CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS ALCIONE LUCENA DE ALBERTIM CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO JOÃO PESSOA 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

ALCIONE LUCENA DE ALBERTIM

CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

JOÃO PESSOA

2008

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ALCIONE LUCENA DE ALBERTIM

CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras, da Universidade Federal

da Paraíba, como requisito para obtenção do

título de Mestre em Letras.

Área de concentração: Literatura e Cultura

Linha de pesquisa: Tradição e Modernidade

Orientador: Prof. Dr. Juvino Alves Maia Júnior

João Pessoa

2008

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A334c Albertim, Alcione Lucena de.

Catábase de Enéias: um ato piedoso/

Alcione Lucena de Albertim.- João Pessoa,

2008.

92p.

Orientador: Juvino Alves Maia Júnior

Dissertação (Mestrado) UFPB/CCHLA.

1. Epopéia. 2. Literatura Clássica. 3. Herói épico.

4. Pietas. 5. Virgílio.

UFPB/BC CDU: 82 – 132 (043)

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ALCIONE LUCENA DE ALBERTIM

CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do título de

Mestre em Letras, curso de Mestrado acadêmico, do Programa de Pós-

Graduação em Letras, da Universidade Federal da Paraíba.

Orientador:

_________________________________________

Prof. Dr. Juvino Alves Maia Júnior

Examinadores:

____________________________________________

Prof. Dr. Milton Marques Júnior

____________________________________________

Prof. Dr. Henrique Murachco

João Pessoa, 03 de março de 2008.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por tudo.

Ao Professor Juvino, pela confiança e pela orientação.

Ao CNPq, pelo suporte.

Aos meus amados pais, pela vida.

A Milton, pelo apoio e pelo incentivo.

Ao Professor Arturo, pela co-orientação.

Aos amigos, alunos, professores e demais familiares, pela compreensão e colaboração.

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RESUMO

O presente trabalho é um estudo sobre o Livro VI da Eneida, de Virgílio, tendo em

vista a análise do herói no que concerne a Pietas - valor basilar da ideologia romana,

que consiste no respeito e devoção aos antepassados como deuses protetores - a partir da

representação desse valor dentro do poema. Partindo da tradição grega sobre o mito da

descida aos Infernos, buscamos analisar o caráter inovador de Virgílio ao retomar esse

mito. Enéias, em sua katábasis, corrobora seu caráter piedoso, fio condutor das suas

ações dentro da narrativa. Levado pelos apelos da alma de Anquises, seu pai, o herói

desce ao mundo dos mortos - o que simboliza a sua própria morte, visto ser um ritual de

passagem que promove a transformação do herói - a fim de receber dele a homologação

de sua função como pater familias, requisito indispensável para ser o edificador das

bases da futura Roma. Sacerdote, guerreiro e empreendedor, Enéias, metonimicamente,

representa a figura de Otávio Augusto, construtor da Pax Romana, cujo intento é

marcar, através de uma grande epopéia, a soberania e a inexpugnabilidade tanto do

império quanto a sua própria.

Palavras-chave: epopéia, literatura clássica, herói épico, pietas, Virgílio.

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ABSTRACT

The present research is a study of the Aeneid‟s sixth book, by Virgil, looking

towards an analysis of the hero about Pietas – basilar worth of the roman ideology,

which means the respect and devotion to the forefathers as protector gods – from the

representation of this value inside the poem. Departing from the Greek tradition about

the myth of the descent to the Hell, we look for to analyse the Virgil‟s innovator

character as soon as he treats this myth in a complex way. Aeneas, in his katábasis,

corroborates his pious character, characteristic which conducts the actions of the hero

inside the narrative. Prompted by the callings of the spirit of Anquises, his father,

Aeneas descends to the world of the dead – what symbolizes his own death, as it is a rite

of passage that promotes the transformation of the hero – to receive from him the

homologation of his role as pater familias, essential requirement to be the constructor of

the basis of the future Rome. Priest, warrior and enterpriser (sovereign), Aeneas,

metonymically, represents the Octavian August‟s figure, builder of the Pax Romana,

whose purpose is to mark, through a great epic, the supremacy and the inexpugnability

of the empire as his own, as well.

Key-words: epic, classical literature, epic hero, pietas, Virgil.

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SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................. 8

Capítulo Primeiro: O Contexto Mítico e Religioso da Eneida ............ 11

Apresentação de Virgílio

Uma apresentação da Eneida

Estrutura da Eneida

Capítulo Segundo: A Tradição Greco-Romana do Mito ..................... 51

O ritual de catábase

Catábase de Enéias

Capítulo Terceiro: Análise do Mito ....................................................... 74

As figuras míticas

Predições de Anquises: a glória romana

Conclusão ................................................................................................ 87

Bibliografia

Apêndice I: Mapas

Apêndice II: Texto Latino

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Introdução

A Eneida, de Virgílio, marco da Literatura Latina, visto ser não só a obra que

inaugura o Latim como língua literária no seu apogeu, mas também ser o poema que

confere à nação romana uma identidade cultural, faz parte do período clássico (80 a.C a

70 d.C.), a chamada Idade de Ouro de Augusto, ápice da produção cultural romana.

Trata-se de uma epopéia cujo intuito é não apenas enaltecer a civilização romana, mas

também eternizar a glória e a soberania dessa nação.

O trabalho apresentado consiste em uma tentativa de análise do Livro VI da Eneida,

tendo em vista a categoria do herói no que concerne a Pietas, valor basilar da ideologia

romana, buscando ver como esse valor é representado dentro da epopéia.

A escolha do tema e sobretudo do corpus ocorre devido à inexauribilidade da

Eneida respeitante ao seu conteúdo, permitindo ver dentro da obra novas possibilidades

de análise literária. O estudo do herói, sobretudo dentro do Livro VI, é bastante

profícuo, haja vista ser esse Livro o divisor de águas dentro da narrativa. Enéias, herói

troiano a quem os deuses atribuem a missão de fundar uma nova cidade, após sua

catábase aos Infernos, recebe a homologação de sua função como pater familias,

exercido por Anquises quando em vida, entretanto, é preciso ter em mente que a

dimensão do exercício dessa função, concernente a Enéias, atinge o âmbito da nação.

Tomando metonimicamente Enéias por Otávio Augusto, é possível inferir que a nação

referida é Roma, e o pater familias é, na realidade, Augusto, sobretudo quando se torna

pontífice máximo, reunindo em si além das funções de empreendedor e de guerreiro, a

sacerdotal.

Tendo contato, a princípio não tão profundo, com os poemas homéricos Ilíada e

Odisséia, seguido pela leitura da Eneida, de Virgílio, foi possível perceber, no processo

de maturação que as leituras constantes dos textos trazem, a ligação entre as obras.

Sabe-se que a Eneida é posterior aos poemas homéricos, entretanto, a própria estrutura

do texto corrobora essa convergência. Diante de tal comprovação, a correspondência do

tema da catábase do herói presente em ambos os poemas, Odisséia e Eneida, chamou a

nossa atenção. A partir de então, direcionamos os estudos e a pesquisa para a

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compreensão e apreensão dessa correspondência, o que possibilitou a realização do

presente trabalho.

A utilização de Jean-Pierre Vernant como base teórica deve-se à sua acuidade

helenística na pesquisa sobre a antigüidade clássica, possibilitando-nos uma visão mais

cristalina acerca dos valores vigentes nesse mundo arcaico e clássico.

Mircea Eliade, por sua vez, vem contribuir para o entendimento do aspecto

religioso, mormente em relação a mito e a rito; e aos requisitos necessários para a

fundação de uma cidade.

A dissertação está dividida em três capítulos: I. O Contexto Mítico e Religioso da

Eneida; II. A Tradição Greco-Romana do Mito; III. Análise do Mito.

O primeiro capítulo trata da contextualização da Eneida, relacionando os fatos

históricos contemporâneos à obra representados dentro da narrativa, e àqueles

pertinentes à fundação mítica de Roma. Buscamos dar uma visão geral acerca dos

valores vigentes na sociedade romana, a saber, Pietas, Virtus e Fides; e também abordar

o conjunto de fatores necessários para a fundação de uma cidade, remetendo à fundação

da própria Roma. Em seguida, fazemos uma abordagem sobre a estrutura do poema,

partindo da etimologia do termo epopéia até o conteúdo pertencente a cada Livro.

O segundo capítulo estuda a tradição do mito da catábase dentro da cultura grega, a

fim de mostrar o caráter inovador de Virgílio ao retomar esse mito, desenvolvendo-o,

tratando-o com tal complexidade apenas vista treze séculos depois, na obra de Dante

Alighieri. A catábase representa um ritual de passagem, necessário à lapidação do herói

de modo a prepará-lo para a assunção de um novo posto, de uma nova função.

O terceiro capítulo aprofunda a análise do Livro VI, tratando das figuras míticas

presentes na tradição e que compõem a narrativa. Procuramos mostrar a visão dos

Infernos segundo a concepção latina do mundo dos mortos, a partir do itinerário da

Sibila e de Enéias através das regiões sombrias do reino subterrâneo. E por fim,

tratamos dos personagens da história romana presentes no Livro VI, e que compõem o

cenário da glória da futura Roma.

Na conclusão, elencamos os passos seguidos na composição do nosso trabalho, de

modo a ratificar o que foi proposto como objeto da nossa pesquisa, mostrando os

pontos, dentro do poema, nos quais encontramos os elementos necessários para formar a

base de discussão na nossa dissertação.

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Quanto às traduções no decorrer do trabalho, elas têm caráter instrumental,

portanto, prima pela fidelidade ao texto latino e ao grego, dentro do limite em que isso é

possível.

Esperamos, com esse trabalho, contribuir para a pesquisa na área dos estudos

clássicos, abrindo novas possibilidades de estudo e de pesquisa concernentes à

genialidade inovadora de Virgílio, cuja obra representa um marco sem precedente

dentro da Literatura Latina.

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I. O Contexto Mítico e Religioso da Eneida

1. Apresentação de Virgílio

1.1. Breves informações biográficas

Publius Vergilius Maro (70-19 a.C.) nasceu em Mântua1, cidade ribeirinha do rio

Pó, na Itália. Filho de fazendeiro, estudou em Cremona e Milão. Aos dezesseis anos foi

para Roma estudar filosofia e retórica. Dedicado a uma vida de estudo e meditação em

sua fazenda, começou a compor as Éclogas, em 41 a.C., mas teve suas terras

confiscadas. Asinius Pollio, comissário do governo para a distribuição das terras

confiscadas, e homem de cultura, tentou devolver-lhe as terras, mas não conseguiu.

Dedicou-lhe, então, proteção e incentivo a fim de que continuasse a composição das

Écoglas. Em 37 a.C., Virgílio estava em Roma, usufruindo os louros provenientes da

sua publicação. Foi introduzido no ciclo de Mecenas, conselheiro de Otávio Augusto e

patrono da cultura, que o estimulou a escrever as Geórgicas, cujo resultado maravilhou

tanto Mecenas quanto Otávio, a quem fora apresentado em 29 a.C.. Otávio Augusto, já

reinando absoluto em Roma, lhe conferiu a tarefa de escrever sobre a glória de Roma,

tomando como ponto de partida a suposta descendência divina do seu pai adotivo, Júlio

César, proveniente de Vênus e Anquises, por intermédio de Enéias e seu filho Iulo, o

que retrataria a sua própria divinização. O surgimento da Eneida ocorre por causa desse

acontecimento.

1.2. Uma apresentação do contexto da Eneida

A Eneida é um poema épico, com forte sentido religioso, que trata do mito de Enéias.

Herói troiano, filho da deusa Vênus e do mortal Anquises, Enéias não pertence à casa real

de Príamo, descendendo da raça de Dárdano através da linhagem de Assáraco, seu bisavô,

1CONTE, Gian Biagio. Latin literature, a history. Translated by Joseph B. Solodow. N.Y.: The Johns

Hopkins University Press, 1994.

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pai de Cápis. Desde o seu nascimento, predições revelam que a Enéias está reservado o

poder, como se pode observar no Hino Homérico a Afrodite2 (versos 196-199). Ele é

escolhido para ser o edificador de um novo reino, construindo as bases da futura Roma, por

se tratar de um herói sem mácula, cuja piedade (Pietas), base da religião romana, conduz

suas atitudes. A Pietas diz respeito ao sentimento de dever, de devoção e de respeito pelos

antepassados e pelos deuses, vivenciada sobretudo através dos rituais e dos sacrifícios. Tal

princípio é imprescindível à caracterização do herói para uma missão desse porte.

Escrita no século I a.C., a relevância dessa obra dentro da Literatura Latina ocorre,

principalmente, por se tratar de um projeto político idealizado por Augusto, e partilhado por

Virgílio. Esse aspecto encontra-se bem enfatizado no Livro VI do poema, cujo ápice é a

descida de Enéias aos Infernos, a fim de se encontrar com a alma do pai, que lhe mostra

figuras ilustres da História de Roma, as quais comporão o cenário da futura glória da nação.

Construtor da Pax Romana, o imperador Augusto intenta eternizar a soberania do império, e

a sua própria, através da voz do poeta. Tendo como base o modelo homérico da epopéia,

Virgílio busca subsídios na tradição latina3, que considera a origem dos romanos como

sendo troiana, e tem Enéias como mito fundador, sobretudo das bases edificadoras de

Roma. O tempo em que se passa a história diz respeito ao momento subseqüente à

destruição de Tróia, que, segundo a arqueologia, data do século XII a.C., entretanto, a

narrativa tem respaldo nos fatos ocorridos no decurso do governo de Augusto, séculos I a.C

e I d.C. (29 a. C. – 14 a. D.), o que permite o uso abundante de prolepses pelo narrador,

através da fala profética dos personagens. É o que acontece, por exemplo, no Livro I, versos

257- 296, na entrevista entre Júpiter e Vênus. A deusa, acabrunhada pela desdita dos

troianos, perseguidos por Juno, reclama a seu pai o futuro glorioso prometido aos

Dardânidas. O deus, como resposta, discorre sobre o porvir, remetendo à descendência dos

reis romanos a partir de Iulo, filho de Enéias, até Otávio Augusto, responsáveis pela

construção do esplendor e da soberania de Roma sobre o mundo, a partir da concepção da

Pax Romana.

Considerando tais dados históricos, convém lembrar que as realizações artísticas, por

mais que tenham sua liberdade criadora, sempre são calcadas sobre experiências humanas.4

2 HOMÈRE. Hymnes; texte établi et traduit par Jean Humbert. Paris: Les Belles Lettres, 1936.

3 Livy. History of Rome, books 1-2. translated by B. O. Foster. London: Harvard University Press, 2002.

4 ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poética, 1982. Ver a esse respeito, o capítulo II, referente ao

objeto da literatura.

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No caso da Eneida, em particular, não se pode perder esse vínculo entre a história romana,

no limiar do Império e a necessidade política e estética de estabelecer um marco épico.

O estabelecimento de tal marco encontra respaldo na Ilíada, de Homero, composta no

século VIII a.C., como uma das fontes fundamentais para a composição da Eneida,

especificamente o Canto XX, versos 293-3085:

5 Texto retirado da Bibliotheca Augustana (www.hs-augsburg.de)

6 O verbo ( ) possui a mesma raiz de , senhor, aquele que detém o poder

absoluto, e tem o sentido de força, poder caracterizado pela violência, portanto, , teria

um sentido mais de imposição do poder pela violência, o que soaria estranho dentro da tradução. Por isso

preferimos traduzir por “a força reinará”, tendo em mente, no entanto, que o Destino impõe que Enéias

seja o edificador das bases da futura Roma, o que condiz com os termos em grego.

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Ó ! Pesar há para mim quanto a Enéias de grande coração,

que rapidamente desce para o Hades, domado pelo Pelida,

sendo persuadido pelas palavras de Apolo, o que atira de longe!

Tolo! Nem o deus (Apolo) o protegerá da morte funesta.

Mas por que sofrer ele dores em vão, no momento, sendo inocente,

por causa de sofrimentos alheios, ele, que sempre

oferece dons agradáveis aos deuses, os quais sustêm o vasto céu?

Vamos, pois, conduzi-lo para longe da morte,

assim o Cronida não venha a se enfurecer, ah, caso Aquiles o mate;

pois ele está destinado a escapar, a fim de que a raça de Dárdanos não

pereça sem fruto e aniquilada; ele (Dárdanos), que o Cronida amou acima

de todos os filhos, os quais ele engendrou de mulheres mortais.

Já a raça de Príamo, o Cronida detesta.

A força de Enéias, doravante, reinará sobre os troianos,

e os filhos dos seus filhos, os quais venham a nascer em seguida.7

Esse episódio do Canto XX da Ilíada enfoca o quase embate entre Aquiles e

Enéias. Zeus, após uma assembléia dos deuses, libera a sua participação na guerra, de

modo a tomarem o partido de quem melhor lhes aprouvesse. Em dado momento, Apolo,

tomando a forma de Licáone, um dos filhos de Príamo, incita Enéias a enfrentar

Aquiles. Posídon, ao ver a cena, cujo desfecho poderia ser a morte de Enéias, intervém,

atirando densa neblina na visão de Aquiles a fim de afastar o herói troiano. Eleva-o do

chão, atravessando-o por muitas fileiras de heróis, até alcançar longa distância. Em

seguida, aconselha-o a permanecer sempre longe de Aquiles, pelo menos até que este

morra, pois, caso contrário, poderia baixar ao Hades contra o Fado. Posídon remete ao

fato de que a linhagem de Enéias é muito querida de Zeus, pelo seu devotamento aos

deuses e pelo seu comedimento, visto nunca ter havido mácula da sua parte, o que é o

prenúncio da Pietas do herói.

A ascendência de Heitor é marcada pelo descomedimento ( ) dos seus

componentes, gerando a contaminação ( ) que atinge toda a sua linhagem

7 As traduções no decorrer do trabalho são nossas, salvo quando indicadas.

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familiar, a começar pelo pai de Príamo, Laomedonte, antigo rei de Tróia, filho de Ilo e

neto de Trós, sendo este ancestral comum a Heitor e a Enéias. Laomedonte mandara

construir as muralhas da cidadela e, para isso, recorrera a duas divindades, Apolo e

Posídon, castigados por Zeus a servir os mortais, por armarem um complô contra ele8.

Quando a construção da muralha termina, Laomedonte recusa-se a pagar aos deuses, o

que acarreta uma série de males ao povo, dentre eles, um monstro marinho, enviado por

Posídon. Em seguida, ludibria Héracles, a quem prometera recompensar com os cavalos

divinos que possuía, em troca da morte dada ao monstro. O cumprimento dessa

promessa, por sua vez, também não é realizado, o que leva Héracles a promover o

primeiro saque de Tróia.9 Príamo, pai de Heitor, também comete descomedimento ao

acolher Páris quando este chega a Tróia com Helena, causa da guerra contra os gregos.10

Ao ser recebido como hóspede por Menelau, o príncipe troiano fora acolhido também

por Zeus ( ), deus hospitaleiro; e, ao trair seu anfitrião, fugindo com a sua

mulher, ofende ao deus, mais do que ao homem. Para melhor entendimento deste

contexto, segue o quadro genealógico da família real troiana11

:

8 Para o complô, v. Ilíada, I, 395-400; para a construção das muralhas, v. Ilíada, VII, 446-453, e XXI,

441-460. 9 GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Ttadução de Victor Jabouille. 4.ed. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. 10

HESIOD HOMERIC HYMNS HOMERICA; translation by Hugh G. Evelyn-White. London: Havard

University Press, 2002, p. 489-506 (The Loeb Classical Library) 11

GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Bertrand Brasil: Rio de Janeiro, 2000.

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Electra ~ Zeus Teucro

(Córito)

Iásion Dárdano ~ Batieia

Erictônio ~ Astíoque

Trós

Cápis ~ Temiste Laomedonte

Afrodite ~ Anquises Príamo

ENÉIAS Heitor Páris

Nesse contexto, percebemos os critérios estabelecidos para a escolha de Enéias para

a edificação do novo reino. Seu caráter piedoso, já delineado na Ilíada,

(dons

agradáveis sempre oferece aos deuses, os quais sustêm o vasto céu), nos versos 298 e

299 do Livro XX, é o fio condutor das ações do herói na Eneida, visto ser Enéias o mito

fundador das bases de Roma. Sabe-se que tal incumbência é retratada não apenas pelos

mitos, que envolvem a liberdade artística, mas também por outros campos do

conhecimento, a exemplo da historiografia e da sociologia. Segundo Fustel de

Coulanges12

, por exemplo, o fundador da cidade era o responsável pela realização dos

atos religiosos, sem os quais a cidade não existiria. O detalhamento desse aspecto

religioso em relação à fundação de uma cidade, será feito mais adiante, na medida em

12

COULANGES, Numa Fustel de. The ancient city. translated by Arnaldo Momigliano and S. C.

Humphreys. N.Y.: The Johns Hopkins University Press, 1980.

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que extrapola o momento presente da contextualização e está arraigado profundamente

no Livro VI, eleito para análise.

Na tradição grega encontra-se o alicerce da cultura romana, portanto, faz-se

necessário partir dessa tradição, para analisar o perfil de Enéias como herói, tendo como

base o conceito de Arete ( ). Werner Jaeger13

, por falta de um vocábulo

equivalente que defina com exatidão o conceito de Arete, aproxima o seu significado da

palavra “„virtude‟, como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta

cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro”. Tal „virtude‟ sedimenta-se na honra pessoal

( ) do herói a fim de consolidar a sua perenidade em relação às gerações futuras. A

diz respeito à distinção de si mesmo entre os pares, estes pertencentes à nobreza

aristocrática guerreira. Ela representa, ao mesmo tempo, o elo pactuante entre esses

pares, situando-os como os melhores. Portanto, ofender de algum modo a honra pessoal

do outro, significa colocar em risco o equilíbrio da estrutura unificadora dos próprios

heróis e senhores, aquilo que os faz ser melhores entre os demais homens. A

consagração da Arete daquele que em vida se destacou, ocorre com a sua morte física, a

“bela morte” ( ). A bela morte do herói, que para ser assim

considerada exige alguns requisitos, a saber, juventude plena e morte sanguinolenta em

combate com um igual, é responsável pela glória imperecível ( ). Essa

glória é ratificada pelos rituais fúnebres, e pela construção de um túmulo para o herói,

, símbolo da existência e da perenidade deste herói mas, a partir de então, com

o status de ausente entre aqueles que formam a sociedade da qual fazia parte em vida.

