis físicas e químicas a questão de saber se os seus fundamentos teóricos, no sentido da ciência geral da natureza, são corretos ou não. Para voltar ao exemplo anterior da navegação na Antiguidade, pode ocorrer que com as teorias mais falsas se possa manipular a ciência em sentido tCcnicamehte justo. O pragmatismo sustenta que o que é eficaz é tambéffi verdadeiro, mas esta tese, numa esfera mais ampla do que aquela imediatamente prática, não é verdadeira e pode ser demonstrada como falsa. Se não fôsse assim, o sentido teó­rico da totalidade permaneceria obscuro e não se poderia mais pensar cm nada além das relações sociais existentes. Se não

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fa_zemos . uma ampla crítica da visão neopositivista, aqu.ela di­visão manipulatória do trabalho - que eÍn certo �ntido é também necessária e que, por assim dizer, separa nas. éi�ncias as disciplinas umas das outras - acaba por transformar esta divisão em disciplinas numa barreira ontológica no interior da realidade. Se, por exemplo, um biofisiólogo efetiva certas Pes­quisas biofisiológicas, não se preocupa geralmente com; _outros aspectos evolutivos do organismo. a. significativo que ·a .cada momento surja um setor nôvo da medicina, e depois de um breve tempo verificamos que a nova conquista . médica .exerce, noutros aspectos, efeitos que causam dano. ao organismo. Se olho esta situação com olhos neopositivistas, então isto_ se torna evidentemente inevitável. Na pesquisa X são ·indagados apenas certos efeitos: depois chega a pesquisa Y, completamente independente da primeira, que esclarece as conseqüências con­cretamente danosas. :Êstes efeitos úteis e danosos têm lugar no mesmo organismo e êste organismo morre: esta é uma ver­dade ontológica, desagradável no caso em questão, que em geral não preocupa absolutamente o nosso neopositivista. Na realidade, segundo seu modo de ver as coisas, uma. ,questão dêstc gênero não entra nem na pesquisa X nem na pesqui­sa Y. Para voltar agora ao nosso problema, isto significa que ontolàgicamente não se pode separar uma da outra as con­clusões políticas, econômicas, pessoais, etc. Ontologicamente, é sempre o mesmo estudante que se apaixona pelas nações oprimidas, pelos povos atrasados e que parte para a África. O entusiasmo e a partida para a África podem ser separados neo­positivisticamente um do outro, mas ontolôgicamente estão li­gados e dizem respeito ao mesmo homem. :Êste fato se re.fere ao assunto de que estamos tratando no sentido de que, por ora, não estamos ainda em condições de estabelecer as cOnexões. entre o problema interior da personalidade humana (que correspon­deria, então, ao campo da ética) e a atividade social exlf:riordo homem concreto. Sob êste aspecto, Aristóteles foi um gran­de gênio da ética; de fato, se o senhor considera o problema'aristotélico da mediania ética, trata-se sempre do concreto meiotêrmo entre determinadas altern'iltivas sociais que têm sempreuma dupla fundamentação; por um lado, determinada .coisa éútil para a ação, por outro, isto pode ser uma ajuda· ou um obs­táculo ao desenvolvimento da personalidade. Quando Aristó-

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teles procura o justo meio têrmo entre a temeridade e a covar­dia ou entre a prodigalidade e a avareza, êle procura se�pr� o ponto no qual tanto no agir exterior como na evolução· mtenor do homem concreto a superação dos extremos conduz a um desenvolvimento da personalidade. Temos assim, diante de nós, um modêlo, que deve impedir a divisão incorreta prese_nte. noneopositivismo. Pondo nestes têrmos o problema, podemos llll­pedir, por um lado, que o neopositivism� seja um obstácu!o às correntes realmente de esquerda, verdadeu:amente progressistas; por outro lado, podemos oferecer uma ajuda a tôda:s ·as corren­tes que querem resolver um problema real no plano meramen­te ideológico. Tentativas nesta direção estão presentes em tôdas as correntes que visam à satisfação da necessidade· re�gi�sa, por diferentes que sejam,· embora sob a forma de sol�ç.ª? ilu­sória, de falsa ideologia. Não é por acaso que o neol?os1t1vismo, precisamente com a negação dos problemas ontológicos, venha em auxilio de tal subjetivismo ilusório. De fato, a ontologia típi­ca das velhas religiões desmoronou há séculos. Não há ningué�, hoje, que creia nessa ontologia. A acei�ação da nova. ontologta,à qual nos referimos há pouco, levaria, ao contráno, a uma redução da necessidade religiosa e à compreensão de que a religião não conduz a nada. Por isso, objetivamente, a negação simples daquela tomada de posição ontológica, pela ra�ão de que seria irracional e não filosófica, é uma grande a1u�a . a tôdas estas tendências religiosas ilusórias. Se posso expnnur­me um pouco paradoxalment�, . assim como 1:omás de Aquin.oconseguiu, em um ce.rto est�gio da ec�n�m1� feud�l, re�n�rtôdas as necessidades 1deológ1cas numa v1sao sistemática umta­ria, associando ontologia, religião e ética, assim o neopositivis­mo - por exemplo, Carnap - representa na cul�ra moder�a o papel de Tomás de Aquino. Aos neopositivist�s, é claro, naoagrada ouvir uma coisa dêste gênero, mas creio que é nossodever dizê-lo, chegando através desta declaração a uma rupturaefetiva com o neopositivismo.

HoLz - Creio que, neste sentido, para o senhor, o neopo­sitivismo atualiza apenas os aspectos negativos da Summa de 1 omás. Mas Tomás de Aquino não terá tido também aspectos positivos? E realmente Carnap ocupa na ideologia da socieda�e industrial do capitalismo tardio, o mesmo papel que Tomas

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ocupou na alta Idade Média? Para mim, um ,juízo dêste gêneio eqmvale a uma supervalorização de Carna:p. . . i·I; .LUKÁCS - Concordo . Eu os comparo não como pensadO::

res; mas tendo em conta a função social que êles desempenham. Não devemos esquecer que todo sistema filosófico grande e efi.l. caz exerceu em algum período determinado uma função social muito importante . Para dar um exemplo positivo, .a· filosofia." de Rousseau teve uma função social realmente importante Da 1' Revoluçãç, Francesa. Foi apenas neste sentido que comparei a função social de Tomás de Aquino com a de Carnap.

HoLz --,- Em relação a êste problema é muito interessante: notar como, mesmo no campo da filosofia marxista, possa ser· i

encontrada, nos últimos tempos, uma certa influência mediati­zada de Carnap sôbre a sociologia, a lingüística, as ciências da -natureza e a teoria do conhecimento de muitos Estados soda­Jistas; bem como outras influências de natureza essencialmente -neopositivista, evidentes na teoria cibernética de Georg Ktaus. ·

Como· do neopositivismo deriva uma perspectiva absoluta­mente não ontológica, na minha opinião, as influências neopo­sitivistas levam a uma desintegração da teoria marxista na me­dida em que dissolvem a unidade do processo histórico-social.

LuKÁcs - Estou inteiramente de acôrdo com o senhor; chamaria, porém, a atenção exatamente para o seguinte: a gran­de diferença entre Lênin e Stalin consiste exatamente no fato, de que na filosofia stalinista, se assim podemos chamá-Ia, o lu­gar principal é concedido às escolhas táticas prático-políticas do momento, impondo-se uma degradação da teoria geral, que fica relegada a superestrutura, a embelezamento, e de fato não ·tem mais nenhuma influência sôbre as deciSõés táticas.

HoLz - A situação, porém, não melhorou muito no pe­ríodo posterior a Stalin; pelo contrário, eu diria até que, no tempo de Stalin, apesar de todos os fenômenos de alienação, talvez ainda se estivesse mais ligado aos fundamentos teóricos das decisões práticas do que nos tempos mais recentes.

LUKÁCS - Sim, pode acontecer. Gostaria, contudo, devoltar ainda a êste problema do stalinismo. Com Stalin, ao con­trário do· que sucedeu no período de Marx a Unin, chegou-se a uma orientação manipulat6ria nas tentativas de fundamentação teórica· das· opções socialistas. Quanto à superação da época stalinista, estamos ainda em um período no qual os ·grandes

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ros do stalinismo vêm sendo eliminados sempre com os mé­iõdos stalinistas. Não_ chegamo�,. a!nda, à super�ção dêsses mé­

todos. E ·esta irrupçao· neoposlt1V1sta n? _marx1sm� a;n_al d:".e ser-colocada em re!a�ão com. o predomrn.10 do� prmc1p1os_ t,att-

os, sôbre os princ1p1os teóncos. Esta mupçao é mevdavele · t"át" " ebC}uanto em nossa prax,s permanecermos pur:imen e pr_ 1c�s •.· nquantO permanecerem êstes métodos, contmuaremos. mev1ta­

Vetmente a nos aproximar, sob alguns aspe:tos teónc':s, d_o:iJ.eopositivismo. Não é apenas uma defc;irmaçao e uma s�mph­ficação do marxismo, mas também um obstáculo prático _à eficácia ideológica mundial da idéia socialista. �os temp?s ·ma!s duros da guerra civil e da carestia, a pura e Sllllples existência ,'de república socialista dos sovietes suscitava entusia�mo em · amplos círculos ocidentais, porque muitas pessoas sentiam que Já se combatia -por alguma coisa que tocava profundamente no

· problema de sua: existência,· que se combatia para resolver o problema de sua exi�tência h�ana sob o _capitalismo. A b�talnianipulação do penodo stalintano destruiu estas expectatlvas ..

: A mitigação e o refinamento técnico do stalinismo não podem · trazer o restabelecimento da fé perdida: esta não será resta­

belecida antes que tenha ocorrido um� ruptura complet� com a manipulação, seja ela brutal ou refinada. A . perspecti�a da criação efetiva de um ho�em �ôvo pode susc!tar entusiasmo em todo o mundo. Por si so, a simples perspectiva do aumento do padrão de vida ( cuja importância práticà nos países soc)a­listas de nenhum modo minimizo) certamente não basta. Nm­guém será conquistado para o socialismo pela perspectiva �e possuir um automóvel, principalmente se já o tem sob o capi­talismo. S6 se a praxis reconquistar a forma que teve no período de Marx a Lênin é que o marxismo poderá exercer sua mfluên­cia. Pense apenas no fato de que Lênin, quando pole�zou ;om Bukharin no debate sôbre os sindicatos, lançou na d1scussao a categoria da totalidade apesar de saber muito bem e de subli­nhar que nós nunca conheceremos a totalidade das �eter��­ções. Se agora o senhor faz a comparação com o afonsma s1gm­ficativo de Adorno, segundo o qual o todo é o falso1, verá então como através da colocação dêste problema a escolha prática do momento se torna um têrmo de comparação absoluto

t Inversão d& fórmula hegeliana: "a verdade é o todo".

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para as nossas tomadas de pos1çao. 'Se verdàdeirambnte a· única grande questão, digamos, para a Alemanha de" hoje, é·a de sabermos se Brandt ou Erhard chegarão ou nã01a uma"grande coalisão", então jamais encontraremos o modo: de con­vencer os jovens honestos a verem nas questões dêste gênero algo que concerne aos seus problemas vitais. Por isso, é necessário co­locar de outra maneira a questão do destino alemão;· só então, isto é, permanecendo no interior de um visão sistemática, po­derão .ser discutidos os argumentos a favor ou contra uma "gran­de coalisão". Creio que o senhor compreende o que quero di­zer: a propósito dêste assunto� defrontamo-nos com -uni proce­dimento geral da política, com um procedimento geral da' mani­pulação da economia, Seria estranho que isso não se manif�stas­se também na ideologia. Em relação a tudo o que dissemos, é muito interessante para o desenvolvimento ideológico· mais re­cente o fato de que esteja crescendo a resistência contra a linha da manipulação e que por isso, hoje, o neopositivismo :não te­nha mais indubitàvehnente aquêle predomínio maciço que ·ainda tinha há alguns anos atrás.

(Budapest, setembro -de 1966).

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MARXISMO E COEXISTENCIA

Entrevista concedida por Georg Lukács a Antonin Liehm, pubUcada pela revista tcheca Llterarny No­

vlny, no inicio de 196!i.

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GYERTYAN - A idéia da necessidade histórica da coexis­tência foi pela primeira vez apresentada e elaborada por Lênin. O XX Congresso i-etomou o fio desta teoria de Lênin. Nossa primeira pergunta hoje é a seguinte: qual é o significado atual dessa concepção? Ela sofreu alguma transformação de signifi­cado em comparação aos tempos e noções anteriores? Suas con­dições histórico-políticas são as mesmas, substancialmente, da situação em que ela surgiu e se desenvolveu? Ou houve mu­dança de Já para cá?

LuKÁcs - Numa conferência pronunciada em 1956 na Academia Política, eu dizia sôbre a coexistência pacífica algo que, com a permissão de vocês, agora me disponho a repetir: a coexistência é uma nova forma da luta de classes. Como em qualquer outra forma de luta de classes, é válido para ela o princípio leninista que recomenda levar em conta quem a faz,

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com quem a faz e contra quem a faz. E não se pode também e;q�ecer ?m "momen!o" essencial dela: no fundo da coexis� te_nc1a esta o co�tato mcessante entre as culturas, contato que n�o pode ser detido por qualquer tipo de guerra ou de proibi­ç�o. Como exemplo, recordo apenas como no romance do !ran­ces �arbusse, a despeito de tôda a controvérsia franco-alemã, marufestavam-se as mesmas posições básicas do alemão Lieb­knecht (em face da guerra de 1914) ou, então, como na épo­ca �� que se, preparava a guerra de agressão contra a UniãoS_ov1ética, na epoca em que a União Soviética ainda não tinhasido "r:_conhecida", o filme �ncouraçado Potiômquim deslum­brava toda a Europa e entusiasmava a intellighentzia ocidental O contato existia, portanto.

Depois do XX Congresso - e êsse foi um sintoma nôvo -� política americana foi forçada a reconhecer que falira a

poht1ca do ro/l back, que tendia à anulação dos resultados da II Gu_erra Mundial, através da exibição da supremacia militar. Em virt�de do acôrdo atô�ico, os americanos perceberam que era_yrec1s�, �uscar algum tipo de convivência pacífica com a Uruao Sov1ettca para um período mais ou menos longo Daí na!c�u uma situação bem particular: por um lado, 0 a�ôrdo atom1co torna a guerra mundial extremamente improvável e por ou�o,. conti�u�m a existir tôdas as causas da guerra, a m:tervença� 1mper�allsta contra a libertação dos povos coloniais, �te. Por isso, _existe �ma· tensão pérmanente, que se tenta cana­hzar de-maneira a nao transformar-se numa guerra mundial. � �esta . a_tmo�fe�a que se realiza a coexistência. Ela significa amtens1f1ca_çao mcessante dos contatos culturais sem que tenhamdesapar�c1do os contrastes políticos, econômicos e culturais exis­tentes ·e�tre o mu�do socialista e o mundo não socialista. Por esta _razao. é qu� }ulgo, - e já o pensava em 1956 - que a coexistência pacífica so pode ser entendida como uma nova forma de luta de classes em âmbito internacional . A luta de classes nã� implica em q1:e na coexistê

!1cia devamos ser, diga­

mos, capcwsos em relaçao ao adversario, que devamos, por exemplo,� �dulter�r-Ihe o pensamento em citações falsificadas.Ao_ cont�ar1_0: assim co.t?o na guerra o êxito depende dos can­nhoes tecnicamente mais aperfeiçoados e melhor manejados também no campo competitivo da coexistência cultural os bon;

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resultados reais só podem ser conseguidos através de prodútos culturais de categoria superior.

Em nossos jornais húngaros, naturalmente, podemos ler que o jovem poeta fulano, nosso compatriota, obteve não sei quantos prêmios na América. Não há por que nos impressio­narmos excessivamente com isso, o que importa realmente é outra coisa. Bela Bartók , por exemplo, representa para a Hun­gria de fato uma "marcha triunfal", mas tenho dúvidas quanto à possibilidade de certos poemas "modernos" estrepitosamente aplaudidos no exterior repetirem a efetiva marcha triunfal de Bartók. Só os resultados de cultura (falo só da cultura e não da economia, a propósito da qual precisaríamos discorrer sôbre outros problemas), na medida em que êles se tornem verda­deiramente maiores, garantirão vitórias permanentes na coexis­tência. De nossa parte - quer dizer, do ponto de vista da vi­tória que desejamos como resultado da luta de classes - enten.:. demos· ser importante que a ação envolva camadas cada vez mais amplas do povo; tôdas as camadas que sentem com(} uma existência digna do homem pode ser melhor realifaâa no ·socia­lismo do que no capitalismo. Substancialmente, é por esta vi­tória que devemos lutar, é ela que devemos conquistar na coe­xistência.

