O Trabalho - Lukács

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Ontologia do ser social

O TRABALHOG. Lukcs

O Trabalho Como Posio Teleolgica...............................................................................................................5 O Trabalho Como Modelo da Prxis Social......................................................................................................46 A Relao Sujeito-Objeto no Trabalho e suas Conseqncias..........................................................................95

1. Para expor em termos ontolgicos as categorias especficas do ser social, o seu surgimento a partir das formas de ser precedentes, de que maneira as categorias se vinculam a essas formas, como aquelas se fundamentam nestas e se diferenciam destas, preciso comear pela anlise do trabalho. claro que no se deve esquecer que cada grau do ser, no seu conjunto e nos seus detalhes, constitui um complexo, isto , que tambm suas categorias mais centrais e determinantes s podem ser concebidas no interior e a partir da estrutura global do nvel de ser de que se trata. Um olhar muito superficial ao ser social mostra a inextricvel imbricao em que se encontram suas categorias decisivas como o trabalho, a linguagem, a cooperao e a diviso do trabalho; mostra que a surgem novas relaes da conscincia com a realidade e, portanto, consigo mesma, etc. Nenhuma categoria pode ser adequadamente compreendida se for considerada isoladamente; pense-se, por exemplo, na fetichizao da tcnica que, depois de ter sido descoberta pelo positivismo e de ter influenciado profundamente alguns marxistas (Bukharin), tem ainda hoje um peso no desprezvel, no apenas entre os cegos apologetas da universalidade da_________________ Traduo Prof. Ivo Tonet (Universidade Federal de Alagoas), a partir do texto Il Lavoro, primeiro captulo do segundo tomo de Per una Ontologia dellEssere Sociale. Verso revista por Pablo Polese de Queiroz, Mestrando em Sociologia pela UNICAMP-SP, a partir da edio em espanhol El Trabajo e cotejada com o original em alemo DIE ARBEIT - Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins . (Original) Status, 1971 - Kapitel 1 - Luchterhand, 1986. .

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manipulao, to apreciada nos tempos atuais, mas tambm entre seus antagonistas dogmticos, aqueles que a combatem partindo de uma tica abstrata.

2. Para desembaraar a questo devemos socorrer-nos do mtodo marxiano das duas vias, j por ns analisado: primeiro decompor, pela via analtico-abstrativa o novo complexo de ser, para poder, ento, a partir deste fundamento, retornar (ou seja, avanar at) o complexo do ser social, no somente enquanto dado e portanto simplesmente representado, mas agora tambm concebido na sua totalidade real. Neste sentido, as tendncias de desenvolvimento das diversas espcies do ser, por ns j pesquisados, podem trazer uma contribuio metodolgica inegvel. A cincia atual j comea a identificar concretamente a gnese do orgnico a partir do inorgnico e nos mostra que, em determinadas circunstncias (ar, presso atmosfrica, etc.), podem nascer complexos extremamente primitivos nos quais j esto contidas em germe as caractersticas fundamentais do organismo. Estas j no podem existir, por certo, sob as condies concretas do presente; s podem ser reveladas atravs de sua fabricao experimental. Alm do mais, a teoria da evoluo dos organismos nos mostra como gradualmente, de modo bastante contraditrio, com muitos becos sem sada, as categorias especficas da reproduo orgnica alcanaram neles a supremacia. caracterstico, por exemplo, das plantas, que toda a sua reproduo de modo geral, no sendo as excees aqui relevantes se realize na base de um metabolismo com a natureza inorgnica. Somente no reino animal esse intercmbio acontece pura, ou ao menos principalmente, na esfera do orgnico; possvel que, uma vez mais, segundo regras gerais, inclusive as matrias necessariamente inorgnicas sejam elaboradas pela primeira vez atravs de uma mediao semelhante. O caminho da evoluo o da supremacia mxima das categorias especficas de uma esfera vital sobre aquelas que obtm sua existncia e efetividade, de maneira ineludvel, a partir da esfera inferior.

3. Quanto ao ser social, anlogo o lugar que a assume a vida orgnica (e por seu intermdio, naturalmente, o mundo inorgnico). J expomos, em outro contexto, uma orientao evolutiva semelhante no social, aquilo que Marx chamou de recuo das barreiras

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naturais.1 Na verdade, aqui interditada, de antemo, qualquer experincia que nos possa fazer retornar aos momentos de passagem da prevalncia da vida orgnica socialidade. exatamente a total irreversibilidade do carter histrico do ser social que nos impede de reconstruir, por meio de experincias, o hic et nunc (aqui e agora) desse estgio de semelhante transio.

4. Deste modo, no podemos obter um conhecimento imediato e preciso dessa transformao do ser orgnico em ser social . O mximo que se pode obter um conhecimento post festum, uma aplicao do mtodo marxiano, segundo o qual a anatomia do homem fornece a chave para a anatomia do macaco e para o qual, portanto, um estdio mais primitivo pode ser reconstrudo no pensamento a partir daquele superior, de sua direo evolutiva, de suas tendncias de desenvolvimento. A maior aproximao nos trazida, por exemplo, pelas escavaes, que lanam luz sobre vrias etapas de transio nos planos anatmico-fisiolgico e social (ferramentas, etc.). O salto, no entanto, permanece um salto e, s pode ser esclarecido conceitualmente, em ltima instncia, atravs do experimento ideal a que nos referimos.

5. preciso, pois, ter sempre claro que se trata de uma passagem que implica um salto ontologicamente necessrio de um nvel de ser a outro, qualitativamente diferente. A esperana da primeira gerao de darwinistas de encontrar o elo perdido (missing link) entre o macaco e o homem devia falhar at porque as caractersticas biolgicas s podem iluminar as etapas de passagem, no o salto em si mesmo. J acentuamos que a descrio, em si muito precisa das diferenas psicofsicas entre o homem e o animal no apanhar o fato ontolgico do salto (e do processo real no qual este se realiza) enquanto no puder explicar a gnese destas peculiaridades do homem a partir do seu ser social. Do mesmo modo como no so capazes de esclarecer a essncia destas novas conexes as experincias psicolgicas com animais bastante evoludos, especialmente com

1 Nota do tradutor espanhol: Assim, por exemplo, em O capital, Marx observa a propsito das determinaes naturais: Essa fronteira natural retrocede medida que ganha terreno a indstria I, p.433.

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os macacos. Esquece-se freqentemente que nestas experincias os animais so postos em condies de vida artificiais. Em primeiro lugar, fica eliminada a natural insegurana da sua vida (a busca do alimento, o estado de perigo); em segundo lugar, eles trabalham com utenslios, etc. no feitos por eles, mas fabricados e reagrupados por quem realiza a experincia. Ora, a essncia do trabalho humano est no fato de que, em primeiro lugar, ele nasce em meio luta pela existncia e, em segundo lugar, todos os seus estdios so produtos da auto-atividade do homem. Por isso, certas semelhanas, supervalorizadas, devem ser vistas com olhar extremamente crtico. O nico momento realmente instrutivo a grande elasticidade que encontramos no comportamento dos animais superiores; Todavia, a espcie na qual se deu o salto para o trabalho deve ter representado um caso-limite (especial), qualitativamente ainda mais evoludo; com efeito, as espcies hoje existentes se encontram num grau claramente muito mais baixo; a partir deles no possvel construir nenhuma ponte at o trabalho genuno, propriamente dito.

6. Considerando que nos ocupamos do complexo concreto da sociabilidade como forma de ser, poder-se-ia legitimamente perguntar por que, de todo esse complexo, colocamos o acento exatamente no trabalho e lhe atribumos um lugar to privilegiado no processo e no salto da gnese do ser social. A resposta, em termos ontolgicos, mais simples do que parece ser primeira vista: todas as outras categorias desta forma de ser tm j, essencialmente, um carter puramente social; suas propriedades e seus modos de operar somente se desdobram no ser social j constitudo; quaisquer manifestaes delas, ainda que sejam muito primitivas, pressupem o salto como j consumado. Somente o trabalho tem, como sua essncia ontolgica, um claro carter intermedirio: ele , essencialmente, uma interrelao entre homem (sociedade) e natureza, tanto inorgnica (utenslio, matriaprima, objeto do trabalho, etc.) como orgnica, interrelao que pode at estar situada em pontos determinados da srie a que nos referimos, mas antes de mais nada assinala a passagem, no homem que trabalha, do ser meramente biolgico ao ser social. Com razo, diz Marx: Como criador de valores de uso, como trabalho til, o trabalho, por isso, uma condio de existncia do homem, independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediao do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da

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vida humana.2 No nos deve escandalizar a utilizao da expresso valor de uso, considerando-a muito econmica, uma vez que se est falando da gnese. At que no tenha entrado numa relao reflexiva com o valor de troca, o que somente pode acontecer num estdio relativamente muito elevado, o valor de uso nada mais designa do que um produto do trabalho que o homem pode usar apropriadamente para a reproduo da sua prpria existncia. No trabalho esto gravadas in nuce (em germe) todas as determinaes que, como veremos, constituem a essncia de tudo que novo no ser social. Deste modo, o trabalho pode ser considerado o fenmeno originrio, o modelo do ser social; parece, pois, metodologicamente vantajoso comear com a anlise do trabalho, uma vez que o aclaramento destas determinaes proporciona j um quadro preciso dos elementos essenciais do ser social.

7. No entanto, nunca se deve esquecer que ao considerar o trabalho deste modo isolado, se est realizando um trabalho de abstrao. A sociabilidade, a primeira diviso do trabalho, a linguagem, etc. surgem sem dvida do trabalho, mas no numa sucesso temporal claramente identificvel, e sim, quanto sua essncia, simultaneamente. O que fazemos, , pois, uma abstrao sui generis; do ponto de vista metodolgico h uma semelhana com as abstraes das quais falamos ao analisar o edifcio conceitual do Capital de Marx. Essa abstrao comear a ser desfeita j no segundo captulo, ao investigarmos o processo de reproduo do ser social. Esta forma de abstrao, no entanto, no significa, como tambm em Marx, que aqueles temas tenham sido inteiramente eliminados mesmo que de maneira provisria mas apenas que permanecem, por assim dizer, margem, no horizonte, e que uma investigao adequada, concreta e total a respeito deles adiada para fases mais avanadas da exposio. Para o momento, eles s aparecem quando esto ligados diretamente ao trabalho, considerado abstratamente, na medida em que so uma conseqncia ontolgica direta dele.

