Ato Identiticacao

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA ADOLESCÊNCIA, ATO INFRACIONAL E PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO: UM ESTUDO DE CASO COM ADOLESCENTES PRIVADOS DE LIBERDADE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Jana Gonçalves Zappe Santa Maria, RS, Brasil 2010

Transcript of Ato Identiticacao

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CINCIAS SOCIAIS E HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA

    ADOLESCNCIA, ATO INFRACIONAL E PROCESSOS DE IDENTIFICAO: UM ESTUDO DE

    CASO COM ADOLESCENTES PRIVADOS DE LIBERDADE

    DISSERTAO DE MESTRADO

    Jana Gonalves Zappe

    Santa Maria, RS, Brasil 2010

  • ADOLESCNCIA, ATO INFRACIONAL E PROCESSOS DE IDENTIFICAO: UM ESTUDO DE CASO COM ADOLESCENTES

    PRIVADOS DE LIBERDADE

    por

    Jana Gonalves Zappe

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia, rea de Concentrao em Psicologia da Sade, Linha

    de Pesquisa: Sade, desenvolvimento e contextos sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), como

    requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Psicologia

    Orientador: Prof . Dr . Ana Cristina Garcia Dias

    Santa Maria, RS, Brasil

    2010

  • Z35a Zappe, Jana Gonalves Adolescncia, ato infracional e processos de identificao : um estudo de caso com adolescentes privados de liberdade / por Jana Gonalves Zappe. 2010. 148 f. ; il. ; 30 cm

    Orientador: Ana Cristina Garcia Dias Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Santa Maria, Centro de Cincias Sociais e Humanas, Programa de Ps-Graduao em Psicologia, RS, 2010.

    1. Psicologia 2. Psicologia do adolescente 3. Adolescente institucionalizado 4. Delinqncia juvenil I. Dias, Ana Cristina Garcia I. Ttulo II. Ttulo: Um estudo de caso com adolescentes privados de liberdade.

    CDU 159.922.8

    Ficha catalogrfica elaborada por Denise Barbosa dos Santos CRB 10/1756 Biblioteca Central UFSM

  • Dedicamos este trabalho s crianas e adolescentes brasileiros que se encontram cotidianamente expostos ao desamparo em suas mltiplas formas,

    desejando que futuramente o pas possa oferecer condies mais favorveis ao desenvolvimento saudvel.

  • Agradecimentos

    Ana Cristina, orientadora deste trabalho, que acolheu minhas questes e ofereceu o suporte necessrio ao desenvolvimento deste trabalho;

    s professoras que integram a Comisso Examinadora, que gentilmente aceitaram o convite de contribuir com sugestes para a qualificao do trabalho

    e finalmente com a avaliao dele;

    Cris, colega que realizou as entrevistas, pela forma cuidadosa com que sempre conduziu as atividades;

    Iara, Ktia, Thatiane, Paula, Carina e Tainan, pelo interesse na pesquisa e pela dedicao que tiveram ao transcrever as entrevistas;

    Aos adolescentes que dividiram conosco suas trajetrias de vida marcadas por violncias, angstias e fragilidades, revelando aspectos indispensveis ao

    conhecimento destes casos;

    FASE-RS, que autorizou a realizao desta pesquisa;

    minha famlia, origem e destino de toda conquista. Neste momento, especialmente v Judith. Aos meus pais, irmos, sobrinhos, tios, primos. Ao

    Marco, meu marido, e seus familiares, famlia que tambm tenho como minha;

    Deus, Vida;

    MUITO OBRIGADA!

  • Quando nos ameaa na esquina, pela primeira vez, o menino no aponta para

    ns sua arma do alto de sua arrogncia onipotente e cruel, mas do fundo de sua

    impotncia mais desesperada. (...)

    Na esquina, apontando-nos a arma, o menino lana a ns um grito de socorro,

    um pedido de reconhecimento e valorizao. (...)

    H uma fome mais funda que a fome, mais exigente e voraz que a fome fsica: a

    fome de sentido e de valor; de reconhecimento e de acolhimento; fome de ser

    sabendo-se que s se alcana ser algum pela mediao do olhar alheio que

    nos reconhece e valoriza.

    Luis Eduardo Soares, em Cabea de Porco (2005).

  • RESUMO

    Dissertao de Mestrado Programa de Ps-Graduao em Psicologia

    Universidade Federal de Santa Maria

    ADOLESCNCIA, ATO INFRACIONAL E PROCESSOS DE IDENTIFICAO: UM ESTUDO DE CASO COM ADOLESCENTES PRIVADOS DE LIBERDADE

    Autora: Jana Gonalves Zappe Orientadora: Prof Dr Ana Cristina Garcia Dias

    Data e local da defesa: Santa Maria, 12 de janeiro de 2011

    Este trabalho buscou investigar como a violncia e a prtica de atos infracionais participam dos processos de identificao que acabam por constituir a identidade do adolescente em conflito com a lei. Para atingir os objetivos propostos, realizamos um estudo de casos mltiplos. A coleta de dados foi realizada a partir de entrevistas individuais guiadas com cinco adolescentes do sexo masculino internados para cumprimento de medida scio-educativa. A anlise dos dados revelou a existncia de uma forte associao entre drogadio e delinqncia, a presena de violncia nas trajetrias de vida dos adolescentes e fragilidades nas relaes familiares. Em conjunto, estes resultados sugerem a existncia de dificuldades no processo de construo de identidade destes adolescentes que se originam em momentos precoces do desenvolvimento, conforme a bibliografia consultada. Em concluso, sugerimos a necessidade de desenvolvimento de novos estudos para esclarecer estas questes. Ao final, apresentamos uma discusso com o intuito de relacionar nossos resultados com algumas propostas de interveno como o conceito de protagonismo juvenil e o modelo da Justia Restaurativa.

    PALAVRAS-CHAVE: Psicologia do Adolescente, Adolescente Institucionalizado, Delinqncia Juvenil

  • ABSTRACT

    Masters Thesis Postgraduate Program in Psychology Universidade Federal de Santa Maria

    ADOLESCENCE, INFRACTIONAL ACTS AND IDENTIFICATION PROCESSES: A CASE STUDY WITH ADOLESCENTS DEPRIVED OF FREEDOM

    Author: Jana Gonalves Zappe Advisor: Prof Dr Ana Cristina Garcia Dias

    Date and place of defense: Santa Maria, January 12, 2011.

    This paper aimed to investigate how violence and the practice of infractional acts participate on the identification processes that result in the identity of adolescents in conflict with the law. A multiple case study was carried out to achieve the proposed aims. Data was collected through guided individual interviews with five male adolescents imprisoned for social and educational rehabilitation. Data analysis revealed a strong association between drug abuse and delinquency, the presence of violence in the life course of adolescents and fragilities in family relationships. Such results suggest the existence of difficulties in the process of identity construction of those adolescents that begin in early developmental times, according to the bibliography consulted. In conclusion, we suggest the need to develop new studies to clarify such issues. Finally, we present a discussion aiming to relate our results with some proposals of intervention, such as the concept of juvenile protagonism and the model of the Restorative Justice.

    KEYWORDS: Adolescent Psychology, Institutionalized Adolescent, Juvenile Delinquency.

  • LISTA DE ANEXOS

    Anexo A Artigo terico ......................................................................................... 113 Anexo B Temas abordados na entrevista guiada .................................................. 134 Anexo C Letra do rap Depoimento de um Viciado, Detentos do Rap .............. 135 Anexo D Termo de Consentimento Livre Esclarecido ......................................... 137 Anexo E Carta de Aprovao do Comit de tica em Pesquisa (UFSM) ............ 138 Anexo F Desenho do adolescente Igor ................................................................. 139 Anexo G Folhas escritas pelo adolescente Anderson ........................................... 140 Anexo H Desenho do adolescente Cristofer ......................................................... 148

  • SUMRIO

    CAPTULO 1 - INTRODUO .......................................................................................... 10 1.1 Delinqncia juvenil na produo cientfica .................................................................... 16 1.2 Sociedade contempornea e construo de identidade: mapeando associaes entre adolescncia e violncia .......................................................................................................... 28

    CAPTULO 2 ASPECTOS METODOLGICOS E BIOTICOS DA PESQUISA ............................................................................................................................ 43 2.1 Delineamento ..................................................................................................................... 43

    2.2 Instrumentos e Procedimentos ........................................................................................... 43 2.3 Consideraes ticas .......................................................................................................... 44 2.4 Descrio das oficinas e da seleo dos participantes ....................................................... 47 2.5 Anlise das Informaes .................................................................................................... 51

    CAPTULO 3 ESTUDO DE CASOS MLTIPLOS ....................................................... 53 3.1 Caso 1 - Igor ...................................................................................................................... 53 3.2 Caso 2 - Anderson ............................................................................................................. 63 3.3 Caso 3 - Cristofer ............................................................................................................... 75 3.4 Caso 4 - Pedro ................................................................................................................... 84 3.5 Caso 5 - Tiago ................................................................................................................... 87 3.6 Discusso integrada dos casos ........................................................................................... 89

    CAPTULO 4 - CONCLUSO ............................................................................................ 96

    CAPTULO 5 CONSIDERAES FINAIS .................................................................. 100

    REFERNCIAS .................................................................................................................. 104

  • CAPTULO 1 - INTRODUO

    As causas violentas so responsveis pela morte de mais de um milho de pessoas no mundo a cada ano, segundo dados divulgados pela Organizao Mundial de Sade (2002). Se somarmos a isso todos os casos de violncia no letal, bem como todas as leses e danos fsicos e emocionais decorrentes de atos violentos, que atingem tanto as vtimas quanto suas famlias, os nmeros sero ainda mais expressivos da magnitude do fenmeno violncia.

    Endmica, a violncia se constitui num grave problema social com srias repercusses para a sade pblica, pois afeta a sade individual e coletiva, tanto no pas como no mundo. Enquanto um problema social, a violncia acompanha toda a histria da humanidade e, atualmente, est relacionada com a realidade conflituosa de um cenrio social marcado por srias desigualdades, atingindo a juventude de modo particular.

    Segundo documento elaborado pelo Ministrio da Sade, o crescimento das taxas de criminalidade e das consequncias da violncia, particularmente nas regies metropolitanas, est associado com as condies e circunstncias da escassez de oportunidades e perspectivas. Isso se intensifica no caso dos jovens que so cotidianamente bombardeados pelos apelos de consumo, ao mesmo tempo em que faltam oportunidades legtimas de reconhecimento e de chances sociais (BRASIL, 2005). Assim, a adolescncia seria um momento do desenvolvimento em que o sujeito se encontra especialmente vulnervel aos efeitos da violncia.

