Carlos Monteiro Junior Filosofia, Retórica e Educação no ... · obtenção do título de Doutor...

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Carlos Monteiro Junior Filosofia, Retórica e Educação no Pensamento de Isócrates Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Profª. Irley Franco Rio de Janeiro Setembro de 2016

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  • Carlos Monteiro Junior

    Filosofia, Retrica e Educao no Pensamento

    de Iscrates

    Tese de Doutorado

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.

    Orientador: Prof. Irley Franco

    Rio de Janeiro

    Setembro de 2016

    DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1212441/CA

  • Carlos Monteiro Junior

    Filosofia, Retrica e Educao no Pensamento

    de Iscrates

    Tese apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor pelo Programa de Ps-graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Cincas Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo assinada.

    Prof. Irley Franco

    Orientadora Departamento de Filosofia - PUC-Rio

    Prof. Luisa Severo Buarque de Holanda

    Departamento de Filosofia - PUC-Rio

    Prof. Maria Ins Senra Anachoretta Departamento de Filosofia - PUC-Rio

    Prof. Aldo Lopes Dinucci

    Universidade Federal de Sergipe-UFS

    Prof. Luis Felipe Bellintani Ribeiro Universidade Federal Fluminense-UFF

    Prof. Monah Winograd Coordenadora Setorial do Centro de Teologia

    e Cincias de Humanas PUC-Rio

    Rio de Janeiro, 12 de setembro de 2016

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  • Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou

    parcial do trabalho sem autorizao da universidade, do autor

    e do orientador.

    Carlos Monteiro Junior

    Possui graduao em Filosofia pela Universidade Federal do

    Rio de Janeiro (2008) e mestrado na mesma rea pela

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (2011).

    Atua pesquisando principalmente nos seguintes temas:

    Filosofia Grega, Linguagem, Retrica, Sofstica, Plato e

    Educao. Desde 2009, exerce atividades junto ao Ncleo de

    Estudos de Filosofia Antiga (NUFA) da PUC-Rio. Atua

    tambm como professor de Filosofia no Ensino Mdio.

    Ficha Catalogrfica

    CDD: 100

    Monteiro Junior, Carlos Filosofia, Retrica e Educao no Pensamento de Iscrates / Carlos Monteiro Junior ; orientador: Irley Franco. 2016. 176 f. ; 30 cm Tese (doutorado)Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia, 2016. Inclui bibliografia 1. Filosofia Teses. 2. Iscrates. 3. Retrica. 4. Sofstica. I. Franco, Irley. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Ttulo.

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  • Agradecimentos

    CAPES e ao Departamento de Filosofia da Puc-Rio, pelos auxlios concedidos,

    sem os quais este trabalho no poderia ter sido realizado.

    Aos meus pais, familiares, amigos e Amanda pelo apoio, amor, companheirismo

    e carinho.

    professora Irley Franco, pela orientao e pelas aulas, que contriburam bastante

    no desenvolvimento deste trabalho.

    Aos professores Aldo Dinucci e Luis Felipe Bellintani, pela participao na

    defesa, e s professoras Luisa Severo Buarque de Holanda e Maria Ins

    Anachoretta, pelo apoio, incentivo e comentrios desde o exame de qualificao.

    A todos os professores e alunos do NUFA, pelas discusses, trocas de

    informaes e colaboraes.

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  • Resumo

    Junior, Carlos Monteiro; Franco, Irley. Filosofia, Retrica e Educao no

    Pensamento de Iscrates. Rio de Janeiro, 2016. 176p. Tese de Doutorado

    Departamento de Filosofia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de

    Janeiro.

    A presente tese pretende analisar o modo como a educao filosfica era

    identificada, pensada e discutida na Atenas do sculo IV a.C., especificamente em

    sua interseo com a retrica. Para isso, optamos por utilizar os textos e o

    pensamento de Iscrates como principal referncia, destacando neles os

    movimentos existentes de identificao da filosofia e de sua educao. Um dos

    objetivos centrais desta tese destacar a importncia de Iscrates nesse processo

    de formao da filosofia grega, ressaltando o grande valor dos textos desse

    autor na anlise arqueolgica da educao filosfica. A partir desse tema,

    chegaremos a uma discusso sobre o papel do filsofo na formao dos cidados,

    tema que se tornou bastante frequente nas universidades brasileiras nas ltimas

    dcadas aps a obrigao legal que inseriu a disciplina filosofia na Educao

    Bsica em todo o pas. Acreditamos que analisar esse perodo embrionrio da

    filosofia, no qual ela foi pensada como um instrumento imprescindvel para a

    formao cvica dos cidados, pode estimular reflexes e inquietaes acerca do

    papel dado ao pensamento filosfico na formao dos jovens atualmente, mesmo

    que sejam outros os valores propostos e o contexto cultural em questo.

    Palavras-chave

    Iscrates; Retrica; Sofstica.

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  • Abstract

    Junior, Carlos Monteiro; Franco, Irley (advisor). Philosophy, Rhetoric

    and Education in Isocrates. Rio de Janeiro, 2016. 176p. Doctoral Thesis

    Departamento de Filosofia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de

    Janeiro.

    This thesis aims to analyze how the philosophical education was

    identified, considered and discussed in IV century BC Athens, specifically at its

    intersection with the rhetoric. For this, we chose to use the texts and the thought

    of Isocrates as the main reference, highlighting the flows identification of

    philosophy and their education. A central objective of this thesis is to underline

    the importance of Isocrates in this formation process of Greek philosophy,

    emphasizing the great value of the texts of this author in the archaeological

    analysis of philosophical education. From this issue, we will come to a discussion

    of the philosopher's role in the education of citizens, an issue that has become

    quite common in Brazilian universities in recent decades after the legal obligation

    that entered the philosophy discipline in basic education throughout the country.

    We believe that analyzing this embryonic period of philosophy, in which it was

    conceived as an essential tool for civic education of citizens, can stimulate

    reflections and concerns about the role given to philosophical thought in the

    formation of young people today, even if the values and cultural context in

    question are others.

    Keywords

    Isocrates; Rhetoric; Sophistic.

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  • Sumrio

    1. Introduo 8

    2 . Por que Iscrates? 19

    3 . A filodoxia de Iscrates 37

    4 . Retrica, tcnica e escrita no pensamento isocrtico 66

    5 . A educao filosfica em Iscrates 108

    6 . Consideraes finais 143

    7 . Referncias bibliogrficas 153

    8 . Apndice Contra os sofistas de Iscrates - Traduo 165

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  • 1

    Introduo

    Polis andra didaskei1

    Quando aos dois de junho de 2008 e at mesmo antes dessa data foi

    aprovada a alterao do artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educao

    Nacional (LDB) que tornou obrigatrio o ensino de filosofia e sociologia nas

    escolas pblicas e privadas em todo o Brasil, muitos debates foram promovidos

    para se pensar sobre as bases e consequncias dessa obrigatoriedade2. Dentre estes

    debates, possvel citar, por exemplo, a necessidade de reviso do currculo das

    universidades e a intensificao da valorizao das licenciaturas3, a fim de suprir

    essa nova demanda de profissionais capazes de incentivar a reflexo filosfica

    principalmente nos adolescentes, mas tambm na educao de jovens e adultos4.

    Alm disso, se fez necessria tambm a discusso sobre a seleo dos contedos

    filosficos, a metodologia de ensino, as prticas pedaggicas e os materiais

    didticos coerentes com esta etapa da educao, levando em conta, igualmente, a

    heterogeneidade dos aspectos sociais, cognitivos, emocionais e culturais presentes

    no ambiente escolar. Assim como, por fim, uma discusso mais abrangente sobre

    o papel do filsofo na formao dos cidados, e ainda, debates sobre o que

    entendemos por filosofia no sculo XXI e como ela pode contribuir para o

    1 A cidade educa o cidado Frag. 23 Simnides.

    2 Como a rea de concentrao desta tese se limita filosofia, a discusso se desenvolver,

    exclusivamente, em torno do ensino da filosofia. No dia 23 de Setembro de 2016 o Governo

    Federal publicou no Dirio Oficial da Unio uma polmica Medida Provisria (476) que altera a

    organizao do Ensino Mdio, com a proposta de tornar seu currculo obrigatrio mais flexvel e

    atrativo, sendo apenas as disciplinas portugus e matemtica obrigatrias nos trs anos dessa etapa

    final da Educao Bsica. Com isso, foi alterado o artigo que estabelecia a filosofia e a sociologia

    como disciplinas obrigatrias em todo Brasil nas trs sries do Ensino Mdio, cabendo s

    instituies de ensino decidir quando e como ofertar essas disciplinas. 3 Que ainda vista por alguns acadmicos como algo menos importante, ou at mesmo,

    menos filosfico. 4 Denominado de EJA, dedicada aos que no completaram o ensino regular na idade

    apropriada. E ainda mais, com essa obrigao legal abriu-se espao para aulas de filosofia, na

    educao formal, em escolas indgenas, no sistema prisional, escolas tcnicas, entre outros.

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    desenvolvimento dos valores tidos como imprescindveis para o mundo

    contemporneo.

    No o principal interesse desta tese investigar as recentes questes sobre o

    ensino de filosofia na Educao Bsica no Brasil5. Se as citamos porque

    percebemos um dilogo possvel entre esse tpico e a reflexo sobre a construo

    identitria da filosofia (o que ela ? Quem o filsofo? E o que o filosofar?) em

    seu momento originrio. Nosso objetivo investigar o modo como a prtica

    filosfica era identificada, pensada e discutida na Atenas do sculo IV a.C., mais

    especificamente em sua interseo com a retrica. bastante comentada a relao

    entre a filosofia e a retrica nesse perodo, comumente supondo a existncia de

    dois modelos educacionais conflitantes, um filosfico, possuindo pretenses de

    alcanar a verdade e o fundamento da realidade, e outro puramente retrico, com

    pretenses exclusivamente instrumentais, isto , sem nenhum tipo de pretenso

    verdade, cada qual reivindicando para si o lugar de melhor educador, de gerador

    da vida feliz. Contudo, nossa opinio que, embora houvesse sim um ambiente

    conflituoso ou agonstico entre diferentes vertentes educacionais da poca,

    prticas filosficas que pretendiam direcionar as aes e os pensamentos de seus

    seguidores, reduzir esse ambiente complexo a apenas duas grandes disciplinas ou

    perspectivas educacionais parece-nos ser uma maneira meramente didtica

    (artificial) de compreenso do contexto em questo. Ora, tal simplificao pode

    ser benfica quando queremos ter do pensamento filosfico um panorama geral.