Ele será lembrado e reconhecido pelas gerações vindouras por sua excelência guerreira,

através dos cantos dos aedos.

Jean-Pierre Vernant14

aborda esse assunto de modo esclarecedor, dando uma exata

dimensão da sua importância no mundo arcaico grego:

13

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução Artur M. Parreira. São Paulo:

Martins Fontes, 2001. 14

VERNANT, Jean-Pierre. A beautiful death. In: Mortals and Immortals: collected essays. Edited by

Froma I. Zeitlin. New Jersey: Princeton University Press, 1991, p. 69.

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If the qualities that comprise a warrior‟s - ardor ( ), might

( ), the limbs ( ) – had this character of , the warrior hero

would be immune to old age. He would not gave to lose his youth and beauty in

a heroic death in order to acquire the definitively in the world beyond. In its

own way, by the immutability of its material and shape, and by the continuity of

its presence, the conveys the paradox of the values of life, youth, and

beauty, which one can ensure for oneself only by losing them, which become

eternal possessions only when one ceases to be.

Se as qualidades que formam a de um guerreiro – ardor ( ),

força ( ), membros ( ) – tivessem esta característica de , o

herói guerreiro estaria imune à velhice. Ele não teria dado a perder sua

juventude e beleza em uma morte heróica a fim de adquiri-las definitivamente

no além mundo. Neste mesmo sentido, pela imutabilidade da sua matéria e

forma, e pela continuidade da sua presença, a carrega o paradoxo dos

valores da vida, juventude e beleza, os quais podem ser assegurados apenas pela

perda destes, tornando-se posses eternas unicamente quando o herói deixa de

existir.

A de um guerreiro, a sua excelência quanto à bravura no campo de

batalha, requer alguns fatores. É preciso que o herói esteja em sua plena força física e

juventude, momento em que o corpo está no auge da beleza e do ardor. Tais

características são perecíveis. A medida que o tempo passa, a natural decrepitude as faz

fenecer, não sendo, portanto, constantes ( ). A obtenção da perenidade desses

atributos demanda a sua perda através da “bela morte”, de modo que a lembrança a

permanecer em relação àquele herói será a da sua última imagem quando vivo.

Juntamente com a , a memória, através da qual o herói tem sua glória

imortalizada, estando incluída nesta tanto a sua juventude, o seu ardor guerreiro e a sua

proeminência, quanto a Arete vivenciada durante a vida física, existe a construção do

túmulo, , no qual se encontra o símbolo divino representativo do herói, a marca

que lhe confere glória imorredoura entre as gerações futuras. O silêncio do

esquecimento seria a pior morte que poderia ocorrer para um herói.

Aquiles, na Ilíada, é o modelo perfeito para exemplificar a seriedade da negação da

honra devida a um herói, sobretudo, tratando-se de uma Arete do porte da sua, visto ser

ele considerado o melhor entre os aqueus. A usurpação do seu butim de guerra por

Agamêmnon representa grande ameaça à sua glória pessoal, levando-se em

consideração a importância do prêmio adquirido pela vitória em algum combate

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guerreiro. , termo sem palavra equivalente em português quanto à sua

tradução, coaduna o sentido de superioridade respeitante à hierarquia, de supremacia na

guerra, de primazia em força, vigor e coragem, tudo representado no butim de guerra

devido ao herói pelos seus feitos belicosos. Portanto, negar o a um dos melhores,

significa negar-lhe a própria vida.

Na Odisséia, a Arete tem um aspecto diferenciado do acima referido. Concerne

mais ao lado humano da vida dos heróis, do que à proeminência guerreira. O cerne da

narrativa repousa na volta do herói, , para o lar e para a pátria, passados dez

anos de guerra, através de erráticas aventuras as quais servem para ratificar o caráter

humano de Odisseu. Sendo a inteligência o fulcro irradiador da sua força, ele a utiliza a

fim de enfrentar as vicissitudes na viagem de volta, cadinho burilador da sua

personalidade humana. Na guerra, a sua inteligência lhe serve de instrumento para a

obtenção da relevância como herói guerreiro, como combatente. No seu périplo de volta

ao lar, a astúcia molda-lhe as atitudes, possibilitando o enfrentamento dos perigos e o

triunfo sobre os inimigos. Nisto consiste a sua Arete, na utilização da astúcia para a

conquista da honra pessoal, respeitante agora a Odisseu homem, senhor em seu lar,

esposo, pai e filho.

No mundo clássico grego, com o advento da pólis, a Arete passa a ter uma

importância guerreira menor, residindo seu valor agora na moderação e na prudência

dos atos ( ), visto ser condizente com a manutenção do equilíbrio da cidade

e com os novos valores vigentes, a saber, a Lei Humana, a Democracia e a Filosofia. A

vivência da Arete passa a ser interior, a partir de disciplina severa e do controle sobre si

mesmo. A proeminência é da cidade, da coletividade, não mais do herói singularmente.

Considerando as transformações ocorridas na vida social e política, com o advento

da pólis, Jean-Pierre Vernant15

faz o seguinte comentário acerca da nova feição da

Arete:

15

VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Tradução Ísis Borges B. da Fonseca. 14.ed.

Rio de Janeiro: Difel, 2004, p. 87-88.

Page 21: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

20

Os meios sectários puderam assim contribuir para fazer uma imagem nova da

Arete. A virtude aristocrática era uma qualidade natural ligada ao brilho do

nascimento, manifestando-se pelo valor no combate e pela opulência do gênero

de vida. Nos agrupamentos religiosos, não somente a Arete se despojou de seu

aspecto guerreiro tradicional, mas definiu-se por sua oposição a tudo que

representasse como comportamento e forma de sensibilidade o ideal de

habrosýne: a virtude é fruto de uma longa e penosa áskesis, de uma disciplina

dura e severa, a meleté; emprega uma epiméléia, um controle vigilante sobre si,

uma atenção sem descanso para escapar às tentações do prazer, à hedoné, ao

atrativo da moleza e da sensualidade, a malachía e a tryphé, para preferir uma

vida inteira votada ao pónos, ao esforço penoso.

O século VII a.C. é marcado por intensas transformações, sobretudo na Grécia. A

expansão do comércio marítimo para o Oriente trouxe o hábito ao luxo, à opulência e ao

requinte pela aristocracia, o chamado , o homem bem-nascido, cujo

perfil reunia características como a ostentação da riqueza, o valor guerreiro e a

qualificação religiosa. No cenário social, diferentes fenômenos religiosos, a saber, os

Mistérios de Elêusis, o Orfismo e o Dionisismo, convivem com a religião cívica.

Diferentemente desta, esses fenômenos permitiam a qualquer grego, independentemente

da hierarquia, o acesso à imortalidade bem-aventurada e a um contato mais direto com

os deuses. Mas isso só era possível para aqueles que haviam sido iniciados ( ), e

que, sem nenhuma modificação quanto à sua vida exterior, passavam a seguir certas

regras de conduta interior, visando à salvação individual. Outro acontecimento que

mudou a base em que a cidade se estabelecia foi a ocorrência de uma nova categoria

social de crescente importância, os artesãos. Eles passaram a ter grande influência pois

detinham substancial poder econômico. Um fator que contribuiu sobremaneira para o

novo perfil social foi a mudança da legislação em relação ao homicídio. A condenação

do crime passa a ter um caráter universal, não mais significando um ajuste de contas

entre as famílias. A impureza causada pelo assassínio não atinge apenas a família, mas a

cidade inteira, precisando ser purificada a partir de uma decisão coletiva. Neste contexto

entra em cena a dike ( ), a justiça aplicada a todos, a fim de conter o espírito de

hybris ( ) dos homens e manter o equilíbrio harmonioso da pólis, através da

eunomia ( ), da boa lei, do bom costume. Diante desse quadro, a Arete é

Page 22: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

21

pautada por uma conduta cujo eixo é o equilíbrio e a disciplina de si mesmo, através de

uma prática constante da moderação, do comedimento.

No mundo romano, a Arete grega identifica-se com a Uirtus, que juntamente com a

Pietas e a Fides, forma o tripé do ideal romano. A Uirtus, segundo Ernout16

, tem a

mesma raiz de uir, termo denotativo do homem viril, e utilizado para designar o herói

guerreiro cuja figura encerra a coragem, a força física e moral. Portanto, a princípio,

Uirtus significa a força pura e simples. A Pietas expressa o respeito e a devoção aos

deuses e aos ancestrais, sobretudo através dos sacrifícios e oferendas. A Fides diz

respeito à confiança, à lealdade concernente à palavra dada. O perfil do herói, na

Eneida, coaduna esses três aspectos.

O poema começa in medias res, quando Enéias e um grupo de troianos

remanescentes da guerra contra os gregos estão indo, por mar, em busca da terra a eles

destinada pelos deuses. A voz poética propõe cantar os combates do herói ocorridos

durante sua errância desde a saída de Tróia, depois da destruição, até a sua chegada ao

Lácio, para a construção da glória romana. Para isso, invoca a Musa, a fim de que ela o

inspire a saber qual dos deuses persegue um varão, insigne pela piedade, a sofrer tantos

trabalhos. O procedimento metalingüístico que inicia o texto, tão comum à tradição

épica, recebe um tratamento mais peculiar na Eneida, no que respeita à caracterização

do herói e à clareza em relação à sua trajetória:

Musa, mihi causas memora, quo numine laeso

quidve dolens regina deum tot volvere casus

insignem pietate virum, tot adire labores

impulerit. tantaene animis caelestibus irae?17

Musa, lembra-me as causas, qual nume, ofendido,

ou por que a rainha dos deuses, dolente, impeliu um herói,

insigne pela piedade, a revolver tantas desventuras,

a incorrer tantos labores. Tão grandes iras há nos ânimos celestes?

16

ERNOUT, Alfred et MEILLET, Antoine. Dictionnaire étymologique de la langue latine : histoire des

mots. Paris : Klincksieck, 2001. 17

VERGILIUS. Aeneis. Liber I, 8-11. (Bibliotheca Augustana)

Page 23: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

22

Percebe-se, desde já, um direcionamento em relação à inexorabilidade da missão a

ser cumprida por Enéias, o que pode ser comprovado pelo emprego do verbo impellere

(= impelir, obrigar, constranger), no subjuntivo perfeito, denotando o acabamento, o

fechamento do processo verbal, da ação que fora projetada. A piedade (Pietas) do herói,

sua devoção e respeito aos deuses e ancestrais, ratificada através dos sacrifícios e dos

ritos direcionados a eles, a princípio, parece contraditória à perseguição da deusa Juno.

Entretanto, a utilização dos verbos volvere (= revolver) e adire (= suportar, submeter),

reitera a idéia de devoção e obediência concernente ao termo Pietas, visto que as

vicissitudes enfrentadas funcionam como um buril para a lapidação de Enéias, mito

fundador das bases da futura Roma. A sua exaltação representa a exaltação da própria

nação vindoura.

Na Ilíada, a invocação à Musa exalta a glória pessoal do herói em um momento

específico da guerra, o décimo ano do cerco a Tróia. O emprego, no imperativo

presente, do verbo (= cantar), cuja raiz é a mesma do substantivo (=

aedo, aquele que canta os feitos de um herói), apenas denota o que será cantado, a ira

funesta do Pelida Aquiles, , e suas

conseqüências. O uso pontual dos verbos, (aoristo indicativo do verbo )

e (aoristo indicativo do verbo ), para o apontamento dessas

conseqüências, reitera a especificidade do canto, a exaltação do herói, sobretudo em

relação aos seus feitos guerreiros:

18

HOMEROS. 1-7. (Bibliotheca Augustana)

Page 24: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

23

Canta, ó deusa, a ira funesta do Pelida Aquiles,

que incontáveis sofrimentos trouxe aos Acaios,

e lançou para o Hades muitas almas valentes de heróis,

e fez destes, espólio para todos, cães e aves.

de Zeus cumpria-se a vontade,

desde quando primeiro cindiram, tendo ambos brigado,

o Atrida, senhor dos homens, e o divino Aquiles.

Enéias, no entanto, é exaltado pela sua Pietas, cuja função é advertir quanto às

obrigações para com a pátria e para com a família, mantendo, desse modo, a ordem

social. Colocada como alicerce para a ação do herói, como também para a construção da

narrativa, ela irá alcançar o seu ápice no momento em que Enéias, impulsionado pelos

apelos da alma de Anquises, seu pai, desce aos Infernos.

Mircea Eliade19

, um dos maiores estudiosos das religiões no século vinte,

desenvolve todo um pensamento complexo a respeito da significação da Pietas no

conjunto das mitologias:

Despite its relations with the verb piare (“to pacify, to do away with a

defilement, an evil omen,” etc.), Pietas means not only scrupulous observance

of the rites but also respect for the natural relationship (i.e., relationships in

conformity with norm) among human beings. For a son, Pietas consists in

obeying his father; disobedience is equivalent to a monstrous act, contrary to

natural order, and the guilty son must expiate the defilement by his own death.

Together with Pietas toward the gods, there is Pietas toward the members of the

groups to which one belongs, toward the city, and, finally, toward all human

beings.

Apesar das suas ligações com o verbo piare (apaziguar, apagar uma falta, um

mau presságio, etc.), a Pietas designa não apenas a observação escrupulosa dos

ritos, mas também o respeito pelos relacionamentos naturais (isto é, ordenados

segundo a norma) entre os seres humanos. Para um filho, a Pietas consiste em

obedecer ao pai; a desobediência equivale a um ato monstruoso, contrário à

ordem natural, e o culpado deve expiar essa falta com a própria morte. Ao lado

da Pietas para com os deuses, existe a Pietas para com os membros dos grupos

a que se pertence, para com a cidade e, finalmente, para com todos os seres

humanos.

19

ELIADE, Mircea. A history of religious ideas: from Gautama Buddha to the triumph of

Christianity.Chicago: University of Chicago Press, 1984, p. 116.

Page 25: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

24

Na perspectiva do teórico, a observação a respeito da Pietas revela uma concepção

própria das religiões antigas, que ainda não separa rigidamente a humanidade da

natureza. Isso significa que o homem ainda é visto como uma extensão natural do

próprio cosmos, e o seu comportamento é regido pelas mesmas leis que presidem o

funcionamento do mundo. Na Eneida, a relação entre pai e filho repousa em uma

estrutura patriarcal, em que a obediência funciona como elemento ordenador da

hierarquia familiar. Essa obediência se estende além dos limites da vida, impulsionando

até mesmo um encontro em outra dimensão. A descida de Enéias ao mundo subterrâneo

retrata o ponto máximo da sua piedade. Mesmo colocando em risco a própria vida,

devido ao enfrentamento de tantos perigos, dentre eles, a travessia do Aqueronte,

afluente do Estige, principal rio dos Infernos, o herói atende à devoção religiosa ao pai.

A sua catábase, sendo determinada pelo destino, é reforçada pelos apelos de Anquises.

Ele morre em Drépano, região da Sicília, antes da chegada forçada de Enéias a Cartago

(Eneida, III, 707-715). Passado um ano, o herói volta à ilha e institui jogos em honra a

seu pai, não antes de ofertar-lhe libações e sacrifícios, reverenciando-o como um deus20

(Eneida, V). Anquises, depois da morte, passa a figurar entre os Di Parentes, os deuses

ancestrais, que protegem o núcleo familiar a que pertenceram em vida. Esse sentimento

religioso que vincula os familiares aos seus antepassados é alimentado através do culto

familiar, presidido pelo pater familias, o pai ou o avô pela linhagem paterna, imbuído

de total poder sobre os descendentes. Ele coexiste com o culto público, exercido por um

sumo sacerdote, cuja função, para o Estado, é similar à do pater familias para o seu lar.

Para melhor entendimento desse contexto, segue uma abordagem sobre o processo

religioso ocorrido durante o desenvolvimento da sociedade primitiva, familiar, até o

surgimento da urbe.

Como nos informa Fustel de Coulanges21

, havia, na cidade, um altar em que se

cultuavam divindades eleitas suas protetoras. Tratava-se, geralmente, de figuras

heróicas, cujos feitos, em vida, atribuíram-lhes tal função. Acreditava-se que a

existência e permanência de uma cidade só eram possíveis com a manutenção do fogo

sagrado e o culto às divindades que o protegiam, os Penates do Estado. Tal crença

20

VERGILIUS. op. cit., Liber V, v. 42-103. 21

COULANGES. op. cit., p.07-25.

Page 26: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

25

remonta à antiga organização social, antes da formação da pólis, das tribos e das cúrias,

na qual as pessoas se vinculavam unicamente por laços familiares. Cada família

representava um núcleo particular, sem que houvesse ligação alguma entre eles. Cada

grupo possuía um altar em que se mantinha aceso o fogo sagrado, símbolo da

religiosidade sobre a qual se estruturava a família, e onde repousavam as cinzas dos

ancestrais, os deuses do lar. Alguém que não estivesse ligado pelos laços familiares

àquele culto, jamais poderia sequer ver o altar daquele lar, pois significava extrema

ofensa aos deuses, podendo essa mácula ser reparada apenas com sacrifícios de

purificação e libações.

No decorrer do tempo, famílias diversas se reuniram e formaram as cúrias, que

possuíam seus próprios altares e deuses protetores, e em que o ato religioso era da

mesma natureza do familiar. Consistia em um repasto compartilhado por todos,

enquanto hinos eram entoados e preces eram recitadas, a fim de que a divindade

presente também participasse do banquete. O alimento era preparado no próprio altar,

mantendo o seu caráter sagrado. Entretanto, tal reunião não extinguiu o culto individual

de cada uma das famílias que formavam a cúria.

Mais tarde, as cúrias formaram as tribos, que, por sua vez, reuniram-se para formar

as cidades. Assim como as famílias e as cúrias, as tribos e as cidades também possuíam

sua religião comum, com o altar sagrado e suas divindades protetoras. Tais divindades

eram homens deificados, os chamados heróis.

Jean-Pierre Vernant22

define o herói como um ser de natureza ontológica, haja vista

não pertencer nem à linhagem dos deuses, nem tão pouco à raça dos homens comuns.

Trata-se de um ser que se distingue pelo seu nascimento, pois provém da união de um

deus com um mortal, possuindo portanto uma natureza divina apesar de não ser imortal;

e pela sua morte, que o coloca acima da condição humana, pois ela possibilita a sua

entrada na ilha dos Bem-Aventurados, onde gozará de uma vida após morte apenas

comparável à dos deuses, diferentemente dos homens comuns, que mergulharão na

sombra do esquecimento ao adentrar o Hades. Na organização da pólis, os heróis “são

Potências „indígenas‟ ligadas àquele ponto do solo onde têm sua morada subterrânea;

sua eficácia adere à tumba e à ossada de cada um”.23

Portanto, o culto ao herói serve

22

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia antiga. Trad. Joana Angélica D‟Avila Melo. São

Paulo, 2006. 23

Idem, ibidem, p.50.

Page 27: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

26

sobretudo para delimitar o espaço em que a pólis está situada. Respaldado no passado

mítico da Grécia, o herói simboliza o fundador lendário da cidade.

Na Eneida, portanto, Anquises é o pater familias, cujos descendentes diretos são

Enéias e Iulo, seu neto. Com a sua morte, o cumprimento dos ritos e dos sacrifícios aos

deuses passa a ser realizado por Enéias. Ele assume o papel de pater familias não

apenas do grupo familiar, mas também daqueles que, no futuro, constituirão o reino a

ser edificado. Seu encontro com Anquises nos Infernos homologa a permissão para a

sua missão de fundar uma cidade. O pai delega ao filho o poder sobre a pátria, e

assegura-lhe a glória futura da nação. Anquises desvenda a Enéias o porvir,

apresentando-lhe as gerações responsáveis pela construção da soberania do Império, a

partir de uma descendência do herói.

Maria Helena da Rocha Pereira24, em uma de suas reflexões sobre essa questão,

retrata a função da Pietas, mantenedora da ordem social respeitante à hierarquia tanto na

família quanto no Estado:

Estabelecendo assim um vínculo afectivo entre os membros de uma família, a

Pietas alargava-se à divindade e acaba por compreender também as suas

relações com o Estado.

Embora a literatura, conforme Aristóteles, não tenha que corresponder diretamente

à realidade, percebemos entrelaçamentos que não podem ser desprezados, sobretudo em

um canto épico que retrata, entre outras questões, a fundação de uma civilização, Roma.

O fundamento místico da ideologia que explicava o Estado antigo, visava à manutenção

do poder, servindo de justificativa para as segregações sociais. A busca da ascendência

divina pelas famílias dominantes, em sua genealogia, garantia a perenidade da

autoridade, por ser esta uma concessão divina. Enéias é filho da deusa Vênus, sua

ascendência divina lhe confere uma natureza ontológica que somada à sua

personalidade piedosa, forma o cenário adequado para a sua heroificação. O caráter

religioso e, sobretudo, político, da Eneida, busca sedimentar o presente, a Idade de Ouro

do Império de Augusto, através da recuperação do passado mítico-heróico, de modo a

perpetuar a Pax Romana para as gerações futuras. A exemplo de Homero, que, segundo

24

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica: cultura romana. II volume.