    Para diversos autores, a adolescncia se caracteriza pela indefinio e pelo inacabamento, ou seja, um momento do desenvolvimento em que o sujeito que no mais criana, mas ainda no adulto. Trata-se de um processo eminentemente psicolgico de constituir um lugar e, principalmente, uma identidade, a partir de referncias sociais, que transcendem as relaes familiares (ABERASTURY; KNOBEL, 1992, CALLIGARIS, 2000, MELMAN, 1999, RASSIAL, 1999, RUFINO, 1993, WINNICOTT, 1994).

    De um ponto de vista psicossocial, considera-se que a identidade ser construda com base em duas referncias bsicas: o corpo e o conjunto de papis sociais. A identidade se configura, ento, como um correlato da imagem do corpo, construda com base na existncia fsica, e como um ponto de condensao dos papis que o indivduo ocupa nas duas interaes sociais (COSTA, 2003).

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    Nesse trabalho, a identidade ser concebida como o resultado de complexos mecanismos identificatrios, a partir dos quais o prprio sujeito ir se constituir. Lembramos que o conceito de identificao assumiu, na obra freudiana, um valor central que o tornou a operao pela qual o sujeito humano assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo desse outro (LAPLANCHE, 1992). A partir desse processo, a personalidade constitui-se e diferencia-se por uma srie de identificaes, que ocorrem em contextos do qual o indivduo faz parte.

    Assim, ser atravs dos processos de identificao que um sujeito ir construir sua identidade, incorporando aspectos dos outros com os quais convive e, num sentido mais amplo, da prpria coletividade da qual faz parte. Na adolescncia, o processo de construo da identidade ser caracterizado pela busca de autonomia (distanciando o jovem do lugar infantil de dependncia dos pais), e de reconhecimento (processo que culmina com a conquista de um lugar social). Em busca de autonomia e reconhecimento social, quais as referncias que o jovem encontra nos outros de seu contexto para se identificar e construir sua identidade?

    Calligaris (2000) aponta que, para ser reconhecido em nossa cultura, preciso ser desejvel ou ser invejvel. Assim, salienta que a busca da felicidade e do reconhecimento social pela comunidade passa por dois campos nos quais importa se destacar: as relaes amorosas, sexuais e o poder no campo produtivo, financeiro e social.

    O rompimento com os ideais e valores tradicionais, e o culto contemporneo liberdade e autonomia produziram uma configurao em que os caminhos possveis para a busca de felicidade e reconhecimento social no esto dados e, muito menos, garantidos. Somando a isso o enfraquecimento das referncias simblicas, bem como o cenrio de intensas desigualdades sociais, que impem srios obstculos para a conquista de reconhecimento, parece temos um terreno frtil para a associao entre adolescncia e violncia.

    Atravs da prtica do ato infracional, o adolescente satisfaz o ideal social de poder pela apreenso imediata de objetos socialmente valorizados. No por acaso que a maioria dos atos infracionais cometidos por adolescentes correspondem a crimes contra o patrimnio (CRAIDY; GONALVES, 2005, TEIXEIRA, 2005; VOLPI, 1997, ZAPPE; RAMOS, 2010). Alm disso, atravs da violncia o jovem consegue produzir medo. Essa parece ser uma alternativa de reconhecimento para aqueles que no conseguiram conquistar um espao na sociedade e, portanto, respeito. O medo seria o equivalente fsico, real, do respeito, o qual possui um carter simblico (CALLIGARIS, 2000).

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    Nesse sentido, Oliveira (2001) entende a passagem ao ato delinqente como um atalho na busca de reconhecimento, efetuada em situaes onde o reconhecimento simblico foi recusado, como o que pode ocorrer com mais intensidade nas classes populares. Assim, a autora defende que a associao para o crime e a participao em gangues tambm se constituem como recursos para obteno de reconhecimento social, ainda que pela negatividade.

    Sendo assim, formulamos a hiptese de que a violncia e a prtica de atos infracionais participam dos processos de identificao que acabam por constituir a identidade do adolescente. Encontramos indcios que nos auxiliaram na construo dessa hiptese nas paredes dos dormitrios ocupados por adolescentes em conflito com a lei em um estabelecimento de privao de liberdade da Fundao de Atendimento Scio-Educativo do Rio Grande do Sul (FASE-RS). Nestes locais, comum que os adolescentes escrevam, ao lado ou abaixo de seu nome ou apelido, o artigo penal correspondente ao ato infracional cometido (por exemplo, 157, que corresponde a assalto; 121, que corresponde a homicdio, etc). Assim, o ato infracional aparece como uma extenso do nome que identifica o adolescente e comunica ao outro algo de si.

    Com relao a isso, Rosrio (2004) descreve outra situao, observada entre os adolescentes da Fundao Estadual do Bem-Estar do Menor, do municpio de Guaruj, em So Paulo (FEBEM/SP), que tambm evidencia a relao entre o ato infracional cometido e a dinmica de identificao com a criminalidade. Quando o adolescente chega na instituio e encaminhado para o convvio com os demais, antes mesmo que perguntem o seu nome, logo questionado pelos outros adolescentes sobre o delito que motivou sua internao. Desta forma, a identificao do delito fala de uma representao com o mundo do crime, no qual estes jovens esto inseridos e se identificam como semelhantes.

    Alm disso, vemos com freqncia nas paredes da mesma instituio a inscrio de siglas que denominam associaes (Comandos) ligadas ao crime organizado, das quais citamos o PCC (Primeiro Comando da Capital) como exemplo de uma organizao desta ordem, a nvel nacional. Na cidade de Santa Maria, local no qual esse estudo foi realizado, temos, por exemplo, o Comando da So Joo (CSJ), o Comando da Zona Norte (CZN), entre outros, cuja referncia territorial evidente. Essas inscries parecem revelar que o ato infracional identifica o adolescente, tanto quanto o seu prprio nome ou apelido. Alm disso, revelam o pertencimento a grupos marcados por referncias oriundas da criminalidade, que igualmente servem para identific-los.

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    Outras evidncias que nos sugerem essa identificao dos adolescentes com a criminalidade so as inscries de frases retiradas de letras de rap nas paredes da instituio. Por exemplo, citamos a frase ladro sangue bom tem morau nas quebrada, a qual revela no apenas a identificao com a criminalidade, mas tambm o status de poder que essa associao oferece. Outra expresso bastante comum vida loka, que o ttulo de uma letra do grupo de rap Racionais, cujo contedo aborda a vida na periferia e os valores presentes neste contexto, as violncias, a misria, a desigualdade social, o consumismo, o racismo, entre outros.

    Com relao ao status de poder e a glamourizao do crime, Rosrio (2004, p.100-101) cita fragmentos da fala de adolescentes internos da FEBEM/SP, que expressam esta hiptese. O crime compensa para quem investe. Tem um maluco na minha quebrada, o cara j velho e ainda t (sic) no crime. Ele sim bandido. Ns somos sombra, somos pipoca. Neste relato, possvel identificar a valorizao do crime, que visto como compensatrio, e a valorizao do bandido como um ideal a ser conquistado. Em outro relato, identificamos de forma ainda mais enftica a valorizao do bandido como um ideal de masculinidade: Meu padrasto fazia parte do PCC. Era um bandido de proceder. J matou muito maluco. At na hora da morte ele foi homem. Morreu com honra, porque em nenhum momento pediu por sua vida. Nestes relatos, fica claro que h uma dinmica de relaes e identificaes entre os diferentes sujeitos desse contexto, onde o bandido visto como um modelo de masculinidade e poder, um modelo, portanto, de identificao a ser seguido.

    Encontramos tambm estas mesmas inscries nos prprios corpos dos adolescentes, sob a forma de tatuagens. Aqui, aparecem como marcas mais definitivas, pois escritas de modo mais ou menos irreversvel na pele e, talvez por isso, indcios mais seguros de que se constituem como referncias identificatrias. Nesse sentido, as tatuagens dos adolescentes aparecem como um recurso duplamente significativo: de um lado, o contedo das tatuagens revela as referncias que o jovem lana mo para a construo da identidade e, de outro, a prpria forma como o adolescente expressa suas referncias. Atravs da imagem visual e da inscrio na pele, o jovem pode revelar um modo privilegiado de construir identidade a partir de vias imaginrias e reais, j que faltam as simblicas.

    A partir disso, propomos a realizao de uma pesquisa buscando investigar como a violncia e a prtica de atos infracionais participa dos processos de identificao e construo da identidade do adolescente autor de atos infracionais no contexto contemporneo, priorizando-se a fala dos prprios adolescentes a esse respeito. Em outras palavras, gostaramos de ouvir o que os adolescentes dizem sobre suas relaes com a violncia e a

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    prtica de atos infracionais, procurando responder a alguns questionamentos: como eles dizem quem so, ou seja, como se apresentam ao outro? Como percebem a prtica de atos infracionais em suas vidas? Como percebem essas marcas identificatrias (tatuagens e inscries nas paredes) associadas criminalidade? O que elas falam a respeito deles prprios e dos outros jovens? Esses jovens possuem um projeto de vida?

    Alguns trabalhos enfatizam que os adolescentes autores de atos infracionais costumam ser vistos prioritariamente atravs das imagens que a mdia constri sobre eles, assim sendo considerados como perigosos e responsveis pelas elevadas taxas de criminalidade. Contudo, esta imagem no corresponde realidade se considerarmos algumas estatsticas. Os adolescentes morrem muito mais do que matam, assim h um nmero maior de adolescentes que so vtimas de violncia com relao aos que so autores e, em geral, so responsveis por apenas 10% das ocorrncias policiais (OLIVEIRA, 2005). Em funo disso, nosso trabalho torna-se relevante medida que pretende dar voz aos prprios adolescentes e priorizar suas falas, aspectos ainda pouco conhecidos pela sociedade em geral, j que h o predomnio da imagem construda pela mdia. Nesse sentido, esperamos contribuir com a abordagem de aspectos ainda pouco conhecidos ou divulgados sobre estes casos, o que fundamental para o adequado enfrentamento do problema.

    Acreditamos que nosso trabalho justifica-se tambm a partir da necessidade de conhecimentos que possam subsidiar propostas de intervenes, sobretudo com relao ao papel do psiclogo neste contexto. Sabe-se que estes casos se distanciam dos ditos casos clssicos em vrios aspectos, exigindo do psiclogo a criao de novas formas de interveno, as quais, na maioria das vezes, iro ocorrer em contextos tambm diferentes dos contextos clssicos, como em instituies. Assim, medida que nosso trabalho possibilita conhecer melhor a dinmica de funcionamento destes jovens, ele poder ser til para pensarmos sobre possveis formas de abordagem teraputica destes casos.

