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    Magnficas e magnficos Reitores, excelentssimas e excelentssimos diretores deassociaes cientficas brasileiras

    Os recentes e trgicos acontecimentos no Mato Grosso do Sul so estarrecedorese no deixam margem dvida a um grande nmero de pessoas da classe cientficabrasileira e internacional. Assistimos a um genocdio no sculo XXI, no Brasil dooramento participativo e das aes afirmativas, no Brasil emergente, democrtico, quevem adotando medidas de incluso social, no Brasil da Comisso da Verdade que sevolta para apurar os crimes cometidos pelo regime de Ditadura e se prope a repensar oseu passado. No se trata de retrica. Os recentes casos de estupro tnico, de violnciahedionda, as ameaas de morte e os assassinatos de intelectuais, rezadores, adolescentesindgenas, e a inacessibilidade destes povos ao usufruto da justia e dos direitoshumanos situa o povo Guaran-Kaiow no que a Lei brasileira n2.889/1956, Art. 1,define como genocdio:

    Art. 1 Quem, com a inteno de destruir, no todo ou em parte, gruponacional, tnico, racial ou religioso, como tal: matar membros do grupo;causar leso grave integridade fsica ou mental de membros do grupo;submeter intencionalmente o grupo a condies de existncia capazes deocasionar-lhe a destruio fsica total ou parcial; adotar medidas destinadas aimpedir os nascimentos no seio do grupo; efetuar a transferncia forada decrianas do grupo para outro grupo.

    Lembremos, sucintamente, alguns dos inmeros fatos que compem este

    hediondo cenrio. A expulso dos indgenas para beiras de estrada, acampados emabrigos de lona preta, com temperaturas elevadas e gua contaminada; a exclusoviolenta ao acesso a recursos para caa, pesca, cultivo; as injrias e incitaes pblicasao racismo, as ameaas de morte, a impossibilidade de mobilidade segura para centenasde ndios; as agresses e os assassinatos violentos e impunes, dos quais, os casosrecentes do assassinato do adolescente Kaiow Denilson Barbosa, de 15 anos de idade eo atropelamento criminoso da criana Gabriel de 4 anos de idade so apenas os maisrecentes dentre vrios. No dia 17 de fevereiro, Denilson foi morto a tiros no municpiode Caarap (MS). As duas testemunhas e sobreviventes relataram que o crime ocorreu

    quando Denilson, seu irmo de onze anos e seu cunhado foram pescar no crregoMbopei, cuja nascente fica dentro do tekoha (espao onde se vive em guarani) e cujocurso se d por entre fazendas do entorno. As testemunhas relatam que viram Denilson,o nico que no conseguira fugir ante a aproximao dos trs homens armados, serespancado e levado em uma caminhonete antes de ser encontrado sem vida. O irmo e ocunhado da vtima identificam os trs indivduos que os atacaram como funcionrios dofazendeiro Orlandino Carneiro Gonalves, que detm a Fazenda Sardinha, vizinha aotekoha em Caarap. O fazendeiro se apresentou polcia civil confessando ter atiradoem Denilson, afirmando no ter sido caso de tortura nem de assassinato premeditado,mas sim, por ter percebido movimentos suspeitos em sua terra. Parece inacreditvel,mas o crime foi classificado, como j outros com vtimas indgenas, como crime comum

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    e, portanto, de competncia da Justia Estadual. Como enfatizado pela entidadeinternacional Advogados Sem Fronteiras, trata-se de um grave equvoco, pois nega ocontexto do conflito por demarcao das terras, no leva em considerao que Denilsonintegrava uma famlia conhecida por defender reivindicaes de terras. A AdvogadosSem Fronteiras, justamente, entende que no reconhecer o carter poltico de crimesrelacionados ao conflito por demarcao de terras, no reconhecer a natureza racista dasviolncias e sua relao com a etnia das vtimas, configura uma forma de omisso por

    parte do Estado Brasileiro e do Governo Estadual do Mato Grosso, omisso que permitea impunidade de muitos assassinatos e no garante a proteo integridade fsica desses

    povos. Quanto ao menino Gabriel, morto por atropelamento, os porta vozes doConselho Indgena Guarani e Kaiowa, Aty Guasu, publicaram nas redes sociais umcomunicado construdo a partir de um relato ouvido da me e do tio do menino GabrielGuarani-Kaiow. Ambos estavam com o menino no momento do atropelamento. Nocomunicado constam, ainda, informaes levantadas pela comisso da Aty Guasu no