    Porm, quando se trata de compreender o sentido originrio desse pensamento, o

    modo como se formaram os sentidos dos termos philosophia (filosofia),

    philosophos (filsofo) e philosophein (filosofar), muitas vezes em oposio ou em

    comparao a termos tais como paideutes (educador), politikos (poltico), sophos

    5 Sobre isso, crescente o nmero de publicaes, simpsios e grupos de pesquisa que

    discutem esse tema. Poderamos citar, por exemplo, o Instituto de Filosofia e Educao para o

    Pensar (IFEP), o Grupo Paideia, o Ncleo de Estudos Filosficos da Infncia da Uerj, a Filosofia

    na sala de Aula da UNIRIO, o Encontro Nacional Prodocncia de Filosofia da UFRJ e a recente

    programao da ANPOF-Ensino Mdio sobre o ensino de filosofia, que ir neste ano de 2016 para

    a sua terceira edio. Importante citar tambm a recente criao do mestrado profissional em

    ensino de filosofia que visa estreitar relaes entre o ambiente acadmico e a prtica do ensino de

    filosofia. Vale tambm ressaltar a importncia e relevncia de projetos como o Pibid (Programa

    Institucional de Bolsa de Iniciao Docncia) que pretende criar um vnculo maior entre as

    universidades e as escolas.

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    (sbio), sophistes (sofista), retor (orador), etc., nos damos conta de que, ainda em

    estado de crislida, toda essa terminologia est interligada e por isso no

    encontramos identidades fixas e prticas j estabelecidas. s vezes, at mesmo em

    um nico autor encontramos variaes sobre a identificao da natureza da

    filosofia.

    Por todas essas razes, no temos, nem poderamos ter, a pretenso de com

    nossas reflexes alcanar uma interpretao verdadeira. Ao contrrio,

    pretendemos, a partir da anlise de textos da poca, reviver as discusses que se

    travaram acerca dos diferentes modos como a filosofia e a retrica foram

    apresentadas ou identificadas em sua origem. A grande dificuldade que

    enfrentamos a escassez de textos preservados e a forte influncia das verses

    platnica e aristotlica, que opem retrica e filosofia, e que foram amplamente

    aceitas pela posteridade. comum encontrarmos, tambm, uma oposio entre

    filsofos e sofistas, ou entre uma educao filosfica e outra sofstica. Todavia,

    como j foi apresentado por alguns comentadores6, falar em movimento sofstico

    ou em sofistas problemtico, porque fazendo isso, passamos a impresso de que

    houve uma uniformidade ou unidade entre os diferentes sofistas de pocas

    distintas, o que realmente no existia. Alm disso, possvel perceber diferentes

    critrios que foram utilizados na delimitao do territrio da filosofia e da

    sofstica.

    Nesse contexto, os dilogos de Plato tm obviamente um papel de destaque

    e entendemos que um dos principais objetivos dos escritos platnicos seja

    6 Como diz Marie-Pierre Nol em seu artigo Lectures, relectures et mlectures des

    sophistes: "Num sentido inverso, os estudos sobre a sofstica sempre examinam os 'sofistas

    individuais ', que expem teorias, em geral, muito diferentes, para no dizer inconciliveis. O

    elemento unificador , ento, a palavra "sofista", que apenas ela parece garantir uma unidade

    que se esvai" (En sens inverse, les tudes sur la sophistique examinent toujours les sophistes

    individuels, dont elles exposent les thories, en general trs diffrentes pour ne ps dire

    difficilement conciliables. Llment fdrateur est alors le terme sophiste qui, lui Seul, semble

    garantir une unit qui se drobe., p.21). Segundo essa autora, Plato formou a distino entre o

    filsofo e o sofista a partir de uma perspectiva filosfica e no histrica, assim a separao entre

    filsofos e sofistas no se sustenta historicamente (p.35). E essa separao platnica serviu de base

    para quase todos os comentrios realizados pelos filsofos posteriores acerca desses pensadores,

    inclusive para aqueles, como Aristteles, que tiveram acesso aos textos e pensamentos dos autores

    classificados como sofistas. Esse tema tambm abordado por Didier Bigou no artigo 'Diversit

    des sophistes, unit de la sophiste' que trata da dificuldade, j apontada por outros comentadores

    como Grote, de dar unidade sofstica e dos critrios utilizados para pensar essa unidade.

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    exatamente delimitar a fronteira entre o filsofo e o sofista. Como o prprio

    Plato percebeu, essa no era uma tarefa fcil. A morte de Scrates levou Plato,

    assim como outros socrticos, a construir uma imagem positiva do seu mestre.

    Mais do que isso, Plato quis construir a imortalidade da imagem de Scrates. E

    esse Scrates heri de Plato colocado como o verdadeiro paradigma de

    filsofo, que se preocupava em utilizar um mtodo de argumentao e

    pensamento rigorosos a fim de encontrar as verdadeiras definies e as verdades

    sobre as coisas do mundo. Seguindo o carter competitivo ou agonstico da

    cultura grega, esse heri platnico precisou de um inimigo ou antagonista. Da

    aparece a figura do sofista, presente em quase todos os dilogos platnicos e

    capaz de ganhar diversas formas ou aparncias, mas na maioria das situaes visto

    como professor que cobra para ensinar a argumentar ou discursar de maneira

    persuasiva e vencedora. O prprio Plato destacou a diversidade de identidades

    que os sofistas podem ter e como difcil encontrar uma unidade nessa ampla teia

    de possibilidades. A morte de Scrates e outros processos contra os

    sofistas/filsofos, e tambm, a mais antiga fonte dos ensinamentos socrticos (e

    sofsticos) que temos, As nuvens de Aristfanes, revelam no s que a fronteira

    entre o filsofo e o sofista no era to ntida, como tambm que havia no senso

    comum da poca um mal-estar com relao a esse personagem ou mesmo com

    relao prpria filosofia. A ideia divulgada por entre os conservadores da poca

    era de que as constantes conversas filosficas estavam desvirtuando a juventude

    ateniense e levando essa cidade degradao.

    A fim de analisar esse contexto de construo identitria da filosofia e sua

    educao, pareceu-nos que Iscrates seria a figura ideal, pois os textos dele e de

    Plato no s compartilhavam de um mesmo ambiente, como podemos perceber

    em ambos pensadores o movimento de construo de uma imagem positiva para a

    filosofia, destacando sua importncia para a educao da cidade. A ideia realizar

    uma arqueologia nos textos isocrticos com o objetivo de reconstituir o ambiente

    intelectual ateniense do sculo IV a.C, destacando a importncia de Iscrates

    nesse processo de formao da filosofia grega. Dito de outro modo, analisaremos,

    a partir dos textos de Iscrates, os movimentos existentes de identificao da

    filosofia e do filosofar, ressaltando a diversidade de caracterizaes presentes no

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    corpus isocrtico e a complexidade de suas interaes com outras prticas.

    Entendemos, como j foi dito, que na poca de Plato e Iscrates ocorreram, como

    em vrios outros momentos da histria da filosofia, movimentos diversos de

    construo da identidade da filosofia, onde foram construdas diferentes imagens

    para ela. Empregamos essa palavra porque acreditamos que ela pode expressar

    melhor esse ambiente diverso e heterogneo de demarcaes da atividade

    filosfica. O conceito de imagem no significa aqui simulacro ou falsa percepo

    de algo, pelo contrrio, damos a essa palavra um valor positivo, ao ser capaz

    destacar as diferenas entre os modos de apresentao da filosofia, no havendo

    uma imagem (ou modelo) mais verdadeira do que outra. Colocando, assim, em

    evidncia a dificuldade de apresentar a filosofia de maneira unitria ou binria,

    reconhecendo diferentes perspectivas ou modos de ser da filosofia, e no apenas

    um modelo ou padro.

    A partir do que foi dito at agora, uma pergunta deve ser formulada: por que

    iniciar uma tese sobre um contexto to longnquo da histria da filosofia

    relacionando-a s atuais discusses sobre o ensino de filosofia no Brasil?

    Pensamos que essa aproximao pode ser proveitosa e isto que pretendemos

    esclarecer a seguir.

    Podemos afirmar que o que levou Iscrates a formular uma prtica

    educacional foi a necessidade de pensar um novo tipo de formao (paideia) para

    os cidados, que fosse coerente com as nascentes necessidades surgidas na polis

    grega da poca. Isto , notamos em Iscrates, como igualmente em outros

    pensadores de sua gerao, como Plato, e tambm da gerao anterior (Scrates,

    Protgoras e Grgias), a formulao de uma nova paideia que teria como base um

    original cdigo de valores, distante das virtudes propagadas pela cultura arcaica

    atravs da poesia pica e da religio, e que poderia livrar Atenas de um futuro

    decadente. H aqui a compreenso de que a educao uma tcnica coletiva onde

    ocorre o processo de iniciao da juventude nos valores e prticas que identificam

    o modo de ser e de pensar de cada civilizao e cultura. Esse foi o motivo que

    levou Iscrates e Plato a competirem pelo papel de destaque na formao dos

    cidados e, por conta disso, nota-se uma primeira aproximao entre os dois

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    pensadores: ambos propuseram mudanas e reformas na educao grega,

    entendendo que assim poderiam produzir um porvir melhor para a sociedade

    ateniense. Mais ainda, esses dois pensadores entenderam que a filosofia, mesmo

    com ideias distintas do que ela seja, um agente fundamental para que mudanas

    polticas e sociais possam ser realizadas. Acreditamos, ento, que analisar esse

    perodo embrionrio da filosofia, no qual ela foi pensada como um instrumento

    imprescindvel para a formao poltica dos cidados, mesmo que sejam outros os

    valores propostos e o contexto cultural em questo, pode estimular a reflexo e

    desenvolver o entendimento acerca do papel dado ao pensamento filosfico na

    formao dos estudantes atualmente. Assim como hoje encontramos argumentos

    contrrios insero da filosofia7 no currculo escolar obrigatrio, pautados

    principalmente na sua inutilidade e em seu uso poltico, tambm no sculo IV a.C

    havia um certo descrdito com relao ao pensamento filosfico. Muitas vezes

    tratada de maneira cmica8, ressaltando-se na filosofia a sua inutilidade para

    solucionar problemas prticos. E o que tanto Plato quanto Iscrates fizeram foi

    exatamente destacar a importncia e relevncia da filosofia, do filsofo e da

    atividade do filosofar na educao. Alm disso, acreditamos que as temticas

    presentes nos textos isocrticos, assim como as compreenses da atividade

    filosfica existentes na cultura grega, podem servir de inspirao para a

    elaborao de prticas didtico-pedaggicas de filosofia para o Ensino Mdio,

    principalmente em discusses sobre linguagem, retrica, poltica e democracia.