    Inicialmente, apresentamos uma reviso de literatura com os principais estudos e teorias que auxiliaram na construo do projeto de pesquisa e na compreenso dos casos que investigamos. Realizamos uma reviso de estudos e pesquisas que abordaram a temtica da delinqncia juvenil, o que permitiu situarmos o nosso estudo no contexto das produes cientficas brasileiras j existentes a respeito do tema que ser investigado. Alm disso, revisamos os principais textos psicanalticos sobre adolescncia e violncia, j que este foi o referencial escolhido para a anlise dos dados.

    Assim, o Captulo 1 est dividido em duas subunidades: na primeira, apresentamos uma reviso das pesquisas sobre o tema da delinqncia juvenil, priorizando os estudos

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    publicados em peridicos cientficos nacionais. Com isso, buscamos apresentar uma viso panormica sobre os estudos que vm sendo realizados sobre o tema, identificando quais as principais situaes que tm sido associadas com a delinqncia. Na segunda, apresentamos uma reviso terica, priorizando o referencial psicanaltico, onde buscamos discutir as relaes entre a adolescncia e a prtica de atos infracionais no contexto do desenvolvimento psquico. Partimos de consideraes acerca do contexto scio-cultural contemporneo para pensarmos sobre como se d a constituio do sujeito neste cenrio, enfatizando a adolescncia como um momento peculiar desta constituio. A partir disso, procuramos compreender como e em que circunstncias a delinqncia pode fazer parte deste processo.

    No captulo 2, apresentamos a metodologia utilizada na realizao da pesquisa, bem como os procedimentos ticos e bioticos que foram adotados para o desenvolvimento do estudo. A discusso sobre estes procedimentos tornou-se necessria medida que os participantes da pesquisa so considerados vulnerveis em vrios aspectos, exigindo a adoo de medidas especiais de proteo. A realizao destes procedimentos se configurou como um momento muito importante da pesquisa, do ponto de vista do estabelecimento de uma relao comunicativa satisfatria entre adolescentes e pesquisadores.

    No captulo 3, apresentamos os casos que compem o estudo. Seguindo a metodologia escolhida, elaboramos a construo da narrativa articulando os dados das entrevistas com aspectos tericos. Na ltima seo deste captulo, sistematizamos os principais resultados em uma discusso integrada dos casos.

    O captulo 4 apresenta a concluso do estudo. Nesta seo, retomamos os objetivos que nortearam a construo do projeto de pesquisa para discuti-los a partir dos resultados encontrados. Indicamos algumas limitaes deste estudo, assim como propomos questes para investigaes futuras.

    Finalizando o trabalho, tecemos algumas consideraes finais, discutindo como nossos resultados se relacionam com algumas propostas de interveno, salientando o mtodo educativo baseado no protagonismo juvenil e o modelo da Justia Restaurativa.

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    1.1 Delinqncia juvenil na produo cientfica1

    No Brasil, a denominao utilizada na legislao pertinente, o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990) adolescente em conflito com a lei, enquanto que o termo delinqncia juvenil tem sido internacionalmente utilizado para se referir a estes casos. importante destacar a inexistncia de concordncia quanto nomenclatura mais adequada a ser utilizada. Volpi (1997) discute esta questo, salientando que o aspecto principal a ser considerado que se trata de adolescentes, ou seja, sujeitos em especial condio de desenvolvimento, devendo-se evitar expresses como adolescente infrator, ou, o que seria pior, menor infrator, pois estas so terminologias com forte conotao ideolgica. O termo delinqncia juvenil, por sua vez, remete a uma entidade, uma sndrome, ou seja, um quadro relativamente estvel, o que tambm contraria o carter de provisoriedade da adolescncia como um momento peculiar do desenvolvimento (SILVA, 2002). O risco que se corre ao utilizar estas terminologias corresponde reduo da vida e identidade do adolescente ao ato infracional cometido, aspecto amplamente discutido por Foucault (1997) e que consideramos muito pertinente. Apesar disso, o termo delinqncia juvenil corresponde a um descritor bastante utilizado em bases de dados de textos cientficos, de forma que seu uso facilita a busca de outros estudos e a prpria divulgao do trabalho, sendo ento um termo til do ponto-de-vista da produo de conhecimento. Neste trabalho, seguimos a orientao de Volpi (1997) e procuramos nomear os adolescentes prioritariamente como adolescentes, evitando ao mximo o uso de outras expresses, as quais foram utilizadas apenas quando estritamente necessrio. Quando nos referimos aos trabalhos de outros autores, procuramos manter a nomenclatura utilizada por eles e mantivemos a utilizao do termo delinqncia juvenil no sentido da identificao do fenmeno na literatura pertinente.

    Os casos de adolescentes que cometem atos infracionais tm sido abordados a partir de trs nveis de conceitualizao: o nvel estrutural, o scio-psicolgico e o individual, conforme sistematizao proposta por Shoemaker (1996). O nvel estrutural incorpora as condies sociais, enfatizando a influncia da organizao social na constituio do sujeito que comete atos infracionais. Neste nvel, por exemplo, leva-se em considerao a associao

    1 Parte desta seo foi submetida como artigo terico Barbari Revista do Departamento de Cincias

    Humanas e do Departamento de Psicologia da UNISC, o qual foi aceito com publicao prevista para o nmero 33 (fevereiro/2011). Apresentamos este artigo no Anexo A.

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    entre delinqncia e pobreza ou desigualdade social, o que mais acentuado nas classes populares.

    O nvel scio-psicolgico refere-se s instituies de controle social, como a famlia e a escola, alm de aspectos como auto-estima e influncia de grupos de pares no comportamento delinqente juvenil. Neste nvel, considera-se a delinqncia como resultado de problemas na vinculao social do jovem com instituies como a famlia e a escola, entre outras, as quais seriam representantes das normas sociais. Nesse sentido, considera-se como fundamental o maior ou menor controle que estas instituies exercem sobre o jovem. Outro aspecto abordado neste nvel refere-se relao entre a auto-estima do jovem e a delinqncia, considerando-se que estes fatores so inversamente proporcionais, ou seja, a delinqncia est relacionada com uma baixa auto-estima. No nvel scio-psicolgico tambm se considera a relao entre delinqncia e a associao de jovens em grupos, entendendo-se que a influncia dos pares sobre o jovem e as inter-relaes estabelecidas nos grupos so fatores importantes de serem considerados na gnese da delinqncia.

    Por fim, o nvel individual inclui aspectos biolgicos e psicolgicos, privilegiando os mecanismos internos do indivduo como determinantes para a delinqncia. Neste nvel, considera-se que os aspectos biolgicos hereditrios e as caractersticas de personalidade, como a inteligncia, podem predispor o indivduo para a criminalidade. A personalidade pode ser considerada como fundamental para o entendimento da delinqncia, pois resulta justamente da interao entre as influncias do meio e a bagagem gentica individual. Alguns dos atributos de personalidade freqentemente relacionados com a delinqncia so: impulsividade, inabilidade em lidar com o outro e de aprender com a prpria experincia de vida, ausncia de culpa ou remorso por seus atos, insensibilidade dor de outrem e transgresses.

    importante ressaltar que nenhum destes fatores suficiente de modo isolado para explicar a delinqncia, que considerada um fenmeno complexo, resultado da interao entre os diversos fatores organizados segundo os nveis estrutural, scio-psicolgico e individual, descritos anteriormente. Assim, um conhecimento abrangente acerca da delinqncia juvenil deve considerar uma anlise destes trs nveis integradamente (ASSIS; SOUZA, 1999).

    Diversos trabalhos presentes na literatura associam delinqncia juvenil e instituies de controle social, como a famlia e a escola. Nestes trabalhos, considera-se a delinqncia como resultado de problemas na vinculao social do jovem com instituies representantes das normas sociais, sendo fundamental o maior ou menor controle que estas instituies

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    exercem sobre o jovem. A famlia enquanto uma instituio de controle social foi um foco privilegiado nos estudos, que enfatizaram principalmente a existncia de fragilidades nas composies familiares de adolescentes que cometem atos infracionais.

    Oliveira e Assis (1999), em um estudo exploratrio composto por uma abordagem mista, realizado em trs instituies responsveis pela custdia judicial de adolescentes infratores, demonstraram os efeitos danosos da vida imposta a estes jovens, seja pela famlia, sociedade, judicirio e/ou pelas prprias instituies de custdia. Entre estes efeitos danosos, cita-se o distanciamento do adolescente de sua famlia, provocado ou intensificado pela institucionalizao; o flagrante afastamento do ambiente escolar e o preocupante ndice de analfabetismo apresentado pelos internos; as remotas possibilidades de insero no mercado de trabalho; a precariedade dos recursos humanos institucionais, que reduz a qualidade do atendimento e reproduz uma relao marcada pelo distanciamento, o que eles j vivenciam com relao famlia. As instituies de custdia no encaravam o atendimento aos jovens como uma prioridade, funcionando superlotadas, inapropriadas para a socializao, desumanas e descumprindo o ECA, legislao pertinente a estes casos. Assim, acabavam acrescentando ainda mais danos trajetria destes jovens.

    Rosa (1999) tambm demonstra como um processo de desqualificao e desvalorizao social da famlia destes jovens propicia rompimentos e leva os indivduos rua. Nestas situaes, o discurso social, em substituio ao discurso dos pais, um discurso que evidencia a carncia, oferecendo a estes meninos um lugar despido de valor flico, o que evidenciado na prpria forma como eles costumavam ser nomeados: menor abandonado, menor carente. A delinqncia, nesse contexto, pode ser entendida como uma tentativa de resgate de algum valor flico, constituindo-se como nica possibilidade de nomeao e de identidade em muitos casos.

    Feij e Assis (2004), ao pesquisarem o ncleo familiar de jovens que cometeram atos infracionais graves, constataram a fragilidade da maioria das famlias, que experimentam uma condio de pobreza e excluso social; essas famlias encontram-se isoladas do amparo social. Neste estudo, as autoras identificaram que a maioria dos adolescentes proveniente de famlias divididas, em que os pais se separaram e muitas vezes abandonaram os filhos ou morreram. So famlias em que a infra-estrutura prejudicada seja em termos financeiros, emocionais ou domiciliares. Entre algumas das vulnerabilidades identificadas nestas famlias, cita-se a desqualificao para o trabalho, o desemprego, o baixo nvel de escolaridade, o analfabetismo, a ausncia de algum dos genitores, a violncia fsica e psicolgica, e problemas de relaes interpessoais e de comunicao.