GYERTYAN - Sua resposta me sugere outra pergunta: essa vitória intelectual, essa supremacia ideológica, da qual exis­tem possibilidades reais, em que medida ela pode influenciar as probabilidades e resultados da competição econômica?

LuJCÁcs - Olhe, também aqui o problema é diverso con­forme a época. Nos anos da década de vinte era notável o fato de que a má situação econômica da União Soviética não in­fluísse de maneira decisiva sôbre o poder de atração da cultura soviética no Ocidente. As pessoas sentiam que do socialismo, mesmo nas condições econômicas ruins em que êle se achava, podiam resultar para os problemas que elas viviam soluções melhores do que aquelas que o capitalismo oferecia. Há alguns anos li em um trabalho de um historiador burguês da literatura alemã a observação de que a existência da União Soviética cons­tituía a base das verdadeiras correntes de oposição na literatu­ra alemã dos anos vinte; com isso, êle não se referia apenas à literatura comunista e sim a escritores que então não eram comunistas, como Becher, Brecht, etc. Havia uma atmosfera

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que penetrara na própria literatura burguesa. O mesmo histo­riador diz que, tendo muitos ficado desiludidos do socialismo, a oposição literária alemã caiu no abandono e ficou "sem pá­tria". Da parte de um homêm que não pertence ao nosso cam­po, esta é uma concepção muito interessante. A elite da intel­

ffgl,en::.ia revolucionária dos anos vinte (não só Becher e Brecht como Arnold Zweig, Anna Seghers, Eluard, Picasso e outros) tornou-se comunista; hoje, contudo, não vemos tantos comu­nistas entre os escritores jovens. A que devemos atribuir tal fenômeno? .f: verdade que a União Soviética é incessantemente caluniada, mas nos anos vinte talvez a caluniassem ainda mais; não se pode dizer que foi a intensificação das calúnias que pro­duziu a alteração. O que devemos é fazer autocrítica e exami­nar o nosso trabalho: por que os nossos escritos não têm o efeito que tinham nos anos vinte? Devemos voltar à questão da liquidação do "culto da personalidade", pois foi no período stalinista que a intellighentzia européia deixou de acreditar na boa fé e na veracidade dos comunistas. Uma ilustração simples dá minha idéia: o que dirá um intelectual ocidental a respeito de uma história do PC da URSS na qual os acontecimentos de 1917 sejam abordados sem que apareça o nome de Trótski e sem que seja analisado o seu papel nas ocorrências de então? Trata-se de· uma história absurda! Na verdade, estou longe de simpatizar com Trótski. Mas deixar de reconhecer que Tróstki teve um papel nos acontecimentos de 1917 é renunciar a qual­quer crédito no trabalho historiográfico.

SIMON - Agora quero eu fazer-lhe uma pergunta. A li­quidação do "culto da personalidade" lhe parece ser critério fundamental da nossa vitória coexistencial. Concretamente, o desenvolvimento geral da "democratização" pode ser relacionado à aceitação da necessidade da coexistência?

LuKÁCS - Esta questão, naturalmente, está ligada às ou­tras. Reconhecemos que a coexistência é necessária e também que ela não pode ser dirigida burocràticamente. Na realidade, a opinião pública também não pode ser inteiramente dirigida em têrmos burocráticos. Não se pode absolutamente impedir, por exemplo, que dona Maria diga a dona Joana que a imprensa está elogiando determinado filme porém o referido filme é de fato uma porcaria. Quem conhece a situação húngara sabe que o êxito dos filmes entre nós tem sido quase completamente

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independente daquilo que a imprensa escreve a respeito dêles. A opinião pública se difunde puramente à base dessa linha dona Maria-dona Joana. Também no Ocidente é -impossível impedir a formação dêsse tipo de opinião pública crítica. Sabemos que no Ocidente existe difundida na opinião pública uma posição antibolchevista baseada apenas em calúnias, mas existem tam­bém homens honestos, que simpatizam com o socialismo, cuja confiança é para nós de imenso valor, mas que também não aceitam as nossas manipulações.

GYERTYAN - As concepções pós-bélicas da "guerra fria" fracassaram tôdas, sem exceção . No entanto, as idéias políticas que querem refletir a nova situação real de c_oexistência e pre­tendem exprimir o seu programa revelam-se mcertas, confusas� lilubeantes. Creio que, de nossa parte, a política pr�cisa ser di­rigida por uma concepção teórica precisa e madura, já que esta tem sido a característica do movimento operário. Que lhe pa­rece?

LuKÁcs - Tem tôda a razão. A situação mundial sofreu mudanças substanciais. Pode-se dizer que a ideologia doam�­rican way of life está sendo destruída na guerra do Vietnã e, internamente, na evolução da "questão negra", Na Inglaterra e em outros lugares passam-se fenômenos análogos. Em que me­dida contudo nos mostramos capazes de suplantar essas ideo-. logi�s superadas, apresentando-nos com uma nova ideologia? Há mostras de que isso nem sempre ocorre. Em matéria de economia, por exemplo, limitamo-nos a escrever comentários sôbre o livro que Lênin dedicou. à teorização do imperialismo e continuamos a esperar a hora da grande crise na América do Norte. Semelhante economia política não conquista crédito algum, porque contradiz os fatos. Se nos mostrarmos capazes de explicar os fenômenos da economia política do presente com o método marxista - possibilidade da qual me acho profun­damente convencido - é que chegaremos a conquistar pres­tígio.

O exemplo da economia pode valer para ilustrar a nossa debilidade mais geral em face da crise internacional em todos os seus aspectos. Sem qualquer imodéstia, verificamos que, mes­mo em áreas que recusam as soluções socialistas, há pessoas que se insurgem econômica, política e culturalmente contra o capitalismo e instintivamente voltam os olhos para nós, em bus-

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ca de uma resposta inteligente para os problemas delas. Se tais pessoas que esperam uma resposta de nós recebem respostas burocráticas, baseadas em um mero repensamento tático cir­�un.stancial, ou lêm obras ôcas de escritores vazios que nósmdicamos como nossos representantes, o prestígio do socialis­mo só pode diminuir. Por isso se desenvolve no Ocidente, mes­mo entre os que não defendem o capitalismo (porque não po­dem defendê-lo), a opinião de que o destino da humanidade é substancialmente a esperança, já que nem o capitalismo nem o socialismo dão resposta justa aos problemas humanos. Nós, marxistas, temos uma grande responsabilidade, que nos impõe o caminho a seguir. Um duplo movimento nos é necessário:retornar a Marx, no método, e caminhar para adiante, na reali­dade, formulando a explicação marxista para os novos fenôme­nos de hoje. Se fôrmos capazes de fazê-lo, venceremos a bata­lha histórica da coexistência; de outro modo, seremos derrota­dos inexoràvelmente.

A autoanálise deverá esclarecer essa questão. Há duas ten­dências errôneas, diversas, que às vêzes se manifestam em con­fluência. Por um lado, há burocratas que acreditam que os dogmas, desde que um pouquinho corrigidos e atualizados, bas­tam para conseguir resultados satisfatórios. Outra tendência, qlie se desenvolveu instintivamente quando, após o XX Con­gresso, as '!ludanças começaram a sofrer algum retardamento, é a tendência que leva à importação acrítica e desenfreada dos mais estúpidos entre os modismos ocidentais. Ainda hoje, mui­tos acreditam que basta transportar as idéias burocráticas da máquina de escrever para as máquinas cibernéticas e o marxis­mo logo se renovará, produzindo resultados realmente mais lúcidos. E importante liquiçlar ambos êstes extremos falsos. Na Hungria, por exemplo, especialmente após o XX Congresso, percebo que existe uma aliança secreta, tácita, entre os dogmá­ticos e o "modernismo" acrítico; e os defensores desta última tendência proclamam com entusiasmo que os únicos grandes escritores atuais são Beckett e Ionesco mas, ao mesmo tempo, inclinam-se respeitosamente diante dos burocratas.

SIMON - Apesar de tudo, percebe-se que o interêsse pelo marxismo está crescendo em todo o mundo. Levando em conta as condições da coexistência, um número crescente de intelec­tuais ocidentais, após o XX Congresso, busca uma saída que

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abra para o futuro e recorre cada vez mais ao método mar­xista. Não é o que ocorre?

LuKÁcs - Sem dúvida. Posso constatá-lo até mesmo atra­vés de uma experiência pessoal. Em· 1956 estive no e�terior, para um congresso internacional em defesa da paz mundial. A atitude de velhos conhecidos meus que me reencontravam lem­brava aquela atmosfera que Montesquieu indicou nas CartasPersas: "O senhor é persa? Mas como é possível alguém ser persa?". Em outras palavras, meus conhecidos se espantavam com minhas posições filosóficas: "Como é que �m homem -aliás culto - pode ser marxista, isto é, adota hoJe uma daquf: Ias ideologias tão antiquadas do século XIX?". Agora êsse cli­ma começa a se desfazer e cresce no Ocidente o interêsse pelo marxismo. Ao mesmo tempo, naturalmente, cresce a repulsa pelo dogmatismo. Recebo numer�sas carta� d� países ociden­tais e nelas as pessoas me dizem:. Estou .�u1to mtert:;,s��do pelomarxismo porém não pelo marxismo oficial de voces .

S1MdN - No entanto, essas novas tendências !êm mereci­do fortes críticas de sua parte, camarada Lukacs. Sob a égide do marxismo têm sido formuladas teorias que provàve!­mente não podem mesmo ser ulll.vocamente inserid�s no �bi­to do marxismo. Nossa época de pesquisas ampliou mmto a noção do que seja o marxismo; eu poderia dizer q�e ela mul�­plicou amplamente os casos-limites entre as teonas ver�a�e1-ras e as falsas. Em tal quadro, como se apresenta a sua po�1çao?

LuKÁcs - Olhe, acredito que é impossível saber dizer a

priori em cada questão o que. devemos fazer e �orno devemos fazê-lo. A priori só podemos dizer que é necessáno reto�nar aos fundamentos do marxismo e que o período que se anuncia é um período no qual os homens discutirão e experimentarão cada vez mais as idéias dêles. Se tentassem transformar um ponto devista meu em opinião oficial, eu ficaria contra. Embo:a pes�oal­mente eu esteja convencido de que estou com a _razao? sena o primeiro a protestar, enêrgicam:nte, porque cons1derana a me­dida perigosa para o desenvolv1mento da verdade.

GYERTYAN - Existem tendências parecidas a esta que aca­ba de nos expor na vida intelectual da Hungria. Não estou con­vencido, entretanto, que elas se manifestem _exatamen!e em pes­soas cujos pontos de vista teóricos se aproximem muito dos do camarada Lukács ...

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LUKÁcs - Sempre que tenho tido ocasiao de falar com camaradas competentes, expressei-lhes a opinião de que é pre­ciso dar liberdade de palavra a esta posição marxista, insistindo em que a minha posição também fôsse reconhecida como umadas opiniões existentes no interior do marxismo. Tenho susten­tado a idéia de que a abertura deve ser considerada um mo­mento importante da luta teórica que hoje se trava precisamen­te em prol da completa reabilitação da honra do marxi_?mo. Es­tamos num período em que é preciso dar liberdade de palavra a tôdas as expressões de boa vontade: confiemos nos fatos his­tóricos e ao final veremos quais são as concepções que se con­solidarão como verdadeiras expressões do marxismo. O sim­ples fato de agirmos assim, aliás, já aumentará o nosso prestígio aos olhos do Ocidente. Se sufocarmos determinadas tendências, não só nosso prestígio no exterior diminuirá como, igualmente, estaremos pelas restrições conferindo exagerada importância às coisas proibidas: de coisas às quais nem mesmo os cachorros dariam atenção teremos feito objeto de interêsse e entusiasmo, valôres de raridade. Já que agora tudo que se produz no Oci­dente pode ser traduzido e publicado entre nós, o público hún­garo começa a separar o que é bom do que é ruim e supera a contraposição enganosa entre o que fazemos nós e o que faz o Ocidente.

A coexistência e mais a cessação das proibições podem determinar inclusive uma atitude de indiferença . Deixará de existir, então, o fenômeno que ainda se dá na Hungria, onde as coisas ocidentais tendem a ser acriticamente encaradas como sempre melhores do que as nacionais, nossas . Os ocidentais sabem muito bem como são problemáticas certas coisas que hoje, Unicamente por fôrça das circunstâncias, despertam entu­siasmo entre nós. nos países socialistas . É preciso restabelecer a democracia proletária no campo da cultura para que, no qua­dro da coexistência, sejam liberadas tôdas as energias ineren­tes à nossa posição na luta de classes. :Êste é o pressuposto das vantagens e resultados sérios que podemos obter através da coexistência.

GYERTYAN - Originàriamente, eu ia fazer duas perguntas. Uma delas, porém, já foi respondida: a de qual deve ser a nos­sa atitude em face das obras ideolàgicamente talvez discutíveis da cultura ocidental moderna. A segunda, no entanto, ainda 166

me parece que deva ser esclarecida; e é uma per?unta que e�­volve aspectos centrais da nossa época e do movimento opera­ria. A grosso modo, formulo-a da seguinte maneira: a seu ve�, cm que aspecto, precisamente, a nossa época ainda não liqm­dou o dogmatismo como devia?

LUKÁCS - Houve um tempo em que o princípio reconhe­cidamente fundamenta\ era êste: o marxismo desenvolveu as leis mais gerais do processo que conduz ao socialismo e, a .�a�­tir dessas leis os melhores revolucionários elaboraram penod!-

' . . camente uma estratégia - e, no quadro desta cstrategia, uma

tática, que se aplicava até a cada greve isoladamente conside­rada - devendo naturalmente esta tática mudar con­forme as circunstâncias. Stalin, contudo, subverteu êste princ1p10. Para êle era a táti:a momentânea, _ que eraessencial. As injunções táticas ditavam a estrategia e, em seguida, a estratégia era aplicada às perspectivas gerais do so­cialismo . Por exemplo: para justificar os grandes processo� �a década de trinta Stalin se serviu de um truque, que cons1stm em recorrer a ur:ia afirmação geral, a de que sob o socialismo, após a tomada do poder, a luta de classes sofre. uma ':_Onstanteagudização . Primeiro êle fêz os processos, depms arqmtetou as teorias adequadas a legitimá-los. Ainda hoje ocorre que em nosso campo sejam torÕadas medidas táticas e a estratégia e a teoria geral venham convocadas a dar-lhes cobertura . O valor de teorizações dêsse tipo é nulo. . . Naturalmente, é muito simples concluir que a tese stalmts­ta de que a luta de classes se aguça sob o socialismo está errada e dar por encerrada a questão . Impõe-se, contudo, um ap�o­fundamento da crítica ao método pôsto em prática por Stahn; se aprofundarmos o nosso exame da questão, verificaremos q�e são seríssimas as conseqüências de semelhante metodologia. Permitam-me citar mais um exemplo histórico. Quando surgi­ram as divergências entre Stalin e Trótski a propósito da qu<?s­tão chinesa, Stalin declarou que na China imperava o feudahs­mo e que, cm face do feudalism?, a tática a seguir era a mesma que tinha sido aplicada na Rúss_ia . Par� permanecer no campo da tática Stalin excluiu da teona marxista o problema do sis­tema de' produção esneclficamente asiático e com· isso tornou impossível para os mârxistas o justo conhecimento. �os pro�es­sos históricos em curso na Âsia. Foi grave o pre1mzo sofndo

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pelo marxismo em todo o mundo: a mutilação teórica repre­s:.i1tada pelo abandono da teoria do sistema asiático de produ­çao estorvou, por exemplo, os esforços dos marxistas no sen­tido de uma compreensão mais aprofundada dos movimentos de libertação nacional dos povos coloniais.

Nas _condições em que Marx viveu, êlc nunca analisou odesenvolvunento dos povos africanos. À base da mais rigorosa reflexão marxista, estamos no direito de perguntar: onde está escrito que o desenvolvimento dos povos africanos deverá ine­xoràvelmente efetuar-se de acôrdo com o modêlo europeu ou mesmo conforme o esquema asiático? Pode acontecer que, além das relações de produção européias e das relações asiáticas existam igualmente relações de produção especificamente afri� canas. Uma boa ajuda que poderíamos dar aos povos do Ter­ceiro Mundo em vias de desenvolvimento consistiria em levar­lhes um instrumental teórico capaz de explicar a situação real e a perspectiva concreta de desenvolvimento dêles. Pois bem: neste campo, nã� sabemos mais do que os ocidentais, temos ele­mentos de conhe1cmento tão escassos como os dêles. Seria na­tural que tivéssemos uma situação de liderança no mundo atual, que abríssemos os caminhos eficazes, mas para isso é absoluta­mente necessário um aprofundamento em nossa atividade de i1:vestigação da realidade. À exceção de pouquíssimos casos, na? chegar�os sequer a tentar responder aos problemas do capi­talismo ocidental, no trato dos quais os economistas capitalis­tas se vêem igualmente perdidos. E mesmo nos raros casos em que tentamos dar-lhes uma resposta a análise que realizamos não foi suficientemente profunda.