3.ed. Lisboa: Fundação Kalouste Gulbenkian, 2002, p. 339-340.

Page 28: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

27

Aristóteles, imitava homens superiores, possuidores de uma natureza ontológica,

própria dos heróis, Virgílio busca, na tradição, a figura de um herói, cujas ações

conduzem à glorificação, à sua ascensão.

Faremos, a seguir, uma apresentação dos conteúdos da Eneida, para melhor

direcionamento da análise do Livro VI. A base do poema é o mito da fundação de

Roma25

. Amúlio, décimo quinto rei de Alba Longa, é irmão de Numitor, e ambos são

filhos de Procas. Este, ao morrer, deixara como herança o reino e as riquezas. Numitor

escolhe o reino, enquanto Amúlio, as riquezas. Entretanto, agora senhor de muitas

posses, Amúlio não tarda a usurpar o poder do irmão. Expulsa-o do reino, mata o

sobrinho e consagra a sobrinha, Rhéia Sílvia, sob o pretexto de honrá-la, ao serviço de

Vesta, cujas sacerdotisas são obrigadas a se manter castas. No caso da violação desse

dever, a condenação à morte é inevitável. Desse modo, Amúlio acredita haver eliminado

qualquer possibilidade de vingança por parte dos descendentes de Numitor. Ocorre, no

entanto, que o deus Marte se encanta por Rhéia e a ama. Desse enlace nascem os

gêmeos Rômulo e Remo, que são expostos ao rio Tibre por ordem do tio-avô, mas não

morrem (v. genealogia baixo). O rio transborda do leito e as crianças são depostas no

sopé do Gérmalo, cume noroeste do Palatino. Os dois meninos são recolhidos por um

pastor, Fáustulo, que os entrega à mulher, Acca Larentia, para que cuide deles. Ao

crescer, exercem o mesmo ofício do pai adotivo, ao mesmo tempo em que praticam atos

próprios de salteadores. Um dia, os irmãos atacam as terras de Numitor, na Arcádia, a

fim de espoliar seus bens. Remo é aprisionado e levado à presença do avô, sem saber de

quem se trata. Numitor fica intrigado com a altivez do rapaz, pois o seu porte não

denota uma origem de família pobre, de pastores. Ao saber da existência de Rômulo, e

levando também em consideração a idade de Remo, Numitor conclui que são seus

netos. Fáustulo, que conhecia a origem dos irmãos (pois, quando os encontrara, havia

rumores sobre a história do abandono dos gêmeos pelo tio-avô, Amúlio, havendo uma

suposta coincidência entre o momento em que acolhera os meninos e a história do

abandono dos netos do rei), deduz que se trata das mesmas crianças. Fáustulo, depois de

informado sobre a prisão de Remo por Numitor, relata a Rômulo tudo que sabe. Ele

reúne o grupo de pastores que também participavam das pilhagens, e segue rumo ao

palácio de Amúlio. Remo, por sua vez, parte da casa de Numitor com outro grupo.

25 LIVY. History of Rome. Books 1-2. London: Harvard University Press, 2002, p. 02-25. (The Loeb

Classical Library)

Page 29: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

28

Ambos, então, matam Amúlio, e restituem o poder a Numitor, seu avô. Depois que sobe

ao trono, ele cede terras aos netos, a fim de que constituam um novo reino. A decisão de

quem o governará é determinada por um augúrio. Rômulo escolhe o Palatino para a

revelação dos deuses, enquanto Remo, o Aventino, recebendo como augúrio o vôo de

seis pássaros, enquanto Rômulo, o de doze, o que lhe garante o direito de fundar a

cidade. Com um arado, ele cava um fosso ao redor do Palatino, representando uma

muralha, uma proteção. Remo, com o intuito de zombar do irmão, atravessa o fosso e é

morto por Rômulo.

Procas

Amúlio Numitor

Marte ~ Rhéia Sílvia

Rômulo Remo

Das informações acima, de ordem meramente parafrástica, é imprescindível extrair

dois aspectos para a compreensão do contexto necessário à fundação de uma cidade, na

concepção dos povos arcaicos, sobretudo o indo-europeu, de quem provém o ramo

latino: a delimitação do espaço sagrado e a realização do primeiro sacrifício.

Mircea Eliade26, a esse respeito, apresenta uma formulação teórica bastante

plausível para a problemática em questão:

26

ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno; tradução de Manuela Torres Lisboa: Edições 70, 2000, p.

24.

Page 30: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

29

Correspondem a um modelo mítico, mas de outra natureza: todas estas regiões

selvagens, incultas, etc., estão consubstanciadas no caos; participam ainda da

modalidade indiferenciada, informe, anterior à Criação. É por isso que quando

se começa a explorar, se realizam ritos que repetem simbolicamente o acto da

Criação; a zona inculta é primeiro “cosmificada” e em seguida habitada.

Há um ambiente inóspito, simbolicamente correspondente ao caos primordial, que

precede a edificação das cidades. A fixação em um determinado território exige a sua

cosmificação, a sua transformação de caos em cosmos. Para que tenha um significado, é

preciso atribuir-lhe uma forma, torná-lo real, tendo como arquétipo a Criação do

Mundo. A cosmogonia, portanto, revela uma ontologia original, alcançada através de

um sacrifício primordial, imprescindível à fundação da cidade. Esse sacrifício

primordial, realizado pelo fundador, serve para transformar o espaço delimitado em uma

extensão natural do sagrado, única realidade existente.

O mito da fundação de Roma enquadra-se perfeitamente nesse contexto. Rômulo,

sendo piedoso, portanto, imbuído da religiosidade própria daqueles a quem cabe a

fundação de uma nova cidade, traça um fosso ao redor do sítio em que será edificada a

nova cidade. Essa atitude estabelece o caráter religioso do novo reino, que deverá ser

protegido pelas muralhas, símbolo delimitador do espaço sagrado, portanto, realidade

absoluta no caos do espaço exterior. Esse aspecto de Rômulo reitera a inexorabilidade

do cumprimento do seu destino, pois o caracteriza como sacerdote, função fundamental

ao edificador de uma nova cidade. Remo, ao contrário do irmão, mostra-se impiedoso,

pois além de não haver delimitado o espaço sagrado para a construção da nova cidade,

comete uma falta ainda maior. Com o intuito de zombar de Rômulo, Remo ultrapassa o

fosso, violando um espaço sagrado. Rômulo, irado e horrorizado pela falta cometida,

mata-o e passa a exercer o poder absoluto sobre a nova cidade, Roma.

A respeito do sacrifício primordial, Mircea Eliade.27

faz uma abordagem ainda mais

específica sobre o assunto:

As in so many other traditions, the founding of a city in fact represents a

repetition of the cosmogony. The sacrifice of Remus reflects the primordial

cosmogonic sacrifice… Immolated on the site of Rome, Remus insures the

27

ELIADE, Mircea. The sacred and the profane: The nature of religion. Translated by William R. Trask

Orlando: Harcourt, 1987, p. 108-109.

Page 31: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

30

fortunate future of the city, that is, the birth of the roman people and accession

of Romulus to the kingship.

Como em tantas outras tradições, a fundação de uma cidade representa, de fato,

a repetição da cosmogonia. O sacrifício de Remo reflete o sacrifício

cosmogônico primordial...Imolado no sítio de Roma, Remo assegura o futuro

ditoso da cidade, ou seja, o nascimento do povo romano e a ascensão de

Rômulo à realeza.

A morte de Remo, além de simbolizar o sacrifício primordial necessário à

cosmogonização do espaço destinado à cidade, representa a instituição do culto sagrado

ao ancestral. Consangüíneo do rei, cujo assassínio representa, na realidade, o ápice da

sua Pietas (pois, matando até mesmo o irmão para a defesa da sacralidade do território,

põe em primeiro plano a devoção religiosa), Remo é o antepassado da cidade, o qual

deve ser cultuado como sua divindade protetora. A sua morte é aquiescida pelos deuses,

pois o sagrado e o humano são de naturezas ontológicas, e ao tocar o sacer (designa

aquilo ou aquele que não pode ser tocado sem ser conspurcado, ou sem conspurcar28

),

Remo se torna um ser abominável, não pertencendo a nenhuma das duas naturezas e,

portanto, passível de ser morto.

Referente a esse momento do enredo, é necessário lembrar as palavras proferidas

por Rômulo na ocasião em que mata o irmão. Trata-se da seguinte sentença: “Sic

deinde, quicumque alius transiliet moenia mea”29

, “Assim „pereça‟ de agora em diante,

outro qualquer que transponha minhas muralhas”. Com essas palavras, Rômulo,

primeiro rei de Roma, consagra a defesa da cidade nascente, conjurando o mau

presságio da vulnerabilidade e firmando a sua inexpugnabilidade.

Dentro da ordem cósmica, existe uma força maior que submete tanto os homens

quanto os deuses, o Destino, cujo cumprimento é inexorável.

Na Eneida, o trajeto da narrativa direciona os acontecimentos para esse fim

inexorável, desde o passado mais remoto de Roma, nascido de um empreendimento

mítico, até o futuro mais brilhante do Império, como se toda essa saga, da genealogia

fundadora à sucessão dos imperadores, fosse um desdobramento natural de todo um

destino preestabelecido.

28

ERNOUT. op. cit., p. 586. 29

LIVY. op. cit., p. 24.

Page 32: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

31

Émile Benveniste, ao fazer um estudo sobre o vocabulário das instituições indo-

européias, torna mais clara a compreensão do contexto acima. A análise de

determinados termos feita por ele, a partir da etimologia, reiteram os significados dos

elementos necessários para a edificação de uma cidade. Segundo Benveniste:

Il faut partir de cette notion toute matérielle à l‟origine, mais prompte à se

développer au sens moral, pour bien entendre la formation de rex et du verbe

regere. Cette notion double est présente dans l‟expression importante regere

fines, acte religieux, acte préliminaire de la construction; regere fines siginifie

littéralement “tracer en lignes droites les frontières”. C‟est l‟opération à laquelle

procède le grand prêtre pour la construction d‟un temple ou d‟une ville et qui

consiste à déterminer sur le terrain l‟espace consacré. Opération dont le

caractère magique est visible: il s‟agit de délimiter l‟intérieur et l‟extérieur, le

royaume du sacré et le royaume du profane, le territoire national et le territoire

étranger. Ce tracé est effectué par le personnage investi des plus hauts

pouvoirs, le rex.30

É preciso partir desta noção inteiramente material na origem, mas pronta a se

desenvolver no sentido moral, para bem entender a formação de rex e do verbo

regere. Esta noção dupla está presente na importante expressão regere fines, ato

religioso, ato preliminar da construção; regere fines significa literalmente

“traçar em linhas retas as fronteiras”. É esta operação à qual procede o grande

sacerdote para a construção de um templo ou de uma cidade e que consiste em

determinar sobre o terreno o espaço consagrado. Operação cujo caráter mágico

é visível: trata-se de delimitar o interior e o exterior, o reino do sagrado e o

reino do profano, o território nacional e o território estrangeiro. Este traçado é

efetuado pelo personagem investido dos mais altos poderes, o rex.

O vocábulo latino rex, antes de designar a idéia de soberano, de rei, tem, em sua

etimologia, um significado mais concreto. Visto ter a mesma raiz do verbo regere, reg-,

que, em uma primeira acepção, significa, “traçar em linha reta”, rex, é aquele

responsável por traçar as fronteiras, regere fines. O ato religioso de traçar as fronteiras,

de modo a estabelecer o espaço sagrado, realidade absoluta, para a edificação e

permanência de uma nova cidade, cabe, portanto, ao rei. Esse atributo elevado, utilizado

ao longo da história como pretexto de superioridade divina das classes dominantes, se

expressa, no contexto da Eneida, de uma forma muito peculiar.

30 BENVENISTE, Émile. Le vocabulaire des institutions indo-européennes (2. Pouvoir, droit, religion).

Paris: Les Éditions de Minuit, 1969, p. 50. (Tradução Milton Marques Júnior)

Page 33: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

32

Rômulo, primeiro rei de Roma, é, em princípio, o sacerdote, encarregado de traçar a

linha divisória entre o espaço exterior e o terreno interno, entre o território estrangeiro,

portanto, profano, e o território nacional, sagrado. Como mito fundador, ele também é o

instituidor do culto aos deuses protetores da cidade, mantenedores do espaço que fora

consagrado pelo rei-sacerdote, no momento da fundação. Rômulo é descendente de

Enéias, cuja mãe é a deusa Vênus, portanto, tem origem divina.

Na narrativa, Enéias é designado como rei já no Livro I31

, sendo reiterada essa

denominação no decorrer da fabulação. Juno, indignada por causa da fuga dos troianos,

queixa-se de ser impedida pelos destinos de destruí-los, mesmo sendo a rainha dos

deuses, esposa de Júpiter. Refere-se, então, a Enéias, como rei dos teucros, assim

denominados por descenderem de Teucro:

“mene incepto desistere victam

nec posse Italia Teucrorum avertere regem!

quippe vetor fatis.”

Tendo eu iniciado, desistir, vencida?

Nem poder afastar o rei dos teucros da Itália?

Certamente sou impedida pelos destinos!

A referência a Enéias como rei, no decurso da história, caracteriza-o, também,

como aquele responsável por traçar a linha das fronteiras, o que reitera sua atribuição de

fundador das bases da futura Roma, permeada no decorrer da narrativa através dos

oráculos de Apolo, e homologada na sua descida aos Infernos no momento em que

encontra Anquises.

31

VERGILIUS. op.cit., Liber I, v. 37-39.

Page 34: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

33

1.3.Estrutura da Eneida

O termo epopéia, proveniente do grego , cuja raiz é formada pela palavra

(= palavra, aquilo que é dito, cujo verbo correspondente é : dizer, chamar,

nomear), e pelo verbo (= fazer, produzir, criar intelectualmente), que possui a

mesma raiz de (= poesia/criação) e de (= poeta/criador), significa,

etimologicamente, “criar pela palavra”. A partir dessa definição, infere-se a finalidade

da epopéia em sua origem: cantar, transmitir oralmente aquilo que fora criado pelo

poeta. Tal é a estrutura dos poemas homéricos, o que é comprovado pela linguagem e

pela sintaxe simples que compõem esses poemas. A Eneida, apesar de também ser um

poema para ser cantado, foi produzida em forma escrita. Sua estrutura é complexa,

repleta de latinismos, e construída com um latim dito clássico, portanto, sintético.

Aristóteles delineia a estrutura da epopéia, sendo ela constituída por episódios

longos, conexos a uma ação principal. Tal ação diz respeito ao argumento do poema,

sustentado pela narração de episódios, alguns deles estando fora da narrativa, mas que

por algum motivo vinculam-se a ela. A Ilíada, de Homero, tem como ação principal a

ira funesta de Aquiles, o maior dos heróis gregos, desencadeada pela querela com o

senhor de todos, Agamêmnon, no início do décimo ano do cerco a Tróia, cuja

conseqüência é a retirada do Pelida da guerra. Como diz o autor da Poética, este é o

argumento do poema, o resto são episódios. Por exemplo, o Canto II, que trata do

Catálogo das Naus, há um episódio que está fora da narrativa, como acontece também

nos outros Cantos em relação a outros episódios. Diz respeito ao augúrio interpretado

por Calcas no momento em que a armada grega se encontra em Áulis. Os heróis estão

sacrificando ao deus, quando subitamente sai do mar uma serpente. A serpente avança

em direção a uma árvore em que está um ninho de pássaros com oito filhotes, e os

devora, juntamente com a mãe, depois ela é transformada em pedra. O adivinho então

revela que os nove pássaros representam os nove anos durante os quais os gregos

32

ARISTÓTELES. op. cit.

Page 35: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

34

permanecerão lutando em Tróia, e que no décimo, representado pela serpente

petrificada, a cidadela será destruída33

.

Além dos elementos apontados por Aristóteles, há ainda a proposição, apresentação,

pela voz poética, do assunto a ser tratado no decurso do poema; e a invocação, pedido

dirigido aos deuses ou às musas, para que auxiliem na criação da poesia, o que pode

ocorrer mais de uma vez dentro do poema. Homero é o modelo para essa estrutura.

Virgílio, além das partes acima citadas, acrescenta mais um elemento, a nosso ver, a

dedicatória:

nascetur pulchra Troianus origine Caesar,

imperium Oceano, famam qui terminet astris,

Iulius, a magno demissum nomen Iulo.

hunc tu olim caelo, spoliis Orientis onustum

accipies secura; vocabitur hic quoque votis.34

De bela origem, nascerá o troiano César,

que estenderá a fama aos astros, e o império ao Oceano,

Júlio, nome descendente do grande Iulo.

Tu, confiante, um dia o receberás no céu, carregado com

espólios do Oriente; também ele será invocado com votos.

O trecho citado diz respeito à fala de Júpiter em resposta a Vênus, no momento em

que a deusa, chorosa, o interpela sobre o destino dos troianos. Para esses, fora

prometida a descendência romana, cujo império reinaria soberano. Entretanto,

perseguidos por Juno, sofrem infortúnios incessantes, sem conseguirem alcançar a terra

almejada. Júpiter, então, a tranqüiliza, discorrendo sobre as conquistas romanas que

elevarão o império à glorificação. Os versos acima correspondem à dedicatória feita a

Augusto. Refere-se, sobretudo, à sua divinização. Adotado por César como Júlio César

Otaviano, descende da Gens Iulia, cujo antepassado é Iulo, filho de Enéias. Aclamado

deus, é comparado ao próprio Júpiter. Instituidor da Pax Romana, é responsável pela

33

HOMERO. Ilíada, II, 299-332. 34

VERGILIUS. op. cit., I, v. 286-290.

Page 36: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

35

expansão do Império romano, cujos domínios abrangem todo o Mediterrâneo e parte do

Atlântico Norte.

A dedicatória ocorre pelo dever de o poeta exaltar o promovedor financeiro da

empreitada, demonstrando, assim, o seu agradecimento. Além dela, há a invocação, já

abordada acima, e a proposição. Essa remete à ação principal da narrativa, ao argumento

do poema, ao qual estão ligados os episódios referentes a cada Livro.

Composta por 9.896 versos, divididos em doze Livros, a voz poética da Eneida

propõe cantar o mito de Enéias, fundador mítico das bases da futura Roma:

Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris

Italiam fato profugus Lavinaque venit

litora – multum ille et terris iactatus et alto

vi superum saevae memorem Iunonis ob iram,

multa quoque et bello passus, dum conderet urbem

inferretque deos Latio; genus unde Latinum

Albanique patres atque altae moenia Romae.35

Canto as armas e o herói, que, primeiro, dos litorais de Tróia,

viria, impelido pelo destino, para a Itália e para os litorais Lavínios.

Muito, lançado ele foi, por terras e mar, pala força dos deuses,

por causa da lembrada ira da furiosa Juno,

e também, muitas coisas tendo sofrido na guerra, até que edificasse

a cidade e levasse os deuses para o Lácio, de onde provém a raça latina,

e os pais albanos, e as muralhas da altiva Roma.

O trecho acima diz respeito à proposição do poema, em que se encontra o

argumento. Trata-se da errância de Enéias e de seus companheiros desde a saída de

Tróia até a chegada ao Lácio, havendo, nesse ínterim, inúmeras vicissitudes, por causa

da ira de Juno. O estabelecimento do herói no Lácio só ocorre depois de muitas guerras.

Tal estabelecimento suscitará o surgimento de Alba Longa e, por conseguinte, de Roma.

Esses acontecimentos são mostrados através de falas proféticas, sobretudo na catábase

35

Idem, ibidem, I, v. 1-7.

Page 37: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

36

de Enéias, no momento em que ele se encontra com a alma de Anquises. O pai lhe

desvenda o porvir através de um falar vaticinador. Aponta-lhe aqueles que hão de beber

do Letes, rio do esquecimento, a fim de retornar à vida, como ilustres personagens da

expansão romana.

O primeiro verso do poema, já revela esse caráter proléptico do enredo: Arma

virumque cano, “canto as armas e o herói”. Com essa sentença a voz poética abre o

Livro I, determinando, desde o princípio, o trajeto da narrativa. Arma, coletivo plural

neutro, diz respeito, especificamente, a “armas defensivas” que se ajustam ao corpo,

próprias para a luta face a face entre dois guerreiros. Corresponde à palavra grega

, da mesma raiz de (= hoplita), soldado da infantaria pesada, armado

com elmo, couraça, escudo, espada e lança. Metonimicamente, arma designa também a

guerra, o combate.36

Coadunando as duas definições acima, a etimológica e a

metonímica, infere-se o posicionamento de Enéias dentro do poema. Ele é o varão (vir =

homem, varão, em oposição à mulher) que, por sua virtude (virtus = a força pura e

simples; coragem), enfrentará uma luta pessoal e outra coletiva. A primeira consiste no

processo de lapidação pelo qual o herói passará durante a sua errância, a fim de se

tornar o pater potestas (homem varão, senhor de poder absoluto sobre os descendentes)

da pátria, o patriarca da nação. A segunda luta remete à guerra contra os latinos, após a

sua chegada ao Lácio. A descida aos Infernos representa, ao mesmo tempo, o ponto de

chegada e o ponto de partida do herói. Simbolizando um rito de passagem, a catábase,

seguida pela anábase, arremata as provações que o preparam para o enfrentamento dos

combates vindouros, necessários à fixação do novo reino.

A posição diferencial de Virgílio em relação à tradição está clara. No que diz

respeito ao Livro VI da Eneida, a singularidade com que retoma o tema da descida aos

Infernos, presente em mitos anteriores à época da narrativa sobre a errância de Enéias,

representa a maior catábase do mundo greco-romano. Os mitos de Orfeu, de Teseu e

Pirítoo, de Héracles, e de Odisseu, já tratam desse tema. Entretanto, Virgílio o faz com

maior profundidade atingindo uma complexidade que só será retomada, na literatura

ocidental treze séculos depois, na obra de Dante Alighieri, A Divina Comédia, não

sendo à toa, portanto, que Virgílio será o condutor do Dante personagem pelo Inferno.