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    Priuli e Moraes (2007) encontraram dados semelhantes; eles identificaram situaes de vulnerabilidade pessoal e familiar em adolescentes institucionalizados pela prtica de ato infracional que, assim, so considerados autores e tambm vtimas de violncia. Foi detectado que a maioria dos jovens residia em uma rea cuja precariedade social revelada pela existncia de poucos equipamentos sociais, caracterizando-se por uma maioria populacional de menor poder aquisitivo e baixo nvel de escolaridade, e ainda pelo alto coeficiente de mortalidade infantil.

    O trabalho de Carvalho e Gomide (2005) tambm vai nesse sentido. Essas autoras consideram que a famlia do adolescente em conflito com a lei tem uma forte influncia tanto na aquisio e manuteno dos comportamentos infratores quanto na extino destes comportamentos, de forma que as prticas educativas parentais constituem uma forma de se analisar a aquisio e manuteno desses comportamentos. Assim, as autoras investigaram as prticas educativas parentais em uma amostra de adolescentes em conflito com a lei e seus respectivos pais, e concluram que se trata de famlias de risco, cujas prticas parentais no favorecem um desenvolvimento saudvel. Diante disso, as autoras apontam a importncia da identificao dos estilos parentais exercidos nessas famlias para elaborao de programas de orientao e treinamento de pais.

    Benhaim (2008) faz uma anlise terica da delinqncia utilizando a teoria psicanaltica, especialmente enfocando os conceitos de funo materna, iluso e desamparo. levantada a hiptese de que a problemtica delinqente repousa sobre uma falta de iluso, de forma que o desamparo infantil se transforma em desespero juvenil.

    Olhando as instituies de controle social, a partir de um ponto-de-vista amplo, Branco, Wagner e Demarchi (2008) identificaram as caractersticas da rede social dos internos de uma instituio scio-educativa e de suas famlias. A rede social tem um importante papel na compreenso, preveno e tratamento de jovens delinqentes, sendo a famlia um aspecto bastante considerado. Entre os resultados, as autoras indicaram que estas redes sociais so falhas, principalmente com relao escola e ao trabalho. Assim, sugere-se a implantao de medidas educativas e laborais mais significativas para internos de instituies scio-educativas, bem como que se desenvolvam atividades comunitrias, com vistas a superar estas falhas.

    Dellaglio et al. (2005) tambm indicam que condies familiares e uma rede social precrias esto associadas ocorrncia de atos infracionais. Esses autores identificaram eventos em diferentes domnios (como maus-tratos, abuso sexual, uso de drogas, repetncia escolar, desemprego e morte dos pais) que se constituem em fatores de risco. A hiptese

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    central destaca que h um ciclo de violncia presente na trajetria das adolescentes que antecede a prtica do ato infracional.

    Dados semelhantes so encontrados ainda no estudo desenvolvido por Dellaglio, Santos e Borges (2004). Ao investigarem a trajetria de vida de adolescentes do sexo feminino que cumpriam medida scio-educativa, encontraram a presena de repetidas rupturas nas relaes dessas jovens com seus cuidadores, alm de situaes de violncia intra e extrafamiliar. Assim, as autoras desse estudo concluram que a falta de estabilidade e a fragilidade dos vnculos estabelecidos durante diferentes fases do desenvolvimento, assim eventos estressores vivenciados, podem estar associados manifestao dos comportamentos desadaptativos pelas adolescentes, sendo facilitadores para a entrada na vida infracional.

    Alguns trabalhos construram sua compreenso terica do fenmeno levando em conta tanto aspectos scio-psicolgicos quanto fatores individuais envolvidos no mesmo. Quanto aos aspectos scio-psicolgicos, consideram-se fatores como auto-estima e influncia de grupos de pares no comportamento delinqente juvenil e, quanto aos aspectos individuais, consideram-se os fatores biolgicos e psicolgicos, privilegiando os mecanismos internos do indivduo como determinantes para a delinqncia.

    Por exemplo, Assis e Souza (1999), estudando jovens que cometeram infraes e seus irmos que no cometeram infraes, indicaram que estes jovens diferem sob diversos aspectos. No que tange aos aspectos familiares, as autoras demonstram que os adolescentes que cometeram atos infracionais mantm imagens mais idealizadas de suas famlias e possuem maiores dificuldades para lidar com perdas familiares e estabelecer um vnculo afetivo mais forte, quando comparados aos seus irmos que no cometeram infraes. As autoras identificaram tambm que uma falta de controle familiar estava presente no caso dos adolescentes que cometeram infraes; esses jovens eram, em sua maioria, os caulas e vistos como os preferidos da famlia. No que se refere s questes scio-psicolgicas, identificaram diferenas tanto na escolha das amizades como em relao s oportunidades de vida, sendo percebidas tambm diferenas individuais importantes. Entre estas, citamos, por exemplo, diferenas quanto auto-imagem: enquanto os no-infratores se reconheciam como pessoas calmas, tranqilas e conformistas com relao realidade social, os infratores se reconheciam como arrojados, valentes e rebeldes com relao s dificuldades da vida.

    O trabalho de Menin (2003) aborda a temtica da delinqncia juvenil a partir da teoria de representao social. A autora pesquisou atitudes de adolescentes frente delinqncia, e evidenciou que a forma de avaliao das infraes est relacionada com o gnero e a classe social a qual os jovens pertencem. As meninas e os adolescentes de classes

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    mais baixas tendem a atribuir notas mais altas s infraes que os meninos e os adolescentes de classes mais altas, ou seja, meninas e adolescentes de classes mais baixas tendem a ser mais severos ao julgar a gravidade de uma infrao, enquanto que meninos e adolescentes de classes mais altas tendem a ser mais tolerantes. Desta forma, a autora concluiu que as diferenas de avaliao das infraes esto relacionadas com o gnero e a origem social dos sujeitos da pesquisa.

    Sena e Colares (2008), ao investigaram as condutas de sade entre adolescentes em conflito com a lei, concluram que esses jovens apresentam maiores ndices de comportamentos de risco em relao sade quando comparados a jovens que no cometem atos infracionais, principalmente relacionados ao uso de substncias psicoativas e ao exerccio da sexualidade. Estas autoras identificaram diversos comportamentos de risco, tais como porte de armas, envolvimento em briga, uso de lcool e tabaco, uso experimental de inalantes e maconha, relao sexual desprotegida e em geral com mais de um parceiro.

    O estudo de Facundo e Pedro (2008), por sua vez, analisou os efeitos dos fatores de risco pessoais e interpessoais sobre o consumo de drogas em adolescentes de bandos juvenis, constatando a importncia dos mesmos. Os fatores pessoais de risco que mais contriburam para o consumo de drogas foram o sexo, a idade e problemas de sade mental. Quanto ao sexo, os homens mostraram maior probabilidade para o consumo de drogas. Quanto idade, identificou-se que, medida que aumenta a idade, maior a probabilidade de consumo de drogas e, ainda, que quanto mais precoce for o incio do uso de drogas, maior ser o consumo e a dependncia. Quanto aos problemas de sade mental, indica-se que quanto maior so os problemas de sade mental, maior a probabilidade do consumo de drogas. Quanto aos fatores de risco interpessoais, identificou-se que quanto maior a relao com amigos sob condutas desajustadas maior a probabilidade para o consumo de drogas.

    Heim e Andrade (2008) demonstram que o uso de lcool e drogas ilcitas entre indivduos que esto em situao de risco alto e precoce em relao a adolescentes que no esto em situao de risco, demonstrando que esta questo uma parte do problema da delinqncia. O estudo sugere a existncia de uma relao estreita entre uso e abuso de lcool e drogas ilcitas e delinqncia, indicando a necessidade de mais estudos sobre esta relao, os quais poderiam esclarecer se o uso e/ou abuso de lcool e drogas ilcitas que induzem ao comportamento delinqente ou o contrrio.

    Martins e Pillon (2008) buscaram analisar a relao entre a primeira experincia de uso de drogas e o primeiro ato infracional cometido por adolescentes em conflito com a lei. Neste estudo, os resultados apontaram que os ndices do primeiro uso do lcool, cigarro e

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    maconha so elevados e ocorrem concomitantemente com idade mdia de 12 anos. Com relao aos delitos, os mais praticados so roubo, trfico de drogas e furto e ocorrem com idade mdia de 13 anos. Os autores demonstraram que existe uma correlao significativa entre o uso do lcool e da maconha com os atos infracionais, exceto o homicdio, e tambm que o uso de drogas precede a prtica infracional.

    A relao entre delinqncia e psicopatologia psiquitrica foi abordada em alguns trabalhos, como no estudo de Pinho et al. (2006). Estes pesquisadores encontraram que 75,2% dos adolescentes que realizaram algum ato infracional preenchem critrios para um ou mais transtornos psiquitricos. Em quase metade dos casos foi identificada a presena de transtornos em co-morbidade, sendo que a associao de patologia mais prevalente foi entre transtornos de conduta e transtornos por uso nocivo de substncia psicoativa. Assim, trata-se de mais um estudo que aborda a associao entre uso de substncias psicoativas e delinquncia, neste caso sob a tica da psicopatologia psiquitrica.

    Pacheco et al. (2005) realizam uma discusso acerca do conceito de comportamento anti-social, que pode ser tomado como um indicador para transtornos mentais especficos e para algumas categorias de problemas comportamentais, sendo ento um conceito importante para a compreenso da delinqncia. Os autores apontam que o padro de comportamento anti-social adquirido na infncia, atravs da interao da criana com a famlia e o grupo de pares. A delinqncia seria, ento, um agravamento desse padro que inicia na infncia e, normalmente, persiste na adolescncia e vida adulta. Assim, esses autores indicam a necessidade de se identificar como alguns fatores contribuem para a estabilidade de comportamentos ou problemas anti-sociais na transio da infncia para a adolescncia.

    Schmitt et al. (2006) compararam adolescentes infratores que cometeram crimes graves (homicdio, estupro e latrocnio) com outros adolescentes infratores, buscando identificar diferenas quanto a psicopatia, reincidncia criminal e histria de maus-tratos. Estes pesquisadores encontraram maior prevalncia de psicopatia e reincidncia criminal entre os adolescentes que cometeram crimes graves, e encontraram alta prevalncia de histria de maus-tratos, mas no houve diferena significativa entre os adolescentes que cometeram crimes graves e os demais neste aspecto. Este estudo levanta a possibilidade de existncia de dois grupos distintos de adolescentes infratores: com e sem psicopatia, hiptese que precisa ser mais investigada.

    Formiga, Aguiar e Omar (2008), por sua vez, buscaram explicar a delinqncia juvenil atravs do construto busca de sensaes. Esses autores encontraram uma relao direta entre a busca de intensidade e de novidades com condutas anti-sociais e delitivas. Em outro estudo,

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    Formiga et al. (2007) identificaram uma relao positiva entre a busca de sensaes de intensidades e novidades e comportamento agressivo fsico e verbal, raiva e hostilidade. Esses estudos mostram que traos de personalidade, ou seja, caractersticas individuais permitem explicar a conduta juvenil.