    Hoje percebemos um movimento, por parte dos tericos do ensino da

    filosofia, que pretende revelar sociedade a importncia das habilidades e

    7 Por exemplo, h alguns artigos do colunista poltico da revista Veja Reinaldo Azevedo

    onde ele aborda a questo, entre estes um intitulado: O Brasil precisa de menos filsofos e

    socilogos e de mais engenheiros que se expressem com clareza. H ainda o Projeto de Lei (PL n

    6.003/2013), de autoria do deputado federal Izalci Lucas Ferreira (PSDB-DF), que pretende

    eliminar a obrigatoriedade de que filosofia e sociologia sejam tratadas como disciplinas

    obrigatrias nos currculos escolares. E no atual contexto poltico-social altamente polarizado,

    encontramos quem acuse principalmente os professores das Cincias Humanas de proselitismo

    poltico, fazendo surgir pautas em diversas instncias do poder executivo que pretendem

    normatizar as prticas e contedos escolares, do tipo Escola Sem Partido (PL n 867/2015) e com

    conceitos como assdio ideolgico, principalmente em discusses sobre gnero, religio e poltica. 8 No artigo O Filsofo e o comediante, Jacyntho Lins Brando analisa a formao da

    atividade do filsofo e sua relao com a comdia. Sobre as anedotas da antiguidade, e suas

    repercusses na atualidade, que tinham o objetivo demonstrar a falta de utilidade prtica do

    filsofo e da filosofia, ver MARCONDES, Danilo & FRANCO, Irley, A filosofia o que ? Para

    que Serve?, pginas 27-29.

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    competncias9 que as aulas de filosofia podem gerar em seus estudantes,

    objetivando formar um pensamento mais crtico e autnomo. Paralelo a isso,

    encontramos, tambm, a constante luta dos professores da disciplina, frente aos

    alunos e responsveis, contra a imagem negativa da filosofia, s vezes tratada

    como uma disciplina intil, repleta de divagaes delirantes e distantes da

    realidade concreta. Notamos, ento, que mesmo com o distanciamento temporal e

    as diferenas no contexto histrico e social, produtivo fazer uma aproximao

    entre as atuais discusses sobre o ensino de filosofia e os embates entre as

    educaes filosficas existentes na cultura grega clssica.

    Voltando questo inicial da obrigatoriedade do ensino de filosofia. Foi

    colocada em questo a necessidade de rever os currculos nas faculdades de

    filosofia no Brasil, levando em considerao essa nova demanda de profissionais

    aptos a trabalhar os contedos filosficos no Ensino Mdio, sem com isso perder a

    profundidade e rigor inerentes a essa matria. As universidades agora tm que

    estar preparadas para no apenas formar especialistas em determinados perodos

    ou pensadores da histria da filosofia, que se dedicaro carreira acadmica no

    Ensino Superior. preciso tambm gerar um espao de investigao sobre como

    apresentar a filosofia no Ensino Mdio e cumprir os objetivos propostos para essa

    disciplina. Para isso, necessrio tanto um conhecimento da estrutura educacional

    de nosso pas, quanto do arcabouo terico e legal que fundamentam essa

    estrutura, passando, tambm, pelos debates sobre a seleo dos contedos, as

    possveis conexes interdisciplinares, atividades em sala, material didtico, entre

    outras coisas. Antes da obrigatoriedade do ensino de filosofia, j existiam cursos

    de licenciatura em filosofia, assim como o seu ensino em algumas escolas.

    Contudo, com a obrigao se fez necessrio repensar a estrutura dos cursos j

    9 Segundo as Orientaes Curriculares para o Ensino Mdio (2006), as competncias e as

    habilidades previstas para a filosofia podem ser dividas em trs grupos. 1) Representao e

    comunicao: ler textos filosficos de modo significativo; ler de modo filosfico textos de

    diferentes estruturas e registros; elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo;

    debater, tomando uma posio, defendendo-a argumentativamente e mudando de posio em face

    de argumentos mais consistentes. 2) Investigao e compreenso: articular conhecimentos

    filosficos e diferentes contedos e modos discursivos nas cincias naturais e humanas, nas artes e

    em outras produes culturais. 3) Contextualizao sociocultural: contextualizar conhecimentos

    filosficos, tanto no plano de sua origem especfica quanto em outros planos: o pessoal-biogrfico;

    o entorno scio-poltico, histrico e cultural; o horizonte da sociedade cientfico-tecnolgica.

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    existentes e abrir novos cursos para suprir a demanda de professores de filosofia,

    uma vez que os filsofos ganharam um importante espao de atuao em nossa

    sociedade e, consequentemente, as reflexes filosofias ganharam grande

    visibilidade. Para que esse espao no seja desperdiado e para revelarmos a

    importncia da filosofia na formao dos estudantes, preciso a elaborao de

    reflexes e debates para tornarmos as aulas de filosofia mais proveitosas,

    conseguindo promover, o mximo possvel, o exerccio da cidadania10

    e o

    aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formao tica e

    o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crtico;11

    como

    prev a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional.

    As outras consequncias citadas na primeira pgina desta introduo,

    articulam-se diretamente com esse primeiro ponto abordado. Uma das principais

    dificuldades encontradas pelos professores de filosofia est na organizao do

    planejamento curricular e na seleo dos contedos que sero trabalhos em suas

    aulas a fim de estimular o pensamento crtico e autnomo.12

    Com a formao

    especializada dos estudantes de filosofia e diante dessas dificuldades, os

    professores encontraram um porto seguro nos contedos clssicos da filosofia, e

    muitas vezes as aulas dessa disciplina no Ensino Mdio se tornam uma aula de

    histria da filosofia, onde os alunos atuam como receptores passivos (ou

    depsitos) de conceitos e ideias j pensadas. Ao ser inserida nas escolas, a

    filosofia foi submetida tambm a um modelo educacional tradicionalmente

    tecnicista, padronizante e massificado, dividido em disciplinas que pouco

    dialogam, focado em avaliaes e contedos sem conexo com a realidade. Com

    isso, na perspectiva do aluno, a filosofia seria mais uma disciplina obrigatria

    (chata) que ele deve decorar algumas coisas para conseguir a aprovao. Cabe aos

    filsofos questionarem isso, dentro de seus limites, e levarem os alunos tambm a

    fazerem esse questionamento, apresentando as aulas de filosofia como um espao

    10

    LDB, artigo 36 inciso III. 11

    LDB, artigo 35 inciso III. 12

    A partir de debates nas faculdades de filosofia e com os professores da disciplina, foram

    elaborados, no mbito nacional, os Parmetros Curriculares Nacionais e no mbito estadual, os

    Currculos Mnimos, que pretendem orientar os professores no planejamento dos contedos.

    Atualmente, est sendo desenvolvida, de maneira preliminar para anlises de todos agentes

    envolvidos na educao, a Base Nacional Curricular Comum, que pretende nortear os currculos de

    todas as disciplinas, da Educao Bsica, para todo o Brasil.

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  • 16

    para discusso, debate e trocas de conhecimento, ou citando a provocao do

    filsofo contemporneo Jacques Rancire, um espao de transmisso de

    ignorncias:

    [...] a filosofia pode ser, na instituio, este lugar onde se reverta o fundamento da

    autoridade do saber, onde o sentimento justo da ignorncia aparea como a

    verdadeira superioridade do mestre: o mestre no aquele que sabe e transmite; ele

    aquele que aprende e faz aprender, aquele que, para falar a linguagem dos tempos

    humanistas, faz seu estudo e determina cada um a fazer por sua conta. A filosofia

    pode ocupar este ponto de reverso porque ela o lugar de uma verdadeira

    ignorncia. Todos sabem que, desde o comeo da filosofia, os filsofos no sabem

    nada, no por falta de estudos ou de experincias, mas por falta de identificao.

    Tambm o ensino da filosofia pode ser este lugar onde a transmisso dos

    conhecimentos se autoriza a passar a algo mais srio: a transmisso do sentimento

    de ignorncia.13

    .

    claro que inconcebvel qualquer ensino de filosofia que no passe pelas

    teorias filosficas tradicionais, mas deve-se sempre contextualiz-las, fazendo

    com que os alunos percorram junto com os filsofos o trajeto seguido na

    elaborao de suas teorias e conceitos, tentando sempre sensibiliz-los na

    apresentao dos problemas filosficos e na soluo apresentada por cada

    pensador. E o mais importante, relacionar os problemas clssicos da filosofia com

    o mundo contemporneo e fazer da filosofia um instrumento ou meio que

    possibilite ao aluno interpretar, de maneira crtica e autnoma, o mundo atual,

    tendo como base as teorias j pensadas. Ou seja, preciso encontrar um meio

    termo entre a filosofia entendida como postura ou atitude e a histria do

    pensamento filosfico, que de nenhuma forma pode ser eliminado das aulas de

    filosofia.

    Por fim, quando os filsofos, obrigatoriamente, passaram a ter espao nas

    escolas pblicas e privadas, renasceu a necessidade de se responder pergunta

    mais frequente nas aulas de filosofia: afinal, o que a filosofia e para que ela

    serve? Mais uma vez foi necessria a discusso sobre o que entendemos por

    filosofia hoje14

    , em plena poca tecnolgica e ciberntica, e qual o papel do

    13

    In: DERRIDA et al, 1986, p. 119-120, apud GALLO, S. e GENIS, A., Filosofia da

    educao, exerccios espirituais e arte de existncia, 2015, p. 109. 14

    Vale citar o polmico Projeto de Lei (PL 2533/2011) do deputado Giovani Cherini (PDT-

    RS) que pretende regulamentar a profisso de filsofo e suas competncias. Entre outras

    justificativas para tal projeto, h a seguinte: Assim, parece-nos evidente que o Estado pode e deve

    agir no sentido de regular o exerccio da profisso de Filsofo no Pas, estipulando as condies

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  • 17

    filsofo na sociedade contempornea. Segundo o relatrio para a UNESCO da

    Comisso Internacional sobre Educao para o sculo XXI, conhecido como

    Relatrio Delors15

    , h quatro pilares fundamentais na educao em nosso milnio.