1. O Trabalho Como Posio Teleolgica

2 MARX, K (Os Economistas). O Capital, livro 1, vol. 1, p.50. SP: Abril Cultural.

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8. mrito de Engels ter colocado o trabalho no centro da humanizao do homem. Ele investiga as condies biolgicas do novo papel que o trabalho adquire neste salto do animal ao homem e as encontra na diferenciao de funo vital que a mo adquire j nos macacos: A mo usada principalmente para pegar o alimento e segur-lo com firmeza; o que j acontece com os mamferos inferiores atravs das patas dianteiras. Com as mos, muitos macacos constroem ninhos em cima das rvores ou at, como o chimpanz, coberturas entre os ramos para proteger-se dos temporais. Com as mos eles pegam paus para defender-se dos seus inimigos ou pedras e frutas para bombarde-los. Engels observa, no entanto, com a mesma preciso que, apesar destes fenmenos preparatrios, aqui [no ser social] se d um salto, por meio do qual j no nos encontramos dentro da esfera da vida orgnica, mas acontece em relao a esta uma superao de princpio, qualitativa, ontolgica. Neste sentido, comparando a mo do macaco com aquela do homem, diz: O nmero das articulaes e dos msculos, sua disposio geral so mais ou menos os mesmos nos dois casos; mas a mo do selvagem mais atrasado pode realizar centenas de operaes que nenhum macaco pode imitar. Nenhuma mo de macaco jamais produziu a mais rstica faca de pedra (ferramenta).3 Engels chama ateno para a extrema lentido do processo atravs do qual se d esta passagem e que, no obstante, isso no lhe retira o carter de salto. Enfrentar os problemas ontolgicos de modo sbrio e correto significa ter sempre presente que todo salto implica uma mudana qualitativa e estrutural do ser, onde a fase inicial certamente contm em si determinadas premissas e possibilidades das fases sucessivas e superiores, mas estas no podem desenvolver-se a partir daquela numa simples e retilnea continuidade. A essncia do salto constituda por esta ruptura com a continuidade normal do desenvolvimento e no pelo nascimento, de forma imediata ou gradual, no tempo, da nova forma de ser. Logo falaremos a respeito da questo central deste salto a propsito do trabalho. Queremos apenas lembrar que aqui Engels, com razo, faz derivar imediatamente do trabalho a sociabilidade e a linguagem. Estes so temas que, de acordo com o nosso programa, s trataremos mais adiante. Apontaremos aqui apenas um momento, ou seja, o fato de que as assim chamadas sociedades animais (e tambm, de3 F. Engels, Herrn Eugen Dhring Umwlzung der Wissenschaft -- Dialektik der Natur (MEGA Sonderausgabe) Moskau-Leningrad, l935, p. 694. (Dialtica da Natureza).

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modo geral, a diviso do trabalho no reino animal) so diferenciaes fixadas biologicamente, como se pode ver com toda a clareza no Estado das abelhas. Isso mostra que, qualquer que seja a origem dessa organizao, ela no tem em si e por si nenhuma possibilidade imanente de um desenvolvimento ulterior; nada mais que um modo particular de uma espcie animal de adaptar-se ao prprio ambiente. E tanto menores so estas possibilidades quanto mais perfeito o funcionamento de uma tal diviso do trabalho, quanto mais slido o seu fundamento biolgico. Ao contrrio, a diviso gerada pelo trabalho na sociedade humana cria, como veremos, as suas prprias condies de reproduo, no interior da qual, a simples reproduo do existente s um caso-limite face reproduo ampliada que, ao invs, tpica. Sem dvida isto no impede que, no decorrer do processo possam aparecer becos sem sada; suas causas, porm, sempre sero determinadas pela estrutura da respectiva sociedade e no pela constituio biolgica dos seus membros.

9. A respeito da essncia do trabalho que j se tornou adequado, diz Marx: Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha realiza operaes semelhantes s do tecelo, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construo dos favos de suas colmias. Mas o que distingue, de antemo, o pior arquiteto da melhor abelha que ele construiu o favo em sua cabea, antes de constru-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtm-se um resultado que j no inicio deste existiu na imaginao do trabalhador, e portanto idealmente. Ele no apenas efetua uma transformao da forma da matria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espcie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade.4 Deste modo enunciada a categoria ontolgica central do trabalho: atravs dele realiza-se, no mbito do ser material uma posio teleolgica que d origem a uma nova objetividade. Assim, o trabalho se torna o modelo de toda prxis social, na qual, com efeito mesmo que atravs de mediaes s vezes muito complexas se realizam sempre posies teleolgicas, em ltima instncia de ordem material. claro, como veremos mais adiante, que no se deve ser esquemtico e4 K. Marx, O Capital, op.cit., p. l50.

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exagerar este carter paradigmtico do trabalho em relao ao agir humano em sociedade; Precisamente, a considerao das diferenas sumamente importantes mostra a afinidade essencialmente ontolgica, pois precisamente nessas diferenas se revela que o trabalho pode servir de modelo para a compreenso das outras posies teleolgicas sociais, j que o trabalho, de acordo com seu ser, a forma originria (Urform) dessas posies. O fato simples de que o trabalho a realizao de uma posio teleolgica uma experincia elementar da vida cotidiana de todos os homens, tornando-se isto um componente imprescindvel de qualquer pensamento, desde as conversas cotidianas at a economia e a filosofia. Nesta altura a questo no tomar partido pr ou contra o carter teleolgico do trabalho; antes, o verdadeiro problema consiste em submeter a um exame ontolgico autenticamente crtico a generalizao quase ilimitada e novamente: desde a cotidianidade at o mito, a religio e a filosofia deste fato elementar.

10. No , pois, de modo nenhum surpreendente que pensadores grandes e com imenso interesse pela existncia (Dasein) social, como Aristteles e Hegel, tenham apreendido com toda clareza o carter teleolgico do trabalho, e que suas anlises estruturais precisam apenas ser ligeiramente completadas e no necessitam de nenhuma correo de fundo para manter ainda hoje a sua validade. O problema ontolgico, porm, que o modo de posio teleolgica no aparece como circunscrito ao trabalho nem em Aristteles e Hegel ou mesmo num sentido mais amplo, mas ainda legtimo, prxis humana em geral; ao invs disso, ela foi elevada a categoria cosmolgica universal. A conseqncia disto que toda a histria da filosofia perpassada por uma relao concorrencial, por uma insolvel antinomia entre causalidade e teleologia. conhecido o fato de que o finalismo do mundo orgnico fascinou a tal ponto a Aristteles (cujo pensamento foi sempre e profundamente influenciado pela ateno que ele dedicava biologia e medicina) que o fez atribuir, no seu sistema, um lugar central teleologia objetiva da realidade. Tambm sabido que Hegel, que percebeu o carter teleolgico do trabalho em termos ainda mais concretos e dialticos que Aristteles, converteu, por seu lado, a teleologia em motor da histria e, a partir disto, de toda sua concepo do mundo. (J mencionamos alguns destes problemas no captulo sobre Hegel). Deste modo, essa

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contraposio est presente ao longo de toda a histria do pensamento e das religies desde os incios da filosofia at a harmonia preestabelecida de Leibniz.

11. A referncia que fazemos religio se funda no fato da constituio da teleologia enquanto categoria ontolgica objetiva. Enquanto a causalidade um princpio de movimento autnomo que repousa sobre si mesmo e que mantm este carter mesmo quando uma srie causal tenha o seu ponto de partida num ato da conscincia, a teleologia , por sua prpria natureza, uma categoria posta: todo processo teleolgico implica numa finalidade e, portanto, numa conscincia que estabelece fins. Pr, neste caso, no significa simplesmente tomar conscincia, como acontece com outras categorias especialmente com a causalidade ao contrrio, aqui, com o ato de pr, a conscincia d incio a um processo real, exatamente ao processo teleolgico. Assim, o pr tem, neste caso, um ineliminvel carter ontolgico. Em conseqncia, conceber teleologicamente a natureza e a histria implica no somente que estas tm um fim, esto voltadas para um objetivo, mas tambm que a sua existncia e o seu movimento no conjunto e nos detalhes devem ter um autor consciente. O que faz nascer tais concepes de mundo, no s nos filisteus criadores de teodicias do sculo XVIII, mas tambm em pensadores profundos e realistas como Aristteles e Hegel, uma necessidade humana elementar e primordial: a necessidade de dar sentido existncia, ao movimento do mundo e at aos fatos da vida individual estes em primeiro lugar. Mesmo depois que o desenvolvimento das cincias demoliu aquela ontologia religiosa que permitia ao princpio teleolgico tomar conta, livremente, de todo o universo, esta necessidade primordial e elementar continuou a viver no pensamento e nos sentimentos da vida cotidiana. E no nos referimos somente, por exemplo, a Niels Lyhne que, sendo ateu, diante do leito do filho que morria tenta mudar, com oraes, o processo teleolgico dirigido por Deus, mas ao fato de que esta atitude um dos mais fundamentais motores psicolgicos da vida cotidiana em geral. N. Hartmann faz uma formulao muito adequada deste fenmeno na sua anlise do pensamento teleolgico: Sempre h uma tendncia a perguntar com que finalidade isso teve que acontecer exatamente assim. Ou ento: Qual a finalidade de eu ter que sofrer dessa maneira?, Com que finalidade tinha que morrer to jovem?. Diante de qualquer fato que nos agride, normal fazer estas

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perguntas, mesmo que exprimam apenas preocupao e desespero. Pressupe-se, tacitamente que, por algum motivo, as coisas devam ir bem; procura-se encontrar um sentido, uma justificativa. Como se estivesse determinado que tudo que acontece deveria ter um sentido. E Hartmann mostra tambm como, em termos verbais e na expresso imediata do pensamento, muitas vezes a formulao com que finalidade se transforma em por que, sem eliminar de modo algum, em essncia, o interesse finalstico, que continua a predominar substancialmente.5 Compreende-se facilmente que, estando estas idias e estes sentimentos profundamente radicados na vida cotidiana, muito rara uma ruptura decisiva com o domnio da teleologia na natureza, na vida, etc. Esta necessidade6

(Bedrfnis)

religiosa, que se mostra to tenazmente operante na cotidianidade, tambm marca espontaneamente setores mais amplos da vida pessoal imediata.

12. Esta uma contradio que se evidencia fortemente em Kant. Ele caracteriza genialmente a essncia ontolgica da esfera orgnica do ser definindo a vida como uma finalidade sem fim. Ele demole, com a sua crtica correta, a teleologia superficial das teodicias dos seus predecessores, para os quais bastava que uma coisa propiciasse a outra para ter como realizada uma teleologia transcendente. Deste modo, ele abre o caminho para o conhecimento correto desta esfera do ser, uma vez que se admite que conexes5 N. Hartmann, Teleologisches Denken, Berlin, l95l, p. l3 6 (N. do Revisor): Existe alguma discordncia em relao traduo de Bedurfnis (necessidade) e Notwendigkeit (carncia). Uso aqui a verso conforme a usada por Mario Duayer na verso preliminar do capitulo A Filosofia Contempornea e a Necessidade Religiosa que compe a primeira parte da Ontologia do ser social. Penso que talvez a traduo menos problemtica seria o inverso, pois dada a tradio existente na histria da filosofia em que necessidade uma categoria que expressa algo que no se pode evitar, sendo inclusive contraposta categoria liberdade, talvez evitaria algum tipo de confuso no sentido de que Lukcs (e por suposto, Marx) teria dito que o homem precisa, tem necessidade da religio para viver, e que portanto a religio persistiria existindo mesmo numa sociedade emancipada, o que um absurdo. Pra evitar problemas, o importante aqui ressaltar que Bedurfnis a necessidade historicamente criada e portanto supervel, enquanto Notwendigkeit a necessidade eterna, insuprimvel, como p. ex. comer, respirar, dormir. Ao longo da obra esse termo, bem como diversos outros, usados por Lukcs no manuscrito original em alemo, foram colocados entre parnteses para permitir esclarecimentos.