SIMON - No que concerne às questões econômicas os seus argumentos são muito claros . Creio, no entanto, (lue �s coisas ditas até o presente momento poderiam ser completadas com observações relativas aos problemas intelectuais. Que diz a isto?

LmcÁcs - De fato, permaneci no terreno da economia pois nêsse campo a demonstração se revela mais clara e meno� �iscutível do que em outros planos. Mas as observações que fiz podem ser aplicadas a tôdas as ciências. Recorramos a um exempl? cujos efeitos ainda se fazem sentir hoje . No período de Stahn e Zdhanov, a história do pensamento foi sistematizada como se antes do marxismo existisse um determinado pensa-168

menta e, em seguida a um grande salto, êle tivesse sido completa­mente substituído pelo marxismo. O valor supremo do marxismo consiste substancialmente no fato de que êle se assenhoreou de todos os valôres do bimilenar desenvo!Vimento europeu. Quem o diz não sou eu: é Lênin, que teve ocasião de afirmá-lo du­rante as discussões de 1920. :Êste aspicto de continuidade nahistória do pensamento foi totalmente esquecido sob o stali­uismo. Por outro lado, não podemos polemizar com o existen­cialismo ou com o neopositivismo limitando-nos a colar em suas manifestações etiquêtas com dizeres tais como "imbecilidade" ou "contra-revolução". Em 1950, acusaram-me de pretender justificar o existencialismo contra-revolucionário porque eu li­gava o nascimento do existencialismo francês ao movimento de resistência que a França desenvolvera contra os invasores na­zistas. Hoje, essa ligação é reconhecida como um fato indubi­tável, mas na época o fato de afirmá-la fêz com que eu fôsse considerado oportunista. Na França, aliás, os existencialistas "contra-revolucionários" não se mostraram realmente contra­revolucionários, pois em face da questão argelina, por exemplo, comportaram-se como autênticos homens de esquerda.

Já em 1947, vocês sabem, eu tinha tomado posição con­tra o existencialismo. Mas uma posição crítica só é fecunda quando é capaz de reconhecer as contradições da posição criti­cada, seu eventual aspecto progressista. No caso do existencia­lismo francês, a crítica incluía necessàriamente o reconhecimen­to de que êle provinha do movimento de resistência para que pudesse desenvolver-se uma discussão objetiva, na qual as nossas razões tivessem ao menos a possibilidade de convencer outras pessoas. A posição unilateral de ver em tudo a presença da contra-revolução e sõmente ela é uma posição que não nos serve, assim como não nos serve a assimilação acrítica do exis­tencialismo. Hoje, o que nós enxergamos é uma situação gro­tesca: jovens húngaros insatisfeitos com o marxismo se refu­giam no existencialismo de Heidegger e Sartre, enquanto Sartre sente o caráter insatisfatório do existencialismo e procura um caminho para o marxismo que os jovens de Budapest querem abandonar. Só podemos superar situações dêsse tipo se retor­narmos ao verdadeiro método marxista. E a visão crítica que precisamos desenvolver em relação ao Ocidente e ao que lá se faz exige a objetividade. Não podemos crer que nos seja pos-

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i;',.

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sível ir adiante, por exemplo, colocando 111áquinas cibernéticas a serviço de projetos esquemáticos stalinistas.

Já me referi à música de Bartók e a como ela conquistou o mundo. Estou convencido de que a cultura socialista produznumerosos valôres que podem repetir a façanha. Já não faloda retomada dos grandes valôres da cultura antiga, que, à basede uma justa interpretação, mostrar-se-iam bem úteis na lutaem favor da coexistência. Hoje, na Europa e na América, aspessoas se repugnam ante o caráter da democracia manipulada:que grande arma não poderia ser o desenvolvimento realizadode Pushkin a Tchécov na literatura russa do século XIX, co­mo expressão de uma profunda luta pela liberdade e pela de­mocracia! Creio que nos próximos anos essa questão da demo­cracia se revestirá de uma importância imensa. Não tenho ailusão (que seria ridícula) de que os Estados ocidentais venhama se converter de repente ao socialismo. Mas estou convencidode que camadas cada vez mais amplas da população, insatis­feitas ante o caráter antidemocrático das "democracias manipu­ladas", exigirão com crescente vigor a abertura de caminhos queconduzam a uma democracia real. Só podemos nos tornar osideólogos e guias dêste movimento na medida em que souber­mos vencer duras dificuldades, pois no Ocidente são sutis asformas da manipulação econômica e entre nós há pessoas quequerem manter a manipulação de caráter burocrático e só admi­tem alterações de pormenor, que sirvam apenas para embelezara fachada e o exterior do edifício. :e preciso falar com fran­queza: se não liquidarmos a manipulação interna, não teremoscondições para chegar à vitória na luta de classes sob as con­dições de coexistência.

GYERTYAN - O companheiro Lukács, portanto,. é favorá­vel à livre luta entre as diversas tendências no interior do mar­xismo?

LuKÁcs - Já o disse uma vez a propósito da ontologia e volto a dizê-lo agora: o homem é um ser que responde. Tudo que a cultura humana criou até hoje nasceu, não de misteriosas motivações internas espirituais (ou coisa que o valha), mas do fato de que, desde o comêço, os homens se esforçaram por re­solver questões emergentes da existência social. É à série de respostas formuladas para tais questões que damos o nome de cultura humana. No movimento da cultura, muitas coisas fo-

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ram sendo postas de lado, porque representavam respostas da­das exclusivamente a questões cotidianas momentâneas ou por­que representavam respostas erradas. Outras respostas, con­tudo, permaneceram válidas até hoje. Se alguém lê, em nossos dias, aquela cena da Ilíada em que Príamo procura Aquiles e pede que lhe seja entregue o cadáver de Heitor, se alguém lê a conversa que leva Aquiles a entregar Heitor morto a Príamo, percebe que, do ponto de vista moral, aquela cena continua a ser exemplar, mesmo transcorridos tantos séculos depois de nar­rada.

Isso não prevalece apenas para a poesia. Se observamos a história da ciência, verificamos que as grandes descobertas fo­ram, muitas vêzes, realizadas simultâneamente por diversas pes­soas. Ainda hoje se discute quem descobriu o cálculo diferen­cial integral, se foi Newton ou se foi Leibniz. Quem conhece a realidade histórica daquele tempo sabe que Pascal também chegou a se aproximar dêsse descobrimento. E outros, igual­mente. Por que? Porque as relações de produção daquela fase haviam suscitado a necessidade de uma nova física. A nova física era a física de Galileu, que colocava o movimento no centro da física em geral. E, para medir o movimento, tinha se tornado necessária uma nova matemática. Era esta necessi­dade que impulsionava as pesquisas de homens de ciência como Newton e Leibniz: foram êles que encontraram o caminho pa­ra a nova matemática, porém outros trinta ou quarenta homens de ciência deveriam também estar a buscá-lo. No nosso caso, no caso a que se refere a sua pergunta, devemos reconhecer que a exigência da verdadeira cempreensão do marxismo se acha colocada como uma necessidade social: desde a América até a Sibéria, por tôda parte, há homens empenhados em satisfazer a esta exigência. Qual a teoria que responderá às expectativas? Quais as teorias que não conseguirão responder a elas? Nenhuin de nós conhece outro critério além da crítica recíproca. Em última análise não existe e não pode existir uma instância que decida: é o filósofo fulano e não o filósofo beltrano quem tem razão.

Na .minha opinião, pois, é preciso que a discussão se de­senvolva amplamente, sobretudo nos campos em que é mais difícil estabelecer quaisquer critérios a priori. Hoje em dia, está se formando uma nova literatura: e entre nós, como já

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escrevi em meu artigo sôbre Solzhenitzin, essa nova literatura só pode ser criada submetendo à crítica o período dogmático. Na Hungria, por exemplo, não há sequer um homem de mais de trinta anos em cuja vida e em cujo caráter não tenha sido deci­siva a questão de como e qual foi a sua conduta em face das deformações do período que estamos superando. Como seria possível representar tais pessoas artisticamente sem levar em conta o que elas viveram no passado? Quem conhece a obra de Balzac pode recordar como êle, escrevendo, descreveu sobre­tudo o período da restauração, mas, quando lidava com perso­nagens de mais idade, mergulhava nos tempos do império e até mesmo nos anos da revolução, procurando esclarecer o que faziam então as pessoas cujos destinos se esforçava por com­preender. Nas decisões e modos de reagir de seus personagens na restauração desempenhavam grande importância as atitudes que anteriormente êles tinham assumido em face da revolução. Essa observação, feita agora, parece pacífica, mas vocês sabem muito bem, camaradas, quanta censura ela me valeu no pas­sado. Nossa literatura e a literatura contemporânea em geral estão cheias de problemas dêsse tipo: tais problemas devem -e podem - ser resolvidos.

Na realidade, não acredito que haja uma peça teatral, por exemplo, cujo êxito ou fracasso possa abalar os fundamentos da nossa República Popular. Para mim, é ridículo ver maior motivo de desgôsto e preocupação na reação contra os erros do que nos próprios erros - sobretudo quando se trata de uma reação poética e artística. Essa questão só pode ser melhor entendida quando a relacionamos ao quadro da coexistência. Nos países socialistas existem diversos fenômenos que ainda es­torvam o reconhecimento e a eficácia das coisas justas que real­mente não devem ser esquecidas e merecem todo o nosso aprê­ço. Visto à falsa luz de um enfoque burocrático, qualquer fe­nômeno literário pode ter sua significação real tergiversada. Quando escritores de posições diametralmente opostas como Solzhenitzin e Pasternak são apresentados sob um denominador político comum, há uma identificação artificial entre ambos, a opinião pública internacional é mistificada e a fecunda influên­cia que Solzhenitzin poderia e deveria exercer deixa de ser apro­veitada. Ao invés de procurar irracionalmente impedir a convi­vência pacífica de tendências diversas, o que se deve fazer é

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promover discussões sérias. Não é possível conciliar todos com todos; no entanto, há gente entre nós que se comporta como se não existissem contrastes necessários. Esta linha de conduta não é solução, é apenas outra modalidade· de manipulação. Preci­samos, mesmo, de discussões ásperas, ainda que elas não levem a conseqüências de natureza organizacional, a mudanças prá­ticas imediatas. Tais condições precisam ser conquistadas em nosso trabalho cultural a fim de obtermos resultados sérios na luta da coexistência pacífica.

GYERTYAN - Sabemos muito bem que a coexistência tem seu adversários, e não sômente entre os diversos "ultra", os "fal­cões" e neofascistas dos países capitalistas. O próprio exemplo chinês dêstes últimos anos é uma evidência disso. O fato é que, enquanto estamos aqui falando sôbre a coexistência, há uma guerra impiedosa que está sendo travada, embora em todo o mundo se desenvolva cada vez mais resolutamente a luta con­tra essa guerra. Gostaria que o camarada Lukács nos desse a sua opinião sôbre as ideologias contrárias à coexistência, sôbre a maneira de combatê-las e sôbre a possibilidade de vencê-las. EventuaJmente, abordando também o caso do Vietnã.

LuKÁcs - Essa é uma pergunta complicadíssima. No co­mêço desta entrevista, como você há de se lembrar, eu dizia que, dada a natureza peculiar da guerra atômica, surgiu a possi­bilidade de impedir a guerra mundial mas não desapareceram as causas da guerra. O mêdo da guerra atômica não faz com que os Estados Unidos tenham deixado de ser um Estado impe­rialista. Voe� deve ter notado a cautela com que os america­nos encaram o papel da União Soviética e até o papel da China na guerra do Vietnã: se não existisse a bomba atômica, a guer­ra do Vietnã já se teria transformado em guerra mundial gene­ralizada. Achamo-nos diante de uma situação oscilante e não há dúvida de que devemos combater a política dos Estados Uni­dos no Vietnã à base de uma linha extremamente decidida e fundada em princípios firmes.

Substancialmente, o que é que está ocorrendo? Desde a época �m que os inglêses entraram na índia, no século XVII, a política dos Estados colonizadores era, em substância, a de se aliarem às classes mais reacionárias do país colonizado e com a ajuda delas sufocarem os movimentos de libertação na­cional. Observando a política que os americanos põem em

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P.rática n� Vietnã, verificamos que ela repete o processo tradi­c10nal, pois quem deseja colonizar outro país é brutal e só pode ser brutal . Na questão do Vietnã, o problema não está na for­ma pela qual o país deverá ser reunificado, mas em que se reco­nheça a êle e a todos os demais povos ora em luta de emanci­pação nacional a efetiva possibilidade dêles resolverem fivre­me�t� seus próprios problemas. Não chegaremos a resultado positivo a)g�m com aquela solução puramente tática que nos leva a defmir. e.amo progressistas os povos que simpatizam co­nosco e a def1mr como reacionários os demais: muitas vêzes -desculpem-me dizê-lo - os primeiros são tão pouco socialis­ta; quanto os segundos . Na realidade, nos países emergentes ha problemas profundos e novos cuja solução pode vir a reque­rer dezen�s e até centenas de anos . Vejamos a situação dos Es­tados africanos que se estão libertando da opressão colonial: entre êsses povos ainda não se formaram claramente a nação e o co�ceit_? de nação que deve corresponder a ela . A própriacolomzaçao manteve desunidas as tribos próximas e procurouaprofundar a s�paração entre elas: agora, a questão da união entre os somalis que vivem no Kênia e os da Somália é uma questão que só poderá ser resolvida pelo próprio povo somali.

A polít!ca colonial -�arte-americana precisamos opor, emescal� �und1al, uma pohtica baseada na autodeterminação de­mocratlca de todos os povos. Um trabalho científico sério capaz de superar as . d_eformações d� época stalinista, poderános colocar em cond1çoes de conqmstarmos o respeito dêsses p�vos através de conselhos eficientes, tanto no plano econô­mico como no plano político. E: preciso, contudo, que tais con­selhos c�rre,sp?�dam às e�igências e à situação real dêsses po­vos e nao a otica de gabmetes europeus.' Se o conseguirmos, desempenh:ire�os um papel muito mais importante do que o atual na h1st6na contemporânea. E isso é válido não sàmente ªº. que concerne aos povos coloniais como em relação aos pró­prio� povos europeus e norte-americano, pois atualmente estão su�gmdo novas oposições internas tanto nos países da Europa C?c1dental como na América do Norte e nós podemos influen­c!á:las se nos mos�arm?s compe!entes e realistas. Essas opo­s1çoes a que me refiro tem assmrudo certas particularidades que d�vemos analisar, têm-se revestido de um caráter por assim dizer, "chinês". Qual é a causa disso? Em 1903,' Lênin, em

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seu livro intitulado Que Fazer?, escrevia que o anarquismo (que naquele tempo tinha muita influência) era um castigo pelos nossos pecados de oportunismo. Estou convencido de que Lê­nin enunciou, então, um princípio geral, verdadeiro e profundo. A influência chinesa, difundida na Europa, também é um cas­ligo pelo nosso dogmatismo, pela nossa ausência de princípios, pelo nosso taticismo. Os jovens ocidentais, cheios de entusias­mo, possuídos de um vivo sentimento de oposição, não encon­tram respostas satisfatórias para os problemas ligados à com­plexa situação internacional de hoje e crêem que vão achá-las em Mao. A liqüidação dos velhos erros e o retôrno ao método marxista original, aliás, não só fortalecerão nossa infiuência no exterior como nos possibilitarão mobilizar dentro de casa ener­gias que têm permanecido sub-aproveitadas. Vocês vêem a im­portância do acêrto de contas com os aspectos negativos que herdamos do passado, a influência positiva que podemos exer­cer sôbre a cultura e sôbre a política se passarmos a formular a tática com base na teoria ao invés de formular a teoria a partir da tática.

GYERTYAN - Recentemente, ganhou corpo a idéia de que deviam ser criados vários Vietnã. Já conhecíamos a tese chi­nesa de que a nova sociedade poderia ser ràpidamente cons­truída sôbre os escombros de uma nova guerra mundial. A mi­nha pergunta é a seguinte: essas concepções ultra-radicais e aventureiras (não dispondo, por ora, de uma palavra mais ade­quada para caracterizá-las) - que encontram, como é com­preensível, terreno fértil na imensa miséria dos povos do Ter­ceiro Mundo - essas concepções não constituem uma ameaça à política da coexistência?