    So eles: aprender a conhecer (estimular a organizao de pensamentos e

    conhecimentos), aprender a fazer (estimular a competncia de enfrentar diversas

    situaes e a trabalhar em equipe), aprender a ser (estimular o senso crtico, a

    capacidade de deciso, autonomia e responsabilidade social) e aprender a viver

    (estimular as capacidades de argumentao e escolha, lidar com risco e a

    incerteza). No h apenas interesse nos processos cognitivos, mas sim tambm no

    desenvolvimento psicossocial, e a filosofia, com seus questionamentos e

    reflexes, tem muito a contribuir no estabelecimento e desenvolvimento desses

    pilares a fim de promover uma educao que v alm do treinamento e da

    instruo, possibilitando aos estudantes o desenvolvimento de aptides para a

    tomada de decises e para o pensamento crtico. Com tudo isso, surgiu a

    necessidade de colocar, ou at mesmo resgatar, o tema da educao filosfica

    como uma questo filosfica, isto , como um tema que merece ateno ou

    investigao dos filsofos acadmicos. O que muitas vezes no acontece pois se

    entende que a experincia filosfica no Ensino Mdio algo menor, menos

    filosfica. Acreditamos que um caminho possvel para o desenvolvimento de

    prticas efetivas, sem um exagero iluminista ou positivista, no ensino de filosofia

    o incremento de pesquisas acadmicas que investiguem o lugar e atuao da

    filosofia na Educao Bsica. Algo que est em curso nos ltimos anos, pois

    atualmente encontramos diversos grupos ou ncleos de pesquisa, espalhados em

    vrios departamentos pelo Brasil, que realizam atividades centradas no ensino de

    filosofia, tanto no nvel da graduao como na ps-graduao, promovendo assim

    seminrios, palestras, cursos, entre outros.

    Para concluir, nos prximos captulos centraremos nossa anlise e

    investigao no pensamento de Iscrates e nas discusses suscitadas por esse

    de habilitao e as exigncias legais para o regular exerccio da mesma, alm de seu mbito de

    competncia. Tal medida de suma importncia, pois se de um lado retirar do mercado de

    trabalho as pessoas no habilitadas, de outro presta justo reconhecimento do Estado a esta

    milenar profisso; em benefcio de toda a sociedade brasileira.. 15

    Educao: um tesouro a descobrir. Relatrio para a UNESCO da Comisso

    Internacional sobre educao para o sculo XXI. Jacques Delors. 1996.

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  • 18

    autor. No primeiro captulo, faremos algumas consideraes acerca do

    pensamento e dos textos de Iscrates, a fim revelar o papel deles na histria do

    pensamento. Ainda no primeiro captulo, apresentaremos o discurso Contra os

    sofistas que ser o texto que orientar esta investigao sobre a filosofia

    isocrtica. A diviso temtica extrada desse discurso servir de base tanto para a

    excurso no corpus isocrtico como para a organizao dos captulos desta tese.

    Dividiremos o Contra os sofistas em duas partes, uma negativa ou crtica (1-14 e

    19-20) onde Iscrates revela os seus adversrios, aqueles que tambm se

    dedicam a educar os jovens, mas que fracassam, seja por exagerar na divulgao

    das capacidades de sua tcnica seja por ensinar algo que no til para alcanar a

    virtude e a felicidade. Nessa parte negativa, Iscrates nos oferece um panorama do

    cenrio educacional na Atenas do sculo IV a.C, dos tipos de prticas existentes e

    suas falhas. Depois de criticar, Iscrates apresenta a sua filosofia, dando incio a

    parte positiva ou propositiva do texto (14-18 e 21-22) onde ele expe os limites

    e objetivos de sua educao, na tentativa de melhorar a imagem dos novos

    educadores e exortar os jovens filosofia. Analisaremos cada um desses dois

    momentos e deles extrairemos as temticas discutidas nos prximos captulos, a

    partir da seguinte diviso: iniciando pela crtica aos ersticos, realizaremos

    comentrios sobre a presena da oposio entre os conceitos de doxa e episteme

    no pensamento isocrtico, apresentando a sua filodoxia (Captulo 2 A filodoxia

    de Iscrates). J a partir da crtica aos professores de discursos polticos e aos

    escritores de manuais retricos, analisaremos a compreenso que Iscrates tem do

    que hoje chamamos de retrica e sua possibilidade tcnica (Captulo 3 Retrica,

    tcnica e escrita no pensamento de Iscrates). Por fim, percorrendo a parte

    positiva do Contra os sofistas, apresentaremos a composio da imagem da

    filosofia isocrtica que podemos extrair da leitura dos seus discursos e cartas

    (Captulo 4 A educao filosfica em Iscrates).

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  • 2

    Por que Iscrates?

    Seja marginal, seja heri. 16

    A pergunta que serve de ttulo para este captulo foi alvo de inmeras

    reflexes ao longo da pesquisa sobre esse pensador. Dito de outra forma: Iscrates

    realmente merece ateno dentro de uma investigao sobre a filosofia grega? Ou

    mais diretamente, Iscrates um filsofo? E como o pensamento dele pode

    contribuir nesta arqueologia da identidade do filsofo e da filosofia na Grcia

    antiga? Estas so algumas das questes e temas que abordaremos neste captulo.

    Com o objetivo de analisar as interaes entre a filosofia e a retrica,

    buscamos fontes para alm dos dilogos platnicos a fim de perceber como outros

    autores desse perodo traaram as identidades desses dois personagens. Ou seja,

    investigamos se possvel perceber e como ela se d a distino entre o

    filsofo e o sofista fora dos dilogos platnicos. Em Iscrates, encontramos uma

    possibilidade de diversificao dessa questo, principalmente por dois motivos:

    tradicionalmente, Iscrates foi classificado como sendo um representante do

    movimento sofstico, de uma gerao posterior dos grandes sofistas como

    Grgias, Protgoras e Hpias. Alm disso, vrios textos isocrticos foram

    preservados, sendo ento uma rica fonte de acesso s discusses e problemticas

    da poca. Teramos, ento, em Iscrates um possvel terico e herdeiro do

    movimento sofstico, alm de um defensor da educao retrica. O outro motivo

    o tradicional agon17

    entre Iscrates e Plato. bastante relatada a rivalidade entre

    esses autores, entre suas escolas e perspectivas filosficas, uma vez que os dois

    pensadores atenienses viveram em um mesmo perodo histrico e compartilharam

    16

    Obra (1968) de Hlio Oiticica que marcou o movimento artstico conhecido como

    marginlia ou cultura marginal. 17

    Em seu artigo Philosophy, rhetoric, and cultural memory, Ekaterina V. Haskins trata da

    rivalidade entre Plato e Iscrates ao longo da histria da filosofia. Esta rivalidade foi tratada,

    entre outros, por Jaeger e Marrou.

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  • 20

    as discusses, temas e conflitos em voga na poca. Haveria, portanto, entre eles

    uma disputa pelo ttulo de grande educador ateniense, sendo Plato e Iscrates

    rivais em relao paideia grega.

    Sobre o primeiro ponto, a classificao de um pensador como sofista

    artificial e pode ter vrias motivaes. Pode ser feita para menosprezar o seu

    pensamento, aplicando o carter pejorativo do termo. Ou pode acontecer para

    delimitar o campo de atuao desse pensador, como, por exemplo, orador ou

    professor de retrica. Ou mais, faz-se essa classificao vinculando um autor

    determinada figura tradicionalmente identificada como sofista, nesse caso est em

    questo a filiao de um determinado pensador. E foi isto que aconteceu com

    Iscrates, apesar de em diversos momentos se identificar como filsofo e entender

    a sua ocupao como uma atividade filosfica, a tradio o classificou como

    sofista. E por que isso aconteceu? Talvez porque Iscrates, como

    problematizaremos ao longo da tese, apresenta a sua filosofia como uma atividade

    ou educao centrada na criao e anlises de discursos, ressaltando a necessidade

    de entender a prtica filosfica como um exerccio deliberativo. Sendo a sua

    educao uma preparao para a vida pblica, a como pensar, agir e deliberar

    bem, a fim de realizar aes virtuosas no mbito particular e, principalmente, no

    mbito pblico. H nos textos de Iscrates uma preocupao com a prxis poltica

    e tica, e certo menosprezo em relao s questes metafsicas ou ontolgicas.

    Como essas questes foram tradicionalmente definidas como sendo as verdadeiras

    e genunas questes filosficas, por influncia do pensamento platnico-

    aristotlico, Iscrates e seus textos em diversos momentos foram vistos como

    possuindo pouco contedo filosfico, classificados como exerccios retricos ou

    exibies de suas habilidades oratrias. Consequentemente, os seus textos

    passaram a ter pouca importncia na anlise do desenvolvimento da filosofia e sua

    atuao na cultura grega. E o fato de Iscrates ter denominado a sua atividade de

    filosofia no foi o suficiente para a tradio identific-lo como filsofo, revelando,

    assim, que a classificao de Iscrates como sofista usou conceitos de filosofia e

    sofstica exteriores ao seu prprio pensamento, uma vez que essa distino no

    feita pelo autor. Ressaltando, mais uma vez, a artificialidade dessas

    denominaes.

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  • 21

    Em muitos momentos, Iscrates foi identificado como sofista pelo fato de

    ter sido discpulo de Grgias e ter frequentado outros ambientes sofsticos.

    Contudo, as notcias que temos sobre isto vm de uma tradio posterior ao

    contexto grego clssico, presente no perodo romano e mais de trs sculos depois

    da existncia dos autores em questo, o que torna a fonte pouco confivel. 18

    Alm

    disso, temos indicaes tambm que Iscrates foi fortemente influenciado por

    crculo socrtico19

    . Revela-se assim a pouca segurana que temos para classificar

    Iscrates como um sofista a partir da vinculao ou filiao aos grandes sofistas

    da gerao anterior.