Essa diferença, um dos marcos inovadores da Eneida, será apreciada no capítulo da

36

ERNOUT, op.cit., p. 46, 738.

Page 38: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

37

análise, para a qual torna-se imperativa a averiguação dos elementos retirados da

tradição para a constituição da catábase de Enéias, o que propiciará o reconhecimento

do caráter singular da construção do poeta.

É interessante notar também, a criatividade do poeta na utilização do mito para o

direcionamento do tema em questão. A catábase é a maior das profecias dentro do

poema, não apenas o falar de Anquises é enigmático, como o próprio cenário em que

ocorre a entrevista entre pai e filho é em outra dimensão, os Infernos. A escolha de

Apolo, deus oracular, para guiar Enéias em sua jornada coaduna-se com o propósito da

voz poética de revelar o futuro de Roma. O caráter místico enfatiza o sentido divino da

glorificação do império, sedimentando, portanto, a predestinação de Enéias e da nação

romana.

Quanto ao conteúdo dos Livros constitutivos da Eneida, segue uma explanação

sucinta dos episódios presentes em cada um, com o intuito de se obter uma visão mais

precisa do Livro VI, eleito para análise, a partir da contextualização:

Livro I

Os troianos, à deriva no mar, são perseguidos por Juno pelos seguintes motivos: o

julgamento no Monte Ida, o rapto de Ganimedes por Júpiter e as futuras guerras púnicas

entre Cartago e Roma. Após uma tempestade enviada pela deusa, eles abordam Cartago,

o reino da rainha Dido. Júpiter em resposta a Vênus, discorre sobre a descendência

troiana, remetendo à futura glória romana. Enéias e os troianos são acolhidos por Dido

após sete anos de errância desde a saída de Tróia.

Livro II

Enéias, na corte de Dido, narra sobre a destruição de Tróia: o episódio do cavalo de

madeira; a aparição da alma de Heitor a Enéias; a morte do rei Príamo; prodígio dos

deuses, o cabelo de Iulo incendeia; Enéias, levando o pai Anquises nas costas e o filho

Iulo pela mão, é impelido a sair de Tróia; Creúsa, sua esposa, morre; Enéias, Anquises,

Iulo e os remanescentes troianos partem sem rumo.

Page 39: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

38

Livro III

Enéias continua a narração e discorre sobre sua errância por terra e mar depois da

destruição de Tróia, durante a qual ocorrem os oráculos de Apolo, a confirmação do

destino de Enéias como mito fundador, a morte de Anquises em Drépano, na Sicília, e a

chegada de Enéias e dos troianos em Cartago; fim da narração.

Livro IV

Dido fica impressionada com Enéias, e confessa à sua irmã que está encantada pelo

herói. Ana a incentiva a alimentar a paixão pelo herói. Juno faz proposta a Vênus a fim

de manter Enéias em Cartago. Cípria ludibria Juno, aquiescendo à proposta, mas

atentando apenas para a salvação do herói, e para a sua missão de fundar as bases da

futura Roma. Dido e Enéias tornam-se amantes, e ele permanece um ano em Cartago, já

esquecido do seu destino. Júpiter envia Hermes a fim de adverti-lo quanto à sua missão,

e Enéias parte, sem atender às súplicas da rainha. Ela lança imprecações ao troiano,

amaldiçoando e prenunciando as futuras guerras púnicas.

Livro V

Enéias e os troianos chegam à Sicília: honras prestadas a Anquises – rituais,

libações e jogos fúnebres; incêndio dos navios provocado pela deusa Íris a mando de

Juno. Júpiter extingue o fogo com uma tempestade. A alma de Anquises aparece a

Enéias e o aconselha a fundar uma cidade na Sicília. Anquises é divinizado. Enéias e os

troianos, após um ano de permanência na Sicília, seguem rumo à Itália.

Livro VI

Enéias chega a Cumas e se dirige ao bosque sagrado de Ártemis, onde se encontra o

antro da Sibila, sacerdotisa de Apolo, e a entrada para os Infernos. Lá, ele fala ao deus

Apolo, que desvenda o porvir. Enéias pede a Sibila que o leve ao encontro de Anquises

nos Infernos. Nesse encontro, a alma de Anquises mostra ao filho sua futura

descendência, os romanos, apontando para os ilustres nomes que estabelecerão a

soberania de Roma. Enéias e a Sibila saem dos Infernos pela porta de marfim.

Page 40: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

39

Livro VII

Enéias e os troianos abordam a costa da Ausônia, chegam ao Lácio e reconhecem a

terra que lhes está destinada. Por outro lado, na corte do rei Latino, durante a realização

de oferendas e libações aos deuses do local, ocorre um prodígio que confirma o oráculo

do deus Fauno quanto à chegada do estrangeiro cuja descendência levaria glória aos

latinos, pois ele se casaria com a princesa Lavínia. Latino propõe aliança aos troianos,

entretanto, instigados por Juno, os povos do Lácio se armam contra os troianos. Turno,

rei dos rútulos e pretendente à mão da princesa, encabeça a marcha. Latino, incapaz de

impedir os acontecimentos, abandona o poder. Catalogação dos aliados de Turno.

Livro VIII

O Lácio está em guerra. Enéias, inquieto, deita-se na praia e adormece. O rio Tibre

lhe aparece, confirma-lhe o destino e lhe dá conselhos, entre eles, a aliança com

Evandro, grego que, fugido da Arcádia, estabelecera-se na Itália e fundara a cidade de

Palanteu. Segundo as advertências do rio, Enéias sacrifica uma porca branca e seus

filhotes que encontra pelo caminho à deusa Juno, a fim de aplacar sua ira. Enéias sobe o

Tibre e chega aos domínios de Evandro, no momento em que ele sacrificava aos deuses,

dentre eles, Hércules. Em entrevista, os dois reconhecem vínculo familiar e antigos

laços de amizade; celebram a aliança com sacrifícios. Evandro fala sobre as tradições da

sua gente e sobre os sacrifícios instituídos a Hércules. Celebração a Hércules: rito, mito

e canto. Evandro passeia com Enéias pelas paragens onde, no futuro, será Roma. Vênus

recorre a Vulcano e pede-lhe armas para Enéias. Despedida de Evandro e de seu filho

Palante. Enéias e os aliados marcham para a guerra. Vênus entrega as armas ao filho.

Descrição do escudo, no qual está representada a história de Roma desde Rômulo e

Remo até Augusto. Enéias admira as imagens grafadas no escudo de Vulcano, sem

saber que carrega nos ombros o futuro glorioso dos seus descendentes.

Livro IX

Juno envia Íris a Turno a fim de avisá-lo quanto à aliança de Enéias e Evandro,

insuflando-o a atacar, juntamente com os aliados, os troianos, que se resguardam atrás

das muralhas construídas ao redor dos navios. Turno incita incêndio aos navios dos

teucros, mas Júpiter os transforma em ninfas a pedido da mãe dos deuses, Berecíntia.

Page 41: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

40

Messapo vigia as portas com sentinelas e cerca os muros gregos com fogueiras. Os

troianos observam tudo do alto da trincheira. Niso e Euríalo atacam os rútulos durante a

noite e provocam grande chacina, mas são flagrados pelos volscos e mortos. Messapo

derruba as paliçadas, rútulos e teucros se enfrentam, ocorrendo muitas mortes. Turno

mata Pândaro. Muitos troianos perecem por suas mãos. Os troianos, inflamados por

Mnesteu, perseguem Turno, que escapa precipitando-se no rio Tibre.

Livro X

Júpiter convoca assembléia dos deuses no Olimpo. Vênus lembra a Júpiter as

vicissitudes sofridas pelos troianos provocadas por Juno, que tomada de furor, defende-

se das acusações, lembrando a causa da guerra de Tróia: o rapto de Helena por Páris.

Júpiter entrega os latinos e os troianos à própria sorte mediante um juramento pelo

Estige. Os rútulos massacram os troianos. Enéias já se encontra a caminho do

acampamento troiano e tem Tarcão, rei etrusco, por aliado. Há uma invocação à deusa a

fim de catalogar as tropas etruscas que se uniram ao herói. As Ninfas do Ida advertem

Enéias sobre o cerco de Turno aos muros troianos. Ao vir Enéias e os aliados chegarem,

Turno insufla os italiotas a lutar contra eles. Enéias desembarca seus aliados; trava-se

grande luta, havendo muitas mortes. Palante, filho de Evandro, rei árcade e aliado de

Enéias, é morto por Turno, que espolia o corpo das armas. Enéias, com ingente ardor

guerreiro, inflama-se para a luta e mata muitos inimigos. Juno livra Turno da morte

iminente. Mezêncio ataca os troianos, mas é morto por Enéias.

Livro XI

Enéias providencia os funerais dos companheiros e depõe a armadura de Mezêncio

em um carvalho. O herói e seus aliados choram a morte de Palante, filho do rei árcade,

Evandro. Enéias concede aos inimigos que dêem sepultura aos seus mortos, e é exaltado

pelo velho Drances, por ser justo e piedoso. Troianos e Latinos dão uma trégua de doze

dias a fim de enterrarem seus mortos. Dor de Evandro pela morte de Palante e exaltação

à sua “bela morte”. Ocorrem os funerais dos mortos. Drances incita o povo contra

Turno. Diomedes recusa-se a se aliar aos latinos contra os troianos, lembrando os

castigos sofridos pelos gregos por haver destruído Tróia. Em assembléia, o rei Latino

propõe dar condições de paz aos Teucros, o que é aquiescido por Drances. Esse concita

Page 42: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

41

Turno a enfrentar Enéias sozinho, fazendo-o explodir em cólera. Enquanto os latinos

estão em assembléia, um mensageiro entra no palácio advertindo-os de que os Teucros

cobrem toda a planície, formando uma frente de batalha. Turno se precipita para lutar. A

rouca trombeta dá o sinal cruento para a guerra. Camila, rainha dos volscos e aliada de

Turno, corre ao encontro do herói. Turno arma emboscada para Enéias. Latinos e

Troianos se enfrentam. Camila massacra os Teucros. O Tirreno Tarcão, aliado de

Enéias, incita os companheiros para a guerra, reagindo ao ataque de Camila, que é

morta por Arrunte. Os troianos, os tirrenos e os árcades precipitam-se cerrados para a

guerra. Receosos, os latinos fogem. Os troianos massacram os latinos diante da cidade.

Turno é avisado sobre a morte de Camila, abandona o local da emboscada que armara

para Enéias e segue rumo à cidade. Lá chegando, vê o herói, que se aproxima com seu

batalhão e acampa em frente da cidade.

Livro XII

Turno se abrasa para a luta, e Latino tenta dissuadi-lo de lutar, mas o herói se

inflama com as palavras do rei e envia mensageiro a Enéias propondo luta singular

disputando a mão de Lavínia. Amanhece e todos se preparam para assistir a luta. Os

dois reis, Enéias e Latino, fazem sacrifícios aos deuses para selar o pacto da luta. Em

forma de Camerto, Juturna incita os latinos a quebrar o pacto. Enéias tenta apaziguar os

ânimos, mas é ferido. Turno mata muitos heróis. Iápige tenta curar Enéias, mas não tem

êxito. Vênus o auxilia, depositando um remédio na água que serve para banhar a ferida.

O herói se recupera prontamente e volta para a luta. Os rútulos fogem. Juturna auxilia

Turno a fugir do troiano. Enéias, inspirado por Vênus, segue rumo à cidade a fim de

assaltá-la. Amata, ao vir o alvoroço na cidade, suicida-se, pois pensa que Turno morreu.

Esse, informado sobre a morte da rainha e sobre os acontecimentos, segue rumo à

cidade. Enéias e Turno se enfrentam. A espada do rútulo se quebra e ele foge do troiano,

que o persegue. Júpiter persuade Juno a desistir da sua perseguição aos troianos. A

deusa aquiesce, mas com a promessa do deus de que os latinos não terão o nome dos

teucros, nem mudarão sua língua nem seus costumes. Tróia sucumbiu, portanto, que seu

nome desapareça com a cidade, e que permaneça a raça romana, poderosa pelo valor

italiota. Júpiter envia uma das Fúrias a Turno a fim de aturdi-lo, enfraquecendo-lhe as

forças, e Juturna se afasta do irmão. Turno lança um rochedo contra Enéias mas não

Page 43: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

42

consegue atingi-lo. Enéias o fere na coxa com a lança, e em seguida o mata, enfiando a

espada no seu peito.

Para o cumprimento de sua missão, Enéias é guiado por Apolo. Apolo é, entre

outros atributos, o deus oracular, que revela em seus oráculos as decisões infalíveis de

Júpiter aos homens.37

Seu epíteto Lóxias ( ), oblíquo, diz respeito exatamente ao

caráter ambíguo das suas profecias. Estas são transmitidas por intermédio das suas

sacerdotisas, entre as quais, a mais importante é a Sibila de Cumas, Deífobe, guia de

Enéias na descida ao reino de Plutão. A ambigüidade e a obscuridade das profecias

caracterizam a impossibilidade de o homem transpor o limite estabelecido pelos deuses

diante de uma ordem cósmica, em que não lhe é dado ultrapassar a sua condição

humana, perecível e mortal em relação à onipotência, eterna juventude e imortalidade

das divindades. Entretanto, dentro desta ordem cósmica existe uma força maior que

submete tanto os homens quanto os deuses, o Destino, cujo cumprimento é inexorável.

Cabe a Júpiter, deus ordenador do universo, impor esse cumprimento.

Os oráculos de Apolo estão presentes na narrativa, servindo de fio condutor às

ações de Enéias, haja vista o destino deste como empreendedor da soberania da futura

Roma. No que concerne à história de Roma38

, o interesse pelas sibilas ao longo do

Mediterrâneo, remonta a Tarquinius Priscus, quinto rei de Roma, século VI a.C.,

segundo a tradição. Ele, ao construir o templo de Júpiter no Capitólio, trouxe três livros

da Sibila de Cumas, e os colocou sob os cuidados de um colegiado de quinze

sacerdotes, os “quindecimviri”. Em um incêndio ocorrido em 83 a.C., os livros sibilinos

foram queimados, mas o senado providenciou uma expedição a fim de recolher outros

existentes em vários lugares, e desse modo formar uma nova coleção. Depois Augusto

remove esses livros para o templo do monte Palatino, construído durante o seu governo

para o deus Apolo. Sempre, em época de crise, os livros eram consultados por ordem do

senado. Na Eneida, o poeta retoma esse acontecimento histórico, representando-o na

fala de Enéias no momento em que este consulta o oráculo de Apolo sobre o destino dos

troianos, através da Sibila de Cumas:

37

Ver Primeiro Hino a Apolo, versos 131-32 (HOMÈRE, 1936). 38

HORNBLOWER,Simon e SPAWFORTH, Antony (orgs.): The Oxford classical dictionary. New York:

Oxford University Press, 2003, p. 1400-1.

Page 44: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

43

«Phoebe, gravis Troiae semper miserate labores,

Dardana qui Paridis derexti tela manusque

corpus in Aeacidae, magnas obeuntia terras

tot maria intravi duce te penitusque repostas

Massylum gentis praetentaque Syrtibus arva:

iam tandem Italiae fugientis prendimus oras.

hac Troiana tenus fuerit fortuna secuta;

vos quoque Pergameae iam fas est parcere genti,

dique deaeque omnes, quibus obstitit Ilium et ingens

gloria Dardaniae. tuque, o sanctissima vates,

praescia venturi, da (non indebita posco

regna meis fatis) Latio considere Teucros

errantisque deos agitataque numina Troiae.

tum Phoebo et Triviae solido de marmore templum

instituam festosque dies de nomine Phoebi.

te quoque magna manent regnis penetralia nostris:

hic ego namque tuas sortis arcanaque fata

dicta meae genti ponam, lectosque sacrabo,

alma, viros. foliis tantum ne carmina manda,

ne turbata volent rapidis ludibria ventis;

ipsa canas oro.»39

“Febo, sempre compadecido dos graves trabalhos de Tróia,

que, de Páris, dirigiste a mão e a flecha dardânia ao

corpo do Eácida, por ti guiado, penetrei em tantos mares

que rodeiam grandes terras, e até o fundo das terras afastadas

da gente do Massilo; e nos campos circundados pelas Sirtes:

agora, finalmente, chegamos às margens da fugitiva Itália.

39

VERGILIUS. op.cit., Liber VI, v. 54-76.

Page 45: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

44

Até aqui, fora seguido pela fortuna Troiana.

É justo, agora, vós também, todos os deuses e deusas,

aos quais resistiu Ílio e a ingente glória da Dardânia,

pouparem a gente de Pérgamo, E tu, oh! santíssima profetisa,

presciente do futuro, concede (não peço um reino indevido

aos meus destinos) aos teucros estabelecerem-se no Lácio,

aos deuses errantes e aos numes agitados de Tróia.

Então, instituirei a Febo e à Trívia um templo de sólido mármore

e dias festivos com o nome de Febo.

Em nosso reino, um grande santuário espera-te, também.

Lá, certamente, eu colocarei teus oráculos e fados secretos

ditos à minha gente, e te consagrarei, ó graciosa,

varões escolhidos. Tão somente, não confies as predições às folhas,

para que não voem revoltas, ludíbrio dos ventos rápidos.

Peço que cantes tu mesma.”

Como se pode depreender, a figura de Apolo é essencial para consolidar a grandeza

do império romano, sobretudo no governo de Augusto. O fato de ser um deus grego, e

de ter sido transportado para Roma, fundamenta a função de Apolo como guia de

Enéias na sua empreitada rumo à edificação da soberania do novo reino. Desse modo, é

de fundamental importância pontuar os episódios no decorrer da narrativa referentes ao

deus, que servem de fio condutor para as atitudes e decisões do herói, haja vista ser

através dos seus oráculos que Enéias sabe do próprio destino.40

Estando em Cartago, o herói narra as suas vicissitudes desde a destruição de Tróia

até a sua chegada ao norte da África. Na noite do incêndio da cidade, Enéias, que no

momento estava dormindo em seu palácio, vê em sonho a alma de Heitor. Esse lhe

recomenda-lhe os Penates, deuses protetores da cidade, a fim de que ele os salve do

inimigo grego e leve-os consigo para a edificação de uma nova cidade. Nesse episódio,

é revelada pela primeira vez a missão de Enéias:

40

VERGILIUS. op. cit., Liberes II, III, VI, VII.

Page 46: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

45

“Heu fuge, nate dea, teque his” ait “eripe flammis.

Hostis habet muros ; ruit alto a culmine Troia.

Sat patriae Priamoque datum : si Pergama dextra

defendi possent, etiam hac defensa fuissent.

Sacra suosque tibi commendat Troia penatis;

hos cape fatorum comites, his moenia quaere

magna, pererrato statues quae denique ponto.”41

“Ah, foge, filho da deusa”, diz, “ e te livra destas chamas.

O inimigo possui os muros; Tróia rui do alto cume.

Assaz à pátria e a Príamo se tem dado: se Pérgamo, com a destra,

pudesse defender, ainda agora, com ela, teria sido defendida.

Tróia recomenda a ti seus Penates e os objetos sagrados.

Aceita-os, companheiros dos teus fados; procura para eles

grandes muralhas, as quais, depois de atravessado o mar, erijas.”

O ablativo pererrato, no último verso, proveniente do verbo pererrare (= errar

através, percorrer em todas as direções), já indica o destino errático de Enéias, que

deverá conduzir consigo os deuses Penates, pois não cabe mais a eles proteger a cidade.

O destino do herói será reiterado pelos oráculos de Apolo no decurso da narração da sua

errância por terra e mar.42

Episódio reiterativo da intervenção de Apolo nos destinos de Roma, é o prodígio

ocorrido com Iulo, filho de Enéias. A cidade está incendiando, e Anquises reluta em não

abandoná-la, desejando perecer com ela. Enéias então decide ficar e lutar contra os

gregos. É quando a cabeleira do menino é ateada por fogo abrasante, sem que a queime

por se tratar de uma chama sagrada, sanctos ignis:

41

VERGILIUS. op. cit., Liber II, v. 289-295. 42

VERGILIUS. op. cit., Liber III

Page 47: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

46

Talia uociferans gemitu tectum omne replebat,

cum subitum dictuque oritur mirabile monstrum.

Namque manus inter maestorumque ora parentum

ecce levis summo de uertice uisus Iuli

fundere lumen apex, tactuque innoxia mollis

lambere flamma comas et circum tempora pasci.

Nos pauidi trepidare metu crinemque flagrantem

excutere et sanctos restinguere fontibus ignis.43

Com tais palavras clamando, ela enchia todo o palácio com gemido,

quando um súbito prodígio se manifesta, admirável de se dizer.

Pois que entre as carícias e os beijos dos infelizes pais,

eis que da cabeça de Iulo, é vista suave flama

inócua ao contato, lamber as comas e derramar luz,

e alimentar-se ao redor das têmporas.

Nós, cheios de temor, começamos a tremer de medo,

e sacudir a cabeleira flagrante,

e extinguir numa fonte os fogos sagrados.

O vocábulo metus (= pavor, medo religioso) denota o temor religioso dos que estão

presentes à cena do prodígio em que Iulo é personagem principal. Anquises, diante de

tal manifestação divina, suplica a Júpiter a confirmação do presságio, se, por sua

piedade, o merecer, de modo que possa seguir com o filho. O deus atende ao ancião,

enviando uma estrela cadente abundante de luz.