LmCÁcs - Não creio que se trate de uma ameaça séria. É verdade que muita gente não está querendo reconhecer que a questão atômica engendrou uma situação completamente nova. Permitam-me argumentar em favor da minha convicção de que esta situação é mesmo nova, recorrendo a um exemplo: na guer­ra antiga, os canhões dispersavam e alcançavam objetivos si­tuados, digamos, a 10 km de distância; quem inventava um canhão que atingisse 15 km aniquilava os canhões do adversá­rio e obtinha uma grande vitória sem maiores sacrifícios. Na guerra atômica o caso muda de figura: ambas as partes ficarão mais ou menos aniquiladas e por isso a guerra atômica entre

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as grandes potências foi deixada de lado por elas como possi­bilidade real. Observem, por exemplo, como a imprensa norte­americana sonega cuidadosamente a seus leitores a informação de que os aviões estadunidenses no Vietnã estão sendo derru­bados por mísseis soviéticos. Os norte-americanos fingem não perceber isso. :E: uma atitude extremamente signüicativa, pois mostra que atualmente os conflitos se desenvolvem dentro de certos limites e mesmo os imperialistas temem que tais limites sejam ultrapassados.

As guerrilhas realizadas na América do Sul também não acarretam diretamente um risco de guerra mundial . Contudo, spu cético a respeito da palavra de ordem relativa aos vários Vietnã, pois uma verdadeira guerra de guerrilhas não se faz por mero ato de vontade: ela só se realiza quando amplos seto­res da população, sobretudo do campesinato, chegam à cons­ciência da rigorosa insuportabilidade da existência que lhes é imposta e decidem empunhar armas seja qual fôr o preço da insurreição, ainda que lhes custe a vida. Sem essas condições, homens de notável honestidade e de heroísmo extraordinário se sacrificarão e o movimento não se desenvolverá. A guerri­lha não é a forma inicial e sim a etapa conclusiva da luta: ela assinala o ápice de uma revolução burguesa geral que, even­tualmente, pode desembocar no socialismo. Creio que na Amé­rica do Sul uma revolução dessas seja um tema da atualidade e estou seguro de que ela se fará, mas não em tôrno de um pe­queno grupo ou de um herói que dariam início à guerra de guerrilhas. Ela se fará, pelo contrário, quando os movimentai de reforma visando a melhorar a situaÇão dos camponeses e outras classes baixas desembocar na revolução. Só então poderá a guerra de guerrilhas desempenhar um grande papel.

Aqui não se trata apenas do levante dos povos e da ques­tão da opressão colonial, mas se trata de uma questão mais geral, que está hoje em relação também com os nossos pro­blemas culturais. No atual "capitalismo manipulatório", os salá­rios melhoraram, o horário de trabalho das classes trabalhado­ras diminuiu, mas a vida de cada trabalhador ainda tem menos sentido do que na época da mais rude opressão capitalista.

SIMON - Um dos aspectos decisivos do nosso papel na coexistência, como luta de classes modificada, está em que po­demos indicar à humanidade os caminhos para uma vida que

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tenha sentido e mostrar-lhe que é o socialismo quem abre tais

caminhos. No entanto, nós, socialistas, temos sido tímidos em

afinná-lo. Que diz a isso? LuKÁcs - Estamos começando a superar agora êsse es­

tado de espírito a que você se refere . Tôda a literatura contem­

porânea ocidental sugere que os homens perd�r�m a fé _na pos­

sibilidade dêles chegarem a viver, nas condrçoes atuais, uma

vida plena de sentido. Nós, porém, não temos por que :ermos

tão pessimistas, e eu não o sou. Contudo, e°:qu�to _nao nos

mostrarmos capazes de contrapor à vida capitalista msensata

uma vida socialista claramente plena de sentido não reativare­

mos as esperanças da cultura ocidental. :Êste problema do sen­

tido concreto a ser dado à vida se liga a tôdas as questões da

arte e da filosofia. No futuro - talvez daqui a cinco ou dez

anos - êle passará a um nítido primeiro plano; e nós deve­

mos estar preparados para dar-lhe a compe!ente ,solução mar­

xista, a única capaz de encontrar uma verdadeira sarda para estas

contradições sociais.

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LITERATURA E VIDA

Entrevista concedida por Georg Lukács a Istvan Si­

mon e Erwin Gyertyan, publicada pela revista hún­

gara Kortars (maio de 1968).

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PERGUNTA - Em que reside, na sua opinião, a especifi­

dade da arte?

RESPOSTA - Como você sabe, o que eu me pergunto sem­pre diante de um livro é o seguinte: o que nêle é tratado não. poderia ser expresso - digamos, com as mesmas dimensões -pela reportagem? Nêle foram levantados e resolvidos problemas no plano próprio da arte, ou, pelo contrário, no da sociologia? A êste respeito, sou conservador; exijo que quando se tenha algo importante a dizer em arte, encontre-se a forma conveniente. Isto vale tanto para Homero quanto para Kafka. Eu sou tão hostil a uma forma sem conteúdo, sem problemas artísticos. concretos, quanto ao inverso. Além disso, há outros instru­mentos, outros órgãos muito válidos - a imprensa, por exem­plo. Se nos detivermos sõmente no aspecto conceituai do tema, uma boa obra de sociologia será mais importante e enrique-

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cerá mais o saber do que, por exemplo, Homo Faber. 1 Um engenheiro destinado a tomar consciência de sua alienação na sociedade capitalista não precisa ter, além do mais, uma ligação com sua própria filha . Trata-se de um poeta que acres­centou isso visando a leitores "modernistas"; mas, no que toca ao próprio problema da alienação, êle será tratado com mais profundidade em qualquer sociólogo de algum valor. O papel do artista é o de esclarecer os problemas através dos modos de expressão prôpriamente artísticos.

Foi assim que, partindo de uma conversação infor­mal sôbre impressões observadas no dia a dia, nós nos en­caminhamos para a entrevista pràpriamente dita; mas, pelo menos no início, insens'ivelmente . "Nestes últimos quinze anos, pôde-se observar na imprensa uma dispersão de suas tarefas, um desnaturamento de seu papel próprio e origi­nário; e êste papel, de bom ou mau grado, teve de ser reto­mado pela literatura, pelo menos provisàriamente. Você não acha? Eu falo como jornalista". Lukács, que é um velho, mas certamente nada tem de caduco, me olha,· se­gura entre seus dedos um eterno charuto, que êle reacende tantas vêzes quantas apaga.

O que eu dizia não é senão uma reflexão de filosofia da arte. Na prática, vê-se esboçar duas espécies de movimento. No Ocidente, a alienação continua; ela se reflete na literatura através de modos e de ligações extremamente complicados . A arte ocidental regorgita de contradições. É impossível adotar em face dela uma posição inteiramente favorável ou inteiramen­te desfavorável. O período stalinista nos fêz passar ao largo de cinqüenta anos de desenvolvimento capitalista;· enquanto nós dormíamos, teria sido necessário analisar confi:nuamente, com a ajuda do método marxista-leninista, suas contradições. Ago­ra, não nos devemos surpreender se a juventude dos países socialistas, no momento em que a janela foi aberta, se lança sôbre tudo o que vem do Ocidente, Seria um enorme êrro que­rer impedi-la. A admiração sem reservas, o entusiasmo acríti-

1 Romance de escritor suíço contemporâneo Max Frlsch, conhecido sobretudo como dramaturgo. O que se segue faz alusão ao enrêdo dêste romance. (Nota do tradutor francês) .

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co pelo Ocidente, não é senão uma doença infant�l, que pas�a­rá· mas passará tão-sômente quando a juventude tiver a mte1ra 1iberdade de conhecer tudo, inclusive o .que não � . senão, qaarte do Ocidente, moda passageira.· Um JOVem. suftctentementeinteligente é capaz de distinguir, no fim de d01s anos, entre .ºque é válido e o que não o é. Mas é preciso, _antes de maisnada, que nós estejamos séria e c?�pletam.ente 1�orm.ados doque se faz no Ocidente. O resto vira como cons�quênc1�.

E bem verdade que, freqüentemente, nos paises socialistas, a literatura deve suplementar a imprensa deficiente. Na arte, jamais se tem o direito de r1;nun.ciar aos cri!érios prôpriamenteartísticos. De fato, o que nos dissemos da imprensa vale tam­bém para certos períodos do passado. Por exemplo: para o romance inglês do século XVIII. Tomemos Moll Flan�t;rs de Defoe: trata-se pura e simplesmente de um decal9ue cnttco da situação social do momento, mas trata-se tambem de grande arte. Estou começando a me irritar quando ouço dizer que, para mim, nada existe !ora dos ��colos X\:'Ill e� XIX. Ma� eurepito, pois estou convicto: a cnttca marxista nao dev� deixar de exigir que o escritor, mesmo quando trat� de ac?n.tec1mentos e problemas dos mais atuais, o faça no mvel ar�1st1co de u.m Defoe; eu esclareço: no nível de, e não naturalmente: no estilode levando-se em conta a natureza da sociedade atual e de sua Jit�ratura. Nada tenho, em princípio, contra uma literatura que desempenhe por vêzes o papel d.a sociologia. Mas t?mem�s O exemplo da literatura alemã antenor a 1848; ou, mais preci­samente, o de A Alemanha, um conto de inverno de Reine· � que ai é denunciado é. política da !Dais terra a terra, . uma �1-tuação social e política bastante particular . Mas q�e. me10.s _art1s­ticos, sobretudo para a época! f: sempre necessan? ex1.gir. daliteratura um nível artístico tão elevado quanto o Já atmgi�o, por exemplo, pela literatura soviética da .década d .. e 20. Os vm­te anos que se seguiram presenciaram, mcontest�velmente, um declínio da literatura socialista, apesar das exceçoes, como por exemplo. - entre nós, ·na Hungria - as novelas e os �iois gran­des romances de Tibor Déry. O problema é que se fez do rea­lismo socialista algo que eu chamaria de º. "naturalismo daépoca" (stalinista). Foi por es�a razão que vimos se afastarem dêle escritores de talento e leitores preparados, bem c�m� .ªconfusão se atiossar de muitos escritores que, por uma JUSttfi-

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cada aversão a êste famoso realismo, caíram no excesso que consiste em rejeitar tôda espécie de realismo.

Já que a palavra se mantém, qual é a sua opinião a respeito da situação do realismo socialista?

Tôda grande arte é realista . Desde Homero . E isto por­que e1a reflete a realidade; êste é o critério irrecusável de todo grande período artístico, ainda que, naturalmente, variem infi­nitamente os meios de expressão. Quando se fala de realismo, é sempre necessário ter em vista uma data de nascimento. Dêste ponto de vista, considero o realismo socialista como o reaiiS­mo surgido em um certo período da história do socialismo e do seio de sua realidade profunda. O que eu recuso, com a má­xima :nergia, é que se forneça receitas para êste realismo, que se indique de antemão que aspecto êle deverá ter. Isto é tão absurdo quanto prever, em seus mínimos detalhes, como seria constituída a sociedade socialista ou a comunista. Imagine se após Swift, Defoe e Fielding, alguém pretendesse - antes do aparecimento de Balzac, Tolstoi, Dostoiévski - escrever um tratado sôbre o realismo burguês ...

Acredito que estejamos hoje nas vésperas de um grande renascimento do realismo socialista. Um Solzhenitzin já .nos mostra que êle tomará um aspecto inteiramente nôvo, pois tam­bém as questões diante das quais se encontra o escritor são inteiramente diversas das de antes. O realismo parte sempre de problemas que a vida nos coloca. Mas, cuidado! Não nos apres­semos em fazer de Solzhenitzin um nôvo Cholokhov. Dentro de alguns anos, veremos de que espécie de escritor se trata; no momento, o que nos interessa é a sua maneira de colocar os problemas. É preciso esperar as provas; eu me tornei, por experiência própria, muito cético em matéria de prognósticos literários ...

Gostaria de prevenir também contra um outro mal-enten­dido. Quando falo de um realismo "surgido do seio da reali­dade profunda" do socialismo, não penso apenas nos escritores que vivem no mundo socialista. Eu considero de grande impor­tância um romance como os Voyageurs de l'lmpériale de Ara­gon; nêle, o autor trata de temas que seriam normalmente os de um romance burguês, mas de um tal ponto de vista que per-

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mitiu o nascimento de algo bastante nôvo. A mesma coisa ocor­re em poesia. Eluard ou Attila Jozséf são socialistas, mas que diversidade entre êles se os compararmos a poetas "burgueses"! Portanto, quando digo "realismo· socialista", penso em tôda a Jileratura. Pois trata-se de uma questão de ponto de vista ado­tado, não de tema tratado. O tema é universal; a literatura re­flete o mundo em seu conjunto. Escritores socialistas do Leste e do Oeste apresentam características comuns, que os distin­guem de escritores burgueses contemporâneos. É como em uma galeria de quadros: percorrendo-a, você encontra sempre carac­terísticas comuns em pinturas da mesma época e cujos princí­pios são semelhantes. É neste sentido que o realismo socialis­ta existe. E não no dês ses péssimos tratados que lhe entopem de regras pré-fabricadas.

Posso concluir que vocJ partilha da concepção de Aragon, a de um realismo "aberto", ou da de Garaudy, um realismo "sem fronteiras"?

Eu repito que, grosso modo, tôda grande literatura, tôda literatura autêntica., é realista. Não se trata aqui de estilo, mas do ângulo de visão da realidade, da posição tomada diante dela. Mesmo o máximo do fantástico pode ser realista. A questão que se coloca é a de saber até que ponto pode se qualificar de realistas certas tendências "modernistas" ou de "vanguarda". Onde eu começo a não mais estar de acôrdo é quando a lite­ratura, como que ·dE;;sorientada, renuncia a tôda pintura pluri­dimensional, a tôda marca de universalidade; não sõmente em seu conteúdo, mas também na forma. Tomemos um exemplo. O cubismo partiu de uma afirmação de Cézanne: os objetos nos aparecem também sob forma de cilindros ou de cones. Po­rém, quando se publicou a integralidade das concepções teóri­cas de Cézanne, constatou-se que êle abarcava em suas defini­ções tôdas as determinações do universo sensível, côres, rela­ções dos Óbjetos entre si, até mesmo odores, etc. Em suma, sua concepção é universal. O cubismo, contudo, não reteve de tô­das estas dimensões senão uma única. O que conduziu a um certo empobrecimento da arte. E eu sou contra todo empobre­cimento. Por sua natureza mais profunda, a arte possui várias

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dimensões. Ora, as últimas décadas manifestam uma tendência muito marcada para a arte de uma só dimensão. Sou contra.

Objetar-lhe-ão que os autores de que você fala se comparam a cientistas que se dedicam a investigações parciais em um pequeno setor, graças às quais, mais tarde, outros chegarão talvez a uma síntese, à universalidade.

Oh! Mas a arte ou a literatura e a ciência são duas coisas radicalmente diferentes. Nas ciências, uma pequeníssima desco­berta pode levar a outras maiores. A arte, pelo contrário, ou é universal ou simplesmente não é arte. É possível que experiên­cias artísticas limitadas, "de uma só dimensão", forneçam ·uma inspiração fecunda a outros artistas, mas não há muitas possi­bilidades de que elas sejam de uma grande importância para tôda a humanidade. Ademais, não há fórmula que - em arte -pretenda uma validade geral. O que é o caso, ao contrário, de tôdas as fórmulas justas, nas ciências. A expressão artística tem sempre algo de singular, de único, de onde decorre igualmente a forma. A experimentação formal, em si e para si, tem sem­pre algo de extremamente problemático, Um velho como eu, que lança um olhar para os sessenta anos decorridos, descobre um vasto cemitério, Aquêle que, em minha juventude, era uma grande promessa, caiu no esquecimento; dificilmente conhece­mos hoje autores que representavam então um papel conside­rável. É necessário que se pense nisso sempre. As descobertas formais são importantes, necessita-se delas; mas o que perma­nece, o que é decisivo, é o valor estético. Tomemos, por exem­plo, o grande monólogo interior de Carlota em Weimar de Tho­mas Mann e comparêmo-lo aos monólogos int�riores de Mrs. Bloom no Ulisses de Joyce. Há analogia de processos, mas enquanto Joyce inventou algo comparável a associações regis­tradas em um gravador, em Thomas Mann tem-se sõmente a impressão de uma sucessão livre de associações: na realidade, Thomas Mann tinha um objetivo muito claro, que era o de mostrar alguma coisa por meio dêste procedimento - digamos, as relações de Goethe com Schiller. Muitos processos que foram celebrados como descobertas e considerados isoladamente, em seu aspecto puramente técnico, eram parte integrante da men­sagem artística. Há um belíssimo episódio em Ana Karenina:

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a viagem de Daria à casa de Ana e o seu retôrno; Tolstoi con­segue, nêle, recriar os estados d'alma diversos de um persona­gem feminino em um curto lapso de tempo, mediante um pro­cesso que é - não formalmente, mas no fundo - um monó­logo interior; com relação ao conjunto do romance, ou seja, em contraste com uma realidade objetiva; o que tem como efeito, igualmente, a revelação de novas dimensões artísticas.