    Podemos discutir sobre as vantagens e desvantagens de classificar Iscrates

    como sofista ou filsofo, e isto depende obviamente dos sentidos que dermos a

    essas palavras. Classific-lo como sofista, com uma conotao pejorativa, como

    no sentido platnico, parece-nos desvantajoso se quisermos com isso

    simplesmente dizer que a nica preocupao de Iscrates era enriquecer a partir

    do ensino de estratgias de persuaso e controle do logos. Porm, pode ser

    vantajoso se dermos um valor mais positivo ao termo e com isso quisermos

    relacion-lo ao movimento sofstico e suas reflexes filosficas, pedaggicas,

    ticas e polticas. Por sua vez, classific-lo como filsofo tem a vantagem de se

    colocar o pensamento isocrtico entre os grandes pensadores gregos e dar uma

    boa repercusso aos seus textos, e a nica desvantagem que conseguimos pensar

    ao classificar Iscrates como filsofo poderia ser o risco de com isso identificar o

    seu pensamento com a tradio metafsica da filosofia, da qual ele pretendia se

    afastar. Mas percebemos, obviamente, que a filosofia no se resume a isso, ainda

    mais nesse contexto grego onde a filosofia era entendida como um modo de vida,

    um cuidado da alma ou exerccio espiritual.20

    No nos parece muito produtivo

    18

    No apndice 1 do seu livro The rhetoric of identity in Isocrates text, power, pedagogy,

    Yun Lee Too trata da relao entre Iscrates e Grgias. 19

    O professor Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio (FE- USP) em seu artigo Iscrates, Retor

    Socrtico trata dessa influncia do socratismo na formulao da filosofia isocrtica. Na nota 1

    desse artigo, ele cita autores da antiguidade que indicaram essa influncia. 20

    Como notaram Hadot e Foucault em suas investigaes sobre a filosofia grega. Em

    Hadot: A verdadeira filosofia , ento, na Antiguidade, exerccio espiritual. As teorias filosficas

    so, ou postas explicitamente ao servio da prtica espiritual, como o caso do estoicismo e do

    epicurismo, ou ento tomadas como objetos de exerccios espirituais, isto , uma prtica da vida

    contemplativa que no ela mesma, ao final, outra coisa que um exerccio espiritual. No , pois,

    possvel compreender as teorias filosficas da Antiguidade sem ter em conta esta perspectiva

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  • 22

    continuar nesse tipo de questionamento e tentar definir qual seria a verdadeira

    classificao de Iscrates, filsofo ou sofista, talvez os seus textos e ideias estejam

    para alm dessas denominaes. O que nos interessa aqui que ele produziu um

    pensamento e uma prtica, denominada de filosofia por ele, que estava atrelada ao

    contexto intelectual da poca e que teve bastante influncia na histria do

    pensamento ocidental. Percebemos, enfim, que poderamos realizar escavaes

    nos textos de Iscrates nesta arqueologia acerca da formao da identidade do

    filsofo e suas interaes com a retrica.

    A figura de Iscrates se fez importante nesta pesquisa tambm porque ele

    viveu, como j foi destacado, em um momento marcante da cidade de Atenas,

    frequentou e teve acesso, assim como Plato, aos importantes pensadores da

    gerao anterior como Scrates e Grgias, participando ativamente da vida da

    cidade, de seus momentos de crise e mudana. H muita discusso, como j

    apontamos brevemente acima, sobre quem foi realmente o mestre de Iscrates e

    esses debates ocorrem principalmente porque Iscrates, em nenhuma de suas

    obras, trata do assunto, e porque tambm no sabemos muito bem como essa

    questo de filiao acontecia nessa poca. O que importa que, tendo sido ou no

    discpulo de Scrates ou Grgias, Iscrates no s teve acesso aos pensamentos e

    prticas desses e outros autores, como tambm viveu a repercusso de tais

    pensamentos no ambiente intelectual ateniense. Dizendo de outra forma, o que

    interessa aqui que tanto Iscrates quanto Plato compartilharam de um mesmo

    ambiente intelectual, social e poltico. E mais ainda, apesar de percebermos

    diferenas entre as teorias desses pensadores, possvel visualizar uma importante

    semelhana ou uma mesma motivao: a descrena frente ao modelo poltico

    ateniense da poca e a necessidade de reformulaes, que tem como base

    principal, uma mudana pedaggica ou educacional.

    Apesar de ser pouco lembrado nas histrias da filosofia, quando lanamos

    um olhar para as histrias da educao e da retrica, Iscrates passa a ganhar

    concreta que lhes d sua verdadeira significao.. apud GALLO, S. e GENIS, A., Filosofia da

    educao, exerccios espirituais e arte de existncia, 2015, p. 101.

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  • 23

    bastante destaque, sendo conhecido, inclusive como o Fdias da retrica.21

    As

    obras do autor foram bastante lidas durante toda a antiguidade e renascimento,

    sendo destacadas por grandes nomes como Ccero, por exemplo. Porm, durante a

    modernidade a presena do pensamento isocrtico no foi muito marcante,

    principalmente porque nessa poca os interesses de Iscrates foram vistos como

    sendo unicamente de ordem estilstica e no como uma teoria filosfica ou

    pedaggica. Dizendo de outro modo, no pensamento isocrtico encontraramos

    mais forma do que contedo, sendo ele mais retrico do que filsofo. E isto se

    deve tambm desvalorizao da retrica ao longo da histria do pensamento,

    principalmente na modernidade. Como recentemente houve um movimento de se

    repensar a retrica e suas funes na sociedade22

    , estando a linguagem e a

    argumentao no centro temtico da filosofia contempornea, consequentemente

    houve um aumento do interesse por Iscrates. Isso pode ser percebido no nmero

    de livros, artigos e pesquisas sobre ele hoje em dia, com o objetivo de no s

    recuperar23

    a imagem desse pensador e o valor de seu pensamento para a histria

    da filosofia e da pedagogia, como, tambm, us-lo como referncia para estimular

    reflexes acerca das atuais discusses sobre a educao e os valores que a

    sociedade quer transmitir a partir dela.

    Um fato que ainda pode ser destacado para ressaltar a boa repercusso do

    pensamento isocrtico na histria do pensamento a preservao de diversos

    textos desse pensador, demonstrando o grande interesse que teve em vrios

    momentos. Basicamente podemos dividir24

    o corpus isocrtico em dois grupos:

    so vinte e um discursos e nove cartas. Principalmente com relao aos discursos,

    h vrios modos de agrup-los, seja cronologicamente ou tematicamente. Pelas

    informaes que temos, Iscrates teria, em um primeiro momento, se dedicado

    elaborao de discursos ou defesas para serem proferidos por outras pessoas, ou

    21

    Jaeger, p.1073. 22

    Podemos citar as reflexes de Nietzsche em seus cursos sobre retrica, Roland Barthes,

    Foucault, Perelman e Ricouer. 23

    Podemos citar, por exemplo, o artigo Is our history of educational philosophy mostly

    wrong? The case of Isocrates, onde James R. Muir trata do que ele entende como engano dos

    pensadores e filsofos da educao (historiadores e classicistas) em relao influncia do

    pensamento educacional de Iscrates na histria da educao. 24

    Entre as pginas 13 e 18 de seu livro, Yun Lee Too apresenta diferentes organizaes que

    corpus isocrtico recebeu ao longo da histria.

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  • 24

    seja, num primeiro momento Iscrates teria sido um loggrafo. Depois, Iscrates

    deu incio a sua carreira de educador, abrindo a sua escola em 390 a.C e

    elaborando discursos que serviram de modelo para os seus discpulos, no s

    formalmente, mas sim tambm pelo carter deliberativo e o vis poltico de seus

    textos. Sabe-se, a partir dos dados biogrficos fornecidos pelo prprio pensador,

    que Iscrates no teve nenhum cargo pblico de general ou poltico, como tiveram

    alguns dos chamados sofistas. Tradicionalmente se diz que o motivo disso seria

    uma voz fraca (mikrophonia) ou timidez perante o pblico, citada pelo prprio em

    alguns textos para justificar a sua ausncia nos servios pblicos, porm,

    acreditamos que isso se deve a j aludida descrena que Iscrates sentia em

    relao ao modelo poltico vigente.25

    Essa postura de Iscrates lembra tambm a

    postura socrtica com relao s questes polticas de sua poca e, mais uma vez,

    seria possvel perceber a influncia da postura socrtica em Iscrates.

    Entre os textos mais conhecidos est o Contra os sofistas, que datado entre

    os primeiros discursos isocrticos, logo aps a abertura de sua escola, onde ele

    critica a postura de alguns educadores e lana as bases de seu pensamento

    pedaggico. J o Antdosis ou Troca de riquezas uma das ltimas obras de

    Iscrates, escrito em uma idade j avanada e funcionando como uma prestao

    de contas do pensador sociedade ateniense com relao aos anos dedicados ao

    magistrio e formao dos jovens. O discurso considerado26

    uma das primeiras

    autobiografias (filosfica) da literatura ocidental e nele Iscrates transcreve partes

    de seus principais textos, explicando o contexto e as motivaes para sua

    elaborao. Esse ltimo discurso tem como ponto de partida uma acusao fictcia

    de que a educao isocrtica corromperia a juventude, tal qual o processo de

    Scrates, mas o processo real foi motivado pela reivindicao de um cidado de

    que Iscrates, e no ele, deveria ficar responsvel pelo pagamento do imposto

    para despesas na manuteno de barcos de guerra, uma vez que o educador tinha

    uma renda maior. Concretamente, Iscrates no Antdosis queria esclarecer que sua

    25

    Como diz Yun Lee Too: "Ele (Iscrates) constri sua identidade contra o destacado

    contexto da agressividade verbal e poltica dos novos polticos do sculo V a.C. (He

    constructs his identity against the alleged background of the verbal and political aggressiveness of

    the new politicians of the fifth century. p.112) Tambm possvel perceber nos textos

    isocrticos uma agorafobia comum na poca. 26

    Jaeger, Paideia, p.1179.

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  • 25

    riqueza foi conquistada de modo ntegro e honesto, devido a sua dedicao

    filosofia, percebendo por trs desse processo uma crtica velada sua educao.