    local onde ocorreu o atropelamento. O comunicado informa que Gabriel, a me e o tioandavam no acostamento da rodovia, que possui faixa exclusiva para pedestres eciclistas, quando o menino foi atropelado. O veculo atropelou e dilacerou a criana e,em seguida, retornou no mesmo local e tentou ainda atropelar a me, voltando emdireo a Usina So Fernando. A me e a comunidade Guarani-Kaiow esclareceramque as trs pessoas, na ocasio, iam de sua barraca para o centro de Dourados MS

    buscar comida e gua potvel. De acordo com o relato, a criana tinha fome e esse foi omotivo da viagem. Segundo o tio, a viatura da Polcia Rodoviria Federal somente teriachegado, juntamente com jornalista, 40 minutos aps o atropelamento de Gabriel pelo

    veculo da fazenda. Nesse momento, a me encontrava-se desmaiada perto da criana. Otio ouviu policiais e jornalistas acusarem os ndios de estarem bbados e, portanto, deserem culpados pelo incidente, quando o senhor afirma que ele e a me do garoto noestavam bbados. O comunicado atesta que a partir disso, j foram divulgadas notciasde que os ndios seriam culpados. At o dia 25/03/2013 a investigao ainda notinha comeado. Em funo da demora, me e tio procuraram, na tarde desse mesmodia, o Ministrio Pblico Federal e a FUNAI e narraram o incidente. O informativo daAty Guasu concludo esclarecendo que outros quatro indgenas j foram atropeladosno mesmo local, mas as investigaes tambm no foram concludas e ningum foi

    punido. Verifica-se o genocdio Guarani-Kaiow em curso.

    Os grupos de lngua guarani, como os Kaiow e Guarani atuais, sofrem comprticas genocidas e etnocidas desde os primeiros contatos dos grupos indgenas com omundo ocidental. Alm de terem sido vtimas de guerras de extermnio e epidemias, a

    partir do sculo XVI, foram alvos da escravido em massa. Perseguidos at o sculoXIX, lograram, a muito custo, fazer sobreviver sua cultura, seu teko (modo de ser),como chamam. A partir de 1915 e sobretudo durante o governo Vargas e a ditaduramilitar, centenas de grupos locais que viviam em amplos territrios tradicionais no suldo atual Estado de Mato Grosso do Sul foram progressivamente confinados pelo

    Servio de Proteo aos ndios (SPI) em oito pequenas reservas, num total de apenasdezoito mil hectares.

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    Grupos Guarani-kaiow que resistiram e permaneceram nas suas terrastradicionais foram perseguidos duramente. Ao longo de dcadas a poltica dos agentesdo governo atuou no sentido de promover o deslocamento das comunidades Guarani-Kaiow para o interior dessas reservas, com a inteno explcita de liberar amplosespaos para a implantao do agronegcio. At a dcada de 1980 nenhuma nova terraindgena foi demarcada para o grupo, apesar das presses crescentes.

    Ao mesmo tempo em que se consolidou o confinamento dessa populao,avolumaram-se os problemas dentro das reservas, em funo da superlotao econsequentes desequilbrios ecolgicos e econmicos. Prticas autoritrias foramfomentadas pelo antigo SPI e a Funai, nomeando para a administrao das reservas oscapites, que comandavam grupos armados as guardas ou polcias indgenas responsveis por uma forte perseguio a lideranas que insistiam em confrontar osrgos de governo. As lideranas tradicionais que insistiam em reivindicar a posse de

    territrios de onde seus grupos tinham sido expulsos eram acusadas de comunismo,sofrendo espancamentos, torturas e mesmo assassinatos. Os xams tambm eramperseguidos, com a conivncia ou participao direta de integrantes de missesreligiosas.

    As consequncias desse terrvel histricos no ambiente das reservas so brutais:desde 1980, pelo menos 1.000 indgenas, a maioria jovens, praticaram o suicdio. Afome e a desnutrio infantil s so dribladas com a distribuio massiva de cestas

    bsicas ao menos 14,5 mil, mensalmente entregues e o auxlio de programas sociais.Segundo relatrio do Conselho Indigenista Missionrio CIMI, entre 2003 e 2011

    houve mais assassinatos de indgenas em Mato Grosso do Sul (279 mortes) do que emtodo o resto do Brasil (224 mortes). Quase todos os casos acontecem entre os Guarani-Kaiow, que representam 56% dos 77 mil indgenas desse estado.