Esse episódio liga-se a outro acontecimento na narrativa, que repousa no mesmo

sentimento religioso designado pela palavra metus. Trata-se do momento em que Enéias

chega ao Lácio, e o rei Latino está sacrificando aos deuses do local, ao redor de um

loureiro, árvore consagrada a Apolo:

43

Idem, ibdem, v. 679-686.

Page 48: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

47

Laurus erat tecti medio in penetralibus altis

sacra comam multosque metu seruata per annos,

quam pater inuentam, primas cum conderet arces,

ipse ferebatur Phoebo sacrasse Latinus

Laurentisque ab ea nomen posuisse colonis.44

Havia um loureiro, sagrado quanto à folhagem, preservado

por muitos anos com temor religioso nos recônditos recintos,

no meio do palácio, o qual o próprio pai Latino encontrando,

dizia-se ele mesmo ter consagrado a Febo e, como fundasse as primeiras

fortificações, a partir dele, ter posto o nome aos colonos Laurentes.

Nessa passagem há a explicação da origem do povo latino, os laurentes. Laurus (=

loureiro), árvore consagrada a Apolo, fora encontrada pelo rei Latino, quando ele

construía as primeiras bases da cidade, o Lácio. A partir do nome dessa árvore, passou

então a designar os habitantes da região. Essa referência justifica, dentro da narrativa, o

porquê de Apolo ser o deus destinado a guiar Enéias. O Lácio é a terra consagrada ao

deus. Cabe a ele, portanto, conduzir o herói predestinado a construir os fundamentos da

futura Roma, sendo o seu primeiro fundador.

A consagração do loureiro ao deus tem origem no mito de Apolo e Dafne45

( = loureiro), ninfa por quem Febo se apaixona. Perseguida pelo deus e sem

poder escapar-lhe das investidas, ela pede ao seu pai, o rio Peneu, da Tessália, que a

transforme, e assim ela é metamorfoseada em um loureiro, planta amada por Apolo.

Nesse mesmo núcleo narrativo, contíguo ao episódio acima, há o prodígio de

Lavínia. Trata-se da ocasião exata em que Enéias e sua frota abordam o Lácio. A

princesa está ao lado do pai, queimando os incensos nos altares. Nesse momento, sua

44

VERGILIUS. op. cit., Liber VII, v. 59-63. 45

OVÍDIO. Metamorfoses, I, 452 e s.

Page 49: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

48

cabeleira incendeia, pressagiando o fulgor da sua futura fama como rainha, mas também

anunciando grande guerra ao povo. Enéias, portanto, parte de Tróia e chega ao Lácio

sob o mesmo auspício do fogo sagrado, concernente a Apolo, que, entre outras funções,

é o deus da luz e da cura, o que explica o seu nome Febo, , que significa ao

mesmo tempo, purificador e luminoso.46

Partindo de Antandro, após a destruição de Tróia, Enéias e os remanescentes

troianos se lançam ao mar em busca de novas terras para se estabelecer. Chegam à

Trácia, e lá começam a construir os primeiros muros de uma cidade. Mas são

surpreendidos por um mau presságio. Estão sacrificando aos deuses, quando descobrem

o corpo de Polidoro, filho mais novo de Príamo, assassinado pelo rei Licurgo no

momento em que Tróia fenece. Enéias é exaltado principalmente por ser piedoso.

Possuindo a mesma raiz do verbo piare, cujo significado é expurgar, apagar uma

mácula, o que era feito através dos sacrifícios, dos ritos, a Pietas caracteriza não só o

devoto aos antepassados, mas sobretudo aquele que cumpre os ritos. Desse modo,

Enéias realiza os funerais de Polidoro, o que permite a entrada da alma no mundo dos

mortos, por conta da purificação da mácula do não-sepultamento.

Saídos da Trácia, os teucros seguem rumo a Delos, ilha em que nasceram Apolo e

sua irmã gêmea, Ártemis. Leto,47

filha da primeira geração de deuses, os Titãs, é amada

por Zeus, e desse enlace, engravida das duas crianças. Prestes a dar à luz, Hera a

persegue, proibindo qualquer lugar no qual brilhasse a luz do sol de recebê-la. Contudo,

havia uma ilha, denominada Delos, a brilhante, que nada tinha a temer, pois era estéril e

errante. Ela recebe Leto para que as crianças nasçam. Depois do seu nascimento, Apolo,

em recompensa, torna-a fixa. Nesse lugar, reinava Ânio, sacerdote de Febo. Lá, Enéias

consulta o oráculo, que diz quais as terras que o herói deve buscar. Trata-se da região

dos primeiros antepassados, onde dominarão Enéias e os seus descendentes. Pela

primeira vez o herói ouve acerca do seu destino. Entretanto, por um engano na

interpretação do oráculo, Enéias e os demais rumam em direção a Creta. Lá, são

acometidos por uma peste. Em sonho, os deuses Penates de Tróia, enviados por Apolo,

aparecem a Enéias, indicando-lhe o local certo. Trata-se da Itália, antiga Hespéria, terra

de origem de Dárdano, antepassado troiano:

46

CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris: Klincksieck, 1999 47

HESÍODO. Teogonia. 404 e s.

Page 50: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

49

“Dardanidae duri, quae uos a stirpe parentum

Prima tulit tellus, eadem uos ubere laeto

Accipiet reduces. Antiquam esquirete matrem.

Hic domus Aeneae cunctis dominabitur oris

Et nati natorum et qui nascentur ab illis. »48

Fortes Dardânidas, a terra que primeira sustentou-se

pela estirpe dos antepassados, aquela mesma

vos receberá de volta em solo fértil. Procurai a antiga mãe.

Lá a casa de Enéias dominará toda a margem,

e os filhos dos filhos, e os que nascerão deles.

A importância desse episódio é particularmente significativa para a vinculação dos

troianos, e conseguintemente dos romanos, a Apolo. Serve também para reiterar a

predestinação divina de Roma. A ilha de Delos está ligada ao Lácio através da figura do

deus, pois aquela diz respeito ao local de seu nascimento, enquanto este é designado

terra de Apolo, já referido acima, pela presença do loureiro do qual surgiu o nome dos

laurentes.

Saídos de Creta, rumam à Hésperia. No caminho, param nas Estrófades, ilhas do

mar Egeu, habitadas pelas Harpias, seres horrendos e imundos, com forma híbrida de

mulher e pássaro.49

Celeno, a mais velha delas, com o intuito de atemorizar os troianos,

profere-lhes mau-augúrio em nome de Apolo, dizendo-lhes que passarão uma grande

fome na sua chegada ao Lácio, o que provoca grande pavor nos teucros, levando-os a

oferecer votos e preces aos deuses. Seguem para o Ácio, onde encontram um templo de

Apolo, e lá permanecem por um ano. Depois chegam a Butroto e encontram uma

pequena Pérgamo, edificada por Heleno, irmão de Heitor e sacerdote de Apolo.

48

VERGILIUS. op. cit., Liber III, v. 94-98. 49

HESÍODO. op. cit., v. 265.

Page 51: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

50

Consultado o oráculo, Heleno, inspirado pelo deus, revela a Enéias parte do seu destino.

Ele enfrentará inúmeras vicissitudes antes de chegar à Itália e lá fundar um novo reino.

Passará pelas terras trinácrias, pela ilha de Circe, e pelos lagos dos Infernos, até que

chegue a uma terra onde encontrará uma porca branca estendida no solo, com trinta

filhotes, brancos como a mãe, agrupados em volta das tetas. Lá será o termo da sua

viagem.

Apolo intervirá novamente no episódio da descida de Enéias aos Infernos, em que o

herói, em companhia da Sibila de Cumas, pratica com a alma do seu pai, Anquises, a

fim de que ele lhe desvende o porvir da futura civilização romana, cuja descendência

provém de Enéias.

Page 52: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

51

II. A Tradição Greco-Romana do Mito

1. Catábase: um ritual de passagem

O vocábulo catábase50

( ), composto pela preposição , que

exprime um movimento para baixo, e pelo substantivo passo, seqüência,

proveniente do verbo , que quer dizer, afastar as pernas através do andar,

etimologicamente significa “caminhar no sentido para baixo”, denotando, portanto, uma

descida. Em contraponto, há a formado pela preposição , que exprime

um movimento para cima, e pelo verbo significando, desse modo, uma subida,

caminhar para cima. A , com a conseguinte , está presente na

tradição mítica grega, representando um ritual de passagem51

, que é caracterizado pela

transformação do herói submetido a esse ritual, passando ele por uma separação de um

status anterior, depois por uma fase limiar entre duas posições e em seguida, pela

incorporação a uma nova condição. Dentro desse quadro, encontram-se os mitos de

Héracles52

, Odisseus53

, Orfeu54

, Teseu e Pirítoo55

, todos eles protagonistas de uma

descida aos Infernos, cuja conseqüência foi a transformação desses heróis para uma

nova condição. Procede remeter a cada um desses mitos, haja vista a importância do seu

conhecimento para a análise do Livro VI, dentro da Eneida, concernente a

de Enéias ao mundo subterrâneo.

Héracles, herói pertencente a uma geração anterior à guerra de Tróia, coaduna

inúmeros mitemas, entre eles, os doze trabalhos. Estes estão ligados à figura da deusa

50

LIDDELL, Henry George and SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Oxford University Press:

New York, 1996. 51

GENNEP, Arnold Van. The rites of passage. Translated by Monika B. Vizedon. Routledge Library

Editions: London, 2004. 52

www.perseus.tufts.edu (Apollodorus, Library and Epitomes, 2.5.12) 53

HOMERO. Odyssey. Translated by A. T. Murray. Harvard University Press: London, 2002. (Loeb

Classical Library), Book XI. 54

VIRGIL. Ecogles Georgics Aeneid. 2V. Translated by H. R. Fairclough. Harvard University Press

London, 2001. (Loeb Classical Library), Georgics, Book IV, 453 ss. 55

www.perseus.tufts.edu (Apollodorus, Library and Epitomes, 2.5.12)

Page 53: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

52

Hera, cuja perseguição ao herói ocorre por causa da infidelidade de Zeus, seu esposo e

pai de Héracles. Segue a genealogia do herói para melhor entendimento do mito:

Zeus ~ Dânae

Perseu ~ Andrómeda

Astidamia ~ Alceu Estênelo ~ Nicipe

Zeus ~ Alcmena ~ Anfitrião EURISTEU

HÉRACLES Íficles

Conta o mito que Zeus, aproveitando a ausência de Anfitrião, rei de Tirinte, que

saíra em uma expedição, toma a sua forma e aspecto, a fim de enganar Alcmena. Une-se

então à rainha e engendra Héracles. Anfitrião retorna pela manhã, e faz-se reconhecer

pela esposa, concebendo um filho com ela, Íficles, irmão gêmeo de Héracles, apenas

uma noite mais novo que ele. Antes mesmo de o herói nascer, Hera, enciumada, começa

a persegui-lo. Zeus, inadvertidamente, afirma que a criança que ia nascer da raça de

Perseu, reinaria sobre Argos. No momento em que Alcmena está para dar a luz, Hera

impede que sua filha, Ilítia, deusa dos partos, ajude-a, e favorece Nicipe, que está com

sete meses de gravidez, esperando Euristeu, também descendente de Perseu. Desse

modo, este herda o poder sobre a Argólida56

. Hera continua sua perseguição a Héracles.

Já adulto, ela o enlouquece, fazendo-o matar os filhos que tem com Mégara. O herói

consulta o oráculo de Delfos a fim de saber como expiar o seu crime, e é aconselhado a

submeter-se à deusa. Esta o põe a serviço de Euristeu, que o sujeita a doze trabalhos,

irrealizáveis para um herói de menor valor que Héracles. O décimo segundo trabalho diz

respeito à sua ao Hades. Euristeu exige que ele desça ao reino de Dite e

56

Para a referência da astúcia de Hera, com relação a Zeus, fazendo de Euristeu o rei, quando Zeus

pensava em Hércules, v. Ilíada, XIX, 90-133.

Page 54: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

53

traga o cão que guarda a entrada do mundo subterrâneo, impedindo os vivos de lá

entrarem, e os mortos de lá saírem. Cérbero era um monstro de três cabeças de cão,

cauda formada por uma serpente e, no dorso, inúmeras cabeças de serpente levantadas.

Héracles, acompanhado por Hermes, deus condutor das almas, , desce ao

Hades, mas não antes de ser iniciado nos mistérios de Elêusis. Lá, o deus permite que o

herói conduza o cão, mas sob a condição de não o machucar com suas armas. Héracles

luta com ele só com a força dos seus braços. Quase o sufocando, domina-o. Ao levar

para Euristeu, este tem medo e ordena que o herói o leve de volta. A descrição acima, de

caráter meramente parafrástico, visa comprovar a estrutura ritualística do mito.

Héracles, antes de descer ao Hades, é purificado por Eumolpo, rei da Trácia, pois havia

matado os Centauros. Em seguida, é iniciado nos Mistérios de Elêusis, desse modo,

ficando em condições apropriadas para entrar nos infernos, já que os mistérios

ensinavam precisamente aos fiéis os meios de chegar ao outro mundo com toda a

segurança, após a morte. Não é sabido o que eram os Mistérios, mas é notório que

aqueles iniciados participavam de experiências ritualísticas de modo a transcender a

condição humana e obter uma forma sobrenatural de ser ainda em vida57

. Mas além

disso, Héracles tem a companhia de dois deuses, Atena e Hermes, a fim de enfrentar,

com menor risco, as sombras e os monstros lá existentes, a qual permite, inclusive, a sua

passagem pelo rio Aqueronte na barca de Caronte. Héracles é denotado sobretudo por

sua força física descomunal e por sua coragem sem limites, únicas armas que utiliza

para encarar Hades e sua esposa Perséfone, e para dominar Cérbero. Tal fato mostra a

singularidade da de Héracles, do mesmo modo que ocorre com os demais

heróis que desceram aos infernos. Cada um possui uma peculiaridade que caracteriza a

sua personalidade, e conseqüentemente a sua descida ao mundo dos mortos, o que será

visto respectivamente. Retornar pela segunda vez a terra, depois que devolve Cérbero ao

Hades, enfrentando por duas vezes o caminho que leva ao mundo do esquecimento, dos

silenciosos, confere a Héracles a conquista da imortalidade, haja vista ter encarado a

morte duas vezes. Tal imortalidade será confirmada com a sua divinização por Zeus, ao

morrer envenenado, involuntariamente, por Djanira, sua esposa.

57

MIRCEA, Eliade. Rites and symbols of initiation: the mysteries of birth and rebirth. Translated by

Willard R. Trask. Putnam: Spring Publications, 2005, p. 112.

Page 55: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

54

Odisseu, rei de Ítaca, destaca-se no cenário da guerra de Tróia sobretudo pela sua

inteligência e astúcia. Seu principal epíteto, , muito ardiloso, expressa bem

o atributo que faz do herói uma figura proeminente no combate, mais do que pela sua

força física. Tal característica já está presente no perfil dos seus antepassados. Seu avô

por parte de mãe, Autólico, herdou do pai, o deus Hermes, o dom de roubar sem nunca

ser surpreendido, por isso causou muitos ódios naqueles que foram suas vítimas. Desse

fato surge o nome Odisseu58

. Quando o herói nasce, Autólico, que na ocasião

encontrava-se em Ítaca, escolhe o nome da criança, proveniente do fato de haver,

durante a sua vida, provocado muita malquerença. Odisseu provém do verbo

que significa “odiar, estar irado contra”.

Déion

Hermes ~ Quíone

Céfalo

Autólico ~ Anfítea

Calcomedusa ~ Arcício

Laerte ~ Anticléia

ULISSES

Na Odisséia, Canto XI, Odisseu faz uma uma invocação às almas dos

mortos para saber sobre o futuro em relação à sua à sua volta para casa e para

o seu reino. Ele apenas bordeja a entrada do Hades, não chegando propriamente a entrar

nele. Os Infernos, segundo Homero, ficam nas paragens da cidade dos homens

Cimérios, povo fabuloso, cujo território situa-se nos limites do mundo. Lá, o herói

oferece libações às almas dos mortos e um sacrifício de duas reses de pêlo negro aos

deuses subterrâneos:

58

HOMER. op.cit., Book XIX, v. 399-409.

Page 56: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

55

Page 57: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

56

Lá, Perimedes e Euríloco seguraram as vítimas,

Eu, a pontiaguda espada, saco de junto da coxa.

Um fosso cavei, de um cúbito, aqui e acolá.

Ao redor, nele, libação verti, a todos os mortos,

Primeiramente, de leite e mel misturados, depois, de doce vinho,

e por terceiro, água; sobre ele, branca cevada espalhei.

Muito supliquei às cabeças exangues dos mortos,

tendo ido para Ítaca, uma vaca estéril, a melhor,

irei sacrificar no meu palácio, e uma pira cobrir

com as melhores coisas. À parte, irei consagrar só a Tirésias, toda negra,

uma ovelha, que se distingue entre as nossas crias.

E quando, com votos e preces, supliquei ao coro dos mortos,

e tendo tomado o gado, degolei rumo ao fosso,

e negro sangue escorreu. As almas daqueles

que estão mortos, afluíram do Érebo,

moças e moços solteiros, sofridos anciães, jovens donzelas

que têm o coração incipiente no sofrer,

e muitos heróis abatidos por Ares, que foram perfurados

com lança de bronze, segurando as armas manchadas de sangue.

Muitos, ao redor do fosso, chegavam, de uma parte e de outra

com grito ensurdecedor. O medo deixava-me verde.

Depois os companheiros exortei, tendo ordenado

queimar as reses esfoladas, que jaziam no chão

pelo bronze cruel abatidas, e orar aos deuses,

ao poderoso Hades e à terrível Perséfone;

e eu mesmo tendo puxado a pontiaguda espada

de junto da coxa, sento, não permitia que as exangues

cabeças dos mortos viessem mais perto, antes de ouvir Tirésias.

59

Idem ibidem, Book XI, v. 23-50.

Page 58: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

57

Odisseu, saído de Tróia após sua destruição, defronta-se com inúmeras vicissitudes

a fim de chegar a Ítaca, entre elas está a descida ao Hades. É possível perceber o perfil

ardiloso do herói quando, depois que oferece o sangue sacrificial das reses depositado

no fosso primeiramente a Tirésias, adivinho tebano, com o intuito de questioná-lo sobre

a sua volta, usa-o como isca para atrair as almas daqueles pelos quais se interessa.

Depois que Tirésias discorre sobre os perigos com os quais Odisseu ainda se deparará,

outras almas se aproximam, e, após sorverem do sangue, relatam suas histórias. Entre

elas encontra-se a de Agamêmnon, que o adverte sobre o perigo de se confiar nas

mulheres, remetendo à traição da sua própria esposa, Clitemnestra, que o mata em um

banquete oferecido em comemoração à sua volta da guerra. Tal advertência condiz com

o encontro entre Penélope e o próprio Odisseu, este ainda disfarçado de mendigo. Alter

ego do esposo concernente à astúcia, Penélope, cujo epíteto ( = ao

redor de, + = ser sensato, prudente; ter conhecimento) faz jus a tal

característica, desconstrói sensatamente o discurso do herói, quando este tenta desviar a

atenção de Penélope sobre ele para si própria, insuflando-lhe a vaidade de maneira sutil

e inteligente. Entretanto, a rainha o contesta, dizendo que sua grandeza, tanto da forma

de ser quanto da beleza, foi destruída no dia em que o esposo seguiu com os argivos, e

que muito maior será com o seu regresso para o lar.60

A de Odisseu reitera a sua imortalidade. Já imortalizado pelo canto dos

aedos61

, visto ser sua façanha de herói guerreiro conhecida de todos, ao desprezar a luz

do sol e visitar os mortos nas sombras, ele conquista uma espécie de imortalidade física,

pois já não teme mais a própria morte. Tal conquista tem seu reflexo no momento em

que enfrenta os pretendentes que pilham a sua riqueza e desrespeitam o seu lar.

Disfarçado em mendigo, derrota os inimigos com força proveniente da sua destreza e da

sua coragem. Dado como morto por todos, Odisseu sai do anonimato, da sua aparente

morte e, através da sua habilidade particular com o arco e a flecha, mata,

destemidamente, todos os inimigos.

60

Idem ibidem, Book XIX, v. 124-129. 61

V. Canto VIII da Odisséia, na recepção a Odisseu entre os Feácios, em que Demódoco canta o episódio

do cavalo de Tróia.

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58

Orfeu, filho do deus-rio Eagro e da musa da poesia lírica Calíope, apaixona-se por

Eurídice e se casa com ela. Mas Eurídice é tão bonita que, pouco tempo depois do

casamento, atrai um apicultor chamado Aristeu. Quando ela recusa suas atenções, ele a

persegue. Tentando escapar, ela tropeça em uma serpente que a pica e a mata.

Orfeu fica transtornado de tristeza. Levando a sua lira, vai até o Mundo dos Mortos,

para tentar trazê-la de volta. A canção pungente e emocionada de sua lira convence o

barqueiro Caronte a levá-lo vivo pelo Rio Estige. A canção da lira adormece Cérbero, o

cão de três cabeças que vigia os portões; seu tom carinhoso alivia os tormentos dos

condenados.

Finalmente Orfeu chega ao trono de Hades. O rei dos mortos fica irritado ao ver

que um vivo tinha entrado em seu domínio, mas a agonia na música de Orfeu o comove,

e ele chora lágrimas de ferro. Sua esposa, a deusa Perséfone, implora-lhe que atenda ao

pedido de Orfeu. Assim, Hades acolhe seu desejo. Eurídice poderia voltar com Orfeu ao

mundo dos vivos. Mas com uma única condição: que ele não olhasse para ela até que

ela, outra vez, estivesse à luz do sol.