Mas quando a técnica é manipulada em si mesma, trans­formada em seu próprio objetivo, perde-se de vista sua signifi­cação e se cai na arte de dimensão única. Lawrence Dure li pretende dar ao romance as quatro dimensões de Einstein: três dimensões espaciais e uma temporal; êle faz resultar desta inten­ção um romance cíclico: as três dimensões espaciais, uma de cada vez, e para terminar a dimensão temporal . Contudo, até mesmo uma criança poderia dizer que sõmente em conjunto e indissoluvelmente reunidas estas dimensões podem formar uma visão do mundo; separadas - por exemplo, a largura sem a altura, etc. - elas não conduzem senão a uma embrulhada. Tais experiências não passam de blefe para épater le bourgeois, não têm nenhum valor. Não me incomodo de ser chamado de "zdhanovista" por dizer estas coisas. Considero ser um dever da crítica, em face de casos desta natureza, dizer: "O Rei está nu". Atenção: isto não vale para Kafka; êle é um artista importante, que merece ser levado inteiramente a sério. Ao passo que muitas coisas que hoje são chamadas de novas, desti­nadas a marcar época, terminarão - antes de quinze anos -na fossa comum das idéias.

Não se trata de ·uma apologia do conservadorismo. Esta­belecer o contato com a sua época - com tudo o que isto im­plica - é, para o artista, um problema intelectual e moral dos mais graves. É seu dever tomar posição em face dos maiores fenômenos de sua época. Recorde-se, por exemplo, como o velho Goethe, no ano mesmo de sua morte, apreciava A pele deonagro de Balzac e O Vermelho e o Negro, ao passo que recu­sava o Notre-Dâme de Paris, , . O que demonstra que não se trata de aceitar tudo pela única razão de que é nôvo, mas de escolher, de selecionar. Porém, reconhecer o que é nôvo e gran­de e, ao mesmo tempo, ousar dizer que "o rei está nu", esta posição comporta - para o artista e para o crítico - imensos

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riscos. Freqüentemente, êles têm um mêdo pânico de permane­cer presos ao antigo, ao que é de ontem. Não aprovo êstes es­crúpulos. Todos os que se ocupam da literatura, sejam cria­dores ou críticos, correm o risco de errar; nada nem ninguém pode nos preservar disto.

Além do mais, foi esta a razão de se terem traçado entre nós tantas linhas de divisão que não correspondiam a nada. Uns queriam guardar muito, inclusive o negativo, da época sta­linista. Outros se precipitam, tanto entre nós como no Ociden­te, atrás de tudo o que é nôvo, sem tomar o cuidado de distin­guir o durável do efêmero. Eu não tenho uma atitude não­crítica em face de nós mesmos e de nossas insuficiências; eu peço apenas que se dê prova do mesmo espírito crítico, tanto de um lado como de outro; o que quer dizer, evidentemente, que não considero a arte do Ocidente como uma unidade, com um mesmo sentido e uma mesma tendência. Vejamos, por. exem­plo, Thomas Wolfe: seus inícios foram fortemente marcados por Joyce, mas já em You can't go home again êle criou um estilo realista importante e muito pessoal. Donde se deduz que não há contradição apenas no conjunto da literatura de uma época ou de um país, mas também em um único e mesmo es­critor.

E Joyce, Proust? Sua comparação com a fossa comum vale também para êles?

Antes de mais nada, Joyce e Proust não estão mortos, não pertencem ainda ao passado, são fatôres vivos de evolução; a história não decidiu ainda em que gênero de fossa êles acaba­rão ... Mas não existe problema: considero Proust um escritor importante, mesmo se eu acho que a forma por êle escolhida é problemática. Ao passo que Joyce me parece puramente expe­rimentador. Por nada neste mundo eu colocaria a ambos num mesmo saco. Não é improvável que a influência de Proust sôbre a literatura permaneça muito sensível, inclusive sôbre a dos paí­ses socialistas. Mas é possível perguntar se não já se encontra neste grande escritor o germe do que chamei de literatura "de uma só dimensão".

E Beckett?

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Minha posição aqui é bastante negativa . Uma das tendên­cias marcantes no mundo capitalista é, incontestàvelmente, a de que o homem torne-se completamente alienado, eu diria mes­mo: vazio. Beckett vê esta tendência como sendo a única, co­mo sendo irresistível, e entrega-se à experimentação formal sôbre esta base. Isto me lembra a minha juventude, a época do natu­ralismo, com seu sentido do determinismo integral, da fatali­dade na existência humana. Também existiam, então, escrito­res que isolavam o homem de todo o resto; por exemplo, o jo­vem Maeterlinck (ver Os Cegos): não creio que êle possa ter hoje a menor influência, êle está simplesmente na fossa comum. Entretanto, quando já se escreveu muito sôbre um escritor, sôbre um fenômeno literário nôvo, as pessoas enganam-se a si mes­mas, persuadindo-se absolutamente de que se trata de algo vivo, revolucionário.

Mas não ocorre a mesma coisa com aquêles de quem não se escreve quase nada?

Um exemplo: existem toneladas de literatura em língua inglêsa sôbre os contemporâneos de Shakespeare. Isto significa que êstes autores fazem parte da herança viva da mesma forma que Shakespeare? Um jovem romanista poderia muito bem es­crever uma volumosa tese sôbre o jovem Maeterlinck, sem que isto em nada altere o que eu disse. Costuma-se, hoje em dia, bisbilhotar por tôda parte e descobrir coisas que se considera de primeira importância, sem nenhuma necessidade. Por exem­plo, Arcimboldo e suas montagens de frutas ... Eis uma das aberrações de nosso mundo. Coloque-se lado a lado Acimboldo e Tintoreto: cu fico com Tintoreto, o outro simplesmente não me interessa. O papel de um marxista é adotar uma visão his­tórica dos fenômenos. 21e pode se equivocar: quando isso ocorre, deve dizê-lo francamente, e não se deixar levar pela corrente simplesmente porque a corrente é forte. Tanto mais que, em muitos casos, estas correntes não são espontâneas, mas criadas por monopólios financeiros. No tempo de Marx, a pro­dução dos meios de produção era a coisa decisiva para o capita­lismo. Hoje, a produção dos bens de consumo desempenha um papel infinitamente maior. Também a arte moderna sofreu as conseqüências dêste fato. Daí estas agências, estas emprêsas

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edit�riais e�orm:mente �o�centradas; daí a questão: em que medida os mteresses propnos do capital participam no lança­�ento _de_ tal ou. qual corrente literária? :f: possível agora inves­ti_r capitais consideráveis também no domínio da arte. Permitaamda ao v�lho que s_ou contar-lhe êste fato: em minha juven­tude, funde! com amigos um pequeno teatro; foram suficientes alguns tostoes e começamos a representar; hoje, no Ocidente, �n�ar um teatro custa tão caro quanto fundar uma revista. E e deste modo que cresce a influência do capital sôbre a litera­tura. N�turalmente, _não está no poder do capital criar a lite­ratura, msuflar-Ihe vida se ela não a tem; mas êle pode refor­çar ou enf�aquecer certas corre�tes . Seu paI)el não é decisivo, mas êle existe, contudo, na medida em que muitos são atraídos pela :perspectiva. de fazer carreira ou de ter sucesso. Mas tudo1ss�. e !ecundáno, pois mesmo o atual "capitalismo de consu­n�o nao pode desempenhar na arte um papel decisivo quero dizer, um papel pràpriamente artístico.

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Outra coisa. Para falar da intervenção de Sartre em Praga: êle dizia que o grande romance do século XX seria um romance das experiências socialistas.

E: engenhoso e, em certo sentido, verdadeiro. Eu acho tam­bém . que, se. s� operar uma. grande síntese, ela será do pontode vista socialista. Eu partilho também da opinião de Sartre sôbre a superação da época stalinista . :f: interessantíssimo observar como esta época marcou os homens, observar quem se curvou e quem se manteve firme. Perfeitamente: todos os q.ue vivem e criam atualmente foram submetidos, nos anos deci­s!vos de sua evolução, de um modo ou de outro: à sua influên­cia. .l;:ste fato provocará seguramente o nascimento de grandes romances ou de grandes peças.

. Abre-s� hoje, diante de nós, um longo período de coexis­tência pacíftca. Por certo, não é indiferente saber como a litera­tura do Ocidente resolverá os seus problemas. E, neste caso, talvez o gra�de exemplo de Thomas Mann possa nos esclarecer urna ve� mais . Seu poktor Faustus contém tôda a problemática do fascismo: é por isso que permanecerá como um dos grandes r?mances do nosso tempo. Existe atualmente no Ocidente uma literatura em voga que se esforça para provar que todo êste

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mundo alienado, em face do qual sua atitude é de recusa, é afi­nal - do ponto de vista artístico - terrivelmente interessante. Foi assim, por exemplo, que vimos ti;urgir na Alemanha Ociden­tal escritores que, em certo sentido, são sustentáculos não-con­formistas do regime. Mas, ao mesmo tempo, há escritores que adotam em face das alienações uma atitude sem equívocos, co­mo - em sua época - Sinclair Lewis, em Babbitt; naquela ocasião, tratava-se de uma coisa considerável, enquanto agora isto não mais seria possível, pelo menos desta maneira. Em seu lugar, vemos obras tragicômicas, as de T. Wolfe, de Eugene O'Neill, cujo tema é ainda a luta contra a alienação. Por exem­plo, Styron mostra - em Set this house on fire -, por meio de um pensamento dialético, como nos ricos é a riqueza a causa da alienação, ao passo que é a pobreza entre os pobres, o todo conduzindo a uma explosão "tipo Raskolnikov". São coisas que não se devem perder de vista.

Um dia veremos o grande romance socialista, mas passará muito tempo antes dos escritores socialistas se libertarem de tô­das as suas inibições, de tôda autocensura . Daí a necessidade dêles de procurar aliados, por um lado na grande literatura cio passado, mas também nessas correntes da literatura ocidental contemporânea a que nos referimos; é necessário que este­jam aten�os ao modo pelo qual os melhores dentre êles denun­ciam a �úienação. Entre êstes, em última análise, encontrar-se-á também aliados políticos. Não se trata de uma objeção ao que Sartre disse, mas antes de uma complementação.

:S dever da literatura nos fornecer uma imagem verídica das imensas alienações· engendradas pelo stalinismo, bem como ajudar a suprimi-las. Ao mesmo tempo, algo grande e bastan­te nôvo foi esmagado neste período; por exemplo, o que se re­velava no Poema Pedagógico de Makarenko; é nossa tarefa fa­zer com que estas coisas revivam. E, se é verdade que um con­flito armado tornou-se uma coisa impossível, - e eu estou con­vencido de que isto é verdade, de que a guerra fria vai paulati­namente desaparecer, - a coexistência pacífica suscitará uma luta de classes extraordinàriamente viva, que se desenvolverá sob novas formas . Então, contaremos entre os nossos aliados com todos os que combatem a alienação no regime capitalista, não sõmente escritores, mas também sociólogos, como o faleci­do Wright Mills. Há sectários que negam a possibilidade da

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coexistência, bem como outros que acanciam a esperança de que a coexistência porá fim à luta de classes. Acredito que a verdade esteja entre as duas posições, como já afirmei num arti­go publicado em 1956 2; ou seja, trata-se de uma nova forma de luta de classes . Para compreender isto, é necessário - con­tra Stalin - voltar a Lênin. Já em 1916, quando da Primeira Guerra Mundial, Lênin dizia visando aos sectários: existem pessoas que acreditam que se formarão dois grandes campos, um colocado em face do outro: "nós somos pelo socialismo!", "nós somos pelo imperialismo!". Quem pensa assim, dizia êle, jamais compreenderá coisa alguma de Revolução. As coisas são muito mais complicadas, as tendências se intercruzam, as fren­tes se deslocam.

Você disse que era um velho, Eu próprio, quando olho para o passado, digo a mim mesmo: vivemos em uma época prodigiosamente interessante. 1t como se nós tivés­semos andado por um túnel, que nós sabíamos para onde conduzia, mas que estava imerso na obscuridade. Atingi­mos agora a um ponto de onde é possível perceber a luz . . .

Sim, um túnel. . . Como você sabe, quando revelou-se -no curso dos anos vinte - que o socialismo na U. R. S. S. so­freria distorções, surgiu tôda espécie de problemas. Em segui­da, produziu-se algo capital: o socialismo foi salvo do assalto do fascismo. A queda do poder soviético significaria que as perspectivas do socialismo recuariam de duzentos anos. Tive­mos de pagar muito caro por esta vitória: o preço foi a decepção de muitos em face do marxismo e do socialismo. O ){XQ e XXIl'Q Congressos do P.C.U.S. ofereceram a possibilidade de uma reparação. Hoje, estamos diante de duas grandes tarefas. Em primeiro lugar, mostrar ao mundo o que é o marxismo com­parado com o stalinismo. Por outro lado, a direita ocidental se esforça por provar que Stalin não fêz senão desenvolver até as suas últimas conseqüências as idéias de Lênin. Nosso dever, portanto, é mostrar a continuidade entre Marx, Engels e Lênin, provando que todos os três empregaram o mesmo método, ao passo que Stalin - em muitos pontos importantes dêste mé-

2 Na revista Aufbau, de Berlim Oriental (N. do T. francês).

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· todo e de sua aplicação - rompeu com o marxismo (por exem­plo, adotou em face dos sindicatos a mesma atitude que Trots­ki). O fato de que possamos hoje, graças aos resultados e aosefeitos dos XXQ e XXIIQ Congressos, trazer um esclarecimentosôbre estas questões, é algo que também chamaria, se você oquer, sair do túnel ...

Segunda tarefa. O marxismo deformado por Stalin nãotem condições de responder às questões do momento - nota­damente às colocadas pela juventude. Ora, devemos fazer ométodo marxista progredir precisamente na investigação dasquestões atuais. Nós, marxistas, só enco.ntraremos eco se sou­bermos colocar as questões e respondê-las melhor do que osoutros. Se uma renovação do marxismo aparece como indispen­sável aos jovens, é porque muitos resultados da técnica e dainvestigação modernas exigem ser tomados em consideração eai:talisados. Marx e Engels sempre souberam incorporar aomarxismo as conquistas da ciência contemporânea . Deixou-sede fazer isto após a morte de Lênin. Que é que Marx e Engelsfizeram, por exemplo, com Darwin? Atualmente, ninguém pen­saria em repetir literalmente o que Darwin disse, mas se tratado conteúdo; e, neste sentido, a apropriação de Darwin porMarx é uma conquista metodológica duradoura. Do mesmomodo, é necessário que nos apropriemos agora de tudo o querealmente ocorreu de progresso científico no Ocidente, desde amorte de Lênin. Sõmente quando fizermos isto, estaremos emcondições de influir decisivamente sôbre a juventude e sôbreos intelectuais ocidentais. Pois êles então comprenderão que,em sua busca sincera de uma solução, a resposta às suas ques­tões será encontrada no marxismo (penso aqui, ainda, emWright Mills). A meu ver, nada se obterá neste domínio pormeio de resoluções; a superação de tôda a época stalinista signi­ficará um grande passo. Como você vê, as duas tarefas sãoidênticas.

Mas é preciso dar à juventude a possibilidade de investi­gar por si mesma. Em nossos dias, existem muitos homens queestão prestes a tomar o caminho do qual falei. Um dia, êstesregatos formarão um grande rio. Todos os que - educadospor Stalin - se opõem a esta corrente sabem muito bem por­que o fazem. A luta que está sendo travada é uma luta parasaber quem vencerá, se métodos e hábitos stalinistas ou se o

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renascimento do marxismo, seu renascimento não só teórico mas prático, estando as duas faces estreitamemnte ligadas.

E se voltássemos um instante à arte e à literatura? O que resulta para elas do que você acaba de dizer?