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necessrias meramente causais (e portanto ao mesmo tempo acidentais) originem estruturas do ser em cujo movimento interno (adaptao, reproduo do indivduo e da espcie) operem legalidades que, com razo, podem ser chamadas de objetivamente finalsticas com respeito aos complexos em questo. O prprio Kant, assim, bloqueia o caminho que o levaria daqui at o verdadeiro problema. O faz de maneira imediatamente metodolgica pelo fato de que, tal como costuma acontecer com ele, procura resolver

epistemologicamente problemas ontolgicos. E dado que sua teoria do conhecimento objetivo vlido est orientada apenas para a matemtica e a fsica, ele obrigado a concluir que sua prpria idia genial no pode ter conseqncias cognitivas para a cincia do orgnico. Com efeito, numa passagem que ficou clebre, ele diz: humanamente absurdo at o simples conceber um tal empreendimento, ou esperar que um dia surja um Newton, que faa compreender at mesmo a produo de um pedacinho de grama por meio de leis naturais no dirigidas por alguma finalidade....7 O quanto esta afirmao discutvel no decorre apenas do fato de que, menos de um sculo depois, ela foi refutada pela teoria da evoluo, ainda na primeira formulao darwiniana. Engels, depois de ler Darwin, escreve a Marx: Sob um certo aspecto, at hoje a teleologia no tinha sido derrotada, mas agora foi. E Marx, embora fazendo objees ao mtodo de Darwin, observa que o livro dele contm os fundamentos do nosso modo de ver, no que diz respeito histria natural.8

13. Uma outra e mais importante conseqncia da tentativa kantiana de equacionar e resolver em termos gnosiolgicos as questes ontolgicas que, no fim, o prprio problema ontolgico continua no resolvido: o pensamento fechado dentro de um determinado limite crtico do seu campo operativo, sem que a questo possa receber, no quadro da objetividade, uma resposta positiva ou negativa. assim que, exatamente atravs da crtica epistemolgica, fica aberta a porta para especulaes transcendentes e, em ltima anlise, admite-se a possibilidade de solues teleolgicas, embora Kant as refute no mbito da cincia. Pensamos especialmente na concepo (depois decisiva para Schelling)7 I. Kant, Kritik der Urteilskraft, 75. (Crtica da faculdade do juzo) 8 Engels a Marx, por volta de l2 de dezembro de l859, in MEGA, III, 2, p. 447; e Marx a Engels, l9 de dezembro de l86O, idem, p. 553.

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do intellectus archetypus cuja existncia no contm nenhuma contradio

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e que

poderia resolver tais questes, embora ns homens no o possuamos. Desta forma, o problema da causalidade e da teleologia se apresenta, ele prprio, na forma de uma coisa em si incognoscvel para ns. Por mais que Kant tenha rechaado as pretenses da teologia, esta negao se limita ao nosso conhecimento, ao passo que tambm a teologia se apresenta como tendo pretenses de ser uma cincia e por isso, permanece sujeita autoridade da crtica epistemolgica, na medida em que quer ser uma cincia. A questo fica limitada a que, no conhecimento da natureza, as formas de explicao causal e teleolgica se excluem mutuamente, e quando Kant investiga a prxis humana, fixa sua ateno exclusivamente para sua forma mais elevada, mais sutil, a mais mediada socialmente, ou seja: a moral pura, que por isso no brota dialeticamente, para ele, a partir das atividades da vida (da sociedade), mas que se encontram numa substancial e insuprimvel contraposio a essas atividades. Deste modo, tambm neste caso, o problema verdadeiramente ontolgico no recebe soluo.

14. Tambm aqui, como no caso de qualquer questo ontolgica genuna, a resposta correta tem, primeira vista, um aparente carter de banalidade, parecendo tratarse de um ovo de Colombo. Basta, porm, considerar mais atentamente as determinaes contidas na soluo marxiana da teleologia do trabalho para perceber a grande capacidade que elas tm de produzir conseqncias bastante relevantes e de liquidar definitivamente grupos de falsos problemas. Diante da posio adotada no confronto com Darwin, fica claro, para qualquer um que conhea o pensamento de Marx que, para ele, fora do trabalho (da prxis humana), no h qualquer teleologia. Deste modo, a afirmao da teleologia no trabalho algo que, para Marx, vai muito alm das tentativas de soluo propostas pelos seus predecessores mesmo grandes como Aristteles e Hegel, uma vez que, para Marx, o trabalho no uma das muitas formas fenomnicas da teleologia em geral, mas o nico lugar onde se pode demonstrar ontologicamente a presena de um verdadeiro pr teleolgico como momento efetivo da realidade material. Este reconhecimento correto da realidade lana luz, em termos ontolgicos, sobre todo um conjunto de questes. Antes de9 I. Kant, Kritik der Urteilskraft, 77. (Crtica da faculdade do juzo)

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mais nada, a caracterstica real decisiva da teleologia, isto , o fato de que ela s pode adquirir realidade quando for posta, recebe um fundamento simples, bvio, real: nem preciso repetir Marx para entender que qualquer trabalho seria impossvel se ele no fosse precedido de um tal pr, que determina o processo em todas as suas fases. Esta caracterstica do trabalho sem dvida tambm foi bem compreendida por Aristteles e Hegel; tanto assim que, quando tentaram interpretar teleologicamente tambm o mundo orgnico e o curso da histria, se viram obrigados a imaginar a presena, neles, de um sujeito responsvel por este pr necessrio (em Hegel o Esprito do mundo), resultando disso que a realidade acabava por transformar-se inevitavelmente num mito. No entanto, o fato de que Marx limite, com exatido e rigor, a teleologia ao trabalho ( prxis humana), eliminando-a de todos os outros modos do ser, de modo nenhum restringe o seu significado; pelo contrrio, a sua importncia se torna tanto maior quanto mais se toma conscincia de que o mais alto grau do ser que conhecemos, o social, se constitui como grau especfico, se eleva a partir do grau em que est baseada a sua existncia, o da vida orgnica, e se torna uma nova espcie autnoma de ser, somente porque h nele este operar real do ato teleolgico. S lcito falar do ser social quando se compreende que a sua gnese, o seu distinguir-se da sua prpria base, o processo de tornar-se algo autnomo, se baseiam no trabalho, isto , na contnua realizao de posies teleolgicas.

15. Este primeiro momento, porm, tem conseqncias filosficas bastante amplas. A histria da filosofia nos mostra que lutas intelectuais se travaram entre causalidade e teleologia como bases categoriais da realidade e sua dinmica. Toda filosofia de carter teleolgico, para poder operar um acordo entre o seu deus e o universo e com o mundo do homem, era obrigada a proclamar a superioridade da teleologia sobre a causalidade. Mesmo quando o deus dava simplesmente corda ao mecanismo do relgio, pondo assim em movimento o sistema causal, era inevitvel uma hierarquia entre criador e criatura e, deste modo, a prioridade da posio teleolgica. Em contraposio, todo o materialismo prmarxista, que negava a constituio transcendente do mundo, tambm rejeitava a possibilidade de uma teleologia realmente efetiva. Vimos que at Kant embora ele o faa na sua terminologia de carter epistemolgico afirmou uma inconciliabilidade entre

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causalidade e teleologia. Quando, ao contrrio, como em Marx, a teleologia tomada como categoria realmente operante apenas no trabalho, tem-se inevitavelmente uma existncia concreta, real e necessria, entre causalidade e teleologia. Sem dvida, estas permanecem contrapostas, mas apenas no interior de um processo real unitrio, cuja mobilidade fundada na interao destes opostos e que, para produzir essa interao enquanto realidade, deve transformar a causalidade, sem alterar a sua essncia, em uma causalidade igualmente posta (pelo sujeito).

16. Para compreender com clareza como isto acontece podemos tambm cotejar as anlises do trabalho realizadas por Aristteles e Hegel. Aristteles distingue, no trabalho, dois componentes: o pensar (nesis) e o produzir (poisis). Atravs do primeiro posto o fim e se buscam os meios para sua realizao, atravs do segundo o fim desse modo posto chega a ser realizado.10 Quando N. Hartmann, por seu turno, divide analiticamente o primeiro componente em dois atos posio do fim e busca dos meios e assim torna mais concreta, de modo correto e instrutivo a revolucionria idia de Aristteles, de imediato no introduz nenhuma modificao decisiva na essncia ontolgica dessa idia.11 Com efeito, tal essncia consiste nisto: um projeto ideal se converte em realizao material, insere na realidade algo de material que frente natureza representa algo qualitativa e radicalmente novo. Tudo isto mostrado muito plasticamente pelo exemplo da construo de uma casa, utilizado por Aristteles. A casa tem um ser material tanto quanto a pedra, a madeira, etc; no entanto, a posio teleolgica faz surgir uma objetividade inteiramente diferente com relao aos elementos primitivos. Nenhum desenvolvimento imanente das propriedades, das legalidades e das foras operantes no mero ser-em-si da pedra ou da madeira pode fazer derivar uma casa. Para que isto acontea necessrio o poder do pensamento e da vontade humana, que organize material e fundamentalmente tais propriedades de uma forma inteiramente nova. Neste sentido, podemos dizer que Aristteles foi o primeiro a identificar, do ponto de vista ontolgico, o carter desta objetividade, inconcebvel partindo da lgica da natureza. (J neste momento se torna claro que todas as formas idealsticas10 Aristteles, Metaphysik, livro Z, cap.7, Berlin, l96O, pp. l63-l64. 11 N. Hartmann, Teleologisches Denken, pp. 68-69

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ou religiosas de teleologia natural, nas quais a natureza criao de deus, so projees metafsicas deste modelo real. Este modelo to presente na histria da criao contada pelo Velho Testamento que deus no s como o sujeito humano do trabalho revisa continuamente o que faz, mas alm disso, exatamente como o homem, tendo terminado o trabalho, vai descansar. Tambm possvel reconhecer o modelo humano e terreno do trabalho em outros mitos da criao, ainda que tenham recebido uma forma imediatamente filosfica; vale lembrar uma vez mais aquela concepo que afirma o mundo como um mecanismo de relgio posto em movimento por Deus).