Orfeu parte pela trilha íngreme que leva para fora do escuro reino da morte,

tocando músicas de alegria e celebração enquanto caminha, para guiar a sombra de

Eurídice de volta à vida. Ele não olha nenhuma vez para trás, até atingir a luz do sol, até

que se vira, para se certificar de que Eurídice o está seguindo.

Por um momento ele a vê, perto da saída do túnel escuro, perto da vida outra vez.

Mas enquanto ele olha, ela se torna de novo um fino fantasma, seu grito final de amor e

pena não mais do que um suspiro na brisa que saía do Mundo dos Mortos. Ele a havia

perdido para sempre. Em total desespero, Orfeu se torna amargo. Recusa-se a olhar para

qualquer outra mulher, não querendo se lembrar da perda de sua amada. Furiosas por

terem sido desprezadas, um grupo de mulheres Trácias, selvagens chamadas Mênades

cai sobre ele, frenéticas, atirando dardos. Os dardos de nada valem contra a música do

lirista, mas elas, abafando sua música com gritos, conseguem atingi-lo e o matam.

Depois, despedaçam seu corpo e jogam sua cabeça cortada no Rio Hebrus, e ela flutua,

ainda cantando, "Eurídice! Eurídice!"

Chorando, as nove musas reúnem seus pedaços e os enterram no Monte Olimpo.

Dizem que, desde então, os rouxinóis das proximidades cantam mais docemente do que

os outros, pois Orfeu, na morte, se uniu a sua amada Eurídice.

Page 60: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

59

Zeus ~ Mnemósine

Eagro ~ Calíope

Orfeu ~ Eurídice

Orfeu, músico por excelência e poeta, tem como salvo-conduto para a entrada no

Hades, o som da sua lira, que é capaz de acalmar as feras e comover até mesmo o deus

terrível dos mortos. O amor por uma mulher é a causa da sua .

Experimentando a morte na figura da pessoa amada, ele mesmo quer conhecê-la, indo

até os infernos. Para resgatar a esposa e salvar a si mesmo do esquecimento da morte,

utiliza o atributo que lhe confere notoriedade no mundo dos vivos, a música. Entretanto,

não confia no próprio talento e, inadvertidamente, quer conferir se a sua amada o segue

de volta à luz. Momentaneamente a perde, e também a si mesmo, para em seguida

conquistar a imortalidade juntamente com Eurídice.

Teseu é o herói por excelência da Ática. Conta o mito que Egeu, seu pai, não

podendo ter filhos de mulheres sucessivas, interroga o oráculo de Delfos. O deus

responde-lhe que “abrisse o odre de vinho antes de chegar à cidade de Atenas”. Não

compreendendo, Egeu se afasta do seu caminho para consultar o rei de Trezénia, Piteu,

um dos filhos de Pélops, o qual compreende logo o sentido do oráculo. Consegue

embriagar Egeu e, durante a noite, deita ao seu lado a filha Etra. Dessa união nasce

Teseu. Outra tradição diz que o pai seria Posídon, que teria se unido a Etra na mesma

noite que Egeu, um dia em que ela teria ido oferecer um sacrifício numa ilha, e o deus a

possuíra à força.

Pirítoo é um herói da Tessália, filho de Zeus e Dia. A sua amizade com Teseu

ocorre de maneira singular. Ao ouvir falar dos feitos deste, decide pô-lo à prova, e rouba

gado dos rebanhos de Teseu. Os dois se vêem um dia frente a frente, e cada um deles é

seduzido pela beleza do outro. Selam então com um juramento a amizade que nascia, e

a partir desse instante, os dois vivem juntos todas as aventuras, entre elas, o combate

dos lápitas contra os centauros, e a descida aos infernos.

Page 61: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

60

Zeus ~ Pluto Zeus ~ Dia

Tântalo ~ Eurianassa

Pirítoo

Pélops ~ Hipodamia Níobe

Piteu

Posídon ~ Etra ~ Egeu

TESEU

A de Teseu e Pirítoo ocorre quando cada um deles jura dar ao outro

uma filha de Zeus, como esposa. Pirítoo, então, ajuda Teseu a raptar Helena, filha de

Zeus e Leda, e em troca, recebe sua ajuda para ir ao Hades raptar Perséfone, filha de

Zeus e Deméter. Conta o mito que os dois conseguiram entrar no mundo dos mortos,

mas não conseguiram sair, ficando prisioneiros. Hércules, ao descer aos infernos,

encontra os dois e consegue libertar Teseu, mas ao tentar resgatar Pirítoo, a terra treme.

O herói percebe que não é da vontade dos deuses libertar Pirítoo, e desiste de salvá-lo.

A entrada de Teseu e Pirítoo no mundo dos mortos é aquiescida por Hades pela

intenção do deus de prendê-los no mundo subterrâneo. Aparentemente bem acolhidos,

foram recebidos com um banquete. Ao se sentar, ficaram presos nos assentos. Teseu foi

libertado, mas Pirítoo permaneceu eternamente sentado na Cadeira do Esquecimento.

Sua passagem pelos infernos lhe trouxe uma imortalidade anônima. Para Teseu, a volta

dos infernos lhe trouxe a derrocada. Regressando a Atenas, encontrou o poder

partilhado entre facções, e passou a ser rei apenas de nome. Foi morto pelo rei Licurgo.

Respaldando-se na tradição grega, Virgílio busca o mito da catábase para compor o

Livro mais importante da sua epopéia, pois confirma o que é prenunciado desde o início

Page 62: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

61

da narrativa por Júpiter,62

e depois pelos oráculos de Apolo, a edificação da futura glória

romana. O Livro VI trata da descida de Enéias aos Infernos, que vem sendo anunciada

no decurso da narrativa. Primeiramente em Butroto, depois de, saídos de Tróia, haverem

os troianos parado na Trácia, em Delos, em Creta, nas ilhas Estrófades e no Ácio,

Heleno, filho de Príamo e sacerdote de Apolo, em transe, vaticina os destinos de Enéias,

e remete à sua visita aos lagos dos Infernos63

. Pela segunda vez há a referência à ida de

Enéias ao mundo dos mortos, agora através da alma de Anquises, que aparece ao filho

quando este se encontra na Sicília. É o momento em que estão sendo realizados os jogos

fúnebres em sua honra, pois morrera, havia um ano. Na modalidade do arco e flecha,

ocorre um prodígio que, só mais tarde, é anunciado pelos adivinhos. Quando Aceste

atira o dardo a fim de atingir a pomba, este incendeia no percurso, e esvanece antes de

atingir o alvo. Algum tempo depois, os navios troianos, que estão ancorados na praia,

são incendiados por Ísis, a mando de Juno. Considerando que o arco e flecha

representam Apolo na sua função de arqueiro, e, do mesmo modo, o fogo simboliza a

sua função de deus da luz, e que a pomba, a ave de Vênus, representa metonimicamente

o povo troiano, é clara a participação do deus no prodígio, na tentativa de alertar os

guerreiros quanto ao incêndio contra as naus. Tal episódio leva Enéias a seguir o

conselho do velho Nauta, de deixar na ilha o contingente excedente pela perda dos

navios, fundando uma cidade para que lá permanecessem. Entretanto, antes de anuir à

proposta do ancião, Enéias vê a sombra de Anquises, que o aconselha a fazê-lo, também

remetendo à necessidade da sua ida à morada das sombras, guiado pela Sibila, a fim de

conhecer a posteridade da sua descendência.64

A de Enéias simboliza a sua morte como homem mortal, perecível,

para que, na sua , seja imortalizado na memória de todos como herói,

semideus, alegoricamente simbolizando a imortalidade do império romano, e por

metonímia, a do próprio Augusto. É nesse episódio que ocorre a “bela morte” de Enéias.

Depois da entrevista com Anquises, que lhe garante o êxito do seu empreendimento, a

edificação do novo reino com a aquiescência dos próprios deuses, já percebida no

momento em que o herói consegue o salvo-conduto para a entrada no reino dos mortos,

62

VIRGIL. op.cit. Book I, v. 257-296. 63

VIRGIL. op. cit., Book III, v. 441-444. 64

VIRGIL. op. cit., Book V, v. 724-739.

Page 63: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

62

a sua consagração e perenidade na das gerações vindouras está perpetuada. Do

mesmo modo, ao adentrar o seio da terra, símbolo de vida e de morte ao mesmo tempo,

Enéias tem o seu estabelecido, seu túmulo, monumento divino representativo da

existência do herói. O enfrentamento dos monstros e dos perigos que perpassam a

travessia pelo reino de Plutão, confirma-lhe a bravura e o desbravamento heróico,

terceiro requisito para se obter uma “bela morte”.

Mircea Eliade65, em suas reflexões, tece um pensamento profundo acerca da

simbologia da catábase ao reino dos mortos:

From one point of view, we may say that these myths and sagas have an

initiatory structure; to descend into Hell alive, confront its monsters and

demons, is to undergo an initiatory ordeal. I may add that similar flesh-and-

blood descend into Hell are characteristic of heroic initiations, whose goal is the

conquest of bodily immortality. Of course, these instances belong to initiatory

mythology, and not to ritual properly speaking; but myth are often more

valuable than rites for our understanding of religious behavior. For it is the

myth which most completely reveals the deep, and often unconscious, desire of

the religious man

A partir de um ponto de vista, nós podemos dizer que estes mitos e sagas têm

uma estrutura iniciatória; descer vivo ao Inferno, confrontar monstros e

demônios, é submeter-se a uma provação iniciatória. Podemos acrescentar que

similares descidas, em “carne e osso”, ao Inferno são características de

iniciações heróicas, cujo objetivo é a conquista da imortalidade física.

Naturalmente, esses exemplos pertencem à mitologia de iniciação, e não ao

ritual propriamente falando; mas mito é freqüentemente mais significativo do

que os ritos para nosso entendimento do comportamento religioso. Por isso, é o

mito aquilo que mais completamente revela o profundo, e freqüentemente

inconsciente, desejo do homem religioso.

O teórico circunscreve o ritual de catábase à categoria dos heróis, apontando uma

ordem em que ocorre uma provação iniciática, e uma conseguinte transformação. É

preciso passar por uma morte, para alcançar a imortalidade, finalidade propulsora do

homem religioso. Enéias atinge o ápice da sua Pietas ao descer aos Infernos, pois atende

ao chamado de Anquises. Tendo passado por muitas provações, a perda da pátria, o

65

ELIADE, Mircea. op. cit., p. 62.

Page 64: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

63

longo exílio e a perda do pai, segue ao encontro do pai no reino de Dite, a fim de

encontrar nova pátria. Assim, formula Milton Marques Júnior:

Mais do que isso [mito fundador], ele é o pai da pátria, conforme se

anuncia ao final do Livro III, fazendo o seguinte itinerário: Enéias perde a

pátria, perde o pai, vai em busca do pai, para fundar a nova pátria, sendo,

portanto, o pai da pátria, que será a cabeça do mundo (MARQUES JÚNIOR,

2006: 44)

Após a sua e a sua chegada ao Lácio, Enéias tem seu status de herói

reconhecido e ratificado, no momento em que recebe da deusa Vênus, sua mãe, as

armas produzidas por Vulcano66

, episódio este respaldado no exemplo grego de

Aquiles67

, considerado o melhor dos guerreiros gregos, que também teve suas armas

forjadas pelo deus ferreiro. A armadura é ícone da excelência guerreira do herói, a

grega e a virtus romana. Dentro do conjunto em que figuram o elmo, as

cnêmides, a couraça, a lança e a espada, o escudo tem proeminência, pois carrega em si

a representação do universo em que o herói está inserido. O escudo é instrumento ao

mesmo tempo, de proteção e ataque, no campo de batalha. O herói, ao colocá-lo contra

o inimigo, põe diante de si seu próprio mundo, servindo-lhe este de anteparo e de

ofensiva. A descrição das imagens representadas no escudo de Enéias diz respeito à

história de Roma,68

desde Rômulo e Remo, alimentados por uma loba, até César

Augusto, portanto, todo um futuro desconhecido do herói. Carregar tal representação,

moldada exclusivamente para ele, significa ser o empreendedor da glória futura dos seus

descendentes.

A entrada de Enéias nos Infernos é aquiescida pelos deuses. O herói tem a proteção

de Apolo através da Sibila de Cumas, sacerdotisa de Apolo, que atua como guia no seu

itinerário. Ela estipula os requisitos necessários para que o herói possa realizar tal

66

VIRGIL. op.cit., Book VIII, v. 608-731. 67

HOMER. Iliad. Translated by A. T. Murray. Harvard University Press: London, 2003. (Loeb Classical

Library), 478-608. 68

VIRGIL. op.cit., Book VIII, v. 626-728.

Page 65: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

64

empreendimento com segurança, a saber, o ramo de ouro, a purificação da frota pela

morte de um dos seus companheiros, e um sacrifício aos deuses subterrâneos.

2. Catábase de Enéias

A de Enéias requer três condições para que se realize: I) a anuência

das divindades; II) a purificação, necessária para o contato com o sagrado (sacer) ; III) a

oferenda aos deuses através do sacrifício animal.

A primeira diz respeito ao salvo-conduto que lhe garanta a passagem livre pelas

regiões inferiores, que consiste em um ramo, cujo aspecto se assemelha a um visco,

planta parasitária que cresce em torno do tronco de árvores, destacando-se sobretudo

pela sua resistência às intempéries climáticas e por sua coloração ativa:

Quale solet silvis brumali frigore viscum

Fronde virere nova, quod non sua seminat arbos,

Et croceo fetu teretis circumdare truncos,

Talis erat species auri frondentis opaca

Ilice, sic leni crepitabat brattea vento.69

Qual é comum nos bosques, com o frio sosticial,

Verdejar com nova folhagem o visco, que a árvore semeia, não sua,

e com cróceo ramo circundar os troncos.

Tal era o aspecto do frondoso ouro na sombria azinheira.

Assim a lâmina crepitava, com a leve brisa.

A explicação da escolha de Virgílio, segundo a crítica70

, teria raiz em uma crença

popular que atribuía ao visco o poder de neutralizar os perigos advindos da água e do

fogo, e mais tarde, teria também o poder de desmanchar magias e de expulsar demônios.

69

VIRGIL. op. cit. Book VI, v. 205-209 70

VOLPIS, Leone. Virgilio Eneide Libro sesto. Milano: Carlos Signorelli, 1953.

Page 66: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

65

Outra razão, coadunada a esta, seria o fato de que o visco brota mesmo sem tocar a

terra, crescendo durante o inverno, quando o restante da natureza está imersa no sono da

morte. Tal característica faria dessa planta símbolo de vida para os homens. Suas folhas

sempre verdes davam ao homem a segura esperança de que a natureza sempre voltaria a

florescer e frutificar. No pensamento mítico, morte e vida formam uma única unidade.

Prosérpina, deusa da vegetação e do mundo subterrâneo, reúne em si a força da vida e

da morte. Metaforicamente, ela seria o próprio visco, pois, apesar da condição de deusa

dos mortos, ela também contém o atributo da germinação. O ramo que serve de

salvaguarda a Enéias, é caracterizado como sendo de ouro, fazendo menção à coloração

açafroada das suas bagas, as quais possuem propriedades medicinais. A cor concerne

também à construção poética, tendo em vista a localização da planta no meio do bosque

sombrio. É importante perceber que, mesmo reluzente, o ramo de ouro só pode ser

visto, e sobretudo colhido, com a aquiescência dos deuses. Não é à toa que Enéias o

encontra com o concurso de Vênus, sua mãe. Esta lhe envia duas pombas, suas aves,

para guiar o filho. Além disso, a facilidade com que o ramo se desprende no momento

em que o herói o colhe, denota tal anuência divina, pois, caso contrário, nem mesmo o

ferro seria capaz de removê-lo:

Talibus orabat dictis arasque tenebat,

cum sic orsa loqui vates: «sate sanguine divum,

Tros Anchisiade, facilis descensus Averno:

noctes atque dies patet atri ianua Ditis;

sed revocare gradum superasque evadere ad auras,

hoc opus, hic labor est. pauci, quos aequus amavit

Iuppiter aut ardens evexit ad aethera virtus,

dis geniti potuere. tenent media omnia silvae,

Cocytusque sinu labens circumvenit atro.

quod si tantus amor menti, si tanta cupido est

bis Stygios innare lacus, bis nigra videre

Tartara, et insano iuvat indulgere labori,

accipe quae peragenda prius. latet arbore opaca

Page 67: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

66

aureus et foliis et lento vimine ramus,

Iunoni infernae dictus sacer; hunc tegit omnis

lucus et obscuris claudunt convallibus umbrae.

sed non ante datur telluris operta subire

auricomos quam quis decerpserit arbore fetus.

hoc sibi pulchra suum ferri Proserpina munus

instituit. primo avulso non deficit alter

aureus, et simili frondescit virga metallo.

ergo alte vestiga oculis et rite repertum

carpe manu; namque ipse volens facilisque sequetur,

si te fata vocant; aliter non viribus ullis

vincere nec duro poteris convellere ferro.

praeterea iacet exanimum tibi corpus amici

(heu nescis) totamque incestat funere classem,

dum consulta petis nostroque in limine pendes.

sedibus hunc refer ante suis et conde sepulcro.

duc nigras pecudes; ea prima piacula sunto.

sic demum lucos Stygis et regna invia vivis

aspicies.» dixit, pressoque obmutuit ore. 71

Enéias, com tais palavras, orava e ocupava o altar,

quando assim começou a falar a sacerdotisa: “Troiano,

gerado de sangue divino, filho de Anquises, fácil é a descida ao Averno:

noite e dia a porta do átrio de Dite está aberta,

mas retornar a marcha e subir rumo às brisas do alto,

este é o trabalho, esta a dificuldade. Poucos, descendentes dos deuses,

aos quais Júpiter, amou, ou a ardorosa coragem transportou ao éter,

puderam. Florestas ocupam todo o centro,

e o Cocito corrente circunda-o com negra sinuosidade.

Porque tua mente tem tanta ânsia e tanto desejo de,

por duas vezes, navegar o lago do Estige e ver o negro Tártaro;

71

VERGILIUS. op.cit., Liber VI, 124-170.

Page 68: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

67

e agrada-te abandonar-se a um insano labor,

escuta o que primeiro deve ser realizado. De folhas e haste flexível,

em árvore opaca, um ramo de ouro permanece escondido,

consagrado a Juno infernal. Todo um bosque o oculta,

e as sombras o encerram em vale sombrio.

Mas não é dado a alguém penetrar o recesso da terra,

antes que tenha colhido o ramo de ouro da árvore.

Esta dádiva para si a bela Prosérpina ordena trazer.

Tendo arrancado o primeiro, outro de ouro

não falta, e de símil metal um ramo floresce.

Portanto, procura-o sutilmente com os olhos,

e colhe a descoberta, segundo os ritos, com a mão.

De fato, ele mesmo, propício, cede facilmente,

se os fados te chamam. De outra maneira, com força alguma

poderás vencer, nem arrancar com duro ferro.

Além disso, o corpo de um amigo teu jaz exânime

(Ai, tu que desconheces!), e mancha todo o exército com o

cadáver, enquanto pedes oráculos e pendes em nosso limiar.

Antes, entrega-o à sua morada e encerra-o no sepulcro.

Conduze negras reses, sejam estas as primeiras expiações.

Apenas assim, avistarás os bosques sagrados do Estige

e o reino inacessível aos vivos.” Disse e,

premendo a boca, calou-se.

O trecho acima descreve a entrevista entre Enéias e a Sibila, especificamente a

resposta dada ao herói, quando este lhe pede para ver Anquises, visto ser ali a entrada

para o mundo dos mortos. Ela, então, discorre sobre o que é necessário para a realização

do seu pedido.

Mesmo tendo a ajuda divina na busca do ramo de ouro, Enéias precisa agir com

acuidade ao procurá-lo. No verso 145, a sacerdotisa o adverte quanto a isso. Entretanto,

faz-se necessário ir um pouco além em relação ao sentido dessa advertência, a fim de se

Page 69: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

68

ter uma compreensão mais profunda na interpretação do texto. A palavra oculis (= olho,

visão), em outra acepção possível, denota a visão com os olhos da mente, o que remete

ao verbo médio grego (= ver em espírito ou com o olho da mente).

Portanto, é preciso que Enéias busque o ramo de ouro, compenetrado em si mesmo, em

seu espírito piedoso. Isso lhe facultará o encontro com seu pai, haja vista ser este

sentimento de devoção e de respeito aos antepassados, o que impulsiona o herói a

enfrentar tamanho perigo.

Depois que sabe da morte de um dos companheiros, Enéias segue rumo ao

acampamento. Lá chegando, fica ciente que se trata de Miseno. Companheiro de Heitor,

junta-se a Enéias, depois que aquele morre pelas mãos de Aquiles. Era exímio

trombeteiro, mas comete um desatino ao desafiar Tritão, divindade marinha tocador de

búzio, dizendo-se mais habilidoso do que qualquer imortal. Para castigá-lo, o deus

surpreende-o com uma vaga, e o afoga. É a ele que a Sibila se refere como a causa de

contaminação para a frota. Por pertencer ao culto sagrado dos Penates troianos, o

descomedimento ( ) que comete contra Tritão atinge a todos. A hybris diz respeito

a um excesso cometido por um mortal, a qual sempre acarreta uma punição. A

ultrapassagem do , da medida, do limite a que os homens devem se submeter,

conscientes da sua inferioridade em relação aos deuses, provoca o , a mancha

que atinge aqueles vinculados por um mesmo laço religioso, por deuses em comum. É

necessária a purificação dessa contaminação através de rituais que expiem tal

procedimento.