    Foi a partir do final da dcada de 1970, com a redemocratizao do pas e achegada de grupos de apoiadores, que comearam a repercutir nacionalmente as aesdos Guarani-Kaiow para evitar que fossem retirados de suas terras tradicionais, ou

    buscar recuperar os territrios de onde tinham sido expulsos.

    A partir de 1984, logo depois do assassinato do lder Maral de Souza, o

    governo comea a ceder s presses, passando a reconhecer novas reas como terrasindgenas. Mesmo assim, trs dcadas depois, os Guarani-Kaiow s conseguiramchegar a uma ocupao efetiva de 42 mil hectares. H cerca de outros 50 mil hectares jreconhecidos pelo Governo Federal como terra indgena, mas embargados por aes

    judiciais. Na luta pela demarcao, dezenas de lideranas foram assassinadas.Mandantes e autores desses crimes hediondos seguem impunes. Estes mesmosfazendeiros, organizados em sindicatos e associaes, vm fazendo vrias gestes

    polticas e manifestaes pblicas para impedir a demarcao das terras indgenas noEstado do Mato Grosso do Sul. No ltimo dia 8 de maro, o presidente do Sindicato

    Rural de Mato Grosso do Sul, Sr. Orlando Vendramini, liderou uma manifestaopblica na cidade de Sete Quedas/MS, contra as demarcaes das terras indgenas no

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    Mato Grosso do Sul, prometendo novas manifestaes e j contando com apoio deprefeitos e cmaras municipais deste e de outros municpios da regio. Contando comapoio de uma poderosa articulao poltica, com bancada parlamentar que defende ointeresse do agronegcio, este setor de ruralistas vem realizando gestes para votar umaEmenda Constitucional que retira da Unio e transfere para o Congresso Nacional acompetncia nas decises sobre as demarcaes de territrios destinados ao usufruto de

    povos indgenas. Este projeto de Emenda Constitucional representa um grave retrocessos garantias e direitos conferidos aos povos indgenas pela Constituio Brasileira bemcomo sobre o destino das relaes da nao com estes povos.

    Algo de mais grave reside neste propsito e que afeta profundamente a classecientfica: a explcita negao de todo o conhecimento tcnico-cientfico e

    pluridisciplinar que deve fundamentar os estudos e laudos de demarcao de terras nopas. Estes estudos passam por vrios cientistas e so realizados por especialistas

    extremamente qualificados e geram grande e valoroso conhecimento em diversoscampos cientficos como a ictiologia, a geologia, a arqueologia, a histria, aantropologia, a lingustica, a msica, a farmacologia, etc. Alm de manterem vivos ossistemas ecolgicos em que vivem, os povos indgenas que tm sua sobrevivnciaameaada com este cenrio, vm oferecendo solues e possibilidades de cultivo, de usoda terra, de vida em comum, de uso de plantas e recursos naturais, de medicinas, deculinria, de prticas artsticas. A riqueza destas civilizaes o motivo do interesse deestudos instigantes conduzidos por uma numerosa classe cientfica, ainda que grande

    parte da complexidade de seus sistemas de vida ainda permanea insondvel. O projetode Emenda Constitucional far com que uma classe econmica e poltica, baseadaapenas em interesses econmicos e na avidez dos lucros, decida sobre o destino decivilizaes inteiras que permanecem vivas no pas, bem como sobre o destino dasrelaes da nao com estes povos.

    Isso tudo no diz apenas respeito a uma dramtica violao de direitos humanos.Chama em causa, direta e explicitamente, a cincia e as universidades brasileiras. Asituao do povo Guarani Kaiow desvenda diante de ns a fragilidade dos processosdemocrticos brasileiros e uma estridente contradio entre as concepes atuais decidadania que nosso pas vem implementando desde a redemocratizao e a

    realidade da gesto do territrio e de administrao dos interesses pblicos. Asdiscusses e pesquisas recentes sobre formas de democracia ampliada, radicalizada,transparente, accountable ou desde baixo para cima, demonstram a necessidade deformular polticas a partir da construo constante de dilogos entre os saberes

    produzidos nas universidades, as demandas, os conflitos, os questionamentos dasociedade civil e conhecimentos e saberes locais. Participao, incluso,engajamento dos cidados significam que a legitimao da poltica passa pela escutada riqueza e da complexidade dos saberes em jogo, das demandas por direitos, dascobranas da sociedade civil. Todos esses processos, que constituem parte importantedo debate cientfico contemporneo e da reconfigurao das polticas pblicas, parecem

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    ser desmentidos quando o assunto o genocdio indgena (invisvel, recalcado) oualgumas polticas pblicas sobre os territrios em situao de conflito.