    Assis e Constantino (2005) apresentaram uma reviso das teorias referentes preveno da violncia cometida por adolescentes, discutindo como os fatores de risco devem direcionar estratgias de preveno nos nveis primrio, secundrio e tercirio. Estas autoras abordaram tanto caractersticas individuais como sociais envolvidas no fenmeno, mostrando a complexidade do mesmo. As autoras criticam o direcionamento dos gastos pblicos que vai apenas para o policiamento das cidades e a manuteno da segurana nas prises; essas atitudes, na opinio das autoras, revelam uma crena corrente de que a represso violncia a soluo para os problemas sociais.

    No entanto, as autoras enfatizam a necessidade de aumentar a preocupao com a preveno da violncia, tema que tem ocupado reduzida parcela de ateno. Os principais fatores de risco para que os jovens envolvam-se com atos violentos so: ser jovem do sexo masculino, apresentar algumas caractersticas biolgicas e psicolgicas (tais como danos neurolgicos sutis, impulsividade, hiperatividade, precrio controle diante de frustraes, deficincia de ateno e incapacidade de planejamento e fixao de metas e baixos nveis de inteligncia), elevada vulnerabilidade e tendncia excluso social gerada por negligncia, abandono, pobreza, criminalidade e violncia na famlia, escola, comunidade e sociedade em geral. Alm disso, o fato de pertencer a uma famlia com laos frgeis seja por precria situao scio-econmica, deficiente superviso por separao dos pais, ausncia da me do lar devido ao trabalho ou distanciamento da figura paterna, presena de mortes e doenas rotineiras na famlia tornam o jovem mais vulnervel (ASSIS; CONSTANTINO, 2005).

    Nesse sentido, essas autoras reconhecem que os relacionamentos familiares marcados por agresses fsicas e emocionais, precrio dilogo intrafamiliar e dificuldades em impor disciplina esto associados delinqncia juvenil. Essas autoras apontam que o jovem pode ainda apresentar problemas escolares (poucos anos de estudo, abandono escolar, desentendimento com professores e colegas, reprovaes repetidas) e utilizar drogas, geralmente associado convivncia no grupo de pares. Nesse sentido, esse estudo indica como fatores individuais e sociais acabam se entrelaando na produo do ato infracional (ASSIS; CONSTANTINO, 2005).

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    Outros trabalhos abordaram a questo da delinqncia juvenil a partir de um ponto-de-vista amplo, considerando aspectos de ordem estrutural. Neste sentido, so descritos trabalhos que enfatizam a influncia da organizao social na produo da delinqncia.

    Entre estes estudos, citamos o trabalho de Formiga e Gouveia (2005) que prope a utilizao dos valores humanos como um construto que pode contribuir para a predio da violncia entre os jovens. Estes autores apontam que o investimento em valores individualistas fomenta maior freqncia das condutas desviantes entre os jovens, enquanto que o estmulo de comportamentos baseados em normas coletivistas contribuiria para a diminuio das condutas anti-sociais e delitivas. Nesse sentido, os autores discutem sobre a tendncia atual ao individualismo, enfocando valores que priorizam o interesse individual, o que potencializa condutas que se desviam das normas sociais. Assim, chamam ateno para a dimenso social do fenmeno da delinqncia.

    As polticas pblicas voltadas para a infncia e adolescncia tambm foram objeto de estudo. Cruz, Hillesheim e Guareschi (2005) problematizam a insero da Psicologia nestas polticas atravs do estabelecimento de padres de normalidade e anormalidade e circunscrio de etapas evolutivas, o que no levaria em considerao as concepes de infncia e adolescncia como construes sociais, ou seja, datadas geogrfica e historicamente. Este estudo critica a posio do psiclogo como especialista perito, na medida em que sua atuao desloca o foco de questes sociais para considerao de aspectos individuais. Nesse sentido, as autoras defendem que o campo das intervenes deve ser assumido como um territrio poltico, onde as lutas so cotidianas.

    Embora em menor nmero, tambm encontramos trabalhos que abordaram intervenes relativas problemtica da delinqncia juvenil. Em geral, a maioria dos trabalhos compreensivos sugere propostas de interveno em termos de concluso dos estudos, porm, salientamos aqui a existncia de trabalhos que apresentaram a interveno como o principal foco do estudo. Embora em menor nmero, com relao aos trabalhos compreensivos, estes trabalhos mostraram-se importantes, apresentando propostas formalizadas para diferentes nveis de interveno. A seguir discutiremos alguns desses estudos.

    Alguns trabalhos abordaram a importncia de intervenes de cunho preventivo. Oliveira e Assis (1999), por exemplo, consideram que as estratgias de preveno recaem tanto no mbito pblico quanto no privado, nas relaes sociais interpessoais, interinstitucionais e intersetoriais, uma vez que a delinqncia no apenas fruto da patologia individual, mas tambm das estruturas e conjunturas socioculturais. Assim, um problema

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    que deve ser enfrentado pelo conjunto da sociedade, por um conjunto de aes, em diferentes nveis. Estas autoras defendem que a privao de liberdade deve ser restrita a casos extremos, e deve ser rigorosa principalmente quanto qualidade da assistncia prestada. Para isso, sugerem que o atendimento seja oferecido a pequenos grupos de adolescentes, e que siga uma tica essencialmente tcnica, priorizando-se a oferta de ensino regular e profissionalizao. Alm disso, sugerem a nfase em trabalhos comunitrios como uma forma mais eficiente de atuar sobre o problema de jovens autores de atos infracionais. Com relao a isso, citam como exemplo um programa desenvolvido na Mangueira, patrocinado pela iniciativa privada e pela prpria comunidade, que abrange uma larga faixa etria e mantm em pleno funcionamento atividades pedaggicas, artsticas e esportivas da maior qualidade. Consideram que a produtividade deste programa pode ser expresso pelo nfimo nmero de adolescentes desta comunidade que do entrada em processos judiciais, e sugerem a parceria entre equipamentos do Estado, da sociedade civil e da prpria comunidade como uma medida necessria a ser adotada.

    Para Assis e Constantino (2005), as estratgias de preveno devem ser estruturadas com o objetivo de evitar ou minimizar os efeitos dos fatores de risco, amplamente j identificados pela literatura sobre o tema. Assim, as autoras destacam reas de preveno que tm mostrado impacto significativo na reduo da delinqncia juvenil, tais como a interveno durante a gravidez e infncia em famlias que se encontram em situao de risco, a realizao de treinamento para pais, programas de preveno primria dos crimes e da violncia realizados em escolas e intervenes precoces destinadas a jovens infratores que promovam a reabilitao e reinsero social, profissional e familiar.

    Bocco e Lazzarotto (2004), ao relatarem sua experincia de trabalho com adolescentes sob a perspectiva da anlise institucional, salientam a necessidade de ampliar o olhar voltado para estes jovens. Ressaltam que esses jovens costumam ser percebidos apenas como violentos e ameaadores, assim para que uma interveno seja bem-sucedida preciso rever essas crenas. Elas questionam os lugares e saberes naturalizados a respeito desses jovens, buscando pensar novas formas de fazer Psicologia e lidar com este pblico. As autoras defendem que estes jovens representam um paradoxo. A palavra infrao, etimologicamente significa a ao de quebrar, assim representa tanto a ruptura com as normas sociais quanto a capacidade criativa de construir algo novo. Assim, a interveno pode se beneficiar ao contemplar este duplo sentido.

    Costa (2005), por sua vez, ao discutir as possibilidades efetivas de aes destinadas promoo de mudanas significativas na vida de adolescentes infratores, aponta para as

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    dificuldades atuais do sistema scio-educativo. A autora observa que experincias bem-sucedidas identificadas no pas enfatizam a necessidade de ampliao da escuta psicolgica como uma alternativa busca de condies mais favorveis ao atendimento das reais necessidades do adolescente.

    Guirado (2006) tambm v a escuta como um fator importante ao atendimento do adolescente infrator. Essa autora discute a necessidade de repensar a clnica psicanaltica quando ela feita em instituies diferentes do consultrio, defendendo que ajustes devem ser realizados nesse modelo, para que o mesmo se torne efetivo. Assim, a autora discute estes ajustes atravs dos conceitos de transferncia e contexto institucional, os quais conferem especificidade ao trabalho realizado em instituies para adolescentes autores de atos infracionais e interferem no modo como se estabelece a relao teraputica.

    A ateno psicolgica como uma interveno para acolhimento do sofrimento humano em situaes de crise tambm defendida por Aun et al. (2006). As autoras compreendem a transgresso numa dupla significao: como um espao de denncia social de situaes de excluso, e como a busca de modos de ser no institudos. Partindo desta compreenso, defendem uma perspectiva clnica segundo a abordagem fenomenolgica existencial, voltada para que o adolescente se aproprie de sua histria, projetando-se a outras possibilidades: cuidar de ser, responsabilizando-se por si.

    Alm de aspectos psicolgicos, Ribot e Machado (2005) consideram que uma proposta pedaggica deva ser desenvolvida na ateno oferecida ao adolescente infrator. Consideram que uma ao pedaggica inovadora, que segue determinados passos e valoriza o apoio do grupo, de rituais, de valores e de adultos significativos pode auxiliar no trabalho. Esses autores partem do pressuposto de que acompanhar uma pessoa intervir estando ao lado dela, fazer um trecho do caminho a ser percorrido com ela e apoi-la em sua evoluo, sendo ento uma proposta eminentemente interativa.

    Costa et al. (2007) descrevem uma metodologia de avaliao familiar numa perspectiva da Single Session Work. Esse trabalho baseado numa nica interveno, que tem como potencial gerar informao, resgatar vnculos parentais, significar o ato delinqente, por ser uma interveno crtica pontual e que reativa as potencialidades e criatividade tanto do adolescente como de sua famlia quanto da equipe tcnica.

    Kaufman (2004) e Amaro (2004) ainda discutem a questo da maioridade penal, criticando as instituies scio-educativas existentes. Estes autores consideram que as mesmas no oferecem um autntico tratamento ao jovem infrator, questo que deve ser

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    priorizada, j que a mera reduo da maioridade penal no resolver uma situao to complexa e multifatorial.

    A anlise destes trabalhos permitiu obter uma viso panormica da produo cientfica nacional a respeito da delinqncia juvenil. De modo geral, pode-se dizer que esta produo rica e abrangente no sentido de compreender os diferentes fatores que contribuem para levar os jovens a cometer infraes, conhecimento que fundamental para o enfrentamento do problema.