17. Tudo isso no deve levar a subestimar a distino operada por Hartmann. Separar os dois atos, isto , a posio dos fins e a busca dos meios, da mxima importncia para compreender o processo do trabalho, especialmente quanto ao seu significado na ontologia do ser social. E exatamente aqui se revela a inseparvel ligao daquelas categorias, causalidade e teleologia, que em si mesmas so opostas e que, quando tomadas abstratamente, parecem excluir-se mutuamente. Com efeito, a busca dos meios para realizar o fim no pode deixar de implicar um conhecimento objetivo acerca da criao daquelas objetividades e dos processos cujo pr em movimento pode levar a alcanar o fim posto. A posio do fim e a busca dos meios nada podem produzir de novo na medida em que a realidade natural, enquanto tal, deve permanecer sendo o que em si mesma: um sistema de complexos cuja legalidade continua a operar com total indiferena ante a todas as aspiraes e esforos do homem. Aqui a busca tem uma dupla funo: de um lado evidencia aquilo que se faz presente em si nos objetos em questo, independentemente de toda conscincia; de outro lado, descobre neles aquelas novas conexes, novas possveis funes que, quando postas em movimento, tornam efetivvel o fim teleologicamente posto. No ser-em-si da pedra no h nenhuma inteno, e at nem sequer um indcio da possibilidade de ser usada como faca ou como machado; mas s pode adquirir uma tal funo de instrumento quando suas propriedades objetivamente presentes, existentes em si sejam adequadas para entrar numa combinao tal que torne isto possvel. E isto, no plano ontolgico, pode ser encontrado claramente j no estgio mais primitivo. Quando o homem primitivo escolhe uma pedra para us-la , por exemplo, como machado, deve reconhecer

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corretamente este nexo entre as propriedades da pedra que nas mais das vezes tiveram uma origem casual e a possibilidade do seu uso concreto. Somente assim ele efetua aquele ato de conscincia analisado por Aristteles e por Hartmann; e quanto mais o trabalho se desenvolve, tanto mais evidente se torna esta situao. Embora tendo provocado muita confuso com a ampliao do conceito de teleologia, Hegel, apesar disso, compreendeu corretamente, desde o incio, esse carter do trabalho. Nas suas aulas de Jena de l8O5 diz ele: Se emprega a atividade prpria da natureza elasticidade da mola, gua, vento, com o fim de realizar, na sua existncia sensvel, algo inteiramente diverso daquilo que ela quereria fazer, (de tal modo que) a sua ao cega transformada numa ao orientada a um fim, colocado em contraposio com a prpria natureza [...], o homem deixa que a natureza se desgaste, fica olhando tranqilamente, e se limita a regir o todo, com um leve esforo....12 Vale a pena notar que o conceito de astcia da razo, que viria a ser to importante na filosofia da histria de Hegel, aparece aqui, na anlise do trabalho, talvez pela primeira vez. Hegel v com preciso a dualidade deste processo: por um lado, que a posio teleolgica meramente faz uso (aproveita) da atividade que prpria da natureza; por outro lado, que a transformao desta atividade coloca-a em contraposio consigo mesma. Esta atividade natural se transforma, pois, numa atividade posta, sem que mudem, em termos ontolgico-naturais, os seus fundamentos. Deste modo, Hegel descreveu o aspecto ontologicamente decisivo do papel da causalidade natural no processo de trabalho: algo inteiramente novo surge dos objetos naturais, das foras da natureza, sem que haja nenhuma transformao interna; o homem que trabalha pode inserir as propriedades da natureza, as leis do seu movimento, em combinaes completamente novas e atribuir-lhes funes e modos de operar completamente novos. Considerando, porm, que isto s pode se consumar em acordo com o carter ontolgico insuprimvel das leis da natureza, a nica transformao das categorias naturais s pode consistir no fato de que estas em sentido ontolgico sejam postas; o seu carter de ser-posto a mediao de sua subordinao determinante posio teleolgica, mediante a qual, ao mesmo tempo, a partir de um entrelaamento entre causalidade e teleologia, surge um objeto, um processo, etc. unitariamente homogneo.12 G.F.W. Hegel, Jenenser Realphilosophie, Leipzig, l93l, II, pp. l98-l99.

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18. Natureza e trabalho, meio e fim, produzem, pois, algo em si homogneo: o processo de trabalho e, ao final, o produto do trabalho. No entanto, a superao dos elementos heterogneos mediante o carter unitrio e homogneo do pr tem limites bem precisos. No nos referimos, porm, quela situao bvia, j esclarecida, na qual a homogeneizao pressupe o conhecimento correto dos nexos causais no homogneos da realidade. Se houver erro a respeito deles no processo de busca, sequer podem chegar a ser em sentido ontolgico postos; eles continuam a operar de modo natural, e a posio teleolgica se cancela, uma vez que, no sendo realizvel, se v reduzida a um fato de conscincia necessariamente impotente diante da natureza. Aqui se pode apreender de maneira palpvel a diferena entre o pr em sentido ontolgico e em sentido epistemolgico. Epistemologicamente, uma posio que falha e erra o objeto permanece sendo uma posio, ainda que tenha que expressar o juzo valorativo acerca do carter falso ou eventualmente apenas incompleto de dita posio. J o pr ontolgico da causalidade no complexo constitudo por uma posio teleolgica deve apanhar corretamente o seu objeto, seno no nesse contexto uma posio. preciso, porm, delimitar dialeticamente isto que afirmamos para que, dada a exagerao, no se converta numa inverdade. Uma vez que cada objeto natural, cada processo natural representa uma infinidade intensiva de propriedades, de interrelaes com o mundo que o circunda, etc., o que dissemos se refere apenas queles momentos da infinidade intensiva que, para a posio teleolgica, tm uma importncia positiva ou negativa. Se para trabalhar fosse necessrio um conhecimento mesmo que somente aproximado (para no falar de um conhecimento em um sentido consciente) desta infinidade intensiva enquanto tal, o trabalho jamais poderia ter surgido nas fases iniciais da observao da natureza. Este fato est sendo realado no apenas porque a est presente a possibilidade objetiva de um desenvolvimento ilimitado do trabalho, mas tambm porque dessa problemtica emerge com clareza que um pr correto, um pr que apanhe com aquela adequao requerida pela finalidade concreta os fatores causais necessrios para o fim em questo, tem a possibilidade de ser realizado com sucesso tambm nos casos em que as representaes gerais acerca dos objetos, processos, conexes, etc. da natureza ainda so completamente inadequados enquanto conhecimentos da natureza

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em sua totalidade. Esta dialtica entre correo rigorosa no campo restrito da posio teleolgica e um possvel erro, at bastante amplo, quanto compreenso integral do serem-si da natureza, tem uma significao de vasto alcance, da qual falaremos detalhadamente mais adiante.

19. A homogeneizao entre fim e meio, da qual falamos acima, deve ser ainda melhor delimitada e dessa maneira concretizada dialeticamente de uma outra perspectiva. J a dupla socializao da posio do fim que se origina em uma necessidade social e, assim, est chamada a satisfazer tal necessidade, enquanto o carter natural dos substratos dos meios que a realizam conduz a prxis at um mbito e uma atividade constitudos de outra forma cria uma heterogeneidade de princpio entre fim e meios. Sua superao, mediante a homogeneizao do pr esconde, como acabamos de ver, uma problemtica importante, que demonstra que a simples subordinao dos meios ao fim no to simples como parece imediatamente, primeira vista. No se deve perder de vista o simples fato de que a realizabilidade ou fracasso da posio da finalidade depende absolutamente de at que ponto se tenha conseguido, atravs da busca dos meios, transformar a causalidade natural em uma causalidade posta dito em termos ontolgicos. A posio da finalidade tem origem em uma necessidade sociohumana; mas, para que ela se torne uma autntica posio de um fim, necessrio que a busca dos meios (isto , o conhecimento da natureza) tenha chegado a um certo nvel, adequado a esses meios; e quando tal nvel ainda no foi alcanado, a finalidade permanece um mero projeto utpico, uma espcie de sonho, como, por exemplo, o vo foi um sonho desde caro at Leonardo e at um bom tempo depois. Em suma, o ponto no qual o trabalho se liga ao pensamento cientfico e ao seu desenvolvimento , do ponto de vista da ontologia do ser social, exatamente aquele campo por ns designado como busca dos meios. J fizemos aluso ao princpio do novo que se encontra at na mais primitiva teleologia do trabalho. Agora podemos agregar que a ininterrupta produo do novo, mediante a qual aparece no trabalho, poderia dizer-se, a categoria regional13 do social sua primeira clara distino e elevao acima da mera condio natural est13 N. do R: Gebietskategorie. No manuscrito tambm se poderia ler Geburtskategorie (categoria nativa ou gentica de nascimento).

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contida neste modo de surgimento e evoluo. A conseqncia disto que em cada processo de trabalho concreto e singular o fim regula e domina os meios. Mas quando consideramos os processos de trabalho na sua continuidade e evoluo histrica no interior dos complexos reais do ser social, surge uma certa inverso nesta relao hierrquica, a qual, embora no sendo certamente absoluta e total de extrema importncia para o desenvolvimento da sociedade e da humanidade. Uma vez que a pesquisa da natureza, indispensvel ao trabalho, est, antes de mais nada, concentrada na preparao dos meios, so estes os principais portadores da garantia social de que os resultados dos processos de trabalho permaneam fixados, que haver tanto uma continuidade como, especialmente, um aperfeioamento na experincia laboral. por isso que o conhecimento mais adequado que fundamenta os meios (utenslios, etc.) , muitas vezes, para o ser social, mais importante do que a satisfao daquela necessidade (finalidade). J Hegel tinha reconhecido corretamente essa conexo. A propsito dela ele escreve na sua Lgica: O meio pois o termo mdio exterior do silogismo que a realizao do fim; Por conseguinte a racionalidade se manifesta nele como o que se conserva nesse outro exterior, e se conserva precisamente por intermdio dessa exterioridade. Portanto o meio algo superior aos fins finitos da finalidade externa; o arado mais nobre que os usos e benefcios que se pode atingir por seu intermdio e que representam os fins. O instrumento de trabalho se conserva, enquanto as satisfaes imediatas perecem e so esquecidas. Em seus utenslios o homem possui seu poder sobre a natureza exterior, ainda que permanea submetido a ela para os seus objetivos14.

20. J falamos disso no captulo sobre Hegel, no entanto no nos parece suprfluo mencion-lo de novo aqui porque a esto expressos com clareza alguns momentos muito importantes deste nexo. Em primeiro lugar, Hegel sublinha de modo geral corretamente a durao mais longa dos meios relativamente aos fins imediatos. claro que tal anttese no se apresenta, na efetividade, to rispidamente (schroff) como Hegel coloca. As satisfaes imediatas perecem, sem dvida, e so esquecidas, mas a satisfao das14 G.F.W. Hegel, Wissenschaftt der Logik, III, 2, 3, C. (Ciencia de la Lgica; trad. Para o espaol de A. e R. Mondolfo, l993, Solar; II, p.461).