    O que est acontecendo no Mato Grosso do Sul no pode ser lido apenas comoum problema de corrupo em mbito local, ou como um conflito meramente regional.

    Menos ainda pode ser recalcado como algum resqucio, supostamente em extino, deoutro Brasil, do passado, que sobreviveria em regies remotas ou com uma cultura

    poltica e uma sociedade civil menos desenvolvida. Trata-se, pelo contrrio, de umindcio marcante dos processos violentos e excludentes que fazem parte do Brasil dosculo XXI e de suas contradies. Por isso, os acontecimentos de que estamos tratandoe que tm lugar evidente no Mato Grosso do Sul, envolvem diretamente a sociedadecivil e a nao como um todo. Chamam em causa, sobretudo, a Universidade, j quenosso saber exaltado como crucial para a sociedade do conhecimento, a fim delegitimar ou avaliar polticas pblicas, para a acelerao rumo a uma economia

    baseada na informao, que seja inclusiva e fortalea a cidadania. Mas o mesmoconhecimento, que tem tambm como papel central auxiliar, questionar, denunciar,inventar futuros possveis, no parece ser levado em conta na hora da tomada de decisoem situao de conflito.

    A mesma Universidade que se orgulha de seu papel de fortalecedora da incluso,de sua capacidade de reconhecer e escutar a diferena, de sua transdisciplinaridade, estencontrando obstculos internos e externos para vincular efetivamente oconhecimento que produz com outros saberes e prticas, a fim de catalisar a inveno ereconstruo da cidadania.

    Sempre pensamos que o conhecimento que produzimos se presta aodesenvolvimento mas, na verdade, ele parece ter dois destinos possveis: ser ignorado,ou servir para fazer acelerar o desenvolvimento por meio da negao ou doetnocdio, de outros povos e prticas. No entanto, se Universidade significa promover -

    pela cincia - a concertao, a justia, a incluso, o desenvolvimento e a democracia,ento as violncias no Mato Grosso no so apenas contra os indgenas: so tambm anegao da Universidade e da democracia.

    Magnficas e magnficos Reitores, excelentssimas e excelentssimos dirigentes

    de Instituies de Cincia e Tecnologia: nestes termos, solicitamos que uma reflexosobre a atual e preocupante realidade dos Grupos Guarani-kaiow seja empreendida emcada instituio universitria e cientfica do Pas, na mais ampla instncia de discusso.Solicitamos um posicionamento coletivo, institucional e pblico de cada instituio

    perante a sociedade e o Governo brasileiro sobre a situao dos Guarani-kaiow e asituao e dos demais povos indgenas com respeito ao usufruto de suas terrastradicionais.

    Belo Horizonte, 19 de abril de 2013

    Professores da UFMG assinantes:

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    Ana Cristina Fricke Matte - FALE Ana Flvia Moreira Santos- FAFICH Ana Maria R. Gomes - FAE

    Andr Brasil - FAFICH Anna Beatriz Vianna Mendes - FAFICH Augustin de Tugny - EBA Csar Guimares - FAFICH Claudia Mayorga FAFICH Cornelis Johannes Van Stralen Glaura Lucas Escola de Msica Iara Fricke Mate Escola de Msica Jsus Santiago - FAFICH Juarez Melgao Valadares - FAE Licinia Maria Correa FAE Luciana de Oliveira FAFICH Marco Aurelio M Prado FAFICH Marco Scarassati - FAE Marcos Vincius Bortolus Escola de Engenharia Maria Beatriz Mendona (Bya Braga) EBA Maria Gorete Neto - FAE Maria Ines de Almeida FALE Oswaldo Frana Neto FAFICH Pablo Luiz de Oliveira Lima - FAE Paulo Maia - FAE Regina Helena Alves da Silva - FAFICH Renata Marquez Escola de Arquitetura Rogrio Duarte do Pateo FAFICH Rosngela Pereira de Tugny Escola de Msica Ruben Caixeta FAFICH Stella Goulart - FAFICH Wellington Canado Escola de Arquitetura Yurij Castrelfranchi FAFICH