    H ainda textos que expressam a perspectiva isocrtica sobre as questes politicas

    da poca, dois endereados aos atenienses, o Sobre a Paz e o Panatenaico, e o

    Panegrico onde Iscrates escreve para todos os gregos. Temos ainda os textos

    que podem ser classificados como elogios ou encmios e que tratam de figuras

    mticas, Busiris e Elogio de Helena, e os textos conhecidos como Cipriotas,

    dirigidos aos governantes do Chipre, so eles: A Ncocles Ncocles e Evgoras,

    onde so expostas tanto reflexes sobre as organizaes polticas quanto

    conselhos aos governantes, semelhante ao estilo do Prncipe de Maquiavel. H

    tambm as nove cartas que parecem endereadas a importantes figuras polticas

    (reis, prncipes, legisladores e chefes militares) da poca, onde num geral

    encontramos aconselhamentos polticos, elogios educao filosfica e anlises

    da situao poltica grega. Por exemplo, temos a carta I dirigida a Dionsio, o

    ancio, tirano de Siracusa, as cartas II e III, por sua vez, foram endereadas a

    Felipe, rei da Macednia e a carta V foi escrita para o ainda jovem Alexandre, o

    grande.27

    Analisando, ainda, os textos de Iscrates, vemo-nos inseridos tanto na

    tradio de elaborao dos discursos retricos quanto na tradio epistolar, dois

    gneros discursivos ainda em formao naquele contexto. Apesar de no estarem

    presentes entre os tradicionais gneros do pensamento filosfico, os discursos ou

    oraes retricas foram importantes no pensamento grego, no s no campo

    jurdico, mas tambm na poltica e em outros ambientes sociais. Gnero

    posteriormente solidificado por conta dos grandes oradores ticos, entre eles

    27

    Personagens que tambm tinham envolvimento com Plato e Aristteles.

    Especificamente em relao carta ao jovem Alexandre, provavelmente, como indica Larue Van

    Hook (ISOCRATES, V. III, Loeb, 1945) na introduo a essa carta, a motivao de Iscrates para

    escrever essa carta teria sido a escolha de Aristteles como tutor dessa importante figura poltica,

    apresentando nela tanto uma crtica erstica quanto um elogio de sua prpria educao. Na

    introduo do Protrptico de Aristteles, Carlos Rodrgues (Madrid: Abada Editores, 2006), cita

    que essa obra aristotlica foi dirigida corte do Chipre, que por sua vez, tinha grande

    envolvimento com Iscrates, criando assim um dilogo entre as obras de Aristteles e Iscrates. A

    partir disso, poderamos afirmar que esse campo agonstico da educao filosfica visvel

    tambm na produo epistolar da poca, onde as cartas se tornaram uma forma literria de

    divulgao e expanso das ideias dos educadores. Sobre o gnero epistolar na cultura grega e seu

    envolvimento com a filosofia, indicamos a leitura da introduo de Claudia Mrsico (Buenos

    Aires: Miluno, 2012) s cartas de Scrates e dos socrticos.

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  • 26

    Demstenes e Licurgo. O modus operandi dos discursos retricos teve muita

    repercusso na cultura grega, por conta principalmente dos chamados sofistas, e

    acabou influenciando outros gneros literrios como a comdia e tragdia, sendo

    tambm uma referncia para os dilogos platnicos.28

    Do outro lado, temos as

    epstolas que, por sua vez, so tradicionalmente tidas como um gnero da escrita

    filosfica, aparecendo bastante ao longo da histria da filosofia29

    .

    Voltando um pouco na discusso sobre a classificao de Iscrates como

    sofista, o fato de seu corpus ser formado por discursos e cartas pode ter sido

    tambm um fator que contribuiu para no reconhec-lo como filsofo. O que seria

    um equvoco, uma vez que nesse contexto, com a filosofia ainda formando suas

    identidades, no h um gnero exclusivo como hoje ainda no h para o

    pensamento filosfico. Muito se discute sobre as caractersticas literrias dos

    dilogos platnicos, que so uma miscelnea de diversos gneros (tragdia,

    comdia, pica), e sua formao como gnero propcio reflexo filosfica, ou

    seja, podemos afirmar que a construo identitria da filosofia platnica est

    diretamente associada ao gnero literrio escolhido para expor suas ideias. Como

    veremos, em Iscrates teremos uma outra imagem da filosofia e,

    consequentemente, uma outra expresso literria ser utilizada, mais coerente com

    a natureza da atividade filosfica pensada por esse autor. Acreditamos, ento, que

    no haja na filosofia uma aleatoriedade em relao forma e ao contedo, entre a

    essncia de uma ideia filosfica e a sua expresso literria, h sim uma vinculao

    direta ou uma preocupao retrica na apresentao dos contedos filosficos. Os

    diferentes cursos da construo das imagens da filosofia passam necessariamente

    por uma definio da identidade do texto filosfico. Cada filsofo tem uma

    imagem especfica do que a filosofia, produzindo uma escrita filosfica tambm

    distinta, exigindo do leitor diferentes ferramentas hermenuticas para se

    aproximar do texto e analisar as ideias. Ler um dilogo de Plato e um discurso de

    28

    Como no Menxeno, onde se dialoga sobre as oraes fnebres, alm do Fedro e do

    Banquete, s para citar alguns exemplos. 29

    As cartas so fontes importantes para a histria da filosofia e tambm uma forma de

    expresso de ideias filosficas, normalmente associada a uma escrita mais pessoalizada ou

    biogrfica, de tom mais informal, onde as dvidas so esclarecidas e debates realizados. Na

    antiguidade, podemos citar as cartas de Plato e dos socrticos menores, passando tambm por

    Agostinho e, na modernidade, Descartes.

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  • 27

    Iscrates exigem cuidados especficos, pois em seus textos so projetas imagens

    distintas do pensar e do agir filosfico.30

    J sobre o possvel ambiente de confronto31

    entre os ensinamentos de Plato

    e de Iscrates, esse agon filosfico (educacional) nos levou a refletir sobre as

    relaes, agonsticas talvez, entre a retrica e a filosofia. Encontramos em vrias

    fontes relatos do antagonismo entre Plato e Iscrates, apesar de encontrarmos

    poucas passagens nos textos desses pensadores onde esse tema seja tratado. Em

    Plato, h no Fedro uma rpida meno ao nome de Iscrates e no final do

    Eutidemo surge um personagem misterioso que muitas vezes foi identificado

    como sendo Iscrates. As passagens so as seguintes:

    Sobre estes tambm eu ia agora mesmo falar. Pois estes so, Crton, aqueles que

    Prdico chamava de fronteira entre um filsofo e um poltico, mas que creem ser

    os mais sbios de todos os homens e, alm de ser, que tambm so assim

    considerados junto maioria. De modo que, a fazer-lhe obstculos para gozar de

    boa reputao junto a todos, no h outros seno os homens que se ocupam de

    filosofia.32

    ...em virtude dos seus dotes naturais, ser capaz de vir a fazer melhor do que

    discursos maneira de Lsias. Por outro lado, o seu carter muito mais nobre. Por

    isso, no ser de admirar que Iscrates, medida que se tornar maduro, venha a

    distingui-se na arte da eloquncia em que agora se exercita, de tal maneira que

    todos os que se dedicam retrica paream aprendizes ao p dele. Mas pode

    acontecer que no se sinta satisfeito com isso e venha dedicar-se, por inspirao

    divina, assuntos mais elevados, pois o seu esprito notavelmente propenso

    filosofia! Em nome dos deuses que regem este lugar, ser esta mensagem que

    transmitirei ao bem amado Iscrates, assim como tu dirs a Lsias o que h pouco

    te expus!33

    No primeiro fragmento, Plato apresenta uma personagem que, aps assistir

    aos debates entre Scrates e os irmos ersticos, faz uma crtica postura deles e

    da imagem de filosofia promovida nesses debates ersticos, preocupados apenas

    30

    Sobre anlise da literatua filosfica, ver o livro Elementos para a leitura dos textos

    filosficos de Frdric Cossutta e Lembrar, escrever, esquecer de Jeanne Marie Gagnebin,

    especialmente o ltimo captulo As formas literrias da filosofia. 31

    Algumas datas da histria grega podem ser teis para melhor compreender essa relao

    entre os atenienses Plato (427-347) e Iscrates (436-338): ambos pensadores so de uma gerao

    posterior ao governo de Pricles (que governou Atenas entre os anos de 449 e 429), viveram o

    governo dos Trinta Tiranos (404) e a restaurao de democracia em Atenas, que condenou

    Scrates no ano de 399. As suas escolas foram fundadas em perodos prximos, sendo verossmil

    o testemunho que Plato teria idealizado sua Academia (fundada em 387) como uma resposta

    fundao da escola isocrtica, que segundo a tradio, teria sido aberta entre os anos de 392 e 390. 32

    Eutidemo, 305d. 33

    Fedro, 279 a-b

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  • 28

    com as armadilhas discursivas, no produzindo nada de til e prtico. Esse

    personagem mesmo annimo comumente identificado como sendo Iscrates,

    pois, como veremos, desse mesmo modo que ele encaminhar a crtica erstica

    em seus discursos, identificada, tradicionalmente, como uma tcnica promovida

    por alguns educadores de influncia socrtica, como Antstenes, por exemplo. Na

    passagem citada, Plato apresenta a resposta de Scrates, afirmando o carter

    fronteirio e enigmtico desse personagem, ficando entre o territrio da filosofia e

    do poltico, numa posio de marginalidade e no pertencimento, no sendo

    propriamente nem filsofo e nem poltico, mas pretendendo ser considerado como

    tal. E foi desse modo que muitas vezes Iscrates foi analisado, um autor de difcil

    classificao, estranho, um intermedirio entre o filsofo e o orador (poltico).

    Para Plato, essa uma estratgia desse personagem, que manipula sua identidade

    de acordo com as situaes, buscando fama ou reconhecimento pblico a qualquer

    custo, sempre. O Eutidemo trata diretamente do ambiente agonstico da educao

    filosfica e a reputao dessa frente aos cidados comuns, motes frequentes nos

    textos isocrticos e que revelam o ambiente de competio ao ttulo de sbio e

    verdadeiro (autntico) educador da cidade de Atenas.

    J na segunda passagem, encontramos Scrates, ao final do dilogo com

    Fedro acerca dos discursos de Lsias que proporcionaram reflexes sobre a

    retrica, transmitindo um recado ao ento jovem e promissor Iscrates, de acordo

    com a data dramtica do dilogo. Nesse aparente elogio irnico ao carter nobre

    de Iscrates, Plato pretendia revelar que a retrica inferior em relao s

    investigaes filosficas, afirmando que Iscrates, ao amadurecer, abandonar as

    preocupaes com a eloquncia e tratar de assuntos mais srios ou filosficos.

    Aqui se acentua a topografia dessa batalha territorial da filosofia e sua fronteira

    com a retrica. Iscrates faz algo parecido34

    com isso quando diz que as

    investigaes ersticas, pensando provavelmente em Plato e em outros socrticos,

    so produtivas na juventude, servindo como preparao para uma filosofia prtica

    ou deliberativa. Mas que se dedicar a essas questes ao longo de toda a vida

    algo intil e pouco digno. H, no trecho acima, uma meno tambm ao dote

    34

    Antdosis, 266-270.