    As concluses dos estudos analisados descrevem tanto propostas de novas pesquisas quanto de reflexes que podem possibilitar a construo de programas baseados em achados cientficos. Observa-se que vrios trabalhos indicam a necessidade de implementao de programas sociais que visam o fortalecimento das redes de apoio (DELLAGLIO et al., 2005). Estas redes de apoio seriam capazes de identificar fatores de risco e implementar estratgias preventivas s situaes de violncia e vulnerabilidade da criana, adolescente e famlia (DELLAGLIO; SANTOS; BORGES, 2004, LARANJEIRA, 2007). Os trabalhos apontam tambm para a necessidade da implementao de programas de acompanhamento que possam trabalhar a longo prazo com as situaes de vulnerabilidades e riscos presentes nas famlias e contextos sociais dos quais o jovem e sua famlia fazem parte (FEIJ; ASSIS, 2004, BRANCO; WAGNER; DEMARCHI, 2008). Outras duas medidas consideradas importantes na busca por uma soluo do problema da delinqncia juvenil so: 1) a criao de espaos efetivos de educao e de trabalho aos jovens (BRANCO; WAGNER; DEMARCHI, 2008) e 2) a preveno do uso (e abuso) de substncias psicoativas entre adolescentes e seus familiares (MARTINS; PILLON, 2008).

    No que se refere ao atendimento direto do adolescente em conflito com a lei, encontramos sugestes relativas necessidade de se priorizar trabalhos comunitrios em detrimento da internao em instituies (OLIVEIRA; ASSIS, 1999) e necessidade de estratgias teraputicas especficas para jovens com transtornos mentais e/ou usurios de substncias psicoativas (SCHIMITT et al., 2006, SENA; COLARES, 2008, HEIM; ANDRADE, 2008).

    Este levantamento possibilitou obtermos uma viso panormica da produo cientfica nacional a respeito da delinqncia juvenil, a qual composta por diversos estudos. Neste contexto, o nmero de trabalhos que abordam questes de ordem subjetiva mais reduzida, e poucos abordam especificamente a questo que propomos investigar: as relaes entre a prtica de atos infracionais e a construo da identidade do adolescente. Assim, nosso trabalho se reveste de importncia pela sua novidade e poder contribuir ampliando as

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    modalidades de anlise do fenmeno da delinqncia juvenil. Na prxima seo, introduzimos o referencial terico no qual embasamos tanto nossas hipteses quanto nossas anlises de dados.

    1.2 Sociedade contempornea e construo de identidade: mapeando associaes entre adolescncia e violncia

    Embora a violncia esteja presente em todo percurso histrico da humanidade, no sendo, portanto, um fenmeno contemporneo, cabe analisarmos as particularidades deste fenmeno tal como ele se apresenta atualmente. Compreendemos que, em nossa sociedade, a violncia produzida pelas atuais condies sociais ao mesmo tempo em que participa da prpria constituio da sociedade. Nesse sentido, a violncia tambm participa dos processos de identificao e construo de identidade.

    Existem diversos trabalhos voltados ao entendimento da sociedade contempornea. Entre os autores, encontramos diferentes expresses para nome-la e conceitu-la: ps-modernidade (BAUMAN, 1998) ou sociedade da autonomia (EHREMBERG, 2004), por exemplo. Para discutirmos sobre identidade e violncia, selecionamos destes trabalhos as leituras que propem como caractersticas da sociedade contempornea a instabilidade, o enfraquecimento das referncias simblicas, a intensificao do presente e a reflexividade, o que acarreta implicaes significativas para a prpria constituio do sujeito no cenrio contemporneo.

    Bauman (1998) prope uma releitura da concepo freudiana acerca do mal-estar na civilizao. Em linhas gerais, podemos afirmar que Freud (1930/1996) responsabilizou a sociedade moderna pela imposio de limites sexualidade, atravs da moralidade tradicional, o que tornou o sujeito reprimido, de forma que o mal-estar assumia a forma da falta de liberdade. Ao romper com a moralidade tradicional, a ps-modernidade oferece maior liberdade ao sujeito, porm tornou-o inseguro, passando a ser a insegurana a expresso contempornea do mal-estar. Assim, os ganhos e as perdas mudaram de lugar: os homens e as mulheres ps-modernos trocaram um quinho de suas possibilidades de segurana por um quinho de felicidade (BAUMAN, 1998, p. 10).

    Assim, temos o quadro de uma sociedade que impe menos restries ao deixar de oferecer referncias seguras, possibilitando maior liberdade ao sujeito na busca de prazer e

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    felicidade. Neste cenrio de maior liberdade e busca de felicidade, justamente a dimenso da lei que ser preterida: o lugar da lei, da referncia e da ordem tem sido preterido a pretexto do prazer, do amor, da felicidade, da criatividade (MARIN, 2002, p. 20). No difcil imaginar as dificuldades que esta reordenao implica para o desenvolvimento do sujeito, pois neste processo a introduo da lei ocupa um papel central, questo que retomaremos adiante.

    Ehrenberg (2004) considera a questo em termos da passagem de uma sociedade que se centralizava na disciplina (interdio, obedincia, autoridade) para uma sociedade que elege como valor dominante a autonomia, isto , decises e aes pessoais. Assim, temos a noo de um sujeito mais fluido, mais inseguro e mais indefinido, pois carente de referncias estveis para a constituio de si mesmo. Trata-se de um sujeito autnomo, desenraizado e desamparado, que no se define nem pela natureza, nem pela cultura, passando a ter como nica referncia sua prpria reflexividade: sua existncia passa a ser vivida como se fosse resultado apenas de suas escolhas pessoais.

    Este sujeito, desamparado e desenraizado, ao buscar atingir o ideal de autonomia, depara-se, na verdade, com o vazio. Livre e responsvel pela constituio de si mesmo, na sociedade contempornea o sujeito levado a acreditar que tudo possvel, ao contrrio do que ocorria na sociedade moderna. Esta impunha restries e proibies, tornando o ideal dos indivduos algo mais distante e menos possvel. Atualmente, tudo parece possvel. O sujeito deixa de ser limitado pela regulao social, e segue numa corrida alucinante em busca de ideais. Diante de tamanha liberdade e de tantas ofertas de ideais, se o sujeito no encontra a realizao deste ideal sente-se pessoalmente responsvel pelo seu fracasso. Diferente da modernidade, em que o fracasso era atribudo s imposies sociais, o fracasso do sujeito ps-moderno passa a ser vivido como pessoal. Neste sentido, a noo de conflito psquico, que era organizadora das subjetividades, d lugar noo de insuficincia. Assim, em lugar de um sujeito neurtico reprimido, temos um sujeito tomado pela fadiga de ser si mesmo, impotente e deprimido. Se o sujeito moderno no podia, o sujeito atual no consegue (EHREMBERG, 2000).

    A partir disso pode-se entender como muitas das patologias psquicas hoje em evidncia retomam a noo de narcisismo e apresentam sintomas relacionados com os limites e a ao do sujeito, inibindo-a ou estimulando-a: as depresses, as manias, as diversas compulses, as adies, as hiperatividades, as impulsividades e as violncias. Essas transformaes correspondem substituio das estruturas psicopatolgicas clssicas (neuroses e psicoses) pelas chamadas patologias narcsicas ou estados limites. Se as patologias clssicas se constituam como uma defesa, o estado-limite se caracteriza por um

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    estado de permanente insegurana, que se manifesta por uma depresso de tendncia crnica. Nas chamadas patologias narcsicas, h uma sobrecarga excessiva no eu, tornando toda frustrao muito difcil de suportar. O sujeito no obtm satisfao, sente-se vazio e atua impulsivamente. Si la neurosis se caracteriza por el conflicto psquico, el estado limite no llega a conflictualizar: est vaco (EHREMBERG, 2000, p. 152).

    Ao considerarmos que a predominncia do narcisismo infantil coincide com os momentos formadores do ego, entende-se que as patologias narcsicas ou estados-limite evidenciam a existncia de dificuldades neste processo de formao, o qual anterior ao complexo edipiano, que introduz o conflito e origina as defesas neurticas. O ego se configura como uma instncia psquica que tem funo defensiva, necessria para administrar tanto tenses internas quanto externas. Trata-se de uma construo que se origina a partir do abandono da relao fusional com a me, o que se torna possvel atravs das experincias de separao e frustrao (LAPLANCHE, 1992).

    Com relao a isso, Marin (2002) retoma a noo de que a violncia participa da constituio subjetiva, e defende a necessidade do exerccio da chamada violncia fundamental como condio para o aparecimento do sujeito, uma violncia associada com os processos de separao e frustrao inerentes ao desenvolvimento psquico. Assumir a violncia fundamental possibilita a relao com o outro de forma criativa e no fusionada, como se faz em nome do amor ou da felicidade. Sem isso, o aparecimento do sujeito fica comprometido e se vivencia um desamparo que insuportvel e pode levar violncia em ato como nica forma de alvio da tenso pulsional.

    Assim, entende-se que a violncia em ato pode ser resultado de uma situao de desamparo que ameaa a integridade do eu, o qual tem funo defensiva. Nesse sentido, o objetivo da passagem ao ato violento seria eliminar a situao de desamparo, visando preservao do eu. No contexto contemporneo, em que o exerccio da lei tem sido preterido em nome da busca de prazer e de felicidade, em que o exerccio da violncia fundamental negado, observa-se ento o aumento das manifestaes violentas (MARIN, 2002).

    Assim, cabe analisar como estas questes repercutem no desenvolvimento do sujeito, principalmente considerando-se a adolescncia como um momento peculiar deste desenvolvimento. Tendo analisado as relaes entre aspectos da sociedade contempornea, a violncia e a constituio do sujeito, passaremos agora a tratar das repercusses disso para o desenvolvimento do adolescente, de forma a construirmos uma compreenso acerca da delinqncia juvenil levando em considerao estes aspectos desenvolvidos at aqui.

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    Segundo Winnicott (1994), o desenvolvimento emocional segue um processo contnuo que comea antes do nascimento e prossegue ao longo de toda a vida, possuindo um sentido da dependncia para a independncia. Nesse processo, observamos que a importncia do fator ambiental seria maior nos momentos mais precoces, de maior dependncia, que em momentos posteriores do desenvolvimento. neste contexto que o autor salienta a necessidade de uma preocupao materna primria, ou seja, um alto grau de adaptao entre a me e o beb, que permite satisfazer as necessidades da dade e, gradualmente, prossegue no sentido de uma desadaptao progressiva. Assim, comeam a surgir falhas nesta adaptao, falhas que so necessrias para atender crescente necessidade da criana de enfrentar a realidade e de conseguir a separao da me e o estabelecimento da identidade pessoal. Assim, esta desadaptao gradual acaba por se configurar como uma nova forma de adaptao.