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necessidades, considerada na sociedade como um todo, tem tambm persistncia e continuidade. Se recordamos a relao recproca entre produo e consumo delineada no captulo sobre Marx, podemos ver que o consumo no apenas mantm e reproduz a produo mas tambm exerce, por sua vez, um certo influxo (Einflu) sobre a produo. claro que nessa interao, como vimos, a produo (aqui: os meios na posio teleolgica) o momento predominante (bergreifende Moment), mas a contraposio hegeliana, com a sua confrontao excessivamente rude, deixa na sombra parte da sua real significao social. Em segundo lugar, realado, nos meios, e de novo corretamente, o momento do predomnio sobre a natureza exterior, com o esclarecimento dialtico, tambm correto, de que ainda quando executa a posio do fim, o homem lhe permanece submetido. Aqui a exposio hegeliana deve ser concretizada (precisada), uma vez que a sujeio certamente se refere, no imediato, natureza, como j vimos, o homem s pode por aqueles fins cujos meios adequados sua efetivao realmente domina ainda que, em ltima anlise, se trate de fato de um desenvolvimento social, de um complexo, que Marx chama de intercmbio orgnico do homem, da sociedade, com a natureza, no qual no h dvida que o momento da sociedade (gesellschaftliche Moment) muitas vezes (vielfach) deve ser o fator predominante. E com isto, de fato, a superioridade do meio sublinhada ainda com maior fora do que no prprio Hegel. Em terceiro lugar, como conseqncia desse estado de coisas, o meio, o utenslio, a chave mais importante para conhecer aquelas etapas do desenvolvimento da humanidade a respeito das quais no temos nenhum outro documento. Por trs deste problema gnosiolgico se oculta, como sempre, um problema ontolgico. A partir das ferramentas (que as escavaes descobrem, muitas vezes como documentos quase nicos de um perodo completamente desaparecido) podemos obter, a respeito da vida concreta das pessoas que os utilizaram, conhecimentos muito maiores do que os que imediatamente parecem esconder-se neles. A razo disso reside em que um utenslio pode, com uma anlise correta, no s revelar a histria do prprio utenslio, mas tambm abrir perspectivas amplas sobre os modos de viver, e at sobre a viso de mundo, etc., daqueles que os usaram. Mais adiante tambm abordaremos este problema; aqui nos detemos apenas na questo social, muitssimo geral, do afastamento das barreiras naturais do modo como foi descrito com preciso por Gordon Childe quando fala da fabricao dos vasos no

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perodo por ele chamado de revoluo neoltica. Antes de mais nada, Childe acentua o ponto central, a diferena de princpio entre o processo de trabalho ligado fabricao dos vasos e aquele utilizado na feitura de instrumentos de pedra ou de osso. O homem, escreve ele, quando fazia um instrumento de pedra ou de osso, era sempre limitado pela forma e pela proporo do material originrio: s podia tirar fragmentos. Nenhuma destas limitaes freava a atividade do oleiro, que podia modelar a argila a seu gosto e desejo e trabalhar na sua obra sem nenhum medo quanto solidez das junes. Deste modo, partindo de um ponto importante tornada clara a diferena entre as duas pocas, vale dizer, iluminada a direo do desenvolvimento humano, que se livra da limitao do material originrio da natureza e confere aos objetos de uso exatamente aquele carter que corresponde s necessidades sociais humanas. Childe tambm percebe o carter gradual deste processo de afastamento das barreiras naturais. A nova forma j no est limitada pelo material utilizado, mas mesmo assim tem uma origem a partir de condies bastante semelhantes: Deste modo, os vasos mais antigos eram produzidos como imitaes bvias de recipientes j conhecidos antes produzidos com outros materiais: cabaa, membrana, bexiga, pele ou vime, ou que eram, inclusive, tirados de crnios humanos. 15

21. Em quarto lugar preciso ainda sublinhar que a busca dos objetos e processos na natureza, que precede a posio da causalidade na criao dos meios, consiste (ainda quando durante muito tempo no seja reconhecida conscientemente) em atos cognitivos reais, e por isso traz em essncia, objetivamente, o incio, a gnese da cincia. Tambm neste caso vale a afirmao de Marx: No o sabem, mas o fazem (Sie wissen das nicht, aber sie tun es). Discutiremos mais adiante, neste mesmo captulo, as conseqncias de vasto alcance das conexes que surgem desta maneira. Aqui s podemos observar provisoriamente que qualquer conhecimento e utilizao dos nexos causais vale dizer, qualquer posio de uma causalidade real sempre se insere no trabalho como meio para um nico fim, mas tem objetivamente a propriedade de ser aplicvel a outro distinto, e at a algo que primeira vista parea completamente heterogneo. Ainda que isso, desde muito tempo, se tenha tornado consciente de maneira puramente prtica, em cada utilizao que15 V. Gordon Childe, Man Makes Himself, London, l937, p. lO5 (O homem cria a si mesmo).

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teve xito em um novo campo se consumam de fato abstraes corretas que, em suas estruturas internas, j possuem algumas importantes caractersticas do pensamento cientfico. A prpria histria precedente das cincias (embora aborde muito raramente este problema com plena conscincia) faz referncia a numerosos casos nos quais leis gerais, extremamente abstratas, se originaram da busca referente a necessidades prticas e ao melhor modo de satisfaz-las, ou seja, a partir da tentativa de encontrar os meios mais adequados para trabalhar. Mas mesmo sem levar isto em conta, a histria mostra exemplos nos quais as aquisies do trabalho, elevadas a um nvel maior de abstrao, e j vimos como tais generalizaes se verificam obrigatoriamente no processo de trabalho podem desenvolver-se e tornar-se fundamento de uma abordagem j puramente cientfica da natureza. Uma tal gnese da geometria , por exemplo, universalmente conhecida. Aqui no lugar para entrar em detalhes acerca deste complexo de problemas; ser suficiente citar um caso interessante relativo astronomia da China antiga, a que Bernal se refere baseado em estudos efetuados por Needham. Somente depois da inveno da roda, diz Bernal, foi possvel imitar com exatido os movimentos rotatrios do cu ao redor dos plos. Parece que a astronomia chinesa se originou desta idia de rotao. At aquele momento o mundo celestial tinha sido tratado semelhana do nosso16. , portanto, a partir da tendncia intrnseca busca dos meios durante a preparao e execuo do processo de trabalho que se desenvolve o pensamento cientificamente orientado e logo se originam as diferentes cincias naturais. Naturalmente no se trata de uma gnese nica de um novo campo de atividade a partir do anterior; na realidade, esta gnese continuou a repetir-se, ainda que de formas muito diversas, atravs de toda a histria da cincia at hoje. As representaes ideais que esto na base das hipteses csmicas, fsicas, etc. esto em geral inconscientemente codeterminadas pelas representaes ontolgicas da respectiva cotidianidade, que, por sua vez, se ligam estreitamente s experincias, aos mtodos, aos resultados do trabalho naquele momento. Algumas grandes mudanas cientficas tiveram suas razes em vises de mundo que pertenciam vida cotidiana (do trabalho), as quais, tendo surgido pouco a pouco, num determinado momento apareceram como radical e qualitativamente novas. A disposio hoje dominante, onde o trabalho preparatrio para a16 J.D. Bernal, Science in History, London, l957, p. 84, (Histria da Cincia).

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indstria fornecido por cincias j diferenciadas e amplamente organizadas, faz que muitos no percebam esta situao, mas no altera, essencialmente, sua evidncia no plano ontolgico; seria inclusive interessante considerar mais de perto, em termos de crtica ontolgica, as influncias deste mecanismo preparatrio sobre a cincia.

22. A descrio do trabalho, tal como a apresentamos at aqui, embora ainda incompleta, j indica que com ele surge na ontologia do ser social uma categoria qualitativamente nova com relao s precedentes formas de ser tanto do inorgnico como do orgnico. Esta novidade consiste na realizao da posio teleolgica como um produto adequado, ideado e desejado. Na natureza existem apenas realidades e uma ininterrupta transformao das formas materiais, um contnuo tornar-se-outro (Anderssein).

Precisamente a teoria marxiana do trabalho como a nica forma existente de um ser teleologicamente produzido funda, nesses termos, pela primeira vez a especificidade do ser social. Com efeito, se fossem justas as diversas teorias idealistas ou religiosas que afirmam o domnio universal do finalismo (da teleologia), ento tal diferena, em ltima instncia, no existiria. Toda pedra, toda mosca seriam uma realizao do trabalho de deus, do esprito universal, etc., do mesmo modo como as realizaes, que acabamos de descrever, prprias das posies teleolgicas do homem. Conseqentemente, deveria desaparecer a diferena ontologicamente decisiva entre sociedade e natureza. Todavia, se as filosofias idealistas pretendem estabelecer um dualismo, elas colocam em confronto,

preferencialmente as funes da conscincia em aparncia puramente espirituais, que se encontram (tambm em aparncia) inteiramente separadas da realidade material, com o mundo do ser meramente material. No surpreendente, ento, que se desvalorize o terreno da autntica atividade do homem, ou seja, o seu intercmbio orgnico com a natureza, no qual ele se origina, mas que domina cada vez mais mediante sua prxis e, em especial, mediante o seu trabalho; No deve surpreender que a nica atividade considerada autenticamente humana caia ontologicamente do cu como algo pronto e acabado, e seja representada como supra-histrica, atemporal, como mundo do dever-ser (Sollen) contraposto ao ser. (Falaremos em breve da gnese real do dever-ser a partir da teleologia do trabalho). As contradies entre essa concepo e os resultados ontolgicos da cincia

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moderna so to evidentes que no merecem um exame mais detalhado. Tente-se, por exemplo, colocar ontologicamente em harmonia o ser-lanado no mundo (Geworfenheit) do qual fala o existencialismo com aquilo que a cincia diz a respeito da gnese do homem. Pelo contrrio, a realizao de finalidades produz tanto a vinculao gentica quanto a diferena e a anttese ontologicamente essenciais: a atividade do ser natural Homem, baseado no ser inorgnico e orgnico deles originado, permite que surja um nvel particularmente novo do ser, mais complicado e mais complexo, precisamente o ser social. (O fato de que importantes pensadores tenham refletido, j na antigidade, acerca do carter especfico da prxis e da realizao de algo novo consumada dentro dela, e que tenham reconhecido com grande perspiccia algumas das suas determinaes, no altera essencialmente em nada essa situao geral).

