gramática e retórica

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. 185 GRAMÁTICA E RETÓRICA Eliana Amarante de Mendonça MENDES 1 RESUMO: Dentre as interfaces da gramática, neste trabalho é abordada a interface gramática/retórica, realçando sobretudo as implicações para o ensino do vernáculo. Apresenta-se um sucinto histórico sobre a gramática ocidental e mostra-se o íntimo relacionamento dessa com a retórica ao longo dos tempos. Na rica história dessas artes, elas assumem diversas configurações. Paulatinamente, a retórica vai perdendo espaço, funde-se com a poética e acaba por sucumbir. Sobrevive somente a gramática. Às vezes enfraquecida. A "morte" da retórica, no entanto, é, por muito tempo, só formal: a história dessa interface ainda continua. Toda essa instabilidade implicou, naturalmente, importantes problemas para o ensino. Propõe-se, então, a mostrar as consequências de tal oscilação para o ensino do vernáculo no Brasil, no período de 1837 a 1980. 2 PALAVRAS-CHAVE: gramática; retórica; ensino no Brasil Dentre as interfaces da gramática, interessa-me em especial a interface clássica gramática e retórica, a que tem merecido menor interesse por parte dos estudiosos. Isso talvez se deva a uma amnésia que por muitos séculos relegou ao limbo a retórica. A gramática a que vou me referir no curso deste trabalho é a gramática da tradição ocidental que remonta à gramática grega, que se desenvolveu paralelamente à retórica, no mundo grego e no mundo romano. Identificam-se três períodos no desenvolvimento da gramática grega: (1) o período que se iniciou com os filósofos sofistas pré-socráticos e os primeiros retóricos, e continuou com Sócrates, Platão e Aristóteles; Nesse primeiro período, a língua não era uma preocupação independente, encontrando-se dispersa na obra dos filósofos do período. À exceção de Platão, que 1 Universidade Federal de Minas Gerais – Faculdade de Letras Rua Industrial José Costa, 528 – 30460-550 – Belo Horizonte – MG - Brasil e-mail: [email protected] 2 Este trabalho foi desenvolvido com o apoio da FAPEMIG.

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GRAMÁTICA E RETÓRICA

Eliana Amarante de Mendonça MENDES1 RESUMO: Dentre as interfaces da gramática, neste trabalho é abordada a interface gramática/retórica, realçando sobretudo as implicações para o ensino do vernáculo. Apresenta-se um sucinto histórico sobre a gramática ocidental e mostra-se o íntimo relacionamento dessa com a retórica ao longo dos tempos. Na rica história dessas artes, elas assumem diversas configurações. Paulatinamente, a retórica vai perdendo espaço, funde-se com a poética e acaba por sucumbir. Sobrevive somente a gramática. Às vezes enfraquecida. A "morte" da retórica, no entanto, é, por muito tempo, só formal: a história dessa interface ainda continua. Toda essa instabilidade implicou, naturalmente, importantes problemas para o ensino. Propõe-se, então, a mostrar as consequências de tal oscilação para o ensino do vernáculo no Brasil, no período de 1837 a 1980. 2 PALAVRAS-CHAVE: gramática; retórica; ensino no Brasil Dentre as interfaces da gramática, interessa-me em especial a interface clássica

gramática e retórica, a que tem merecido menor interesse por parte dos estudiosos. Isso

talvez se deva a uma amnésia que por muitos séculos relegou ao limbo a retórica.

A gramática a que vou me referir no curso deste trabalho é a gramática da

tradição ocidental que remonta à gramática grega, que se desenvolveu paralelamente à

retórica, no mundo grego e no mundo romano.

Identificam-se três períodos no desenvolvimento da gramática grega:

(1) o período que se iniciou com os filósofos sofistas pré-socráticos e os primeiros

retóricos, e continuou com Sócrates, Platão e Aristóteles;

Nesse primeiro período, a língua não era uma preocupação independente,

encontrando-se dispersa na obra dos filósofos do período. À exceção de Platão, que

1 Universidade Federal de Minas Gerais – Faculdade de Letras Rua Industrial José Costa, 528 – 30460-550 – Belo Horizonte – MG - Brasil e-mail: [email protected] 2 Este trabalho foi desenvolvido com o apoio da FAPEMIG.