    Para vivenciar esta desadaptao gradual e suportar a experincia da separao, necessria ao processo de individuao, Winnicott (1994) salienta a necessidade de um quadro de referncia que oferecer suporte para o desenvolvimento emocional da criana, sem o qual ela no consegue prosseguir. A criana normal far de tudo para se impor, pondo prova seu poder de desintegrar e destruir o mundo, sendo necessrio que o lar suporte tudo o que ela far para desorganiz-lo. medida que o lar (atravs dos cuidadores) consegue suportar os ataques da criana, ele passa a ser sentido como seguro e confivel, oferecendo o quadro de referncia que ela necessita para sentir-se livre. Neste sentido, a qualidade das primeiras relaes da criana com a famlia determinante do desenvolvimento futuro e, justamente por isso, Winnicott (1994, p. 175) enfatiza que a base da sade mental adulta construda na infncia e, claro, na adolescncia.

    Enquanto um momento desse desenvolvimento, a adolescncia se caracteriza como mais um passo do sujeito no sentido da conquista de independncia. o momento de abrir mo dos cuidados familiares e se preparar para assumir-se como um adulto mais independente. Assim, situa-se entre o fim da infncia e o incio da vida adulta, como um perodo de transio, marcado por rupturas e novas ligaes. Do ponto-de-vista da socializao, o sujeito adolescente aquele que perde o lugar de criana que ocupava no restrito espao social familiar, para conquistar como adulto um lugar no contexto social mais amplo (CALLIGARIS, 2000, RASSIAL, 1999).

    Nos termos de Winnicott (1994), pode-se dizer que o momento de ultrapassar o quadro de referncia familiar para buscar um quadro de referncia mais amplo no contexto social. A adolescncia ser, portanto, uma experincia de passagem, de travessia, que implica em um abandono (do passado infantil) e em uma aposta (no adulto futuro), idia presente na

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    obra de diversos autores (ABERASTURY; KNOBEL, 1992, CALLIGARIS, 2000, MELMAN, 1999, RASSIAL, 1999, RUFINO, 1993, WINNICOTT, 1994).

    Aberastury e Knobel (1992) definiram a adolescncia como um processo psicolgico caracterizado por trs lutos bsicos: o luto pelo corpo infantil, o luto pela identidade e papel infantis e o luto pelos pais imaginrios da infncia. Neste trabalho de luto, atravs dos processos de identificao que os modelos e referncias familiares sero internalizados e iro compor a identidade do adolescente em formao, que ir buscar tambm novos modelos e referncias identificatrias no contexto mais amplo da coletividade. Os processos de identificao, assim, assumem um papel central do desenvolvimento do adolescente, que est s voltas com a construo de sua identidade, pois o termo identificao ocupa posio central em relao ao desenvolvimento, organizao da personalidade e constituio do ser como indivduo (LEVISKY, 1998, p. 69).

    Concomitante a isso, o corpo tambm assume um papel central, tornando-se palco de intensas transformaes, que redefinem a imagem e a estrutura fsica do adolescente, modificando seus limites. Ele passa a habitar um corpo instvel, que j no consegue controlar totalmente, pois vive o incremento pulsional da puberdade. Um corpo cujos contornos ainda no esto definidos, e com os quais ainda no se habituou.

    Enquanto uma passagem, a adolescncia caracteriza-se pela insegurana subjetiva e define-se mais pela negatividade que pela positividade: o adolescente no mais criana e ainda no adulto (RASSIAL, 1999). Apesar de comemorar a maior liberdade vivenciada neste momento de seu desenvolvimento, o adolescente tambm passar a sofrer com a insegurana subjetiva. Assim, tanto o passado quanto o futuro tornam-se instncias promotoras de insegurana: as referncias do passado j no servem mais, pois para crescer foi preciso ultrapass-las; e as referncias do futuro no esto dadas e nem garantidas, pois ainda ser preciso encontr-las e conquist-las. A intensificao do presente resta como uma conseqncia inevitvel. Disso podemos compreender por que os adolescentes costumam ser vistos como inconseqentes, pois desprezam o passado na mesma medida em que parecem ignorar as conseqncias futuras de seus atos, estratgia defensiva mobilizada pela insegurana subjetiva caracterstica do processo de desenvolvimento do adolescente (CALLIGARIS, 2000).

    preciso ressaltar que a adolescncia tal como estamos apresentando um processo que se tornou possvel a partir de condies scio-culturais especficas da sociedade moderna ocidental, enfim, uma construo social. No se observa o processo adolescente nas sociedades pr-modernas ou no-ocidentais. A passagem da infncia vida adulta tornou-se

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    problemtica na medida em que a sociedade moderna ocidental no oferece dispositivos sociais, como ritos de passagem, para realizar esta operao. Assim, essa passagem passou a ser vivida subjetivamente, sendo a adolescncia uma espcie de moratria, substituta da eficcia ritual perdida na modernidade a partir do rompimento com a tradio (RUFFINO, 1993).

    Agora, faamos um exerccio de sntese: se retomarmos a idia de que as atuais condies sociais produziram um sujeito mais livre e menos seguro, desenraizado, desamparado e incerto de seus limites, e associarmos a isso a perspectiva do adolescente como um sujeito mais livre e mais inseguro, incerto de seus limites, inclusive corporais, desenraizado do passado infantil e temeroso diante do futuro que comporta o desafio de assumir um lugar social como adulto, o que podemos concluir? Conclumos, portanto, que os adolescentes contemporneos so duplamente livres, desenraizados, inseguros e levados a viver radicalmente a intensificao do presente (OLIVEIRA, 2001). Podemos tambm compreender como a adolescncia tornou-se um ideal social contemporneo, pois o adolescente representa justamente os valores cultuados pela sociedade ps-moderna (CALLIGARIS, 2000). Diante do exposto, pode-se concluir que, no contexto atual, o adolescente vive uma exacerbada busca de liberdade, autonomia e reconhecimento, j que h uma equivalncia entre estes processos tipicamente adolescentes e os processos caractersticos da sociedade contempornea (OLIVEIRA, 2001).

    Retomando a teorizao de Ehremberg (2000) acerca da sociedade da autonomia, marcada pelo enfraquecimento das referncias simblicas e pela reflexividade como a principal referncia para a constituio subjetiva, indagamos: quais as repercusses disso para o processo da adolescncia?

    Encontramos nas idias propostas por Marin (2002) uma possvel resposta a esta questo: no contexto da sociedade da autonomia, em que tem sido dificultado o exerccio da lei, pois ocupar o lugar de quem frustra anacrnico, as crianas e adolescentes estariam sendo sistematicamente abandonados aos seus prprios impulsos sob o pretexto de se proporcionar liberdade. A autora cita como exemplo dramtico desta situao o massacre cometido por dois jovens em Litteton, Colorado, em abril de 1999, quando eles entraram fortemente armados em sua escola e mataram doze estudantes e um professor e aps se suicidaram. No quarto de um deles, foram encontradas diversas armas e bombas, e na entrevista com os pais, estes declararam que nunca entravam no quarto do filho a fim de lhe preservar a privacidade e a liberdade. Assim, Marin (2002, p. 138) questiona: respeito ou negligncia?

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    Sem um quadro de referncia, retomando a expresso de Winnicott (1994) que designa a funo de sustento, amparo (holding) que a famlia tem em relao a seus membros, as crianas e adolescentes de nosso tempo tm permanecido expostas ao desamparo. Vivemos a promessa de se poder ser e fazer tudo o que se quiser, ao passo que tambm cada um pessoalmente responsvel para descobrir sozinho o que melhor para si. O desamparo se atualiza sob a forma de um severo abandono, de ausncia de referncias e parmetros coletivos, sobretudo em um momento estruturante como a adolescncia, onde a tarefa de fazer escolhas fortemente suscitada (MARIN, 2002).

    O desamparo uma noo que retoma a importncia do outro na constituio subjetiva, pois indica a situao em que algum se encontra incapaz de sair-se bem por si prprio, dependendo do outro. Freud (1930/1996) relaciona o desamparo com a condio de prematuridade do recm-nascido, que depende totalmente do outro para satisfazer suas necessidades vitais, e tambm com a condio existencial humana de encontrar um sentido para a vida. Assim, o desamparo se refere a um estado de impotncia diante de uma situao vivida como traumtica. O carter traumtico est associado com a presena de um excesso de tenso ou excitao que o aparelho psquico no d conta de elaborar, ou seja, que ultrapassa a capacidade de elaborao psquica (MARIN, 2002).

    Essa incapacidade de simbolizao que caracteriza a situao de desamparo est associada com a falta do outro como suporte e continncia para o desenvolvimento psquico, acarretando o que Marin (2002) designou como uma situao catastrfica diante de um trauma necessrio, o trauma da separao. A possibilidade de representao desta vivncia, para que no se configure como catastrfica depende justamente que o adulto significativo para essa criana (...) seja capaz de interpretar (simbolizar) as necessidades de sua cria, assumindo-a como um ser diferenciado dela (MARIN, 2002, p. 103). Isto significa que a me precisa ser um porta-voz eficiente para as demandas do filho, oferecendo um continente corporal adequado, atravs do estabelecimento da preocupao materna primria (WINNICOTT, 1994). Quando esta relao adaptativa falha, o processo de diferenciao torna-se catastrfico, ou seja, insuportvel. Assim, fortes vivncias de desamparo oriundas do temor da perda ou da falha das figuras de proteo e amor caracterizam o processo de subjetivao, e a passagem ao ato aparece como uma sada para dar conta do excesso no simbolizado.

    Assim, entendemos como, diante de vivncias catastrficas que dificultam ou impossibilitam o processo de separao e individuao, a violncia pode ser um recurso na busca desesperada de afirmao de um Eu. Para Winnicott (1994), a agressividade, como uma

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    forma de manifestao da violncia, possui dois sentidos: por um lado, uma reao frustrao e, por outro, uma energia vital. Neste segundo sentido, ela est ligada ao prazer corporal, busca de limites e possibilidade de ir ao encontro com algo exterior. Assim, a agresso est sempre ligada, desta maneira, ao estabelecimento de uma distino entre o que e o que no o eu. (WINNICOTT, 1994, p. 98)

    neste sentido que Winnicott (1994) apresenta uma descrio que liga a delinqncia privao da vida familiar, no sentido da falta de um quadro de referncia, a partir do qual a criana poderia se desenvolver e construir sua identidade pessoal, operando a distino entre o eu e o no eu. Assim, entende-se que a criana anti-social est buscando na sociedade o quadro de referncia que necessita para transpor os primeiros estgios de seu desenvolvimento emocional, j que ela no o encontrou no meio familiar. Ela busca estabilidade e segurana atravs do controle externo que espera como resposta a seus atos anti-sociais, de forma que a delinqncia pode ser entendida como um S.O.S., pedindo o controle de pessoas fortes, amorosas e confiantes (WINNICOTT, 1994, p. 122).