23. A realizao como categoria da nova forma de ser mostra, ao mesmo tempo, uma importante conseqncia: a conscincia humana, com o trabalho, deixa de ser, em sentido ontolgico, um epifenmeno. verdade que a conscincia dos animais, especialmente dos mais evoludos, parece um fato inegvel, todavia, ela um momento parcial de carter dbil e auxiliar de seu processo de reproduo, no qual se encontra biologicamente fundado e que se desenvolve segundo as leis da biologia. E, sem dvida, no apenas na reproduo filogentica, onde mais do que evidente que tal reproduo se desenvolve (de acordo com leis que at hoje ainda no compreendemos cientificamente e que devemos acolher apenas como fatos ontolgicos) sem nenhum tipo de interveno da conscincia; mas tambm no processo de reproduo ontogentica. Com efeito, s comeamos a compreender plenamente este ltimo quando comeamos a conceber que a conscincia animal um produto das diferenciaes biolgicas, da crescente complexidade dos organismos. As interrelaes dos organismos primitivos com o seu ambiente desenvolvem-se de modo preponderante sobre a base de legalidades biofsicas e bioqumicas. Quanto mais um organismo animal evolui e se complexifica, tanto mais tem necessidade de rgos refinados e diferenciados a fim de manter-se em interrelao com o seu ambiente, para poder reproduzir-se. No aqui o local para expor, mesmo aproximativamente, esse desenvolvimento (nem o autor se julga competente para isso);

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cabe apenas assinalar que a gradual evoluo da conscincia animal, a partir de reaes biofsicas e bioqumicas, passando pelos estmulos e reflexos transmitidos pelos nervos, at o mais alto nvel a que chegou, permanece sempre limitada ao mbito da reproduo biolgica. Decerto, esse desenvolvimento mostra uma elasticidade cada vez maior nas reaes com o ambiente externo e com suas eventuais modificaes e isto pode ser visto claramente em certos animais domsticos ou em experimentos com macacos. Todavia, no se deve esquecer como j dissemos que, nesses casos, de um lado os animais dispem de um ambiente de segurana que no existe normalmente e, por outro lado, que aqui a iniciativa, a direo, o fornecimento dos instrumentos, etc. partem sempre do homem e jamais dos prprios animais. Na natureza, a conscincia animal jamais vai alm de um melhor servio prestado existncia biolgica e reproduo e por isso, considerada ontologicamente, um epifenmeno do ser orgnico.

24. Somente no trabalho, na posio dos fins e dos meios de sua realizao, consegue a conscincia com um ato dirigido por ela mesma, mediante a posio teleolgica, ir alm da mera adaptao ao ambiente na qual se inclui tambm aquelas atividades dos animais que transformam objetivamente a natureza, de modo involuntrio e executa na prpria natureza modificaes que, para ela, seriam impossveis e at mesmo inconcebveis. Na medida em que a realizao de uma finalidade torna-se um princpio transformador e inovador da natureza, a conscincia (que impulsionou e orientou tal processo) pode ser, no plano ontolgico, algo mais que um epifenmeno. Mediante essa constatao se distingue o materialismo dialtico do materialismo mecanicista. Com efeito, este ltimo reconhece como realidade objetiva to somente a natureza em sua legalidade. Marx, nas suas famosas Teses sobre Feuerbach, distingue com grande preciso o novo materialismo daquele antigo: A lacuna principal de todo materialismo at agora (incluso o de Feuerbach) que o concreto, a efetividade, o sensvel, s apreendido sob a forma de objeto ou da intuio; mas no como atividade humana sensvel, como prxis; no subjetivamente. Da o lado ativo ter sido desenvolvido abstratamente, em oposio ao materialismo, pelo idealismo que, naturalmente, no conhece a atividade real, sensvel, enquanto tal Feuerbach quer objetos sensveis efetivamente distintos dos objetos do pensamento, mas ele no apreende a

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prpria atividade humana como atividade objetiva. E Marx acrescenta, claramente, mais adiante, que a realidade do pensamento, o carter no mais epifenomnico da conscincia s pode ser apreendido e demonstrado na prxis: A discusso acerca da realidade ou norealidade do pensamento que da prxis isolado , uma questo puramente escolstica.17 A nossa afirmao de que o trabalho constitui a forma originria da prxis corresponde inteiramente ao esprito destas afirmaes de Marx; tambm Engels, muitos anos mais tarde, viu no trabalho o motor decisivo do processo de humanizao do homem. Decerto a nossa tese no foi at agora muito mais do que uma simples declarao, ainda que a sua simples formulao correta j contenha e at esclarea muitas determinaes decisivas deste complexo objetivo. evidente, contudo, que essa verdade s pode ser revelada e demonstrar sua validade enquanto tal quando for explicitada da maneira mais completa possvel. De qualquer modo, o simples fato de que realizaes de uma finalidade (ou seja, produtos da prxis humana no trabalho) ingressem no mundo da realidade, como formas novas de objetividade no derivadas da natureza, mas que precisamente enquanto tais constituem realidades tanto quanto os produtos da natureza, este simples fato j suficiente, nesse estgio inicial, para comprovar a veracidade da nossa tese.

25. Neste captulo e nos sucessivos, voltaremos mais vezes a referir-nos aos modos concretos de manifestar-se e de se exprimir da conscincia, bem como ao concreto modo de ser de sua constituio j no mais epifenomnica. Aqui s podemos fazer aluso e neste momento de modo inteiramente abstrato ao problema fundamental. Temos aqui a indissocivel interdependncia de dois atos que so, em si, mutuamente heterogneos, os quais, porm, nesta nova vinculao ontolgica, constituem o verdadeiro complexo real do trabalho e, como veremos, perfazem o fundamento ontolgico da prxis social, e at do ser social em geral. Os dois atos heterogneos a que nos referimos so: de um lado, o reflexo mais exato possvel da realidade considerada e, de outro lado, a posio, com isso vinculada, daquelas cadeias causais que, como sabemos, so indispensveis para realizar a posio teleolgica. (Esta primeira descrio do fenmeno ir mostrar que dois modos de17 MEGA, I, 5, pp. 533-534 (N. do Revisor: traduo feita a partir da edio da Ideologia Alem da Boitempo, 2009, com modificaes prprias feitas a partir de sugestes de J. Chasin).

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considerar a realidade que so heterogneos entre si formam a base da especificidade ontolgica do ser social, cada um sua maneira e em sua inevitvel vinculao. Se iniciarmos agora a nossa anlise com o reflexo, isto imediatamente mostra uma demarcao precisa entre objetos que existem independentemente do sujeito, e sujeitos que refletem estes objetos com um grau maior ou menor de aproximao, por meio de atos de conscincia, para apropriar-se deles intelectualmente). Essa separao tornada consciente entre sujeito e objeto um produto necessrio do processo de trabalho e, ao mesmo tempo, o fundamento do modo de existncia especificamente humano. Se o sujeito, enquanto destacado em sua conscincia do mundo dos objetos (Objektwelt), no fosse capaz de observar este mundo e de reproduz-lo em seu ser-em-si, jamais aquela posio do fim, que o fundamento mesmo do trabalho mais primitivo, poderia ter sido realizada. Decerto tambm os animais tm uma relao com o meio ambiente, que se torna cada vez mais complexa e que finalmente mediada por uma conscincia causal. Uma vez, porm, que esta permanece restrita ao biolgico, jamais produzir neles, como nos homens, uma separao e um confrontamento entre sujeito e objeto. Os animais reagem com maior segurana quilo que no seu ambiente costumeiro de vida til ou perigoso. Li, por exemplo, que uma determinada espcie de patos selvagens da sia no s reconhece de longe as aves de rapina em geral, mas alm disso sabe distinguir perfeitamente as diversas espcies, reagindo de modo diferente diante de cada uma delas. Isto no significa, porm, que estes patos distingam tambm conceitualmente, como o homem, estas diferentes espcies. Se estas aves de rapina lhes fossem mostradas numa situao inteiramente diferente, por exemplo numa situao experimental em que as tivessem prximas e paradas, seria muito duvidoso que os patos as identificassem com aquela mesma imagem longnqua e com a ameaa de um perigo. Se se quer mesmo aplicar ao mundo animal categorias da conscincia humana, o que ser sempre arbitrrio, pode-se dizer, no melhor dos casos, que os animais mais evoludos podem ter representaes acerca dos momentos mais importantes do mundo que os rodeia, mas jamais conceitos. Alm disso, preciso usar o termo representao (Vorstellung) com a necessria cautela, uma vez que, depois de formado, o mundo conceitual atua retroativamente sobre a intuio (Anschauung) e sobre a representao. Inicialmente, tambm esta mudana se desenvolve sob influncia do

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trabalho. A propsito disso, Gehlen assinala, com justeza, que no Homem h uma certa diviso do trabalho entre os sentidos (na intuio): este pode apreender de forma puramente visual as propriedades das coisas que, como ser biolgico, s poderia apanhar atravs do tato.18 26. Mais adiante, falaremos extensamente sobre as conseqncias desta linha de desenvolvimento do homem mediante o trabalho. Aqui nos limitaremos, para aclarar bem essa estrutura fundamental que surge a partir do trabalho, a indicar que no reflexo da realidade19 enquanto condio para o fim e os meios do trabalho, se consuma uma separao, um afastamento do homem do seu ambiente, um distanciamento que se manifesta claramente no confrontamento entre sujeito e objeto. No reflexo da realidade a reproduo se separa da realidade reproduzida, coagulando-se numa realidade prpria dentro da conscincia. Pusemos entre aspas a palavra realidade, porque, na conscincia, ela apenas reproduzida; nasce uma nova forma de objetividade, mas no uma realidade, e exatamente em sentido ontolgico no possvel que a reproduo seja da mesma natureza daquilo que ela reproduz e muito menos idntica a ela. Pelo contrrio. No plano ontolgico o ser social se subdivide em dois momentos heterogneos, que no s se contrapem entre si enquanto heterogneos, do ponto de vista do ser, mas so at mesmo opostos: o ser e seu reflexo na conscincia.

27. Essa dualidade um fato fundamental do ser social. Em comparao com este, os graus de ser precedentes so rigidamente unitrios. O referimento ininterrupto e inevitvel ao ser que estabelece o reflexo, os efeitos que este tem sobre aquele j no trabalho, e ainda mais marcantemente em mediaes mais amplas (as quais s poderemos expor mais adiante), o fato de que o reflexo determinado pelo seu objeto, etc. tudo isto jamais supera aquela dualidade de fundo. por meio desta dualidade que o homem sai do mundo animal. Quando Pavlov descreve o segundo sistema de sinais, que prprio

18 A. Gehlen, Der Mensch, Bonn, l95O, pp. 43 e 47. (N. do R: no original, Arbeitsteilung der Sinne in der Anschauung). 19 N. do R: A palavra usada em todo esse trecho Wirklichkeit, talvez melhor traduzida por efetividade.