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escreveu um diálogo (Crátilo) todo dedicado a questões lingüísticas, a informação que

se tem dos filósofos sofistas pré-socráticos, dos primeiros retóricos e de Sócrates é

indireta .

Segundo Collart (1954), de fato só a partir de Varrão, a Gramática se tornou

uma ciência independente. Antes, era um pouco o domínio de todos, uma ciência

acessória cujas fronteiras não eram delimitadas. Diz Collart que o filósofo via na

Gramática uma teoria sobre as origens da linguagem; o retor, um manual do estilo

correto; o crítico, um auxiliar para os estudos dos textos; o compilador, um guia de

lexicografia; o poeta, um arsenal de termos pitorescos; o homem do mundo, um

divertimento de salão.

Diversos filósofos dessa fase contribuíram para o desenvolvimento da gramática.

Vejamos alguns exemplos: Protágoras (490 - 420 a.C.) distinguiu os três gêneros e os

modos verbais; Prodicus (c. sec. V a.C.) se ocupou da definição de sinônimos. A

Aristóteles devemos, dentre suas muitas contribuições, a introdução da categoria caso,

para qualquer tipo de flexão, a inserção do nome, do verbo e da partícula às partes da

oração e a divisão dos nomes em simples e compostos.

(2) o período dos estóicos (século II a.C.- III a.C.)

Após Aristóteles, vieram os estoicos. No que concerne à gramática, foram

muitas e importantes as contribuições desses filósofos: na opinião de Marc Baratin

(2003), o provável ancestral dos tratados de gramática, a Téchne perì phonês, de

Diógenes de Babilônia ((240-152 a.C), foi dessa fase. Além disso, devemos aos

estoicos a não consideração do artigo como partícula, ( para Aristóteles eram uma só

categoria); a determinação de uma quinta parte da oração, o advérbio; a restrição do

caso à flexão dos substantivos (para Aristóteles qualquer tipo de flexão era caso); a

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distinção de quatro casos principais de nome, e divisão do verbo em tempos, modos e

classes, etc.

(3) o período dos alexandrinos

Em Alexandria, críticos estudaram a língua de Homero e dos escritores áticos,

comparando-a à língua daquele tempo. Esses estudos levaram ao exame de regras e

fatos de gramática. Começa nessa fase a polêmica analogia/ anomalia. Deve-se a Crates

de Malos (197-150 a.C.) a que foi considerada a primeira gramática formal da língua

grega, uma coleção de fatos gramaticais obtidos pelos críticos alexandrinos e uma

reforma da ortografia grega. Mas, segundo Moura Neves (2005, p. 125), Dionísio o

Trácio (170-90 a.C.) é considerado “o verdadeiro organizador da arte da gramática na

Antiguidade, dando-lhe uma forma que, por muito tempo, foi definitiva e cujos traços

fundamentais ainda hoje podem ser reconhecidos em muitas obras gramaticais do

Ocidente”. Sua gramática, de cunho nitidamente didático, foi escrita para atender ao

interesse dos Romanos pela língua grega, e foi publicada no tempo de Pompeu.

Dois eminentes gramáticos de Alexandria, Apolônio Díscolo, (século II d.C.) e

seu filho Herodiano, deram continuidade aos trabalhos de seus antecessores, mas

inovaram principalmente por terem pela primeira vez tratado da sintaxe.

A gênese paralela da gramática e da retórica e a indefinição quanto a um objeto

próprio da gramática levaram a que essas artes, embora se pretendessem distintas,

muitas vezes se confundissem. Por exemplo, nessas duas últimas fases, embora já se

registrem matérias gramaticais strictu sensu, encontram-se misturadas à gramática

muitas matérias específicas da retórica: segundo Kennedy (1994, p. 91 ) o primeiro

estudo sobre tropos, por um gramático, foi feito por Taurisco (século II a.C); Crísipo

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(281 -204 a.C.) fez uma lista de figuras de pensamento; na gramática de Dionísio o

Trácio, a exegese de tropos poéticos foi incluída como uma de suas seis partes. Em

Roma, também Varrão (116 a 27 a.C.) inclui aspectos retóricos em sua gramática.

O contrário também ocorria. Como bem aponta Moura Neves (2004 p. 81-82),

na Retórica de Aristóteles há várias observações que chamaríamos hoje de gramaticais:

dentre muitas outras, tomo como exemplo as observações sobre a correção no uso dos

conectivos (III,5,1407a), matéria nitidamente gramatical.