Acredito que, em nossos países, a arte apolítica vai poder se desenvolver em uma tranqüilidade mais do que relativa. Sob Stalin, ela não existia; pelo menos aparentemente. Mas, na rea­lidade, não existem arte e literatura apolíticas, o artista não pode deixar de tomar partido. Velázquez e Goya eram pintores de côrte, mas observe como êles souberam traduzir em seus retra­tos todo seu desprêzo pela côrte de Espanha! Contudo, há to­madas de posição sinceras e outras teleguiadas, Existe em mui­tos países socialistas uma literatura sociológica de volume con­siderável, mas que se caracteriza por um perfeito positivismo. Basta tão sômente que um livro dêste gênero seja precedido de um hábil prefácio, no qual citações das autoridades do momen­to são postas em lugares convenientes, para que imediatamente deixe de existir problema com o editor, bem como com a crí­tica. Existem assim pessoas que, por pouco que elas satisfaçam a algumas obrigações exteriores, continuam tranqüilamente a escrever tal como se escrevia há quarenta anos. Ao contrário, os· que procuram tratar os problemas do presente à luz do pre­sente chocam-se freqüentemente com grandes obstáculos, amda que sejam excelentes marxistas, ou antes, precisamente por ca�­sa disso. Por isso, hoje, a condição .para acabar com o stab­nismo é garantir para o marxismo autêntico uma inteira liber­dade de expressão.

Mas a arte ... Em 1946 ou 194 7, pronunciei uma confe­rência em Budapeste sôbre o tema: "Arte livre ou arte dirigi­da?". Explicava então que a arte é um fenômeno social, que uma arte absolutamente livre não pode, portanto, existir: cada .socie­dade fixa a esta liberdade certos limites, seja em virtude de suas tradições, seja através de decretos; mas, sobretudo, por. meioda "encomenda social", isto é, dos problemas que a própna so­ciedade coloca à arte; tal encomenda pode favorecer ou entra­var o florescimento da arte, Dias, de qualquer modo, ela res­tringe necessàriamente a liberdade abstrata e metafísica. Pre­tender agora que a arte tenha podido um dia ser livre sob o capi-

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talis'mo é, portanto, uma· mentira (os exemplÓs são abundantes; de Balzac ou Flaubert a Karl Kraus); o artista que afirma ·ser perfeitamente livre em regime burguês revela, simplesmen­te, que soube se adaptar tão bem· que tem a impressão da libeÍ'­dade. Também no socialismo a liberdade da arte será sempr.e submetida a certas restrições. Todo Estado socialista está jus­tificado a impedir a propaganda contra-revoluciol1ária ·em seu território.

Mas, no que diz respeito à criação artística que não negue agressivamente o socialismo, - e supondo condições normais ele existência, - penso que os artistas deveriam fazer e deixar fazer tudo o que êles quiserem; em seguida, cabe à crítica, esté­tica ou ideológica, intervir. A arte dirigida, tal como nós a conhecemos desde o stalinismo, não conduz senão a um neona­turalismo ou ao "romantismo revolucionário", isto é, a uma arte que - abrindo perspectivas para o amanhã imediato -cria a ilusão em lugar da realidade. Naturalmente, em um pe­ríodo de calma e de estabilidade, a área de liberdade da lite­ratura é mais vasta que em uma situação de guerra civil, na qual existem coisas mais prementes, na qual não se tem tempo de pensar em questões tais como a de assegurar a liberdade da arte. O que caracterizava a época stalinista era o fato de se agir em período normal como em tempo de guerra civil. Um partido comunista, tendo adquirido a maturidade ideológica, pode evidentemente usar sua influência sôbre a arte e os artis­tas, mas apenas em uma medida limitada, isto é, na condição de que o Partido - através de uma direção ideológica justa -seja capaz de tornar o artista consciente da "encomenda so­cial"; o que não se pode fazer por decretos, mas sõmente pela convicção . Veja-se, por exemplo, as relações de Unin com Górki: Lênin exercia sua influência, mas ela não ultrapassava certos limites ( cf. a correspondência dêles: "Caro amigo, eu não sou de sua opinião ... ").

Naturalmente, sou contrário a qualquer "partidarismo" que reduza a arte à mera ilustração das últimas resoluções po­líticas. Mas o problema é mais profundo. Nas ciências, quando se estabelecem os fatos - não me refiro à sua interpretação -é necessário se abster de qualquer juízo de valor. Na arte, o juízo de valor é fundamental. Todo poema de amor, desde a noite dos tempos, foi escrito pró ou contra uma mulher: é um

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poema "participante". Se todo escritor, de Homero a Beckett, toma posição nas questões privadas, com mais forte razão O fará nas questões sociais (pouco importa aqui até que ponto êle tem consciência de o fazer ... ) . Deveremos atingir um mo­mento em que, em nossa arte, a tomada de posição socialista se expresse o mais claramente possível. Só que não chegaremos a isso por decretos, mas pela elevação do nível ideológico ge­ral existente em um determinado país.

(Tradução de Carlos Nelson Coutinho)

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TICNICA,

CONTEúDO E PROBLEMAS

DA LINGUAGEM

CINEMATOGRAFICA

Entrevl.sta conceàicla por Georg Lttkdcs à revista Filmkúlture, repubUcacla em Cinema Nuovo, n'I'• 196-197, novembro-de.:rembro de 1968 e janeiro-fevereiro de 1969.

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Nos ÚLTIMOS meses, o filósofo Georg Lukács assistiu à pro­jeção de alguns filmes húngaros recentes, que tiveram grande sucesso na Hungria e foram apontados como os mais represen­tativos da moderna cinematografia daquele país, Meu Caminho ("Igy Jottem"). Os Sem Esperança ("Sze'génylegények"), Os Vermelhos e os Brancos ("Csillagosok, Katonak"), Silêncio e Grito ("Csend és Kiáltás"), todos de Miklos Jancsó, e mais três películas de András Kovács - Os Intratáveis ("Nehéz Em­berek"), Dias Frios ("Hideg Napok") e Os Muros ("Falak") - além de O Pai ("Apa") de Istvan Szabó, Vinte Horas ("HuszOra") de Zoltan Fábri e Dez Mil Sóis ("Tizezer Nap") de Pe­rene Kósa. :Êste conjunto de filmes húngaros, com seus varia­dos temas, aborda um· grande número de problemas que têmintcrê'sse não apenas artístico, mas que também envolvem outrasquestões importantes para a sociedade húngara atual. A revistaf'ilm K1íltura formulou a Gcorg Lukács algumas perguntas sôbrc

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os filmes vistos. A entrevista - que publicamos aqui na ínte­�a, por gent� concessão da revista húngara - foi realizada no dia 10 _de mam de 1968, em casa do filósofo. As perguntas fo­ram feitas pelos redatores Yvette Biró e Szilárd Ujhely.

Y. B .. - Verifica-se que nos filmes recentemente vistos pelosenhor existem �lguns pontos em comum, não só no que se �efere à perspectiva dos autores como também no que concerne a metodologia. Em que pontos o senhor enxerga tais caracte­rísticas comuns?

LuKÁcs - Seria extremamente difícil resumir em poucas palavras tôdas as características tão variadas dos novos filmes hóngaros, ainda que nos limitássemos a suas características comuns, já que mesmo os dois autores mais importantes - Janc­s� e Kovács - utilizam métodos inteiramente diferentes. O que lta de nôvoi a meu ver, é o fato dêles terem conseguido encon­trar o cammho

_Para serem aproveitados de maneira justa os

novos desenvolvimentos e conquistas técnicas do cinema. Por outro lado, não podemos deixar de ver que o cinema é uma nova forma de arte e, sobretudo, que os dois diretores mencio­nados contribuíram êles próprios para um efetivo enri­quecimento da técnica cinematográfica. No Ocidente as novi­dades se apresentam principalmente neste terreno da' técnica e por vêzes denunciam uma carência de conteúdo . A nossa cine­matografia tende agora a ocupar-se de elementos novos de no­vo.s sentime�t?s. humanos, por exemplo, e dos modos d� expri­�tr com ef�cacta as relações humanas; .neste ponto, ela rela­cm�a os meios novos de expressão com nossos problemas reais. As�1m, se o tema é enfocado do ponto de vista, do conteúdo social, chegamos a uma verdadeira renovação e em tal sentido numa determi�ada med.i�a, podemo� oferecer aÍgo de mais pr�fundamente novo e ongmal ao Ocidente. :É preciso distinguir entre ª. renovação técnica e a sua utilização em têrmos de arte. E preciso ver se há uma efetiva utilização dos novos meios de expressão em têrmos de arte, quer dizer, se o público se dá c�nta ?e que com tais meios podem ser expressas relações de novo tipo.

E isso acontece amplamente entre nós. Cito apenas um exemplo: uma das novas técnicas consiste em representar os

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antecedentes de uma ação humana em flash back, por um cami­nho que volta ao passado; habitualmente, isto é só um recurso técnico e nada mais. Kovács, porém, conseguiu com êle mos­trar-nos, em Dias Frios, como homens de uma banalíssima me­diocridade - que na literatura húngara desempenhavam um papel secundário (ver alguns romances de Mikszáth 1) - po­dem se transformar em delinqüentes fascistas . A transformação não se produz por via teórica ou analítica: é representada atra­vés de uma volta ao passado revivido, com um recurso de tipo especificamente cinematográfico . Kovács conseguiu assim dois resultados: por um lado, deu um significado nôvo a um período histórico; por outro, realizou aquêle significado no âmbito de um nôvo modo de expressão, através de uma técnica artística pessoal, Pelo que sei, Dias Frios teve grande sucesso no exte­rior; e é compreensível que tenha conquistado as boas graças dos conhecedores estrangeiros.

Y. B. - Mas, além das relações de conteúdo e de forma, êste problema não apresenta relações diretas? Se, de um lado, é claro que Jancsó e Kovács usam métodos inteiramente anti­téticos, não será talvez possível descobrir, por outro lado, algum traço existente em comum nos dois, no sentido da minha per­gunta anterior? Com que problemas ambos se defrontam? E com que objetivo agem?

LuKÁcs - Seguramente, existe alguma coisa em comum; e, neste sentido, na cultura da Hungria, o cinema tem hoje uma função de vanguarda. De fato, nós - neste plano a nossa história da literatura e. a nossa crítica se acham sob o pêso de culpas maiores - fomos reduzidos à situação de aceitar qual­quer modernismo proveniente do exterior, enquanto, por outro lado, na realidade, continuamos agindo na base da antiga políti­ca da superioridade cultural. Refiro-me ao fato - tomando co­mo exemplo a história da literatura - de que, na realidade, cul­tivamos a justificação do passado, na linha de um Elemér Csás� zár 2. S necessária uma dialética específica para superar tudo isso. O marxismo, na verdade, não consiste apenas em

l - Kalmán Mikszáth, romancls húngaro de tendência crftico-rea lista que viveu entre o século passado e o nosso. 2 - Ferenc Déa.k, estadista, principal partidário da reconcillação en­tre as ciasses dirigentes da Austria e da Hungria, ocorrida em 1867.

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esclarecer determinadas causas, em explicar as relações entre as coisas. Na minha opinião, os nossos historiadores têm razão quando sustentam que antes de 1867 não existiam na Hun­gria movimentos revolucionários sérios e que Deák l foi efe­tivamente obrigado a assinar o acôrdo que assinou. A verdade é esta. Mas uma coisa é sustentar, documentando-a, esta ver­dade; outra, completamente diversa, é glorificá-la. Pois também é verdade que o processo de liqüidação do feudalismo em 1848, débil e superficial, ficou fora dos programas de 1867. O capi­talismo nascente não tocou no feudalismo provinciano e agrá­rio. Ora, tôda a literatura dêste período alardeou a existência, então, de um belo processo evolutivo, e em parte ainda se continua a fazer o mesmo hoje. Refiro-me principalmente a J6kai 4, que tratou da hist6ria da época em têrmos .eminen­temente apologéticos.

O filme de Jancs6 Os Sem Esperança, ao contrário, rom­peu definitivamente com esta concepção. O conde Ráday 5

representa para J6kai o homem esclarecido, de elevada posição, que entre outras coisas comprel::ndeu - grande idéia! - que é preci�o distinguir e separar o homem que luta pela liberdade e aquêle que tem ligação com a propriedade privada. Jancsó rompeu com tôdas essas concepções românticas e o problema do "radaysmo" aparece-lhe como uma imbecilidade medieval. :Bsse, para mim, é um grande passo à frente. Neste ponto, to­camos numa importante questão de ordem teórica. Quando Lênin falava do partidar;smo - não naquele seu artigo de jornal, que nada tem a ver com a literatura, mas num escrito de juventude - disse que o marxismo se caracterizava por dois aspectos. Por um lado, êle consegue dar uma imagem mais objetiva da sociedade do que aquela oferecida .pelas ciências burguesas; por outro, ao mesmo tempo, toma posição no inte­rior desta objetividade. A meu ver, nos Sem Esperança, veri­fica-se exatamente isso. Existe, no filme, a tomada de posição - abertamente declarada - segundo a qual é necessário odiar,em nossa história, tudo aquilo que merece ser odiado. A Hun-

3 - Critico llterârio dos anos 20. de \'Jsão muito estreita. 4 - Mór Jókal, o maior romancista húngaro do romantismo nacional. 5 - Gideon Râday conquistou triste fama como comissário real na região de Szeged, de 1868 a 18'11, perseguindo ferozmente os ex-volun­tários da guerra de liberação de 1848, os chamados "sem esperança.".

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gria nunca será um país culturalmente desenvolvido se aquê­les que são chamados a guiá-Ia ideológica ou politicamente não se derem conta das contradições da história do nosso país, e não renegarem ou odiarem aquilo que nesta história há de odio­so e de repugnante.

Em face dêste princípio, temos notado uma certa hesita­ção e repulsa. E essa repulsa é a revolta, em certa med_ida, também contra Os Dias Frfos. E:, na verdade, uma visão errada do problema, que, além do mais, não se refere apenas a al­guns burocratas, mas se estende a diversos escritores, por es­forçados e inteligentes que sejam; segundo êles, a Hungria foi tomada pelo fascismo tal como Pilatos entrou no Credo . .. Mas isto não é Verdade. O desenvolvimento dos fatos que le­varam o país ao fascismo teve inicio em 1867 e nunca supe­ramos o caminho de um desenvolvimento "à prussiana". A revo­lução de 1918-19 foi insuficiente para trazer transformações de­cisivas. A Hungria, que não tinha sabido liqüidar o feudalis­mo, caiu francamente no fascismo.

E é isto que András Kovács apresenta no homem médio de todos os dias. Mikszáth teve o grande mérito de ter mos­trado êste lado negativo do processo da história húngara, ainda que sem ódio, sem indignação, mas sempre com respeito pela verdade. Agora, Jancs6 e Kovács levantam novamente a ques­tão, chamando porém a atenção para o fato de que, em nome do desenvolvimento da Hungria, é preciso odiar aquilo que merece ser odiado.

Esta não é certamente uma atitude popular, nem junto a alguns burocratas nem junto aos "nacionalistas".

Entretanto, do ponto de vista ideológico, a despeito de certos adversários, tal posição constitui um grande passo adian­te; por isso, creio que Jancsó e Kovács devem ser considerados, no campó da concepção da história, representantes de uma ver­dadeira _vanguarda.

Y. B. - As discussões sôbre o assunto tiveram múltiplos desdobramentos. Algumas pessoas afirmam que êstes filmes destróem certos valôres tradicionais do povo ou uma espécie particular de sentimento nacional.

LuKÁcs - Que os destruam, então! Sz. U. - Acredito que isto também tenha ligação com o

problema das Vinte Horas. Tanto o filme quanto ó romance,

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porque também há romances que infringem determinados mi­tos, e ao mesmo tempo levam a pensar que, mesmo em nosso passado mais recente, existem acontecimentos que precisam ser odiados; e, simultâneamente, indicam as características ·deter­minantes e efetivas dêsse passado, em face das quais entusias­mamo-nos com tôda a razão, e entusiasmamo-nos ainda .hoje. Isso contribui definitivamente para salvaguardar uma certa continuidade ...

LuKÁcs - Não há porque temer as soluções de continui­dade, desde que nelas estejam presentes o tempo e os homens. Se um homem qualquer mata, num acesso de loucura, supo­nhamos, a mulher e os filhos, por mais inesperado que isto seja, não se apresenta como solução de continuidade .na vida daquele indivíduo. :e preciso recordar que a continuidade, por si mesma, não pode ser interrompida. Se afirmo que no interior de um processo apresenta-se uma mudança, refiro-me a uma questão de conteúdo .no âmbito da ·continuidade. E o problema está todo aqui. Devo novamente colocar a questão: que signi­ficado tem o modo pelo qual os homens julgam o seu próprio passado e, geralmente, todo o passado? Se me permite, darei um exemplo que se refere à França. A cultura burguesa fran­cesa demonstrou, através de Tocqueville e Taine - o que cor­responde à verdade -, que a luta contra o feudalismo teve uma certa continuidade, a partir de Luís XVI, .na direção da centralização. Dêste ponto de vista, a Revolução Francesa não é mais do que um episódio ... E repito que isso é parcialmente verdadeiro. Mas há um episódio determinante e decisivo, ou seja, aquêle que diz respeito à fratura revolucionária, à des­truição da Bastilha. Hoje, decorridos bem mais de um século e meio, o povo de Paris, a cada ano, comemora a festa de 14 de julho, ficando não com a continuidade de Tocqueville, mas com a descontinuidade da destruição da Bastilha. . . Se hoje a democracia francesa, sob certos aspectos, mesmo na época de De Gaulle, está na vanguarda das nações burguesas, isto se de-ve ao fato de que a tomada da Bastilha representou, mesmo para a mais simples das "midinettes" parisienses, um motivo de profundo entusiasmo.