    Alm disso, pode-se diferenciar no comportamento anti-social a presena de duas tendncias: uma caracterizada pelo roubo, e outra pela destrutividade. O roubo se configura como a busca do objeto bom que foi perdido, a me suficientemente boa, capaz de interpretar e satisfazer suas necessidades. Nesse caso, o roubo tambm indica que ainda existe esperana de encontrar esse objeto perdido. A tendncia caracterizada pela destrutividade se configura como a procura de uma estabilidade ambiental que suporte a tenso resultante do comportamento impulsivo (WINNICOTT, 1994).

    Alm da delinqncia, pode-se citar outro processo psicolgico que est associado com falhas ou ausncia de um quadro de referncia, o que acarreta a falta de um ambiente confivel: a constituio de um falso self, o qual se constri na base da submisso e tem a funo defensiva de proteger o self verdadeiro. A me suficientemente boa deve complementar as expresses do lactente, interpretando suas necessidades e oferecendo satisfao. Quando a me falha nesta funo de complementao, ela substitui as expresses do lactente pelas suas prprias expresses, o que deve ser validado pela submisso do lactente. Assim, uma relao de submisso substitui a relao adaptativa presente no desenvolvimento normal. Essa submisso seria o estgio inicial da diviso do eu em um falso e um verdadeiro self. Assim, forma-se uma espcie de vitrine, uma metade voltada para fora construda com base em submisso e complacncia, ao passo que a parte principal do eu, que contm a espontaneidade, permanece em segredo (WINNICOTT, 1983).

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    De outro modo, pode-se descrever o processo de formao do falso self no sentido de uma distoro no processo de desenvolvimento: o beb assume a funo ambiental quando o ambiente no confivel, mantendo o eu oculto. Assim, o falso self se empenha na dupla tarefa de esconder o verdadeiro eu e de submeter-se s exigncias que o mundo faz a cada momento (WINNICOTT, 1994).

    Atualmente, a famlia parece falhar em oferecer este quadro de referncia, e isso pode estar associado com os ideais contemporneos de busca de prazer, autonomia e felicidade, onde os adultos esto s voltas com a busca de satisfao para suas prprias necessidades, o que dificulta que se preocupem com o outro. importante lembrar que Winnicott (1994) considera que a preocupao materna primria torna-se possvel a partir de uma identificao da me com o beb, tomando como referncia suas prprias vivncias enquanto beb. Neste contexto de busca de prazer, autonomia e felicidade, as barreiras para limitar tais ideais, que remetem s exigncias de se colocar no lugar do outro, esto bastante diludas, pois pressupem o estabelecimento da separao eu/outro. Assim, os sujeitos encontram-se s voltas com a tentativa de conciliao entre atender os ideais contemporneos de autonomia e felicidade, ao mesmo tempo em que precisam dar conta das extremas vivncias de desamparo decorrentes da tentativa de realizao desta promessa. Entende-se ento que essa dinmica parece caracterizar os sujeitos contemporneos que podem, por exemplo, explodir em doenas psicossomticas, surtos melanclicos, transtornos alimentares, ou passagens ao ato violento

    contra o outro (MARIN, 2002, p. 126). Estes sintomas retomam a idia das patologias narcsicas ou situaes-limite, que no

    esto associadas com a conciliao de um conflito psquico, como nas psiconeuroses, mas com a prpria manuteno da existncia face a situaes que remetem indistino eu-outro (EHREMBERG, 2000). Assim, so estruturas cuja origem est nos traumas ocorridos nos primeiros anos de vida e nas caractersticas das relaes objetais nestes momentos primitivos.

    Segundo Ranna (1998), esta estrutura seria subjacente tanto s somatizaes quanto aos comportamentos de risco, como a delinqncia e a drogadio. Para este autor, existem trs tipos de desarmonia nas relaes objetais que esto implicadas na origem desta estrutura: 1) A caracterizada pela privao decorrente de me depressiva, ausente ou deslibidinizada; 2) A caracterizada pela instabilidade e inconstncia, onde h grande desorganizao quanto aos cuidados do beb, a me com caractersticas agressivas e impulsivas, e a presena de violncia nas relaes familiares; 3) O beb cuja me s presena, sem a vivncia da ausncia ou da falta.

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    Considerando que existem semelhanas entre as estruturas subjacentes s somatizaes e aos comportamentos de risco, torna-se pertinente abordarmos as teorizaes propostas por McDougall (1996), a respeito da dinmica psquica subjacente aos fenmenos psicossomticos, que se aplica ento s adies e s passagens ao ato.

    Os fenmenos psicossomticos abrangem tudo o que atinge o corpo real: alm das doenas do soma, tudo aquilo que atinge a sade ou a integridade fsica quando os fatores psicolgicos desempenham algum papel (MCDOUGALL, 1996, p. 22). A autora inclui, ento, as passagens ao ato, predisposies a acidentes corporais, falhas no sistema imunolgico e a adio, entendida como uma tentativa de superar a dor mental, atravs do uso de substncias, suprimindo o conflito psquico. Neste sentindo, sua conceituao torna-se til para compreendermos as prticas de atos infracionais como passagens ao ato, e retoma a idia de que estas manifestaes esto associadas com os processos de separao e de constituio do eu.

    A matriz deste funcionamento psquico situa-se nas origens do desenvolvimento do indivduo. A vida psquica comea com uma experincia de fuso: um corpo e um psiquismo para duas pessoas que assim formam uma unidade indivisvel. O desenvolvimento exige o abandono desta experincia fusional, o que acarreta o aparecimento da frustrao e do desamparo, de forma que passa a existir a nostalgia de um retorno a essa fuso original, a qual representa o desejo de eliminar toda frustrao e toda responsabilidade.

    A realidade externa mais antiga de um beb o psiquismo de sua me, o qual comanda a qualidade da relao me-beb. Neste universo pr-simblico, a me seria o aparelho de pensar do beb. A partir desta matriz original, o caminho do desenvolvimento dever seguir no sentido da diferenciao progressiva na estruturao psquica da criana entre seu prprio corpo e esta primeira representao do mundo externo que o corpo materno. Assim que a linguagem comear a substituir as formas primitivas de comunicao corporal, configurando-se como uma representao que permitir a presena na ausncia Segundo McDougall (1996, p. 36), medida em que diminuem o contato corporal e as formas gestuais de comunicao com a me, estas so substitudas pela linguagem, pela comunicao simblica.

    Nos fenmenos psicossomticos, h uma dificuldade em se distanciar do funcionamento primitivo fusional e pr-simblico. Assim, estes fenmenos esto associados com as situaes em que as experincias de separao so catastrficas pela inexistncia de continncia ao desamparo inevitvel (MARIN, 2002).

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    Porm, por mais que seja preciso abandonar este modo de funcionamento primitivo para a conquista da diferenciao, no podemos esquecer que fundamental que ele ocorra. Neste sentido, perturbaes na comunicao me-lactente possibilitariam um estado de privao psquica, uma vez que algumas mes no chegam a fundir com o beb e outras no conseguem abandonar a fuso. Esta seria a origem das manifestaes psicossomticas. Desta forma, a me precisa ouvir alternadamente os desejos de fuso, de diferenciao e individuao do beb para que ele possa se apropriar psiquicamente de seu corpo, de suas emoes e de sua capacidade de pensar ou de associar pensamentos e sentimentos (MCDOUGALL, 1996).

    Quando ocorrem falhas neste funcionamento primitivo, no sentido de uma incapacidade materna para ouvir os desejos alternados de fuso e diferenciao, o beb vive um estado de privao psquica, impossibilitado de se apropriar psiquicamente de seu corpo e de seus sentimentos. Assim, se estabelece uma carncia na elaborao psquica e uma falha na simbolizao, as quais so compensadas por um agir de carter compulsivo, procurando, desta forma, reduzir a intensidade da dor psquica. Ento, o sofrimento mental ser descarregado em manifestaes psicossomticas ou em passagens ao ato ao invs de serem reconhecidos em nvel de pensamento verbal. Trata-se de dramas somticos que so sinal de dramas psicolgicos inexprimveis, pois no foram apreendidos psiquicamente (MCDOUGALL, 1989).

    O drama da subjetivao, nestes casos onde as experincias de separao so vividas como catastrficas, pode levar o adolescente a recorrer drogadio como uma tentativa de manter a relao fusional com a me. O adolescente pode revelar a fragilidade de sua identidade atravs da capacidade de ficar imerso na excitao. Nesse sentido, ele tem a tentao de fazer desaparecer o Eu, renunciando a seu estatuto de sujeito, o que pode buscar atravs da drogadio, que oferece a possibilidade de poupar-se do sofrimento doloroso da separao que conduz afirmao da identidade (MARIN, 2002).

    Steffen (2006) relata, a partir de sua experincia com adolescentes em conflito com a lei na Justia da Infncia e Juventude, que a prtica de atos infracionais est freqentemente relacionada com o uso de drogas. A autora desenvolve um entendimento semelhante ao que estamos apresentando, afirmando que estas manifestaes esto relacionadas com uma determinada forma de estruturao psquica, que indica uma dificuldade relacionada a processos psquicos fundamentais. Assim, toma-se o modelo de um aparelho psquico que tende descarga e que, atravs de seu desenvolvimento, vai estabelecer processos secundrios, como a simbolizao, para conter a satisfao imediata. Neste contexto, a

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    transgresso ocorre pela falha na organizao psquica que favorece a passagem ao ato ao no

    conseguir estabelecer a conteno. Alm do uso de drogas, Marin (2002) aponta tambm o fenmeno das gangues e tribos

    adolescentes como alternativas para escapar angstia de ser ou no ser atravs da iluso identificatria, medida que estes fenmenos se caracterizam por uma busca massiva de indiferenciao. Talvez seja justamente para manter esta iluso identificatria que eles tendem a se organizar a partir de regras rgidas e bastante severas, cobrando uma fidelidade total e praticamente perptua de seus integrantes.

    A esse respeito, Digenes (2008) acrescenta que a organizao de jovens em grupos oportuniza que, atravs da violncia, consigam causar impacto, se destacar e, assim, sair da invisibilidade e do anonimato, defendendo-se do vazio de referncias que caracteriza a constituio do sujeito contemporneo. Assim, os grupos urbanos se constituem como uma maneira dos jovens se contraporem ao vazio de referncias, configurando territrios onde a circulao s permitida aos enturmados: a experincia das gangues constitui-se como apelo a uma dimenso esquecida na esfera pblica, especialmente entre