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somente do homem, afirma corretamente que somente este sistema pode afastar-se da realidade, podendo reproduzi-la de forma errnea. Isto apenas possvel porque o reflexo se dirige totalidade do objeto (que independente da conscincia e que sempre intensivamente infinito), procurando capt-lo no seu ser-em-si e, exatamente por causa da distncia imposta pelo prprio reflexo e necessria para realizar essa tentativa, pode errar. E isto obviamente vlido no apenas para os estgios iniciais do reflexo. Mesmo quando j surgiram construes auxiliares para apreender a realidade atravs do reflexo, que possuem um carter mais complexo e que se encontram homogeneamente fechadas em si, como a matemtica, a geometria, a lgica, etc., permanece intacta a possibilidade de errar por causa do distanciamento; certo que algumas possibilidades iniciais de erro esto relativamente excludas, no entanto, comparecem outras mais complexas, trazidas exatamente pela distncia maior criada pelos sistemas de mediao. De outra parte, este processo de objetivao e de distanciamento tem como resultado que as reprodues jamais possam ser cpias fotogrficas mecanicamente fiis realidade. Esto sempre determinadas pelas posies de finalidades, vale dizer, em termos genticos, pela reproduo social da vida, na sua origem pelo trabalho. Na minha Esttica, ao analisar o pensamento cotidiano, realcei esta orientao concretamente teleolgica do reflexo. Poder-se-ia dizer que aqui se deve buscar a fonte da sua fecundidade, da sua contnua tendncia a descobrir coisas novas, enquanto a objetivao a que nos referimos age como um corretivo no sentido oposto. O resultado, ento, como acontece sempre nos complexos, fruto de uma interao entre opostos. At aqui, no entanto, ainda no demos o passo decisivo para entender a relao ontolgica entre reflexo e realidade. O reflexo aqui tem uma natureza peculiar contraditria: por um lado, ele o exato oposto de qualquer ser, precisamente porque pelo fato de ser reflexo no um ser; por outro lado e ao mesmo tempo, o meio atravs do qual se constituem novas objetividades no ser social, para a reproduo deste no mesmo nvel ou em um nvel mais alto. Atravs do ser social a conscincia que reflete a realidade adquire um certo carter de possibilidade (Mglichkeit). Como sabemos, Aristteles afirmava que um arquiteto, mesmo quando no constri, permanece um arquiteto por causa da possibilidade (dynamis), enquanto Hartmann citava o desempregado, no qual esta possibilidade revela o seu carter de no-realidade, uma vez que ele no est em condies

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de trabalhar. O exemplo de Hartmann muito instrutivo j que mostra como ele, baseado em idias unilaterais e restritas, no se d conta do problema real que surge neste momento. Com efeito, no h dvida que, durante uma crise econmica, muitos trabalhadores no tm nenhuma possibilidade fatdica de obter trabalho; mas tambm fora de dvida e aqui est a profunda intuio da verdade contida na concepo aristotlica da dynamis que esses trabalhadores tem a capacidade de, a qualquer momento, dependendo de uma conjuntura favorvel, retomar o seu anterior trabalho. De que outra maneira, pois, pode ser caracterizada, do ponto de vista de uma ontologia do ser social, essa sua qualidade a no ser dizendo que ele, por causa de sua educao, da vida passada, das suas experincias, etc., mesmo estando desocupado, permanece devido sua dynamis um trabalhador? Com isso no temos, como teme Hartmann, uma existncia espectral da possibilidade, uma vez que o desempregado (dada a impossibilidade real de encontrar trabalho) um trabalhador to real e potencial, como quando realiza a sua aspirao a encontrar trabalho. O que importa compreender que Aristteles, no seu vasto, profundo, universal e multilateral esforo em compreender filosoficamente a realidade em seu conjunto, percebe fenmenos perante os quais Hartmann, enredado em preconceitos lgico-epistemolgicos, embora compreenda corretamente determinados problemas, fica confuso. O fato de que em Aristteles, devido s suas falsas idias sobre o carter teleolgico da realidade no social e da sociedade no seu conjunto, essa categoria da possibilidade muitas vezes produza confuses, no muda a essncia da questo, desde que se saiba distinguir aquilo que ontologicamente real das meras projees em forma de ser que no foram adequadamente postas teleologicamente. Com certeza se poderia afirmar que as capacidades adquiridas de trabalhar permanecem propriedades do trabalhador desempregado do mesmo modo que outras propriedades de qualquer ser, por exemplo na natureza inorgnica, muitas vezes no se tornam efetivamente operativas durante grandes lapsos de tempo, e no entanto continuam sendo propriedades do ser em questo. J nos referimos antes, muitas vezes, conexo entre propriedade e possibilidade. Isso seria, possivelmente, suficiente para rebater as posies de Hartmann, no porm para compreender a peculiaridade especfica da possibilidade como ela se revela neste caso e que era o objetivo da concepo aristotlica da dynamis. O mais interessante que se pode encontrar um bom ponto de apoio no prprio

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Hartmann. Como j recordamos, ao analisar o ser biolgico ele afirmava que a capacidade de adaptao de um organismo depende da sua labilidade, como ele chama esta propriedade. O fato de que Hartmann, ao discutir tais questes, no toque no problema da possibilidade no tem nenhuma importncia. claro que tambm poderamos dizer que essa caracterstica dos organismos uma propriedade deles e desta maneira encerrar aqui o problema da possibilidade. Mas deste modo estaremos rodeando o cerne da questo que nos interessa. Aqui no se trata de dizer que tal labilidade no seja cognoscvel por antecipao e, pelo contrrio, somente possa ser conhecida post festum. De fato, indagar se alguma coisa seja ou no cognoscvel em sentido ontolgico indiferente no que diz respeito pergunta sobre se se trata de algo que existe. A realidade ontolgica da simultaneidade de dois acontecimentos nada tem a ver com a questo de se ns podemos medir tal simultaneidade.

28. A nossa resposta a esse problema ontolgico que o reflexo, considerado precisamente no sentido ontolgico, em si mesmo no um ser, e portanto, sequer uma existncia espectral, simplesmente porque no ser. E no entanto ele a condio decisiva para a colocao de sries causais e isto em sentido ontolgico e no epistemolgico. Ora, a concepo aristotlica da dynamis procura iluminar, na sua racionalidade dialtica, exatamente este paradoxo ontolgico. Aristteles identifica muito bem a estrutura ontolgica da posio teleolgica quando, amarrando indissociavelmente a essncia desta com o conceito de dynamis, diz que a potncia (dynamis) a faculdade de levar a bom termo determinada coisa e de execut-la de acordo com a prpria inteno e logo depois concretiza assim esta determinao: Com efeito, precisamente em virtude deste princpio, efetivamente est o poder, para um paciente, de sofrer alguma alterao, assim, rapidamente dizemos que ele tem a potncia de sofr-la, tanto no caso em que ele possa sofrer alguma alterao qualquer, mas apenas aquela que tende para o melhor; (Potncia tambm se chama) a faculdade de levar a bom termo determinada coisa ou de execut-la de acordo com aquilo que se pretende, livremente: com efeito, s vezes, quando vemos que certas pessoas caminham ou falam, mas no realizam bem estas aes nem como elas mesmas quereriam, dizemos que elas no tm a potncia ou a capacidade de

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falar ou de andar 20. Aristteles v com clareza o carter ontolgico paradoxal desta situao; ele afirma que, relativamente substncia, o ato anterior potncia no sentido fundamental pleno; e indica resolutamente o problema modal que est a contido: Toda potncia , ao mesmo tempo, potncia de contrrios, aquilo que no tem a potncia de existir no pode ser propriedade de coisa alguma, mas tudo o que potncia tambm pode no se transformar em ato. Conseqentemente, aquilo que tem a potncia de ser pode ser e tambm no ser; da que seja potncia de ser e de no ser, e possvel que o que no tm a potncia de ser, o seja 21.

29. A partir daqui, nos perderamos no labirinto de uma escolstica estril se pedssemos a Aristteles para deduzir com uma lgica implacvel a necessidade (Notwendigkeit) dessa constelao que ele to bem descreveu. Tratando-se de uma questo eminente e puramente ontolgica, isto se mostra, por princpio, impossvel. Tais confuses e, em conseqncia, pseudo-dedues, esto continuamente presentes em Aristteles, quando ele quer ampliar para alm da prxis humana aquilo que ele desvendou, nela, de forma to correta. Assim como Aristteles tinha diante de si, tambm ns temos em nossa frente, de forma claramente analisvel, o fenmeno do trabalho, na sua originalidade de categoria central, dinmico-complexa, de um novo grau do ser; preciso trazer luz, com uma anlise ontolgica adequada, esta estrutura dinmica enquanto complexo, tornando assim compreensvel de acordo com o modelo marxiano que v na anatomia do homem a chave para a anatomia do macaco pelo menos o caminho categorial-abstrato que levou at a. Uma certa base para esta operao poder ser, provavelmente, fornecida pela labilidade presente no ser biolgico dos animais mais evoludos, cuja importncia Hartmann tambm reconheceu. A evoluo dos animais domsticos que esto em ntimo e contnuo contato com os homens nos informam sobre as grandes possibilidades contidas nesta labilidade. Devemos, no entanto, precisar imediatamente que ela constitui apenas uma base geral; que a forma mais desenvolvida deste fenmeno s pode tornar-se o fundamento do autntico

20 Aristteles, Metaphysik, cit, l2, pp. l22-l23. Livro D, cap.12. 21 Idem, 8, pp. 2l7.2l8. Livro Q, captulo 8.

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ser-homem mediante um salto, que tem incio com a atividade humana de pr fins, desde os seus primrdios, ainda na transio desde a animalidade. O salto, ento, s pode ser entendido post festum, ainda que importantes avanos, como essa nova forma de possibilidade que aparece no conceito de dynamis em Aristteles, lancem luz sobre o caminho a percorrer.

30. A passagem do reflexo, como forma particular do no-ser, at o ser ativo e produtivo da posio (o pr) de conexes, apresenta uma forma desenvolvida da dynamis aristotlica, que pode ser considerada como o carter alternativo de qualquer ato de pr no processo de trabalho. Esse carter aparece pela primeira vez na posio de finalidades do trabalho, e pode ser constatado com a mxima evidncia na observao dos atos de trabalho mais primitivos. Quando o homem primitivo escolhe, de um conjunto de pedras, uma que lhe parece mais apropriada aos seus fins e deixa outras de lado, bvio que se trata de uma escolha, uma alternativa. E no exato sentido de que a pedra, enquanto objeto em-siexistente da natureza inorgnica, no foi de modo nenhum formada de antemo a fim de converter-se em instrumento deste pr. Tambm a grama no cresce para ser comida pelos bezerros e estes no engordam para fornecer a carne que alimenta os animais ferozes. H porm em ambos os casos, da perspectiva do animal que come, uma vinculao biolgica ao respectivo tipo de alimento que determina a sua conduta de forma biologicamente necessria. Por isso mesmo, a conscincia animal que ali se manifesta est determinada num sentido unvoco: um epifenmeno, jamais uma alternativa. Ao contrrio, a escolha da pedra como instrumento um ato de conscincia que no tem mais um carter biolgico. Mediante a observao e a experincia, isto , mediante o reflexo e a sua elaborao em conformidade com a conscincia, devem ser identificadas certas propriedades da pedra que a tornam adequada ou inadequada para a finalidade pretendida. Quando olhado do exterior, este ato extremamente simples e unitrio que a escolha de uma pedra , na sua estrutura interna, bastante complexo e cheio de contradies. Com efeito, temos duas alternativas que tm uma relao de heterogeneidade entre si. Primeira: a pedra, foi correta ou incorretamente escolhida para o fim posto? Segunda: o fim, foi posto correta ou incorretamente? Vale dizer: uma pedra realmente um instrumento adequado para esta

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finalidade? fcil ver que ambas alternativas s podem desenvolver-se partindo de um sistema de reflexos da realidade (quer dizer, um sistema de atos em-si no existentes) que funciona dinamicamente e que foi dinamicamente elaborado. Mas pode ver-se com igual facilidade que em um comeo, quando os resultados do reflexo no-existente se cristalizam numa prxis estruturada em termos de alternativa, a partir daquilo que existe apenas de maneira natural, pode surgir algo existente no quadro do ser social (por exemplo uma faca ou um machado), isto , surge uma forma de objetividade desse ser existente total e radicalmente nova. Com efeito, a pedra, em sua existncia e no seu ser-assim natural nada tem a ver com a faca ou o machado.