Em nossa história, também deveria ser assim. Isto é, deve­ríamos nos entusiasmar pelas coisas que mereçam nosso sério e incondicional entusiasmo. E, ao mesmo tempo, deveríamos

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enfrentar com ira, eventualmente, aquêles mesmos homens pelos quais .nos entusiasmamos, quando percebemos que êles fizeram alguma· coisa numa direção contrária ao progresso. Neste cam­po, contudo, entre nós, prevaleceni ainda atitudes inteiramente equivocadas. Naturalmente, existem também aquêles que se opõem a êstes erros: Ady e principalmente Bart6.k. A Cantata Profana, por exemplo, chega até à repulsa, ao protesto contra a barbárie nacional. Bartók não se indignava com o que acon­tecia no Afganistão, mas com o que faziam Hórty e Hitler nos anos trinta. Foi o que o levou a compor a Cantata Profana, e o induziu a emigrar para a América. Temos em Ady, em Atti­la József, no jovem Illyes 6 e principalmente em Bart6.k, ou,digamos, em um crítico como Gyõrgy Bálint 7, e assim pordiante - temos, na verdade, os modelos de como julgar onosso presente e o nosso passado.

Sz. U. - Só que êstes modelos se revoltavam contra um passado e um presente odiosos em nome de um sistema social que ainda estava por vir. Lembro o problema de As Vinte Horas porque, neste filme, trata-se de romper com um sistema que nã� foi instaurado em uma outra sociedade, mas que nós mesmos construímos aqui. Opomo-nos aos nossos erros para salvar alguns resultados já obtidos.

LuKÁcs - Tôda classe revolucionária herda os defeitos e preconceitos do sistema social que a precedeu, e depende dela e da energia de que é capaz o rendimento do esfôrço para libertar-se dos erros . . . Aqui está a grande düerença entre Lênin e Stalin. Lênin. expressou-se em seus escritos, com rela­ção à velha Rússia, nos têrmos mais crus, sem nenhuma con­cessão ao tradicionalismo; embora estivesse ligado, com plena adesão sentimental, à tradição de Pushkin, de Tchemichévski, etc. No tempo de Stalin, ao contrário, passou-se a encarar o general Suvorov, que tinha combatido a Revolução Fran­cesa, como um precursor do socialismo. :e exatamente istoque não se pode nem se deve aceitar, seja em pequenas sejaem grandes doses. Não deixo de lutar contra essas coisas, eestou contente de ver que nossos excelentes diretores cine-

6 - Endre Ady, Attila Jozsef, Gyula. Illkés: eminentes figuras da poesia hllllgara moderna. 7 - Gyorgy Bállnt, jornallsta, vitima da perseguição nazista.

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matográficos lutam pela mesma posrçao que eu. Porque está claro que, se se tratasse de erros pertencentes a um passado remoto e esquecido, a questão seria muito menos interessante· e, principalmente, permaneceria especulativamente teórica. Mas: para dizer �lgu�a coisa de maior pêso, se a tradição de Raday - como é 1magmada por Jancsó - não estivesse viva na Hun­gria, então não teria sido tão fácil, em certa medida, o apare­cimento dos Mihály Farkas s,

Y. B. - E será que os temas históricos se referem exclu­sivamente ao pass�do? 1::les também podem esclarecer situa­ções atuais?

LuKÁcs - :S. claro que o que interessa às pessoas são ·aquêles fatos do passado que ainda têm um reflexo no pre­sent� .. Por :_xempl�, depois de 1867, tivemos na Hungria Umaadnumstraçao ternvelmente burocrática, da qual Mi.kszath seprestou a fazer o jôgo. Hoje, um escritor só se detém sôbre êstetema se o burocratismo ainda existir. Um povo leva decênios,mesmo séculos, para conseguir tirar de seus ombros os errosdo próprio passado. Mas, na minha opinião, só pode removê­los enfrentando-os e criticando-os.

· Sz. U. - Gostaria de colocar uma questão inteiramenteprofana. Há pouco, falávamos da história da França; está claroque no período da ditadura jacobina - como Lênin mesmodisse - o terror não fazia distinção entre golpes necessários1: g?Ipes inúteis. Gostaria agora de colocar-me no papel de ummd1v1duo daquela época que se inteirasse dos "golpes inúteis"e do! erros _políticos. Terá êle coragem de denunciar O passadopróXI.Il1o, sabendo 9ue, pouco além das fronteiras, as fôrçasrestauradoras poderiam logo se aproveitar desta tomada de po-sição?

LuKÁcs - Creio que a essa pergunta Anatole France poderesponder muito bem, com seu romance Os Deuses têm Sêde.

Isto é, o povo francês, a literatura francesa, não recuaram nemmesmo diante desta questão. . . Mas nestes nossos filmes e nascríticas .que êles �esen�olvem não se trata do fato de que umatendência revoluc1onária tenha superado, por razões revolucio­nárias, aquêles limites sôbre os quais grandes revolucionários,

8 - Um dos maiores responsáveis pelos processos ilegais no perlodo Ráko.sl.

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como Mai:at e Lênin, tinham suas próprias opiniões. Aqui não se trata disso ... Na minha opinião, Kruschev tinha razão a respeito de poucas coisas, mas teve razão quando afirmou que os processos políticos dos anos 30 eram politicamente supér­fluos, pois estavam dirigidos contra um adversário já derro· tado ... Na ditadura do proletariado húngaro, o terror desem­penhou um papel irrelevante, e disso não vale a pena falar. Mas, no que se refere ao período de Rákosi, o centro do pro­blema é que aquêles que êle tinha eliminado como inimigos do socialismo e como oposição não eram - na realidade - nem inimigos do socialismo nem oposição.

Sz. U. - O problema é que naquele regime, em vários postos e cargos públicos - não me refiro agora à ilegalidade - em posições diversas e em diversos postos, operava, ao ladode Rákosi, aquela geração comunista que vive ainda hoje. Sus­citando discussões sôbre o problema, ela deverá defrontar-seconsigo mesma e, neste confronto, deverá condenar seu pró·prio passado.

LuKÁcs - Exatamente a êste propósito, digo que quem tomou parte em tudo isso deve acertar as contas com aquela realidade. Não digo que seja necessário levar a julgamento tô· das essas pessoas, mas a opinião pública deve obrigá-las pelo menos a se defrontarem com suas próprias ações. Por que de­vemos evitar isso? Onde está escrito, em Marx ou em Lênin, que esta é a ética do socialismo?

Sz. U. - Eu agora estou fazendo o papel do advogado do diabo. Tudo o que foi dito é verdade, como é verdade que neste período aconteceram muitas coisas pelas quais nós sin· ceramente nos entusiasmamos. Poderia dar o nome das pessoas que amamos: elas também deveriam se defrontar com elas mes­mas e procurarem criar sua própria continuidade. Em suma, não condeno todo o passado, e efetivamente existem muitas coisas pelas quais, com tôda a razão, nós nos entusiasmamos.

LuKÁcs - Isto eu não discuto, mas não podemos resolver todos os problemas de maneira a que todos fiquem contentes: por exemplo, não se pode lutar contra o contrabando sem atin­gir os contrabandistas. Muitos afirmam que, aqui entre nós, aconteceram muitas coisas injustas; mas que de agora em diante elas pertencem ao passado e então podem ser esquecidas. Eu digo o contrário: não devemos esquecê-las. Dou como exemplo

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um testemunho da minha vida . Cursava a segunda série gina­sial. Quando o professor entrava, todos se levantavam. Um garotinho levantou-se e foi até a mesa do professor para mos­trar-lhe um certificado. Ao voltar para seu lugar, deu-me um sôco na barriga . O professor não percebeu, mas quando eu por minha vez, bati nas costas de meu colega, o professor per� cebeu e fêz um escândalo . Eu, então, disse que tinha sido o garôto que me batera primeiro . Logo em seguida, arrependi­me de meu gesto . . . E posso dizer que se, desde então, me comportei sempre de maneira honesta na vida, isso se deveu também ao fato de que, quando cursava o segundo ginasial, tive vergonha de mim mesmo . Creio que é um fato positivo na vida de um homem o envergonhar-se de si mesmo . Com tôda a pro­babilidade, outros terão tido experiências semelhantes. Esta idéia é muito bem apresentada na nossa literatura: nos grandes ro­mances pedagógicos de Makarenko. Makarenko trata de ma­neira exemplar do sistema educacional socialista quando, depois da mortificação e da catarse, oferece a liberação ao mortificado: agora, então, esqueça! Mas quando deve esquecer? Quando já houve a catarse. Só nestas condições é que se pode "esquecer", quando queremos verdadeiramente o socialismo, porque sem um trabalho educativo dêste tipo vive-se um pseudo-socialismo.

Existem circunstâncias nas quais podemos falar de fatos positivos, mas é preciso falar também dos fatos negativos. No caso do conde Ráday, não me interessa se êle estava eventual­mente !ambém do lado positivo. Trata-se de uma velha q1:1estão, que nao se apresenta apenas a nós. Quando eu era Jovem, aconteceu um fato de grande repercussão: uma atriz famosa suplicou a Ibsen que modificasse o final de Nora, de modo que a heroína, tendo confessado ao marido tudo que tinha feito, permanecesse com êle. lbsen fêz-lhe a vontade e escreveu um nôvo final, para demonstrar como dêsse modo o drama se torna­ria uma tolice. Nora não é mais Nora se não vai embora ... O nosso passado, então, só pode prejudicar-nos se faz com que nos e.alemos ante seus momentos controvertidos, porque em tal caso- e isso eu pude verificar mesmo em intelectuais capazes -retoma à superfície a questão, mal colocada, do terror revo­lucionário. Se o terror revolucionário é identificado com a ile­galidade, chegamos, então, a conclusões inteiramente erradas ...Se tivéssemos a coragem de falar abertamente do mal, teriam

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sido dadas muito mais ocasiões de lutar pelo bem, para depois também podermos falar dêle.

Y. B. -- Gostaria de voltar à fase da entrevista na qual tínhamos falado da violência revo1ucionária. Os Vermelhos eos Brancos foi revolucionário por ter "desmascarado" o terror revolucionário, sem colocar no mesmo plano de validade a vio­lência revolucionária e a contra-revolucionária.

LuKÃcs - Houve terror revolucionário, na verdade. E se nós desejamos permanecer marxistas, devemos admiti-lo: o que, no entanto, não significa dizer que em tal país aconteceu algo que êle não havia merecido. Não se trata disso. Eu admito e acho justa a atitude de lealdade de Jancsó, dêste ponto de vista, quando, com numerosos exemplos, êle demonstra como agiram de maneira diversa e até oposta, do ponto de vista ético, revo­lucionários e contra-revolucionários. Não se trata de opor o branco ao prêto, revolucionários humanos e contra-revolucio­nários assassinos, mas de mostrar a psicologia daqueles que combatiam pela causa justa em confronto com a daqueles que combatiam pela causa errada. Nisso estou inteiramente de acõr­do com Jancsó; e aqui se abre uma nova questão artística, à qual, na verdade, prestei pouca atenção, mas que de fato foi proposta por observadores inteligentes e leais.

O cinema de hoje - e isto é uma coisa positiva - repro­duz com uma grande velocidade as várias transformações. Nos filmes ocidentais, verifica-se um abuso dêste recurso. Há filmes policiais, por exemplo, que levam a ação a desenvolver-se com base em acontecimentos totalmente simplórios, do ponto de vista humano. Eu me pergunto se os temas abordados por Jancsó não teriam tido necessidade de um tempo mais lento. Não é verdade que um ritmo acelerado constitua por si só um fato artístico. A verdadeira arte existe quando obtenho a má­xima clareza aproveitando o tempo ao máximo. E aqui tenho algumas dúvidas. De fato, em seus dois últimos filmes, Jancsó leva ao extremo esta tendência essencialmente justa; mas não teria obtido melhores resultados artísticos diminuindo a velo­cidade do tempo em passagens mais complicadas e dramáticas dos acontecimentos? Esta é a objeção que, como leigo, levanto a propósito de coisas com as quais, em linhas gerais, estou in­teiramente de acôrdo.

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Y. B. - :e uma pergunta à qual só posso responder com uma outra pergunta. Se admitimos que êstes trabalhos são· de gênero vanguardista. e · se movem numa estrada pràticamente nova, talvez não seja verdade que êles requerem, de um ponto de vista formal, procedimentos de vanguarda? Pode acontecer então que, para aquilo a que estamos habituados hoje, para a capacidade perceptiva de hoje, talvez o ritmo seja um pouco rá­pido, as soluções pareçam um pouco estranhas, mas que mais adiante tudo isso venha a ser justificado.

LuKÁcs - :e possível. E disso não ouso falar; limito-me simplesmente a exprimir uma dúvida. As minhas experiências indicam que, em geral, mesmo nas transformações mais revo­lucionárias, não é a técnica que determina o que deve exprimir o conteúdo, mas é o conteúdo que deve regular a aplicação datécnica. Deixo aberta a questão de sabermos se se trata ape­nas de um problema de percepção do espectador de hoje, oude um problema de tempo em geral, que nós freqüentementeencontramos. Para dar um exemplo, sirvo-me de um episódiototalmente estranho à área do cinema: encontrava-me um diaouvindo um concêrto, no qual se executava uma sinfonia deBeethoven, de que muito gosto. Naquela ocasião, ela não mecomoveu e até aborreceu. Perguntei então, a um amigo musi­cista, o que tinha acontecido. Respondeu-me que o maestrotinha regido com muita rapidez, e que daí vinha a monotonia ...Repito: a minha observação a respeito de Jancsó era apenasindicativa de uma possibilidade, mas seria interessante que êsteassunto fôsse discutido por entendidos em cinema.

Y. B. - Na realidade, a discussão procura estabelecer qual é a necessária e a máxima quantidade de, informações que o espectador pode conseguir assimilar em um dado tempo.

LuKÁcs - Trata-se de um problema que se coloca para qualq_uer �xpressão artística, e é çl.eterminante, ainda que de maneira diversa, para os diversos casos. Neste setor, o cinema segue uma regra bem precisa, isto eu sei perfeitamente. E para podermos acompanhar um filme, devemos apreender-lhe a lin­guagem. A questão que aqui se coloéa, porém, é: de que modo e quando isso se realiza? Na verdade, não_ estou querendo pro­mover uma crítica a Jancsó; coloquei simplesmente um proble­ma que não é tanto o fruto de uma observação pessoal, mas

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que nasceu de sugestões de pessoas honestas e predispostas aaceitar o progresso.

Sz. U. - Na realidade, a discussão que se vem travandoé a discussão sôbre o conteúdo;· muitos, na verdade, não sou­beram apreciar o valor do que Jancsó quer dizer. Não se dãoconta do fato de que "si duo facient idem, idem non est" .'

LUKÁcs - Não se dão conta do comportamento socialis­ta de elementos socialistas. Pode acontecer, neste caso, que umadiminuição do ritmo, mesmo que mínimo, de apenas meio se­gundo, tivesse talvez podido esclarecer o acontecimento. Pre­cisamos estar muito atentos: estas coisas dependem, por vêzes, de pequenos detalhes artísticos.

Y. B. - Voltando a Os Dias Frios e a Silêncio e Grito,

parece-me que, para muitos, foi desagradável o fato de que os dois filmes exprimam juízos críticos sôbre o povo tal como êle é. Durante muito tempo, de fato, imperava a opinião românti­ca de que a classe dirigente era dissoluta e estava no caminho errado, enquanto o povo conservava intacta a sua própria ho-nestidade.