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  • 29

    natural (physis) de Iscrates, que um conceito importante, como veremos mais

    frente, na pedagogia desse autor, unido a outros conceitos como educao

    (paideia) e prtica (empeiria).35

    Esses seriam alguns indcios que mostram o

    quanto Plato queria polemizar com Iscrates, com suas ideias e com a imagem de

    filosofia construda por esse autor. Por fim, percebemos que ambos os textos de

    Plato revelam o seu esforo de demarcar o territrio da filosofia, suas fronteiras e

    seus habitantes, sendo Iscrates um estrangeiro, um outro, que por vezes tenta se

    passar por filsofo.

    Essa possvel rivalidade entre Iscrates e Plato nos estimulou a investigar

    os textos isocrticos para melhor entendermos tal contexto, compreendendo que

    ao nos aproximarmos dos textos isocrticos poderamos reconstituir esse ambiente

    e perceber como a filosofia e a educao retrica se relacionavam, apesar da muita

    desvalorizao dada ao pensamento de Iscrates quando comparado ao

    pensamento de Plato. Podemos perceber isso, por exemplo, na seguinte

    passagem de um clssico livro sobre educao na antiguidade:

    Tratar de Iscrates depois de se haver tratado de Plato implica, necessariamente,

    em deix-lo em m situao e em sacrific-lo, at certo ponto, a seu brilhante rival.

    Qualquer que seja ponto de vista em que nos situemos: poder de seduo, fulgor da

    personalidade, riqueza do temperamento, profundidade de pensamento, e, mesmo,

    senso artstico, Iscrates no poderia ser lanado ao mesmo plano de Plato; sua

    obra parece ch e montona, sua influncia superficial e perniciosa.. 36

    Compreendemos a perspectiva de Marrou, o que ele falou com relao a

    Iscrates poderia ser ampliado para qualquer autor da antiguidade. Plato, sem

    dvida, o grande escritor e pensador da antiguidade e qualquer um se tornaria

    mera nota de rodap dentro dos textos platnicos, parafraseando a clebre

    sentena de Alfred Whitehead. Analisando as obras de Iscrates, no faremos

    qualquer juzo de valor com relao ao seu pensamento, a partir dele mesmo ou

    comparando com outros pensadores. Entendemos que o mais importante que as

    obras desse autor nos do acesso etapa originria de formao do pensamento

    filosfico. Sendo assim, desconsiderar suas obras nesta investigao sobre a

    identidade da filosofia seria um grande equvoco. No queremos com isso exaltar

    35

    No artigo Isocrates reaction to the Phaedrus (in: Mnemosyne 6, 1953: 39-45), G.J. De

    Vries aborda essa relao entre os textos de Plato e Iscrates. 36

    Henri I. Marrou, Histria da Educao na Antiguidade.

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  • 30

    a genialidade de Iscrates e sua grandeza em relao a outros pensadores,

    defendemos sim que os textos desse autor so fundamentais, sendo uma leitura

    obrigatria, para a anlise da formao identitria da filosofia na cultura grega.

    Ainda sobre o agon entre Iscrates e Plato, h comentadores que tentam,

    inclusive, criar uma sequncia entre os textos de ambos os pensadores a fim de

    perceber um dilogo textual entre eles, num jogo de rplicas e trplicas. o caso,

    por exemplo, de Juan Signes que em sua introduo aos discursos de Iscrates,

    afirma o seguinte:

    "No entanto, uma comparao entre as obras dos dois autores nos permite

    reconstruir o debate entre ambos. Provou-se que em certos dilogos platnicos

    encontramos rplicas de argumentos desenvolvidos por Iscrates em suas obras.

    Assim, o Timeu de Plato responde ao Busiris isocrtico, o Menexno ao

    Panegrico ou o Teeteto aos discursos cipriotas, para no mencionar apenas alguns

    casos."37

    Apesar de ser interessante e estimulante essa tentativa de vinculao ou de

    comunicao entre os textos de Iscrates e Plato problemtica, artificial em

    alguns casos, e de difcil realizao, principalmente por questes cronolgicas e

    pelo fato de raras vezes os seus nomes e ideias serem citados de modo explcito.

    Contudo, por participarem de um mesmo contexto social, poltico e histrico,

    muitos dos temas tratados por esses pensadores eram os temas da poca, que

    demandavam reflexes. Assim, eles compartilhavam essas temticas38

    e, por

    apresentarem perspectivas distintas, talvez possamos pensar nessa lgica de

    rplicas, sendo at mesmo um recurso produtivo na interpretao desses

    pensadores. Ainda mais se pensarmos no carter agonistico ou polemista da

    cultura grega, amantes dos embates, presentes em vrios ambientes (artstico,

    poltico, esportivo, jurdico) e que marcou o desenvolvimento da filosofia,

    destacando uma das suas principais caractersticas: a divergncia argumentativa, o

    conflito de ideias e o exerccio de se pensar sobre um mesmo tpico a partir de

    37

    Pese a todo, una comparacin de las obras de los dos autores permite reconstruir el

    debate entre ambos. Se ha podido comprobar as cmo en determinados dilogos platnicos se da

    rplica a argumentos avanzados por Iscrates en sus obras. As el Timeo platnico responde al

    Busiris isocrtico, el Menxeno al Panegrico o el Teeteto a los discursos chipriotas, por no citar

    ms que algunos casos. (Biblioteca Bsica Gredos, introduo p. XXVI) 38

    Questes como: a virtude poder ser ensinada, a retrica ou no uma tcnica, a relao

    entre doxa e episteme, se a democracia a melhor forma de organizao poltica, entre outros

    tpicos.

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  • 31

    diferentes perspectivas. Algo importante hoje em dia, basta perceber que muitas

    das habilidades e competncias previstas especificamente para a filosofia, no

    Ensino Mdio, esto relacionadas ao saber lidar com a diferena, a alteridade e a

    oposio de ideias, to importantes para o exerccio da cidadania nas sociedades

    democrticas.39

    Contudo, optamos por no reconstituir esse agon entre Iscrates e

    Plato a partir de uma oposio direta de seus textos, preferimos centrar nossas

    anlises nos textos de Iscrates para termos acesso a esse conflituoso ambiente

    educativo e filosfico. Aceitamos que tenha ocorrido um conflito entre Plato e

    Iscrates, e entre outros pensadores da poca, porm acreditamos no ser correto

    afirmar que esse agon represente um embate maior entre filosofia e retrica.

    Vemos sim dois movimentos distintos, por vezes opostos, de construo da

    identidade da filosofia. Entendemos que entre Plato e Iscrates haja,

    principalmente, um conflito sobre a natureza da filosofia e sua educao.

    Contra os sofistas: o manifesto de Iscrates pela filosofia

    Nesta investigao sobre o pensamento isocrtico, optamos por utilizar o

    discurso Contra os sofistas como fio condutor ou eixo norteador. Os captulos que

    se seguem e as discusses que faremos tero o citado texto como guia e ser a

    partir dos temas apresentados nele que iremos nos debruar em outros textos e

    autores. Procurando, em alguns momentos, conexes agonsticas com trechos de

    dilogos platnicos, assim como de outros autores pertencentes ao mesmo

    contexto cultural de Iscrates. Optamos por assim faz-lo porque nesse discurso

    que Iscrates apresenta as particularidades da sua educao filosfica, lanando as

    bases e os fundamentos de sua filosofia que sero desenvolvidos ou revisados ao

    longo dos outros textos. Com isso, no pretendemos dar uma uniformidade ou

    unicidade a todos os textos de Iscrates e afirmar que h um mesmo modo de

    pensar em todo o seu corpus. Tema bastante controverso, no s em Iscrates

    como tambm em Plato e em outros importantes pensadores da histria da

    39

    Por isso, constantemente so indicadas atividades didticas, como por exemplo jri

    simulado ou roda de controvrsias, para aulas de filosofia, pois essas estimulam a capacidade

    argumentativa dos alunos, exercitando a capacidade de ouvir e discordar, trabalhando com

    consensos e dissensos.

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  • 32

    filosofia. Pelo contrrio, apresentaremos uma perspectiva do pensamento

    isocrtico que est mais prxima de uma filosofia da multiplicidade, diferena ou

    diversidade, do que uma perspectiva sistmica ou unitarista. Por isso mesmo,

    optamos por trabalhar com o conceito de imagem para melhor express-lo,

    possibilitando assim uma reflexo a partir de diferentes perspectivas na

    construo identitria da filosofia. Como veremos, em Iscrates encontramos

    diferentes imagens para a filosofia, com algumas constncias, mas sem a

    pretenso de formular uma perspectiva sistmica.

    Seguimos, alis, uma indicao dada pelo prprio Iscrates na j citada

    defesa fictcia de sua filosofia, o Antdosis. Um dos mtodos utilizados40

    por

    Iscrates nesse discurso para se defender da acusao de que sua filosofia

    corromperia a juventude, foi a anlise de trechos de seus discursos passados, a fim

    de destacar a real inteno deles, vendo as conexes entre seus temas, com a ideia

    de que essa anlise apresentaria a coerncia de sua maneira de pensar e agir. Uma

    vez que esses discursos so as verdadeiras imagens do seu modo de ser e de sua

    educao. Alm do Contra os sofistas, Iscrates cita e analisa passagens do

    Panegrico, Sobre a paz e A Nicocles. Esses ltimos tm em comum o mote

    poltico, a deliberao sobre a paz e a guerra, ou, a exposio de ideias de como

    um poltico deve governar. Utilizaremos esse mesmo mtodo apresentado por

    Iscrates e analisaremos fragmentos dos seus textos, destacando suas as

    articulaes e conexes, a fim de tentar apresentar a imagem ou imagens da

    filosofia por trs deles.