Na Idade Média essa mesma indefinição se evidencia, já que as gramáticas

latinas dessa fase tiveram como base as gramáticas anteriores. Por exemplo, Aelius

Donatus (sec. IV d.C. ), em Ars Grammatica vai além de assuntos estritamente

gramaticais e trata, em seu livro 3, de barbarismo e solecismo. Donatus define

barbarismo como um erro gramatical no uso de uma única palavra e solecismo como um

erro no uso de palavras em um contexto. Mas, por outro lado, um erro caracterizado

como barbarismo pode, na poesia, ser um metaplasmo ou outro ornamento de estilo; e

um solecismo pode, na poesia, ser uma figura (schemata). Para Donatus, figuras de

pensamento pertenciam à retórica, figuras de linguagem eram parte da gramática.

Também em Prisciano (século V- VI d.C. ), encontram-se matérias da retórica.

Na Idade Média começam a surgir gramáticas latinas nas línguas vernáculas,

com o objetivo de ensinar latim a falantes não-nativos. Houve também gramáticas

latinas escritas em Latim, mas com exemplos nas próprias línguas vernáculas. A

primeira dessas gramáticas latinas traduzidas foi a de Elfrico, no ano 1000, que

escreveu as Excerptiones de Prisciano, uma tradução de Prisciano para o inglês antigo.

Essas traduções, naturalmente, mantiveram a sobreposição gramática/retórica.

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No Renascimento, o conceito de gramática deixa de corresponder simplesmente

à gramática latina, passando a se preocupar com as línguas vulgares e com a pedagogia

para ensinar a língua materna. Mas, dada a importância do Latim como língua da

cultura, continuam ainda a aparecer novas gramáticas latinas. Em Portugal, por

exemplo, temos a do jesuíta Manuel Alvares, De Institutione Grammatica ( 1596) e a

gramática portuguesa escrita em Latim, de Bento Pereira, Ars grammatica pro lingua

lusitana (1672). A indefinição gramática/ retórica se manteve no Renascimento. Por

exemplo, nas gramáticas portuguesas3 − de Fernão de Oliveira (1536), de João de

Barros (1540), Roboredo 1619, Jeronymo Contador de Argote (1725) − registram-se

matérias retóricas: força da tradição latina da qual esses gramáticos não escaparam

totalmente.

Mesmo posteriormente, quando a retórica começa a perder prestígio, as

gramáticas preservam matérias de retórica, como se pode ver, por exemplo, em Reis

Lobato (1817) e em Jeronymo Soares Barboza (1822). Nessa fase já se tem uma

retórica reduzida à elocutio, na qual, segundo Hansen (1994, p.37) as figuras e tropos

constituem uma como que “...teoria de afastamento, desvio ou rupturas discursivas, que

passam a fazer parte dos manuais de gramática com o nome geral de ‘Tropos e figuras’

ou ‘Figuras de estilo".

No Brasil, na esteira do que ocorreu em Portugal, nossas gramáticas − desde as

mais antigas, como as de Júlio Ribeiro (1881), de João Ribeiro (1887), Maximino

3 O mesmo se dá com a, Gramática de la lengua castellana, de Antonio de Nebrija. NEBRIJA, Antônio de. Estudio y edición de Antonio Quilis, 3ª ed., Madrid, Centro de Estudios Ramón Areces, 1989, p. 112 [1ª ed. 1496]

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Maciel(1887), Pacheco e Silva e Lameiro de Andrade (1888), Noronha Massa (1888),

Ernesto Carneiro Ribeiro (1890), Eduardo Carlos Pereira (1907), até as

contemporâneas − reservam espaço para alguma matéria retórica. A última gramática

publicada no Brasil, em 2008, de Evanildo Bechara, ainda apresenta matéria da

retórica.