LuKÁcs - Esta é uma opinião inaceitável, porque, se o povo se erguesse diante das classes dirigentes com incorruptí­vel honestidade, elas não poderiam manter a sua supremacia. Os movimentos revolucionários de 1918-19 abalaram a classe camponesa, mas, em conseqüência dêsse abalo, aconteceram também as coisas mais disparatadas, a tal ponto que, mais tar­de, Izálasi encontrou no grupo social dos camponeses muitos seguidores. Esta é uma contraditoriedade do desenvolvimento que não pode ser cancelada pela hist6ria. J ancsó tem tôda a razão quando a representa. Uma situação assim tão romântica - e dou apenas o caso da Hungria - na qual, numa fasequalquer da revolução ou da contra-revolução, se pudessem verclaramente quais eram os revolucionários e quais os contra­revolucionários, é uma situação que só se verifica muito rara­mente. A grande dificuldade de tôda a história húngara con­siste exatamente no fato de que os camponeses, aquêles queforam negligenciados ideolàgicamente por todos os partidos, atépelo velho partido social-democrata, não se encontraram jamaisnum plano revolucionário real. E a isto devemos acrescentarque cometemos um grave êrro na ditadura do proletariado quan­do adiamos a divisão das terras, porque dessa maneira, diante

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das massas camponesas, não se criou logo uma verdadeira pe�s­pectiva revolucionária. Creio que Jancsó tenha representado com absoluta fidelidade a vida do campo. Penso que, a propósito dêste assunto, voltamos à primeira questão, isto é, � de nos acharmos hoje muito inclinados à idealização romântica, ideali­zação que, porém, mesmo em face do nosso passado, não pode­mos tolerar: se cedêssemos à idealização do passado, de fato, tornar-se-ia incompreensível tôda a história húngara.

Y. B. - Gostaria de saber do senhor que opinião tem a respeito do filme Dez mil s6is, que trata da história dos últimos trinta anos com uma linguagem bastante singular, em chave poética e, na minha opinião, um pouco romântica.

LuKÁcs - Poêticamente, sim, mas freqüentemente com confusões românticas. Detive-me nos filmes de Jancsó e Kovács porque êles são testemunhos de um empenho sinceramente socia­JJsta, enquanto procuram representar a realidade como ela é, de fato, e ao mesmo tempo fazem escolhas muito nítidas do ponto de vista emocional. Além do mais, essa é sua característica funda­mental. Naturalmente, posso estar errado, porque não conheço tôda a produção cinematográfica húngara, mas me parece que êstes diretores, apesar de suas respectivas diferenças, possuem em comum alguma coisa que os distingue de todos os outros. Em relação a isso, gostaria de responder a uma objeção bas­tante importante. Não creio que uma obra de arte, e em parti­cular um filme, deva necessàriamente responder às questões que são colocadas. Continuo a achar válida a posição de dois dos maiores artistas de minha juventude, Ibsen e Tchekov, que sus­tentavam que a tarefa do escritor é propor questões: as res­postas serão dadas pela história e pelo desenvolvimento social. lbsen não estava obrigado a dizer se Nora conseguiria ou não superar a situação em que se encontrava no final da peça. 1!:le levanta a questão de um aspecto negativo do casamento e, des­de então, na nossa sociedade, dezenas de milhares fizeram na prática - de um modo ou de outro - aquilo que Nora fêz depois de ter ido embora. Mas esta definição das esco­lhas não era a obrigação de Ibsen e também não seria hoje a tarefa de um filme. Se, então, o filme como obra de arte consegue fazer com que as pessoas reflitam sêriamente sôbre uma situação do passado ou do presente, levando-as a compará-Ia com a própria, terá atingido o objetivo que se propôs.

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Não é, evidentemente, o caso de fazer filmes que mostrem quais as inovações que precisam ser introduzidas na indústria têxtil para atingirmos o nôvo nível de mecf!.nização: esta é uma tarefa do Ministério. O filme, ao contrário, tem como tarefa reapre­sentar os aspectos positivos e negativos da sociedade e, como neste âmbito pode assumir um papel essencial, deve induzir à atenção e à reflexão o homem da rua, que freqüentemente vive os fatos reagindo apenas no nível sentimental, sem refletir.

Se, no cinema, pelo menos uma pessoa em dez consegue identificar seu próprio caminho, o filme atingiu seu objetivo.

Y. B. - Quanto a isso, estamos inteiramente de acôrdo, mas o que muitos perguntam é se o público está em condi­ções de acompanhar as novas exigências dos filmes modernos. Se a maior parte dos espectadores não é suficientemente ma­dura, que direito têm os diretores de obrigá-los ao esfôrço de se elevarem a êste alto nível?

LuKÁcs - Se o povo fôsse tão atrasado como os buro­cratas gostariam de nos fazer acreditar, não teria sido possível a realização da revolução socialista. Se, ao contrário, fôsse tão adiantado como afirmam, outras vêzes, êsses mesmos burocra­tas, a revolução não teria sido necessária. Como nem uma nem outra dessas afirmações são verdadeiras e houve uma revolução socialista, é necessário que o cinema e as outras artes operem · no interêsse da revolução e do desenvolvimento intelectual do povo.

Y. B. - Em uma entrevista anterior, e mesmo cm seu trabalho mais importante sôbre esiética, o senhor levantou al­gumas reservas em relação às possibilidades intelectuais do fil­me. O aparecimento de filmes recentes, tais como A Guerra

Acabou de Alain Resnais e Jorge Semprun, modificou esta sua opinião? Os instrumentos usados pelo cinema mais recente de­monstram "novas" possibilidades no sentido de aumentar os horizontes? Nos filmes húngaros citados, o senhor encontrou alguma solução que contivesse um elemento digno de nota em âmbito intelectual?

LUKÁCS - Creio que tôda esta questão deveria ser colo­cada do ponto de vista estético e do ponto de vista da drama­turgia cinematográfica, para que não nos encontremos diante de aspectos que ainda não foram devidamente analisados.

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Os problemas intelectuais podem ser examinados sob o aspecto formal e sob o aspecto do conteúdo.

Está fora de discussão que a literatura, e principalmente o drama, são - de um ponto de vista formal - os mais ade­quados para representar êstes problemas intelectuais; os pro­blemas intelectuais, porém, estão presentes em todos os lugares,de um modo ou de outro. E o que na minha estética chameide "objetividade indeterminada". Estou convencido, por exem­plo, de que um problema intelectual não pode ser expressopela pintura; entretanto, se examinamos os retratos de Rem­brandt, conseguiremos não só estabelecer a fisionomia intelec­tual do indivíduo, como também seus problemas intelectuais.Sem que com isso pretenda afirmar que a pintura está emcondições de exprimir intelectualmente os problemas intelec­tuais. . . Existem, pois, enormes diferenças entre o drama e aépica, entre a lírica e o filme. O problema se coloca tambémpara a ópera e para a música.

E indiscutível que, de Bach e Handel, passando por Bee­thoven, e chegando até em Bartók, a grande música refere-se a tôda uma série de problemas ideológicos. A despeito disso, não se pode exprimir musicalmente um problema intelectual enquanto tal. No setor do cinema, a situação não é tão extre­ma, mas não conseguimos ainda encontrar o meio para obter verdadeiramente esta fisionomia intelectual. Não chegamos ain­da ao ponto de compreender perfeitamente até onde podemos nos aprofundar em tal âmbito, e isto deve ser pôsto em relaÇão com o fato de que, no filme, a palavra é ora expressão do sig­nificado, ora rumor para criar uma atmosfera ou para media­lizá-Ia, já que estas funções são ambas desempenhadas pela pa­lavra. Creio que o filme não pode chegar ao mesmo ponto que o drama. Por exemplo, não se pode transpor para a tela a cena que começa quando lago desperta as suspeitas de Otelo e pros­segue quando Otelo fica sôzinho e diz aquêle maravilhoso mo­nólogo contemplativo: ". . . e agora, adeus armas" etc. Seria uma cena cinematogràficamente vazia, mesmo se fôsse inter­pretada pelo melhor ator. Existem, ao contrário, marcações dra­máticas através das quais são criadas situações tensas, e êste é um caminho que também o cinema pode percorrer. Acredito que, do ponto de vista do conteúdo, os problemas intelectuais são naturalmente indispensáveis no filme, mas é. preciso deter-

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minar os meios adequados a exprimi-los. Parece-me que êles não foram ainda inteiramente encontrados. Estarei dizendo talvez uma heresia, mâs quando vi os filmes de Lawrence Oli­vier - exceção feita a Henrique V - tive a nítida impressão de que o texto de Shakespeare era, nêles, algo acessório: com que finalidade, ali, Shakespeare fala tanto - perguntava-me -quando não há a mínima necessidade? No Hamlet filme, tive a mesma impressão, se bem que, do ponto de vista da estrutura do drama, o diálogo do Hamlet seja perfeito. É interessante recordar, ao contrário, que Henrique V - drama que pode ser transposto inteiramente em paisagens cênicas - suscitou-me uma profunda impressão, do ponto de vista cinematográfico. :este, naturalmente, é apenas um elemento de comparação, um as­pecto do problema que nos interessa, em relação ao qual nem Kovács nem J ancs6 encontraram uma completa solução. :l!les, no campo cinematográfico, devem continuar as experiências para individualizar o caráter dramático, dinâmico, das palavras, que toma corpo com a ação do homem, esforçando-se por dar vida a situações das quais resultem necessárias exatamente aquelas e não outras palavras. Não creio que seja possível trans­por para a tela uma intelectualidade contemplativa.

Y. B. - No que se refere aos meios da palavra, provà­velmente é assim; mas, .no método empregado por Kovács em Os Dias Frios, que consiste em colocar os episódios uns ao_ ladodos outros, comparando-os e procurando-lhes o paralell�m?, não se percebe uma tensão intelectual, a expressão de uma idéia bem determinada, eu diria o mesmo explícita?

LUKÁCS - E possível, se tudo isto é transposto. . . Em Os Dias Frios, o que há de bom é que a prisão, o diálogo que se desenvolve nela e a realidade do passado transcorrem em direções paralelas e a situação corresponde ao diálogo: como, por exemplo, na cena em que os personagens estão de pé, no meio do gêlo, e jogam os homens n'água. Sem esta cena, o diálogo no cárcere pareceria vago e inútil.

Y. B. - Portanto, parece claro que o diálogo não é um fim em si mesmo, mas faz parte do conjunto da composição e resulta então muito importante o pêso da montagem, a com­posição ordenada das partes úteis, a ciência de sua sistemati­zação.

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LuKÁcs - Isso eu não discuto; digo apenas que o cinema deve encontrar o modo ( e Kovács foi mais bem. sucedido .em Os Dias Frios do que em Muros) de utilizar seus próprios meios específicos. Esta é uma grande emprêsa, e não creio que o ci­nema tenh� resolyido o problema, que, não obstante, deve ter suas soluçoes. Disso, entretanto, não estou em condições de falar.

. Y. B .. - Posso .entretanto referir-me a um exemplo queío1 antes citado, ao filme de Resnais e Semprun. As soluções adotadas pelo diretor são muito estimulantes, principalmente no uso dos elementos temporais ...

LuKÁcs - :i;: um filme realmente interessante. . Y. B. - Sob muitos pontos de vista, a tentativa de des­

vmcular-se de uma cronologia precisa é um nôvo elemento da linguagem, mesmo que existam precedentes literários, a come­çar por J:>roust. De qualquer forma, aquela escolha - no filme - constitui uma experiência útil e original no campo da ex­pressão cinematográfica.

LuKÁcs - :e uma originalidade diferente da da literatura �esta, se existe algo que recorda o tempo passado, estou cons� ciente de me encontrar diante de Goethe - digamos - que r��voc� a su� própria vida 9• E, de fato, do ponto de vista f1s1ol6g1co, veJo Goethe e suas recordações, entendidas como reev?cações d€le. O filme consegue nos dar a recordação como realida�� p;esente, e, ?aí deriva algo inteiramente nôvo, cujas consequencias dramaticas .não apreendemos ainda de modo adequado e ainda não pudemos aproveitar totalmente. . Y. B. - Nos filmes de que estamos falando, o tempo tem

amda uma outra dimensão. Não são simplesmente o passado e. a rec�rdação que t�m a sua importância; é, atites, uma certa d1mensao de perspectiva do tempo a fantasia a imaginação O "t f "d

, , , empo uturo o sonho. Por exemplo, em A Guerra Acabou

as seqüências nas quais o protagonista procura imaginar com�pode ser a garôta que o tirou do embaraço ao telefone.

LuKÁcs - Isso é muito possível. Neste campo, aliás, 0 filme leva vantagem em relação à literatura. Uma tal pré-imagi-

9 Lukács refere-se, de certo, ao romance Carlota em Weimar, de Thomas Mann, onde há um monólogo interior retrospectivo do personagem Goethe.

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nação, de fato - o que uma pessoa pensa antes sôbre como decióirá em uma situação crítica - tem também uma grande importância na vida. Se uma idéia dêste gênero toma literal­mente corpo no filme, o processo imaginativo pode estimular uma nova maneira de repensar no homem que se encontra na iminência de uma escolha, negativa ou errada, indicando-lhe exatamente aquilo que de negativo ou de errado está presente no que êle está por fazer. No desenvolvimento dêste aspecto vejo grandes possibilidades, entre outras coisas também para a função autênticamente cinematográfica das palavras. Mas, no que me é dado enxergar, estamos ainda muito longe da reali­zação dêste objetivo. Na fase atual, dá-se ainda uma impor­tância unilateral às possibilidades técnicas do cinema e não se colocam as questões de conteúdo: não devemos nos esquecer de que, em tôda arte, o significado direto das coisas é de atmos­fera. Conheço poucas situações tão dramáticas, na vida real, como a cena de Macbeth em que, depois do assassinato, ouve-se alguém bater à porta do castelo. O fato de baterem à porta não é em si nada de extraordinário. E apenas o lado técnico da situação. Aqui a essência é a relação entre os dois elementos. Tarefa da dramaturgia cinematográfica é a de descobrir as ques­tões relativas a êsses elementos. Estou convencido de que po­deremos ainda aprender muitas coisas interessantes, se exami­narmos êstes elementos do ponto de vista do conteúdo, isto é, não o fato de bater à porta, em geral, mas o bater à porta como em Macbeth.

Y. B. - :Este exemplo é perfeito, porque trata efetiva­mente de uma sucessão de elementos, de um problema de com­posição do filme e, em particular, daquilo que deve preceder e daquilo que deve se seguir ao fato. :Êste é o conceito básico da estrutura do filme. Por outro lado, devemos pensar também no que, com muita originalidade, disse Eisenstein: em cada toma­da singular está também presente uma montagem vertical (não são as partes que se seguem uma a outra, como se fôsse em um jôgo, e sim partes diversas agindo contemporâneamente e assumindo em conjunto um significado muito complexo). A montagem vertical tem uma função emocionante em Silêncio e

Grito: o diretor conseguiu criar uma atmosfera tensíssima. LuKÁcs - :Êste filme agradou-me muitíssimo e muito po­

deria falar dêle, mas não quero acrescentar, aos já feitos, ou-

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tros comentários; apenas gostaria de dizer que de Jancsó e Kovács podemos esperar ainda muito. É preciso que os ·amigos do cinema os apóiem e compreendam que o empenho em es­clarecer os lados negativos do passado e do presente é um fato positivo e uma contribuição ao desenvolvimento do socialismo. Gostaria que se compreendesse que a minha crítica, talvez um pouco áspera demais, é uma crítica socialista. Não falo partin­do do ponto de vista do chamado humanismo burguês. Sempre me reprovaram a sinceridade; mas, sem ela, a ·verdadeira arte não pode existir. E, de fato, não estou seguro, por exemplo, de que se deva invocar sempre, em qualquer caso, os aspectos positivos. Quando jovem, entusiasmava-me porque Endre Ady chamava István Tisza de "Kan Bathomy Erzsebet" e nunca falava das boas qualidades de Tisza, que era um homem inte­ligente e honesto. Ady, porém, tinha razão em chamá-lo como o fazia. Sem isso não conseguimos ir adiante: enquanto nãoconseguirmos abrir uma brecha no muro do velho "nacionalis­mo", certas coisas continuarão a sobreviver de alguma forma.

Y. B. - Não é um acaso que o cinema obtenha bons re­sultados quando dá um passo à frente no caminho da verdade.

LuKÁcs - O fato é que a discussão sôbre o cinema só é possível de um ponto de vista comunista: a fôrça do verda­deiro marxismo-leninismo está na verdade, e renunciamos ao melhor das nossas possibilidades quando não aceitamos, por razões táticas, esta idéia. É muito importante que existam homens como Jancsó e Kovács, que, através da linguagem do nova arte, procuram tomar uma posição séria em relação ao nosso passado e ao nosso presente.

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fndice

Nota preliminar da edição brasileira

CONVERSAS COM HOLU, KOFLER E AENDROTH

Ser e Consciência

Sociedade e Indivíduo

Elementos para uma política científica

Balanço Provisório

MARXISMO E COEXISTÊNCIA

LITERATURA E VIDA

TÉCNICA, CONTEÚDO E PROBLEMAS DE LINGUAGEM

ÜNEMATOGRÁFICA

7

9

11

u('e)

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157

179

197