A morte de um herói demanda que seja sepultado pelos companheiros. Caso não

ocorram os ritos fúnebres e o devido sepultamento, significa incorrer em ato de

impiedade, acarretando malefícios que contaminarão todos aqueles que estiverem

ligados pelos mesmos laços religiosos. Desse modo, Miseno é sepultado logo que

Enéias, retornando da entrevista com a Siblila, e percebe o companheiro morto:

72

GLARE. op.cit., p. 1238.

Page 70: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

69

Nec minus interea Misenum in litore Teucri

flebant et cineri ingrato suprema ferebant.

principio pinguem taedis et robore secto

ingentem struxere pyram, cui frondibus atris

intexunt latera et feralis ante cupressos

constituunt, decorantque super fulgentibus armis.

pars calidos latices et aëna undantia flammis

expediunt, corpusque lavant frigentis et unguunt.

fit gemitus. tum membra toro defleta reponunt

purpureasque super vestis, velamina nota,

coniciunt. pars ingenti subiere feretro,

triste ministerium, et subiectam more parentum

aversi tenuere facem. congesta cremantur

turea dona, dapes, fuso crateres olivo.

postquam conlapsi cineres et flamma quievit,

reliquias vino et bibulam lavere favillam,

ossaque lecta cado texit Corynaeus aëno.

idem ter socios pura circumtulit unda

spargens rore levi et ramo felicis olivae,

lustravitque viros dixitque novissima verba.

at pius Aeneas ingenti mole sepulcrum

imponit suaque arma viro remumque tubamque

monte sub aërio, qui nunc Misenus ab illo

dicitur aeternumque tenet per saecula nomen.73

No meio tempo, os Teucros, na praia, choravam Miseno

e prestavam as últimas honras à cinza ingrata.

A princípio, erigiram uma enorme pira, abundante em carvalho seco

e madeira resinosa, cujas laterais cobrem com folhagem escura.

Erguem, na frente, ciprestes fúnebres

73

VERGILIUS. op.cit., Liber VI, 212-235.

Page 71: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

70

e as adornam, no cume, com as armas fulgentes.

Parte prepara a água quente e os vasos de bronze que borbulham sobre as

chamas. Lavam e untam o corpo frio.

O pranto se faz. Então, põem o corpo sobre o leito fúnebre

e lançam em cima, as vestes púrpuras, traje familiar.

Parte levantou o pesado féretro, triste mister,

e, segundo o costume dos antepassados, voltando as costas, pegaram o

facho submetendo-o à pira. Todo o amontoado queima,

as oferendas de incenso, a carne dos sacrifícios, as crateras com o óleo

derramando. Depois que as cinzas caíram e a chama cessou,

lavaram com vinho os restos e a cinza sedenta.

Corineu, recolhendo os ossos, encerra-os em uma urna de bronze.

Três vezes passou água lustral em torno dos sócios,

aspergindo-os em leve orvalho, com um ramo de fecunda oliveira.

Purificou-os e disse as últimas palavras.

E o piedoso Enéias constrói um enorme túmulo para o companheiro

e põe as suas armas, o remo e a trombeta, ao pé de um alto monte,

que agora, por ele, é chamado Miseno, e que manterá,

através dos séculos, o eterno nome.

O funeral consiste em um ritual composto por etapas diversas. No Canto XXIII da

Ilíada,74

acontece o funeral de Pátrocles, morto por Heitor quando enfrentava as hostes

troianas vestindo as armas de Aquiles. Seu funeral tem a seguinte seqüência: construção

da pira com carvalho; deposição do corpo sobre a pira; sacrifício de ovelhas e de bois,

espalhando-se a gordura sobre o cadáver e dispondo a carne ao seu redor;

posicionamento de duas ânforas ao lado do leito, uma com óleo, outra com mel;

sacrifício de cães e de cavalos atirados à chama da pira; sacrifício de doze mancebos

troianos, mortos com o bronze e em seguida lançados à chama; lavagem dos ossos

depois de queimado o corpo para serem depositados em uma urna de ouro; construção

do túmulo para guardar os ossos; e realização dos jogos em homenagem ao morto.

74

HOMER. op. cit., , 117-897.

Page 72: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

71

Comparando o funeral de Pátrocles com o de Miseno, é possível perceber poucas

diferenças entre o rito funerário grego e o latino. Com relação ao ritual latino, a

diferença consiste apenas no ato de virar o rosto no momento de atear fogo ao corpo,

apontado no verso123. Este costume dos antepassados repousava na crença de que, no

instante em que o corpo era submetido às chamas, a alma do morto se retirava, e para

não presenciar esse acontecimento, virava-se o rosto.

Após a realização do funeral, e já tendo encontrado o ramo de ouro, Enéias e a

Sibila seguem rumo ao Averno, lago que fica na entrada da caverna que leva ao mundo

subterrâneo, cujo odor pútrido impedia os pássaros de voarem sobre ele75

. Em lá

chegando, oferecem o sacrifício aos deuses infernais, a fim de abrandar-lhes a ira:

quattuor hic primum nigrantis terga iuvencos

constituit frontique invergit vina sacerdos,

et summas carpens media inter cornua saetas

ignibus imponit sacris, libamina prima,

voce vocans Hecaten caeloque Ereboque potentem.

supponunt alii cultros tepidumque cruorem

succipiunt pateris. ipse atri velleris agnam

Aeneas matri Eumenidum magnaeque sorori

ense ferit, sterilemque tibi, Proserpina, vaccam;

tum Stygio regi nocturnas incohat aras

et solida imponit taurorum viscera flammis,

pingue super oleum fundens ardentibus extis.76

Aqui, primeiro, quatro novilhos de pêlo negro a

sacerdotisa escolheu e verteu-lhes vinho na fronte,

e tirando os sumos pêlos entre os cornos,

deposita-os no sagrado fogo, primeiras oferendas,

invocando em alta voz Hécate, poderosa no céu e no Érebo.

75

Daí o significado do nome proposto pelo próprio Virgílio. Averno seria proveniente do grego ,

significando sem pássaro (VI, 236-242). 76

VERGILIUS. op. cit., 243-254.

Page 73: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

72

Outros cravam as facas por baixo e recolhem

o tépido sangue em páteras. O próprio Enéias fere com a espada

uma ovelha de lã negra para a mãe das Eumênides, a Noite

e para a sua grande irmã, a Terra, e para ti, Prosérpina, uma vaca estéril.

Depois ergue altares noturnos ao rei do Estige, Plutão

e põe sobre o fogo o corpo inteiro dos bois,

vertendo óleo pingue sobre as vísceras ardentes.

O sacrifício feito às divindades pertencentes aos Infernos, difere daquele oferecido

aos deuses superiores,77

os quais recebem a oferenda de animais de pêlo branco,

ocorrendo o sacrifício, , sobre um altar, , durante a luz do dia. Consiste

em uma oferenda aos deuses e o mesmo tempo, um repasto de festa para os homens.

Quanto ao sacrifício da vítima, a cabeça do animal é levantada, e seu pescoço cortado

de modo que o sangue, a princípio, esguiche para o alto, e depois seja recolhido em um

recipiente. O animal é aberto, e suas vísceras extraídas, para que sejam consultadas.

Caso os deuses sejam propícios, a carne é logo devorada, depois de retalhada e assada.

Os ossos cobertos com a gordura, são queimados para que a fumaça suba em direção

aos deuses, seu alimento78

.

Já o sacrifício feito às divindades subterrâneas, demanda que a vítima tenha pêlo

negro e seja completamente carbonizada – holocausto79

, sendo vedado ao homem

consumir sua carne. Deve ser realizado durante a noite, e em lugar do altar, cava-se um

fosso, para que o sangue, após o corte no pescoço do animal, que tem a cabeça voltada

para baixo, escorra para dentro da terra.

Tanto o sacrifício feito por Odisseu80

, quanto o realizado por Enéias segue os

requisitos exigidos para o cumprimento do ritual de sacrifício aos deuses infernais, a

saber, libação de vinho; imolação de vítimas com pêlo negro; degola do animal,

77

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia antiga. Trad. Joana Angélica D‟Avila Melo. São

Paulo: Martins Fontes, 2006. 78

V. Ilíada, Canto I, v. 37-42, na prece de Crises a Apolo, e v. 62-67, na fala de Aquiles, sugerindo a

consulta a um adivinho, para saber o motivo de Apolo ter enviado ao acampamento a peste que dizimava

o exército grego. 79

Queima por inteiro, no grego. 80

HOMER. op.cit. , 23-50.

Page 74: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

73

direcionado para baixo de modo que o sangue escorra rumo ao fosso; combustão total

do animal e súplica às divindades infernais.

Enéais oferece o sacrifício a Hécate, deusa das encruzilhadas; às Eumênides,

comumente conhecidas por Fúrias, entidades vingadoras do crime parental; a

Prosérpina, identificada como Juno infernal, pois é a deusa soberana dessa região, assim

como Juno é soberana nas regiões superiores; e a Plutão, deus soberano dos Infernos.

Em seguida, queima o animal esfolado em uma fogueira [Eneida, VI, v.52, aras

nocturnas ( )] erigida a Estige,81

rio dos Infernos. Estige é a filha mais velho de

Oceano e Tétis. Durante a Titanomaquia, ela socorre Zeus, contribuindo para a sua

vitória. O deus a recompensa, tornando-o abonador dos juramentos solenes pronunciado

pelos deuses. Caso algum deles perjurasse, seria condenado a passar um ano inteiro em

estado cataléptico, sem beber do néctar, nem comer da ambrosia. Depois, por mais nove

anos, ficaria sem participar dos banquetes e festas do Olimpo, tal era o seu poder.

81

Ver Hesíodo, Teogonia, 383-403.

Page 75: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

74

III. Análise do mito

1. As figuras míticas

As figuras míticas perpassam toda a Eneida, entretanto, no Livro VI, sua presença é

abundante, dado o perfil mítico, ritualístico e religioso da narrativa.

Antes de tratar das figuras míticas presentes no texto eleito para análise, façamos

uma contextualização, remetendo aos principais núcleos narrativos que compõem o

Livro VI. Chegando a Cumas,82

depois que parte de Drépano, onde realiza as honras

fúnebres ao pai, Anquises, Enéias alcança o antro da Sibila, sacerdotisa de Apolo. Lá,

ele admira as imagens gravadas nas paredes do templo: a terra de Gnosso, e a história

do Minotauro. Acates, companheiro de Enéias, chega acompanhado da Sibila, que

aconselha se faça uma sacrifício de sete novilhos de um rebanho indomado e outras

tantas ovelhas escolhidas. Depois de concluído os trabalhos, a sacerdotisa os leva para o

interior do templo. Ela é tomada pelo deus, que é questionado por Enéias sobre a terra

que lhe está destinada. Apolo prevê como será a chegada do herói ao Lácio. Em

seguida, ele pede a Sibila, já livre da posse de Febo, que o leve ao encontro de Anquises

nos Infernos, pois a sua alma o concita a ir vê-lo. Enéias faz o pedido apontando para

aqueles que também realizaram a , Orfeu, Pólux, Teseu, Héracles, pois,

assim como esses, ele também é descendente de Júpiter.

Eis a resposta da Sibila a Enéias:

“Sate sanguine divum,

Tros Anchisiade, facilis descensus Averno:

Noctes atque dies patet atri ianua Ditis ;

Sed revocare gradum superasque evadere ad auras,

Hoc opus, hic labor est….”83

82

Colônia de Calchis, cidade da Eubéia. 83

VERGILIUS. op. cit., Liber VI, 125-129

Page 76: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

75

“Sangue gerado dos deuses,

Troiano filho de Anquises, fácil é a descida para o Averno:

noites e dias a porta do negro Dite está aberta;

porém, retornar o passo e chegar aos ares superiores,

este é o trabalho, este é o labor....”

Em seguida, ela lhe fala sobre os três requisitos necessários para que lhe seja

permitida a entrada no reino dos mortos, a saber, o ramo de ouro, dádiva para

Prosérpina; os funerais de Miseno; e um sacrifício, oferenda aos deuses dos Infernos.

Depois de cumpridas as tarefas e oferecido o sacrifício aos deuses infernais, já no

alvorecer do dia, Enéias e a Sibila se preparam para entrar no reino das sombras.

Ocorre, então, a invocação às sombras silenciosas (umbrae silentes); ao Caos (Chaos),84

Vazio primordial, anterior à criação, no tempo em que a ordem ainda não tinha sido

imposta aos elementos do mundo, mas, no poema, remete ao espaço tenebroso do

mundo subterrâneo; e a Flegetonte (Phlegethon), rio dos Infernos que, juntamente com

o Cocito, deságua no Aqueronte. O narrador os invoca, pois precisa da sua inspiração

para conseguir descrever as cenas que surgem à frente, haja vista o misto de admiração,

de temor e de pavor diante das maravilhas que se apresentam:

Di, quibus imperium est animarum, umbraeque silentes

et Chaos et Phlegethon, loca nocte tacentia late,

sit mihi fas audita loqui, sit numine vestro

pandere res alta terra et caligine mersas.

Ibant obscuri sola sub nocte per umbram

perque domos Ditis vacuas et inania regna:

quale per incertam lunam sub luce maligna

est iter in silvis, ubi caelum condidit umbra

Iuppiter, et rebus nox abstulit atra colorem.

vestibulum ante ipsum primisque in faucibus Orci

84

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2003.

Page 77: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

76

Luctus et ultrices posuere cubilia Curae,

pallentesque habitant Morbi tristisque Senectus,

et Metus et malesuada Fames ac turpis Egestas,

terribiles visu formae, Letumque Labosque;

tum consanguineus Leti Sopor et mala mentis

Gaudia, mortiferumque adverso in limine Bellum,

ferreique Eumenidum thalami et Discordia demens

vipereum crinem vittis innexa cruentis.

in medio ramos annosaque bracchia pandit

ulmus opaca, ingens, quam sedem Somnia vulgo

vana tenere ferunt, foliisque sub omnibus haerent.

multaque praeterea variarum monstra ferarum,

Centauri in foribus stabulant Scyllaeque biformes

et centumgeminus Briareus ac belua Lernae

horrendum stridens, flammisque armata Chimaera,

Gorgones Harpyiaeque et forma tricorporis umbrae.85

Deuses, que tendes o império das almas, sombras silentes,

Caos e Flegeton, regiões que silenciam amplamente à noite,

seja permitido a mim, falar o que ouvi, e, com vosso consentimento,

revelar as coisas imersas na escuridão da terra profunda.

Obscuros, iam sob a solitária noite, através da sombra

e através das vagas moradias, vazio reino de Dite.

Tal é, através da incerta lua, sob luz escassa,

o caminho nos bosques, quando Júpiter mergulhou o céu

na sombra e a atra noite arrebatou a cor às coisas.

No mesmo vestíbulo, diante da entrada do Orco,

o Luto e os Tormentos vingadores puseram o leito.

As pálidas Doenças e a triste Velhice lá habitam,

o Medo e a Fome, indutora ao mal, e a torpe Pobreza,

85

VERGILIUS. op.cit., 264-289.

Page 78: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

77

formas terríveis à vista, e a Morte e o Fadiga;

depois o Sono, irmão da Morte, e as Alegrias perversoras da mente,

e no limiar oposto, a mortífera Guerra,

e os tálamos férreos das Eumênides, e a Discórdia insensata,

a cabeleira de víbora, atada com fitas sangrentas.

No meio, um olmeiro opaco, ingente, estende seus ramos

e braços anosos, o assento que, comumente se diz,

os Sonhos vãos ocupam, e se fixam sob todas as folhas.

Além disso, muitas figuras monstruosas de várias feras,

os Centauros e Cilas biformes que habitam a entrada,

E o centímano Briareu e o monstro de Lerna,

guinchando horrivelmente, e a Quimera armada de chamas,

as Górgonas e as Hárpias, e a forma da Sombra com três corpos.

Após a invocação, Enéias e a Sibila iniciam sua caminhada através do mundo dos

mortos. A princípio, eles caminham pelo bosque sombrio, iluminado apenas pela luz

escassa da lua. Alcançam enfim, a entrada dos Infernos, metonimicamente denominado

aqui como Orco (Orcus)86

, pois este nome designa uma divindade infernal, ou até

mesmo Plutão. A estrutura do Orco assemelha-se a de uma construção romana, formada

pelo vestíbulo, 87

pátio externo de acesso à entrada principal de uma construção, e pelo

átrio,88

sala principal, situada logo em seguida à entrada das casas, no antigo mundo

romano. Era o lugar do fogo sagrado, dos altares dos deuses-lares e de distribuição dos

demais espaços.

No começo do vestíbulo Enéias e a Sibila encontram várias figuras representativas

da condição humana, alegorias dos males que assolam a existência do ser humano: o

Luto (Luctus), sofrimento, tristeza profunda por morte de alguém; os Temores

vingadores (ultrices Curae), remorso que atormenta a consciência sobretudo nos

últimos momentos de vida; as pálidas Doenças (pallentes Morbi), as doenças que

86

Para os gregos, orkos ( ) designa o grande juramento pelo Estiges, por determinação de Zeus,

segundo o que se encontra na Teogonia, 400. 87

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 88

Idem Ibidem

Page 79: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

78

acometem os homens deixando-os fracos, e levando-os até mesmo à morte; a triste

Velhice (tristis Senectus), que traz a decrepitude do corpo; o Medo (Metus),

inquietação, receio angustiante diante de uma situação desconhecida ou de perigo; a

Fome indutora do mal (malesuada Fames), provocadora de males, que impele o homem

a cometer desatinos, e que o torna escravo das necessidades do corpo,89

a torpe Pobreza

(turpis Egestas), pobreza extrema, destituição total, repulsiva por levar o homem à

perda da dignidade, e da própria identidade; a Morte (Letum), portadora de destruição; o

Labor (Labos), causador de sofrimento pelo excesso de fadiga; o Sono (Sopor),

considerado um estado intermediário de morte, e por isso mesmo, irmão da Morte;90

as

Alegrias perversoras da mente (mala mentis Gaudia), a busca constante da satisfação

dos sentidos, dos prazeres do corpo, leva ao sofrimento da alma, pois é efêmera, e logo

surge a necessidade de mais. No limiar oposto à entrada, está a Guerra mortífera

(mortiferum Bellum), causadora do aniquilamento de muitos homens; o tálamo das

Eumênides (Eumenidum thalami), que recebem esse nome após o julgamento de

Orestes,91

em Atenas, mas anteriormente chamadas Erínias, identificadas com as Fúrias

romanas. Nasceram das gotas do sangue de Urano, mutilado por Cronos no episódio em

que lhe usurpa o poder.92

Eram elas que infligiam castigos àqueles que cometiam crime

parental, enlouquecendo-os. A Discórdia insensata (Discordia demens), identificada

com a Éris grega ( )93

, filha da Noite ( ), age sem refletir, levando o homem a

atos inconseqüentes. No átrio, encontra-se um olmeiro opaco (ulmus opaca), árvore

estéril,94

infrutífera ( ), sob cujas folhas pendem os Sonhos vãos (Somnia

vulgo), sonhos quiméricos enviados aos homens enquanto dormem. Também os

Centauros (Centauri),95

seres monstruosos, meio homem, meio cavalo; as Cilas

biformes (Scyllae biformes), monstros metade mulher, metade peixe; o monstro de

Lerna (belua Lernae),96

filha de Tífon e Equidna, é a serpente que Héracles matou em

89

Ver Homero, Odisséia, XVIII, 54-55, ( : estômago, produtor de males) 90

Ver Homero, Ilíada, XIV, 231, ( : Sono irmão da Morte) 91

ÉSQUILO. Orestéia, Eumênides. Tradução Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2004. 92

HESÍODO. op. cit., v. 93

Idem ibidem, v. 225 94

Ver Homero, Odisséia, X, 510, ( : altas papoulas e

salgueiros que cedo perdem seus frutos) 95

Ver Homero, Odisséia, XXI, 295-304. 96

Ver Hesíodo, Teogonia, 306-318.

Page 80: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

79

um dos seus doze trabalhos; a Quimera (Chimaera),97

monstro terrível, que solta

chamas pela bocae possui três cabeças, uma de leão, uma de cabra e uma de serpente.

Era filha, também, de Tífon e de Equida, foi morta por Belerofonte e seu cavalo Pégaso.

As Górgonas (Gorgones)98

, filhas de Fórcis e Ceto, divindades marinhas, eram três

seres com cabelos de serpente, entre elas Medusa, que foi morta por Perseu. As Hárpias

(Harpyiae),99

gênios alados, filhas de Taumas e Electra, uma oceânide. E Geríon,100

gigante de três cabeças, cujo corpo era triplo até as ancas, era filho de Crisaor e de

Calírroe. Foi morto por Hércules.

Diante dessas formas horrendas, Enéias desembainha a espada em sua direção, mas

a Sibila o adverte que se trata de almas sem corpos.101

Eles então avançam rumo ao

Aqueronte, onde se encontra um barqueiro chamado Caronte ( ), descrito como

um velho esquálido, com uma barba branca e maltratada caindo do queixo. Ele é o

responsável pela travessia das almas que foram sepultadas, a fim de que entrem no reino

de Plutão. Aqueles que não recebem sepultamento, permanecem nas margens do rio,

vagando por cem anos, até poderem fazer a travessia. São essas almas que Enéias

encontra às margens do Estige, e dentre elas está Palinuro, piloto da frota troiana, que

tivera o leme quebrado em uma noite de tempestade, caindo ao mar. Ainda não recebera

sepultamento, e ao vir Enéias, pede-lhe que o leve consigo na travessia, o que causa

horror à Sibila, fazendo-a interceder no diálogo dos dois, garantindo a Palinuro que em

breve seu corpo receberia as honras fúnebres, e o local de sepultamento chamar-se-ia

Palinuro em sua homenagem. Essa notícia causa alegria à alma do piloto, pois sabe que

será lembrado entre os vivos, remetendo tal episódio à importância concedida à

conquista do status de ausente entre aqueles com os quais conviveu, garantindo assim a

sua lembrança pelas gerações vindouras.