    O Contra os Sofistas uma das primeiras obras escritas pelo pensador,

    segundo afirma o prprio Iscrates no Antdosis41

    e marca o incio de sua carreira

    como educador. Por essa razo, podemos dizer que o texto exerce o papel de

    projeto poltico-pedaggico da sua escola, apesar ser breve e estar incompleto

    para alguns.42

    Nele, Iscrates no s lana as bases de seu pensamento

    40

    54. 41

    195. 42

    Na pgina 163 de seu livro sobre o pensamento de Iscrates, Yun Lee trata sobre a

    possvel interrupo (ou incompletude) no Contra os sofistas e lista comentadores e interpretaes

    sobre o assunto. Basicamente, h quem defenda que o texto teria como complemento um manual

    retrico perdido - produzido pelo prprio pensador, e outros que defendem a existncia de uma

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  • 33

    pedaggico, delimitando a sua compreenso de filosofia, como tambm pretende

    destacar a diferena entre sua prtica educacional e a realizada por outros

    representantes da paideia grega. Por isso, o Contra os sofistas uma importante

    fonte para nossa pesquisa, uma vez que, ao fazer essa distino entre vrias

    prticas educacionais, Iscrates nos fornece algumas caracterizaes dos

    diferentes tipos de sofistas ou educadores. E qual o valor que Iscrates d a esse

    termo (sofista)? Como veremos, no parece que tenha aqui um sentido pejorativo,

    mesmo ele sendo alvo de crticas. O sofista no tratado por Iscrates como o

    inimigo do filsofo (ou o seu simulacro), ou melhor, diferentemente do projeto

    platnico que pretendia demarcar a diferena entre o sofista e o filsofo, Iscrates

    parece no se preocupar com essa distino, e a palavra sofista, ao longo do texto,

    est relacionada com a atividade de educar, s vezes se confundindo com a

    filosofia.

    Esse texto se enquadra dentro do gnero exortativo ou protrptico43

    , comum

    na poca entre aqueles que se ocupavam da educao dos jovens, atuando como

    um manifesto contra determinados educadores e uma tentativa de se afastar da

    doutrina no-escrita, transmitida exclusivamente de forma oral, projetada tambm para o

    pensamento platnico. Too, por sua vez, entende essa interrupo como um silncio pensado, ou

    seja, como um recurso retrico. Tendemos a concordar com essa ltima interpretao, mas no

    entendemos ser crucial determinar se o texto est completo ou no, ainda mais que no temos

    acesso s fontes necessrias para ter certeza sobre isso. Acreditamos ser importante tentar extrair

    do material que temos algumas indicaes sobre a compreenso de Iscrates acerca da educao

    filosfica, articulando com outros textos do pensador a fim de encontrar uma unidade, um

    pensamento de Iscrates. 43

    O outro exemplo que temos o de Alcdamas (420-360 a.C.), igualmente classificado

    como sofista. Basicamente, o que ele faz nesse texto algo que tambm encontramos no texto de

    Iscrates, uma crtica queles que se dedicam a escrever discursos escritos e resumem a retrica a

    um conjunto de tcnicas que podem ser memorizadas e aplicadas por qualquer pessoa.

    Analisaremos algumas partes desse texto de Alcdamas no captulo 3. O Protrptico de Aristteles,

    assim como alguns dilogos de Plato, podem ser igualmente classificados como textos

    exortativos, onde pretende-se fazer um elogio a determinada prtica educativa, revelando, mais

    uma vez, o ambiente agonstico da educao grega. Para mais informaes sobre o gnero

    protrptico, ver livro Exortations to philosophy The Protreptics of Plato, Isocrates, and Aristotle

    de James Henderson Collins (New York: Oxford University Press, 2015.). Na introduo, o autor

    afirma o seguinte: "Defendo que os filsofos do sculo IV a.C utilizaram discurso protrptico para

    comercializar prticas filosficas e para definir e legitimar uma nova instituio cultural: a

    escola de ensino superior (o primeiro na histria ocidental) [...] Eles pretendiam introduzir e

    promover as suas novas escolas e definir a nova disciplina profissionalizada da "filosofia". ( I argue that the fourth-century philosophers used protreptic discourse to market philosophical

    practices and to define and legitimize a new cultural institution: the school of higher learning (the

    first in Western history) [...] They aimed to introduce and promote their new schools and define

    the new professionalized discipline of philosophy. p.1)

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  • 34

    imagem negativa que esses personagens tinham nesse perodo. Mais do que isso,

    esse gnero literrio tinha como principal objetivo a converso, ou seja,

    influenciar o leitor a aceitar e seguir o modelo educativo proposto. A invaso

    desses personagens, em sua grande maioria estrangeiros, estava associada,

    segundo uma perspectiva conservadora, decadncia da antiga moral e um

    desvirtuamento da juventude ateniense e, como consequncia, levando runa a

    cidade de Atenas. Em diversas de suas comdias, Aristfanes narra situaes onde

    so destacados os perigos que esses ensinamentos divulgados pelos novos sbios

    podem gerar. Isso parecia ser senso comum, e todos os educadores desse perodo

    queriam se afastar desses grupos de professores, proliferando assim diversos

    textos de ataque contra os chamados sofistas.

    Encontramos tambm em diversos dilogos platnicos cenas que nos

    apresentam o ambiente de confronto (agon) em relao educao dos jovens,

    onde professores ou sbios querem revelar seus conhecimentos, divulgar sua

    tcnica e angariar discpulos. Podemos citar o cenrio apresentado por Plato no

    Eutidemo, Protgoras e Grgias, onde h em comum a situao de encontrarmos

    sofistas expondo suas habilidades perante jovens e Scrates dialogando com eles a

    fim de revelar a fraqueza da sabedoria deles. A genialidade de Plato e sua

    habilidade literria revelam, com riqueza de detalhes, a admirao dos jovens

    frente a esses sbios e a postura crtica de Scrates.

    O primeiro pargrafo do Contra os sofistas ilustra bem o carter agressivo

    desse texto de Iscrates e revela seu principal objetivo: afastar a sua escola e

    concepo de educao da imagem negativa j existente da educao sofstica. Ou

    melhor, Iscrates pretendia, com esse e outros textos, criar uma imagem positiva

    do estudo sobre o logos, o que ele chama de filosofia. Parece que havia na poca

    uma tendncia a classificar como sofista todo e qualquer professor ou

    representante do novo ideal de educao que pretendia transformar os jovens em

    cidados virtuosos. E o que Plato e Iscrates fizeram em seus textos foi uma

    distino entre as diversas posturas e perspectivas educacionais, a fim de revelar,

    aos cidados comuns, que h professores dignos de confiana e que no querem

    simplesmente enriquecer ou ter fama por suas habilidades, nem tampouco

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  • 35

    transformar os jovens em cidados injustos. Por isso, acreditamos que os

    discursos de Iscrates e os dilogos platnicos (principalmente os da chamada

    fase socrtica) tinham como pblico-alvo os cidados comuns e pretendiam criar

    uma imagem positiva do filsofo e revelar sua importncia para a polis,

    desmascarando os pssimos educadores responsveis pela construo dessa

    imagem negativa.

    Por tudo que foi dito, assim como poderamos classificar vrios dos

    dilogos platnicos como manifestos pela filosofia44

    , acreditamos que o Contra os

    sofistas de Iscrates tambm pode ser lido como um manifesto pela filosofia. do

    seguinte modo que Iscrates abre seu manifesto:

    Se todos os que pretendem educar quisessem falar a verdade e no fizessem

    grandes promessas, as quais no conseguem cumprir, no seriam mal falados pelos

    homens comuns. Porm, agora, os que tm a grande audcia de fazer impensadas

    promessas, passam a impresso que os indolentes deliberam melhor do que aqueles

    que se dedicam filosofia.45

    No pargrafo citado acima, Iscrates nos apresenta o diagnstico da situao

    da filosofia no contexto de seu pensamento e o que gerou essa situao, dando

    incio parte negativa ou crtica de seu texto. O diagnstico o seguinte: aqueles

    que pretendem educar esto sendo difamados pelos cidados comuns e o mais

    preocupante que esses consideram que as melhores deliberaes no so feitas

    pelos que se dedicam filosofia, mas sim pelos que so indolentes. J aqui se

    destaca algo que expomos anteriormente, a imagem negativa da educao

    desenvolvida pelos novos sbios, os filsofos e os sofistas.46

    Para Iscrates, isso

    se deve, principalmente, a uma falta de franqueza, poderamos dizer falta de

    parrhesia, dos educadores ao venderem uma moeda falsa, quando prometem

    44

    Como faz Charles Kahn, em relao ao Grgias, no seu livro Plato and the Socratic

    Dialogue The Philosophical Use of a Lliterary Form. 45

    Como no encontramos nenhuma traduo publicada em portugus desse texto de

    Iscrates, apresentaremos uma traduo prpria a partir do cotejamento das tradues em

    espanhol, ingls, portugus (dissertao de Ticiano Curvelo Estrela de Lacerda, apresentada ao

    departamento de letras clssicas e vernculas da USP em 2011) e italiano, assim como da anlise

    do prprio grego. A ntegra da traduo encontra-se no Apndice I desta tese. Todas as outras

    citaes que faremos dos textos de Iscrates sero retiradas da edio, em ingls, da Loeb de suas

    obras completas. 46

    Em outros momentos do corpus isocrticos, encontramos esta imagem negativa da

    filosofia: Ncocles, 1; Busiris, 49; Antdosis, 170, 175-176, 195, 209, 243, 312; Contra

    os sofistas, 1.

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    ensinar algo que no conseguem cumprir. O que est em jogo aqui no pouca

    coisa, mas sim a virtude e a felicidade, o que todos os homens almejam. O fato de

    os cidados comuns terem percebido que vrios dos novos sbios no

    conseguiram realizar aquilo que prometeram, transformar qualquer jovem em um

    homem virtuoso e feliz, gerou um movimento de ojeriza a esses sbios.

    Feito isso, Iscrates realiza um mapeamento das personagens que

    frequentavam os ambientes educacionais (os representantes da paideia) e que so

    os responsveis por esse descrdito da filosofia, fornecendo assim um rico terreno

    para a arqueologia das identidades do filsofo e do sofista. E mais, a partir das

    crticas que sero apresentadas, conseguiremos identificar as caractersticas do

    pensamento isocrtico para aos poucos reconstituirmos a imagem da filosofia em

    Iscrates. Podemos resumir em trs os personagens apresentados por Iscrates,

    que nos do, consequentemente, trs facetas do sofista: 1) os ersticos ou aqueles

    que se dedicam s disputas verbais (eridas); 2) os professores de discursos

    polticos (politikous logous); e 3) os que escreveram as chamadas Artes ou

    manuais retricos (technas grapsai).

    Realizados estes comentrios, podemos passar para a anlise dos temas

    abordados por Iscrates no Contra os sofistas e desenvolvidos em outras obras do

    seu corpus.

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