31. Esse trao peculiar da alternativa aparece ainda mais plasticamente num nvel um pouco mais evoludo, isto , no s quando a pedra escolhida e usada como instrumento de trabalho, mas quando submetida a um processo de elaborao a fim de convert-la num meio de trabalho mais adequado. Neste caso, quando o trabalho realizado num sentido ainda mais estrito, a alternativa revela ainda mais claramente sua verdadeira essncia: no se trata apenas de um nico ato de deciso, mas de um processo, uma ininterrupta cadeia temporal de alternativas sempre novas. No se pode deixar de perceber, quando se pensa, ainda que rapidamente sobre qualquer processo de trabalho mesmo o mais primitivo que nunca se trata simplesmente da execuo mecnica de uma finalidade posta. A cadeia causal na natureza se realiza por si (espontaneamente), de acordo com a sua prpria necessidade natural interna, do tipo se ... ento. No trabalho, ao contrrio, como j vimos, no s o fim teleologicamente posto, mas tambm a cadeia causal que esse fim realiza deve transformar-se em uma causalidade posta. Pois tanto o meio como o objeto de trabalho, em si mesmos, so coisas naturais sujeitas causalidade natural e somente na posio teleolgica, somente atravs desta, alcanam no processo de trabalho a possibilidade de ser postos no sentido prprio do ser social, embora permaneam ainda objetos naturais. Por isso essa alternativa continuamente repetida nos detalhes do processo de trabalho: cada movimento individual no processo de afiar, triturar, etc. deve ser considerado corretamente (isto , deve ser baseado em um reflexo correto da realidade), ser corretamente orientado ao objetivo posto, corretamente levado a cabo pela mo, etc. Se isso

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no ocorrer, a causalidade posta deixar de operar a cada momento e a pedra voltar sua condio de simples ser natural, sujeito a causalidades naturais, nada mais tendo em comum com os objetos e os instrumentos de trabalho. Deste modo, a alternativa se amplia at ser a alternativa de uma atividade certa ou errada, de modo a dar origem a categorias que somente no processo de trabalho se convertem em formas de ser efetivas.

32. claro que as falhas podem ser de tipos muito diferentes; podem ser corrigveis com o ato ou os atos sucessivos, introduzindo novas alternativas na cadeia de decises descrita e aqui tambm variam as correes possveis, das fceis s difceis, das que podem ser feitas com um s ato s que requerem vrios atos ou ento o erro cometido pode inviabilizar todo o trabalho. Deste modo, as alternativas no processo de trabalho no so todas do mesmo tipo e nem tm todas a mesma importncia. Aquilo que Churchill afirmou inteligentemente a respeito de casos muito mais complicados da prxis social, isto , que ao tomar uma deciso, se pode entrar num perodo de conseqncias, aparece como uma caracterstica da estrutura de toda prxis social j no trabalho mais primitivo. Essa estrutura ontolgica do processo de trabalho como uma cadeia de alternativas, no deve parecer menos correta pelo fato de que, ao longo do desenvolvimento e mesmo em fases relativamente iniciais, as alternativas singulares dentro do processo de trabalho se tornem, atravs do exerccio e do hbito, reflexos condicionados e, deste modo, possam ser consumados de acordo com a conscincia, mas inconscientemente. Sem poder abordar aqui a constituio e a funo dos reflexos condicionados que tm diversos nveis de complexidade, tanto no prprio trabalho como em qualquer outro campo da prxis social, por exemplo como contraditoriedade da rotina, etc observemos apenas que, na sua origem, todo reflexo condicionado foi objeto de uma deciso alternativa, e isto tanto vlido para o desenvolvimento da humanidade como de cada indivduo, que s pode formar estes reflexos condicionados aprendendo, exercitando, etc, e no incio de tal processo esto, precisamente, as cadeias de alternativas.

33. A alternativa, que tambm um ato da conscincia, , pois, a categoria mediadora por meio da qual o reflexo da realidade se torna veculo do ato de pr algo

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existente. Deve-se sublinhar ainda, aqui, que este ente, no trabalho, sempre algo natural e que esta sua constituio natural jamais pode ser inteiramente suprimida. Por mais relevantes que sejam os efeitos transformadores do pr teleolgico das causalidades no processo de trabalho, a barreira natural s pode retroceder, jamais desaparecer inteiramente; e isto vlido tanto para o machado quanto para o reator nuclear. Com efeito, para lembrar apenas uma das possibilidades, que aqui surgem, sem dvida as causalidades naturais so submetidas, quelas postas, de acordo com o trabalho, mas uma vez que cada objeto natural tem em si, como possibilidades, uma infinidade intensiva de propriedades, as causalidades naturais jamais deixam inteiramente de operar. E, dado que sua efetividade completamente heterognea em relao posio teleolgica, em muitos casos h conseqncias que se contrapem posio teleolgica e que s vezes a perturbam (corroso do ferro, etc.). A conseqncia disto que a alternativa continua a funcionar como superviso, controle, reparo, etc., mesmo depois que terminou o processo de trabalho em questo e tais atividades de preveno multiplicam necessariamente as alternativas na posio do fim e na sua realizao. Por isso, o desenvolvimento do trabalho contribui para que o carter de alternativa da prxis humana, do comportamento do homem para com o prprio ambiente e para consigo mesmo, se baseie sempre mais em decises alternativas. A superao da animalidade atravs do salto at a humanizao no trabalho, a superao do carter epifenomnico da determinao meramente biolgica da conscincia, ganham assim, com o desenvolvimento do trabalho, uma tendncia a reforar-se permanentemente, a tornarem-se universais. Aqui tambm fica demonstrado que as novas formas do ser, atravs do seu lento desenvolvimento, podem se tornar determinaes universais autenticamente dominantes de sua prpria esfera. Durante o salto e ainda por muito tempo depois dele, as novas formas esto em constante competio com as formas de ser inferiores das quais se originaram e que ineliminavelmente constituem sua base material, mesmo quando o processo de transformao j chegou a um patamar bastante elevado.

34. Somente olhando para trs a partir deste ponto que podemos valorizar em toda sua extenso a dynamis descoberta por Aristteles, enquanto uma nova forma da possibilidade. A posio que funda tanto o fim quanto os meios para torn-lo realidade

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assume, ao longo do desenvolvimento, de modo cada vez mais acentuado, uma forma fixa especfica; forma que pode gerar a iluso de que j , em-si, algo socialmente existente.22 Pensemos numa fbrica moderna. O modelo (a posio teleolgica) elaborado, discutido, calculado, etc, por um coletivo s vezes muito amplo, mesmo antes de poder se tornar realidade pela produo mesma. Ainda quando, dessa maneira, a existncia material de muitas pessoas esteja ligada ao processo de elaborao desse modelo, embora o processo de formao do modelo tenha, de modo geral, uma slida base material (escritrios, mquinas [Apparat], instalaes, etc.), o modelo permanece uma possibilidade no sentido de Aristteles que s pode se tornar realidade atravs da deciso, fundada em alternativas, de execut-lo, somente atravs da execuo mesma, exatamente como na deciso do homem primitivo de escolher esta ou aquela pedra para us-la como cunha ou machado. Certamente o carter de alternativa da deciso de realizar a posio teleolgica contm mais complicaes, mas isto apenas aumenta a sua importncia em relao ao salto da possibilidade realidade. Para o homem primitivo, o objeto da alternativa somente de utilidade imediata, ao passo que, na medida em que se desenvolve o carter social da produo, isto , da economia, as alternativas assumem uma forma cada vez mais diversificada e diferenciada. O prprio desenvolvimento da tcnica tem como conseqncia que o projeto de modelo tenha que ser o resultado de uma cadeia de alternativas, mas por mais elevado que seja o desenvolvimento da tcnica (sustentado por uma srie de cincias), no pode ser o nico motivo de escolha para as alternativas. Por isso, o optimum tcnico assim elaborado de modo nenhum coincide com o optimum econmico. Certamente a economia e a tcnica esto, no desenvolvimento do trabalho, numa coexistncia indissocivel e tm contnuas relaes entre si, mas este fato no elimina a heterogeneidade de ambas, que, como vimos, se manifesta na dialtica contraditria entre fim e meio; pelo contrrio, muitas vezes acentua a sua contraditoriedade. Este carter heterogneo, cujos complicados momentos no podemos abordar agora, tem como conseqncia que o trabalho, com vistas a alcanar um patamar de realizao cada vez mais elevado, cada vez mais socializado, tenha tido que buscar a cincia como rgo auxiliar, mas tambm tem22 No original gesellschaftlich Seiendes. Lukcs se refere a uma prvia-ideao ainda no objetivada e que, portanto, apenas existe na abstratividade.

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como conseqncia que a interrelao entre ambos s possa realizar-se no mbito de um desenvolvimento desigual.

35. Se examinarmos, pois, em termos ontolgicos tal projeto, veremos com clareza que ele possui os traos caractersticos da possibilidade aristotlica, da potencialidade: Aquilo que tem a potncia de ser pode ser e tambm no ser. Marx diz, exatamente no sentido de Aristteles, que no curso do processo de trabalho o instrumento de trabalho passa igualmente da mera possibilidade realidade 23. Um projeto, mesmo que complexo e delineado com base em reflexos corretos, que seja rejeitado, permanece um no-existente, ainda que encerre em si a possibilidade de tornar-se um existente. Em resumo, pois, s a alternativa daquela pessoa (ou daquele coletivo de pessoas) que pe em movimento o processo da execuo material atravs do trabalho, pode efetivar essa transformao da potncia em um ser. E isto indica no somente o limite superior desse tipo de possibilidade se tornar real, mas tambm aquele inferior, que estabelece quando e em que medida pode converter-se em possibilidade neste sentido um reflexo da realidade que orientado pela conscincia para a efetivao. Este limite da possibilidade no depende do nvel intelectual, da exatido, da originalidade, etc, da