Quando Caronte percebe Enéias perto das margens, repreende-lhe a presença, visto

ser ali o lugar não para os vivos, mas onde imperam as Sombras, e diz que,

anteriormente, já havia transportado a seu malgrado, Hércules, Teseu e Piríto. A Sibila

tenta convencê-lo a atravessá-los, apresentando o caráter piedoso e o valor guerreiro de

Enéias, mas o barqueiro apenas aquiesce depois que ela lhe mostra o ramo de ouro. Ele 97

Ver Hesíodo, Teogonia, 319-325. 98

Ver Hesíodo, Teogonia, 274-286. 99

Ver Hesíodo, Teogonia, 266-269. 100

Ver Hesíodo, Teogonia, 287-294. 101

Ver Homero, Odisséia, XI, 48-50.

Page 81: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

80

então aproxima a barca da margem e permite que eles subam. Chegados a outra

margem, encontram Cérbero (Cerberus),102

chamado “cão dos Infernos”, que protege a

entrada do mundo dos mortos, impedindo que lá os vivos entrassem, e que de lá os

mortos saíssem. A Sibila, para amansá-lo, joga-lhe bolos soporíferos, fazendo com que

ele adormeça. Enéias transpõe a entrada, e primeiramente vê o “campo dos inocentes”,

onde Minos, juiz dos Infernos, convoca a Assembléia dos Silenciosos. Em seguida, vem

o “campo das lágrimas”, lá está Dido, que o ignora e vive com Siqueu. Mais à frente, o

“campo dos heróis”, onde Enéias encontra Deífobo, filho de Príamo, marido de Helena

depois de Páris; o herói foi morto por ela na noite em que os gregos invadiram Tróia.

Enéias e a Sibila continuam a caminhar em direção ao ponto em que a estrada se

bifurca. À esquerda está o Tártaro; e à direita, os muros do palácio de Plutão, o qual

leva aos Campos Elísios,103

local situado nos confins da terra, onde nunca há frio nem

calor, mas sempre uma brisa suave que sopra constantemente. É o lugar em que se

encontra Anquises, pai de Enéias, e para onde vão poucos privilegiados, sobretudo os

heróis cuja /Uirtus foi proeminente durante a vida.

Quando Enéias passa em frente aos portais de Dite, o herói purifica-se, borrifando

água fresca sobre si, e deposita o ramo de ouro no limiar, presente para Prosérpina.

Chegam, enfim, ao local destinado. Enéias avista Anquises, em um vale verdejante,

contemplando a sua descendência, que formará a glória do império romano.

O encontro entre pai e filho liga-se a três momentos da narrativa para o

estabelecimento de Enéias como mito fundador das bases da futura Roma, todos já

referidos anteriormente. A fala de Júpiter104

em relação à soberania do futuro império

romano; e o passeio com Evandro através dos sítios em que Roma será construída,

juntamente com a representação no escudo de Enéias, feito por Hefestos, da história de

Roma.105

Júpiter profetiza, Anquises homologa e Evandro juntamente com a

representação no escudo confirma a destinação e a perenidade do herói,

metonimicamente, a do próprio império.

102

Ver Hesíodo, Teogonia, 310-312. 103

Ver Homero, Odisséia, IV, 563-569 (Primeira referência aos Campos Elísios. Eles são destinados a

Menelau, por ser marido de Helena e, conseqüentemente, genro de Zeus); e XI, 539 (Odisseu encontra o

de Aquiles no Hades, mas na verdade, ele reside nos Campos de Asfódelo,

lugar destinado aos heróis após a morte). 104

VIRGIL. op.cit., Book I, 254-296. 105

Idem ibidem, Book VIII, 626-728

Page 82: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

81

2. As predições de Anquises: a glória romana

Enéias e a Sibila são conduzidos por Anquises até um grupo de almas que se

preparam para reencarnar, entre elas, encontram-se os descendentes de Dárdano, que

constituirão a raça itálica. Elas beberão da água do rio Letes, a fim de esquecer o

passado e poder voltar para corpos.

Anquises aponta cada um dos que comporá o cenário para a edificação da glória

romana, desde Alba Longa, fundada por Iulo, filho de Enéias com Creúsa, até o Império

de Augusto.

Creúsa ~ Enéias ~ Lavínia

Iulo Sílvio Sílvio Enéias Latino Alba

Cápeto Tiberino Agripa Alades Aventino Procas Amúlio

Númitor

Durante trezentos anos, a raça de Enéias exerce o poder sobre Alba Longa. Iulo

entrega o governo de Lavínio, cidade fundada por Enéias após seu casamento com

Lavínia, filha de Latino, rei do Lácio, a Silvio, seu meio-irmão, filho de Enéias e

Lavínia, e funda Alba Longa. Após sua morte, não tendo herdeiro, deixa o governo da

cidade para Silvio, dele provindo os reis que ali dominarão.

Procas, décimo quarto rei de Alba Longa, tem dois filhos, Amúlio e Númitor. Ao

morrer, deixa a herança real dividida em duas partes. A primeira consiste nos tesouros, a

segunda, no reinado. Númitor escolhe o poder, e Amúlio, os tesouros. Mas não demora

para que este usurpe o poder do irmão e o expulse do reino, matando, em seguida, o

sobrinho, e condenando a sobrinha, Rheia Silvia, a vestal, sacerdotisa de Vesta.106

Dela

provém Rômulo, fundador e primeiro rei de Roma. Ele a fará grande, e reinará por trinta

e sete anos (753 a.C-716 a.C.).

106

Quanto à explicação do mito sobre a fundação mítica de Roma, ver I Capítulo .

Page 83: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

82

Numa Pompílio é o segundo rei de Roma (716 a.C-673 a.C). Esteve no poder por

quarenta e três anos e, segundo a tradição, seu reinado foi pacífico. Foi o organizador da

religião. Considerado sacerdote, os romanos lhe atribuem muitas das suas instituições

religiosas. Concede à cidade de Roma seus fundamentos místicos.

Tulo Hostílio é o terceiro rei de Roma (673 a.C.-641 a.C). Reinou por trinta e dois

anos e, segundo a tradição, seu governo foi um período de guerras constantes, inclusive

contra Alba Longa.

Anco Márcio é o quarto rei de Roma (641 a.C-617 a.C). Caracterizado como bom e

sensível ao favor popular. Reinou por vinte e quatro anos.

Tarquínio Prisco é o quinto rei de Roma (617 a.C-580 a.C). Reinou por trinta e sete

anos. É-lhe atribuída a construção do Templo de Júpiter no Capitólio. Ele foi

assassinado pelos filhos de Anco Márcio,

Sérvio Túlio é o sexto rei de Roma (580 a.C-536 a.C). Reinou por quarenta e quatro

anos e foi o primeiro rei sem ser eleito pelo povo, escolhido com o consentimento do

Senado. Criado como escravo, chegou ao reino, pela vontade de Tarquínio Prisco. Foi

assassinado por Lúcio Tarquínio, dito o Soberbo. Segundo a lenda, era filho de Vulcano

e de uma escrava.

Tarquínio Soberbo é o sétimo e último rei de Roma (536 a.C-511 a.C). Arrogante e

prepotente, é um rei abusivo. Seu filho, Sexto, ultrajou Lucrécia e esta suicidou-se,

depois de contar o fato ao marido, Lúcio Tarquínio Colatino, sobrinho de Tarquínio

Prisco. Este fato resultou em uma insurreição e na expulsão dos Tarquínios de Roma. É

o fim da Monarquia (520-509 a. C.).

Depois de se referir ao reis romanos, Anquises discorre sobre cônsules e demais

figuras eminentes que compõem o cenário da republica romana.

Bruto (Lucius Junius Brutus), sobrinho de Tarquínio Soberbo, é o fundador da

república. A fim de não ser morto pelo tio, fingiu-se de idiota. Depois do ultraje a

Lucrecia, chefiou o levante contra os Tarquínios e libertou Roma. Foi um dos primeiros

cônsules romanos. Segundo a tradição, matou os próprios filhos que queriam recolocar

os Tarquínios no poder. A monarquia durara duzentos e quarenta e quatro anos.

Há pelo menos dois Décios. Publius Decius Mus, cônsul romano na época da

Guerra Latina de 340 a. C. Fez a vitória pender para o seu lado, depois que se

comprometeu com o inimigo a lutarem ambos até a destruição. E seu filho, de mesmo

Page 84: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

83

nome, que desempenha papel semelhante na batalha de Sentino (290 a. C.), contra os

Samnitas. Ambos foram famosos por sua devoção a Roma.

Também há dois Drusos. O primeiro, Marcus Livius Drusus, era Tribuno da Plebe

em 122 a. C. e partidário da Aristocracia contra Gaio Graco. O segundo, seu filho, foi

Tribuno da Plebe me 91 a. C., autor de várias medidas democráticas, dentre elas a

concessão do voto aos aliados italianos. A rejeição de sua proposta deu início à Guerra

Social ou Marsiana (90-88 a. C.). A guerra não teve vencedor, mas concedeu cidadania

a todos os povos italianos.

Torquato (Titus Manlius Imperiosus Torquatus) é o romano que resistiu à invasão

dos gauleses, em 361 a. C. Recebeu o nome de Torquato ao derrotar em um combate

singular um gaulês gigantesco e arrancar-lhe o colar (torquis) que usava como

ornamento. Na Guerra Latina de 340 a. C., os cônsules, Torquato um deles, proibiram o

combate singular. Tinha o sobrenome de Imperiosus por sua severidade, marca da

família.

Camilo (Marcus Furius Camillus) foi um grande estadista e general romano (séc. IV

a. C.). Conquistou Velos (395), mas foi exilado sob acusação de ter-se apropriado de

parte dos despojos. Ao ser chamado de volta a Roma, expulsou os gauleses de Breno107

,

subjugou os Volscos e os Equos, e pôs fim às guerras civis na época das Rogações

Licínias (367). Derrotou por duas vezes os gauleses invasores, foi por cinco vezes

Ditador e reformou a organização militar romana.

O Sogro faz alusão a Júlio César, cuja filha, Júlia (morta em 54 a. C.), era casada

com Pompeu Magno, um dos integrantes do Primeiro Triunvirato (60-48 a. C.). Os

outros dois eram o próprio César e Crasso (morto em batalha contra os Partos, em

Carras, no ano 53 a. C.).

O Genro remete a Pompeu Magno. Após dominar a Gália (58-50 a. C.), Júlio César

volta à Itália (50 a. C.) e marcha sobre Pompeu, que foge (49 a. C.). Em Roma, César é

nomeado Ditador (49 a. C.) e eleito Cônsul para o ano de 48. O cerco a Pompeu começa

em abril de 48, culminando com a sua derrota em Farsália, Grécia, em junho desse

mesmo ano. Em setembro de 48, Pompeu é assassinado no Egito, a mando de Ptolomeu

XIII, com a intenção de agradar a César, que recebe a cabeça do ex-mandatário numa

bandeja. Em outubro de 45 a. C., César está em Roma. Em janeiro do ano seguinte é

107

A tomada de Roma pelos gauleses de Breno se dá em 390 a. C.

Page 85: CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO

84

Imperator (título conferido ao general vitorioso, dotado do imperium, o direito de

comando superior, militar e jurisdicional, durante um ano), Cônsul e Ditador pela quinta

vez. Em fevereiro de 44, lhe é conferida a Ditadura perpétua e, embora tenha recusado a

coroa real, por ocasião das Lupercais (15 de fevereiro), César é assassinado em 15 de

março de 44 a. C.

Júlio César acreditava ser descendente de Vênus, através de Iulo, o filho de Enéias.

Ele era, portanto, membro de uma das mais famosas famílias romanas, a Gens Iulia.

O triunfador sobre Corinto,108

seria Lucius Mummis, que destruiu Corinto, em 146

a.C. O outro109

mencionado, que destruirá as cidades gregas, seria Lucius Aemelius

Paullus, derrotou Perses, em 168 a.C., último rei da Macedônia, que clamava ser

descendente de Aquiles. Construiu a primeira biblioteca particular de Roma. Ele era o

pai de Cipião Emiliano.

Catão é Marcus Porcius Cato (234-144 a. C.), dito Catão, o Censor. Combateu na

segunda Guerra Púnica (218-202 a. C.), foi tribuno militar sob Fábio Máximo. Cônsul

em 195, veio-lhe a fama como Censor em 184 a. C. Propunha uma reforma moral, com

o combate ao luxo e à extravagância dos ricos, foi contra a disseminação da cultura

grega e pregou sistematicamente a favor da destruição de Cartago.

Cosso é Aulus Cornelius Cossus, romano que, em 437, matou o rei etrusco

Tolúmnio e conquistou os Spolia Opima (são os despojos de honra, armas tomadas por

um general romano ao comandante das tropas inimigas, após derrotá-lo em combate

singular).

Gracos remete aos irmãos Tibério Semprônio Graco (morto em 133 a. C.) e Gaio

Semprônio Graco (morto em 121 a. C.). Filhos de Tibério Graco, ilustre Pretor (o que

vai à frente na guerra, prae itor). Eram sobrinhos de Cipião, o Africano, por parte da

mãe, Cornélia. Buscaram solucionar a crise econômica resultante do fracasso da

administração de terras.

Cipiões (raios de guerra, flagelos da Líbia) refere-se aos dois Cipiões mais

importantes da história de Roma. Cipião Africano Maior (Publius Cornelius Scipio

Africanus Major, 236-189 a. C.), vencedor de Aníbal, o Cartaginês, na batalha de Zama,

em 202 a. C., o que determinou o fim da segunda Guerra Púnica.

108

VI, 836 109

VI, 837.

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85

O segundo é Cipião Emiliano (Publius Cornelius Scipio Aemilianus, 185-129 a. C.),

dito Cipião Africano Menor. Filho de Emílio Paulo, com quem lutou em Pidna (168 a.

C.). Eleito Cônsul em 148, sitiou Cartago e a destruiu em 146 a. C. Tal fato determinou

o fim da terceira Guerra Púnica (148-146 a. C.) e permitiu a anexação da África.

Fabrício alude a Gaius Fabricius Luscinus (século III a. C.). Era o paradigma da

honestidade e da frugalidade. Resistiu a todas as tentativas de suborno de Pirro, rei do

Épiro, a quem foi mandado como embaixador (280-279 a. C.). Teria revelado a Pirro,

em 278, um complô de seu médico para envenená-lo.

Serrano (?): Marcus Atilius Regulus, Cônsul em 267 e 252 a. Em 252, foi um dos

comandantes da expedição romana à África, por ocasião da primeira Guerra Púnica

(264-241 a. C.). Derrotado pelo espartano Xântipos, foi capturado. Morto em Cartago

em 251 a. C.

Fábio e Máximo: Quintus Fabius Maximus, general romano famoso da época das

guerras Samnitas (343-304). Cônsul em 295, derrotou, em Sentino, Samnitas e

Gauleses. Era cognominado Rulo ou Ruliano.

Fabius Maximus, Cunctator, dito o Contemporizador. Recuperou Tarento aos

cartagineses, em 209 a. C. Tinha uma política de perseguir e molestar as forças de

Aníbal.

Marcelo faz referência a dois Marcelos. O primeiro, Marcus Claudius Marcellus,

situa-se no século III a. C., trata-se do famoso general romano que brilhou na vitória de

Clastidium contra os gauleses, em 222, o que permitiu a submissão da Gália Cisalpina

(219). Foi determinante na campanha de Canas (216), quando Roma foi derrotada por

Cartago, mas capturou Siracusa em 212. Emboscado pelos cartagineses, foi morto em

208 a. C.

Na vitória contra os gauleses, conquistou os Spolia Opima, por matar o rei gaulês

com as próprias mãos110

.

O segundo é Marcellus, filho de Gaius Marcellus e Octavia, irmã de Augusto.

Nasceu em 43 a. C. e foi adotado por Augusto em 25, casando-se com Júlia, filha do

110

Spolia Opima são os despojos de honra, armas tomadas por um general romano ao comandante das

tropas inimigas, após derrotá-lo em combate singular. Os spolia foram conquistados três vezes na história

de Roma: por Rômulo, na vitória sobre Acron, rei dos ceninenses, nas hostilidades supervenientes ao

rapto das sabinas (v. Tito Lívio, I, X); por Aulo Cornélio Cosso, que em 437 matou o rei etrusco

Tolúmnio, e por Cláudio Marcelo, que matou o gaulês Viridomaro, em 222.

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86

imperador, sua prima. Morreu dois anos depois, em 23. Jovem promissor, sua morte foi

considerada uma perda nacional.

Depois que Anquises tranqüiliza Enéias acerca do futuro da nação vindoura,

adverte-o das guerras e vicissitudes que terá pela frente, quando chegar ao Lácio. Em

seguida, Enéias e a Sibila saem dos Infernos pela porta de marfim.111

Havia duas portas

dos sonhos, uma feita de chifre de boi, pela qual passavam os sonhos verdadeiros, e

outra de marfim, a dos sonhos falsos. Tal atribuição contradiz o argumento do Livro VI,

as predições de Anquises, que, juntamente com o Livro I, a fala de Júpiter, e o Livro

VIII, o passeio pelos sítios da futura Roma e a descrição do escudo de Enéias, reúne

elementos suficientes para comprovar a glória de Roma. Portanto, é preferível ver a

introdução de tal episódio por Virgílio, na narrativa, como fruto de uma crença popular

que dizia saírem os sonhos falsos, para os homens, até a meia-noite, e que depois disso,

os sonhos seriam verdadeiros. Saindo Enéias e a Sibila pela porta de marfim,

significaria que eles permaneceram nos Infernos até a meia-noite. 112

A viagem teria

durado um dia inteiro, desde a madrugada até a meia-noite, o que condiz com a

advertência da Sibila a Enéias113

em relação ao passar das horas, quando, tendo

encontrado a alma de Deífobo, marido de Helena depois que Páris morre, o herói leva o

tempo a conversar despreocupadamente.

111

Homer. op. cit., XIX, 562sgs 112

VOLPIS. op. cit., p.194. 113

VI, 537.

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87

IV. Conclusão

A proposta do trabalho foi fazer um estudo sobre o Livro VI da Eneida, de Virgílio,

a partir da categoria do herói concernente à Pietas romana, tendo em vista a função de

Enéias como mito fundador, sobretudo das bases míticas da futura Roma, destinada a

ser soberana e senhora do mundo.

Tu regere imperio populos, Romae, memento

(hae tibi erunt artes), pacique imponere morem,

Parcere subiectis et debellare superbos.114

Tu, Romano, lembra-te de guiar os povos sob teu poder,

(estas serão tuas artes), impor o meio da paz,

Poupar os sujeitos e debelar os soberbos.

O trecho acima diz respeito ao fim da fala de Anquises no episódio em que, no

mundo dos mortos, ele descreve a Enéias a sua descendência, responsável pela

soberania e glória da futura Roma. Suas palavras reúnem a essência do império

idealizado por Otávio Augusto, e que o poema de Virgílio busca representar, apoiando-

se nas bases mítica, religiosa e histórica da tradição romana. Há três momentos

específicos dentro da epopéia, que dão suporte a essa idéia, e que formam o tripé sobre

o qual a narrativa está estruturada.

O primeiro diz respeito ao episódio em que Vênus, chorosa pelo fato de os troianos

estarem sofrendo tantas desditas, interpela Júpiter acerca do destino devido aos troianos,

de cujo sangue sairia uma raça soberana sobre outros povos, e de glória imorredoura.

Júpiter, então, tranqüiliza a deusa e profetiza o que irá acontecer à raça troiana,

discorrendo sobre a fundação mítica de Roma, a sua expansão e conquistas pelo

Mediterrâneo, até o estabelecimento a Pax Romana no império de Augusto.

O segundo momento diz respeito ao encontro de Enéias com Anquises nos Infernos.

Com o intuito de tranqüilizá-lo quanto ao futuro glorioso de Roma, o pai lhe mostra os

114

VI, 851-853.

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personagens eminentes, que contribuirão para a conquista da soberania romana,

homologando-lhe, desse modo, a função de Pater Familias, de pai da pátria refletido na

figura de Augusto.

O terceiro momento diz respeito ao passeio de Enéias com Evandro, em que este lhe

mostra os sítios da futura Roma. Dentre os locais apontados estão a Porta Carmental,

uma das portas de Roma, ao sul do Capitólio; o Lupercal, caverna existente no Palatino,

onde se supunha que Rômulo e Remo haviam sido alimentados pela loba; e o Capitólio,

onde o templo de Júpiter foi construído. Evandro convida Enéias a aceitar a

simplicidade do seu reino, desprezando a opulência e a riqueza, o que remete à peculiar

simplicidade do próprio Augusto. Completando esse último episódio, há a representação

do escudo de Enéias, feito por Hefestos, deus artesão. Não ignorante do porvir, Hefestos

grava no escudo imagens representativas da história de Roma, sendo, portanto, delegada

a Enéias, a edificação das bases do futuro reino. Imagem bastante representativa dessa

idéia é o momento em que o herói, desconhecendo as figuras gravadas em seu escudo,

coloca-o nos seus ombros, sem saber que carrega o futuro dos seus descendentes.

A convergência desses quatro episódios confirma a glória soberana de Roma,

tomada como fim natural, proveniente de uma força maior, superior até mesmo a

Júpiter, o Destino. Enéias, mito fundador das bases da futura Roma, coaduna o ideal

romano da Pietas (Respeito pela devoção religiosa), da Fides (Confiança na palavra

dada) e da Virtus (Força guerreira), tripé sobre o qual se fundamenta o Império Romano.

Diante desse panorama, fica clara a inexauribilidade da Eneida quanto a estudos e

trabalhos, os quais contribuirão valorosamente para os estudos clássicos.

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