Embora artes distintas, gramática e retórica são muito relacionadas e

apresentam uma zona de interseção. Para a retórica, a menor unidade lingüística é a

palavra. Diferentemente da gramática, a retórica não trata de partes de palavras como

morfemas e fonemas. Ambas disciplinas cuidam da palavra, da frase e da oração e a

retórica cuida ainda do parágrafo, da divisão da oração e da oração toda. A área de

interseção se situa, então, nos níveis da palavra, da frase e da oração. No entanto,

embora gramática e retórica apresentem tal zona de interseção, tratem de elementos

comuns, sua relação com esses elementos não é, estritamente falando, a mesma. A

gramática cuida da correção, preocupa-se com o como, em uma dada língua, palavras

são formadas e com o como as palavras podem ser juntadas em frases e orações. A

retórica, por sua vez, preocupa-se com a efetividade, trata da escolha da melhor dentre

um número de possíveis expressões numa língua (CORBET & CONNORS, 1999, p.

340).

Depois de consolidadas como disciplinas nos diversos sistemas de ensino,

gramática e retórica, na maior parte de suas histórias, foram disciplinas distintas: no

programa de ensino grego, a enkiklios paideia, concebido por Isócrates (436 a.C),

gramática e retórica eram duas das disciplinas. Assim também o foi no sistema de

ensino romano, concebido por Cícero e inspirado no sistema grego. Para Cícero (188

a.C.) a gramática era disciplina que devia necessariamente preceder os estudos

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retóricos. No Institutio Oratoria de Quintiliano (42-117 dc ), os capítulos 4 a 9 do livro

I são dedicados à gramática. Embora gramática e retórica fossem tratadas no mesmo

livro, receberam tratamento diferenciado. Marciano Capela (século V) as inclui entre as

sete artes liberais (retórica, gramática, dialética, geometria, aritmética, astrologia e

música), e Alcuíno (século XI), na sua reforma das escolas, que introduz o septennium,

conserva-lhes um lugar no trivium (junto com a dialética).

Mas a linha divisória entre as disciplinas gramática e retórica era, na verdade,

flexível na antiguidade. A rigor era competência do grammaticus ensinar língua e

literatura − preparação para a escola de retórica. Essa cuidava da prosa e da

argumentação, da amplificação e do ornamento, incluindo as figuras de linguagem; e

era dada continuidade à composição escrita começada com o grammaticus. Mas os

conteúdos ensinados em ambas eventualmente se sobrepunham, o que costuma ser

atribuído ao fato de que muitas vezes um mesmo professor acumulava o papel de

grammaticus e de rhetor. Mas, de fato, os estágios mais avançados de gramática se

confundiam com os primeiros estágios de retórica.

Segundo George Kennedy ( 1994, p. 83) , todas essas indefinições entre retórica

e gramática já se evidenciam tanto na própria definição de gramática de Dionísio o

Trácio, "gramática é o conhecimento do que é dito nos poetas e escritores de prosa",

quanto nas seis partes de sua gramática, que correspondiam às atividades diárias dos

alunos e professores na escola: ler em voz alta, incluindo o conhecimento da métrica

usada no verso, identificação de tropos no texto poético, explicação do significado de

palavras raras e de referências históricas, construção de etimologias , declinação de

nomes e conjugação de verbos e julgamento dos poetas.

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Em toda a história dessas disciplinas, até o Romantismo, quando se deu a

"morte" oficial da retórica, conviveram sempre obras que se dedicavam à gramática

com obras que se dedicavam à retórica. Embora algumas obras retóricas tenham

tratado de aspectos gramaticais, o mais comum era as gramáticas incorporarem matérias

retóricas.

Toda essa ausência de limites, essa pouca clareza quanto ao escopo dessas

disciplinas implicou, naturalmente, (e ainda implica), importantes problemas para o

ensino.

A definição do que é competência da gramática e da retórica, como vimos,

sempre foi problemática. E, em consequência, a inserção dessas disciplinas no

currículo e a definição do programa específico de cada disciplina é outro grande

problema.

No Brasil, isso se evidenciou já nos currículos do Imperial Colégio de Pedro II.

Considerando a importância que teve essa instituição para o ensino no Brasil, tendo sido

criada com a intenção de que fosse o padrão do ensino brasileiro, pode-se dizer que o

que acontecia no Pedro II era o que acontecia no Brasil. Seu primeiro currículo foi

fixado em 1837, antes do banimento oficial da retórica do nosso ensino. Vejamos:

Currículo de 1837 1º ano: Português; Latim; Francês; Aritmética; Geografia. 2º ano: Latim; Francês; Inglês; Aritmética; Geografia. 3ºano: Latim; Francês; Inglês; Aritmética; Álgebra; Geografia; História da Idade Média. 4ºano: Latim; Inglês; Geometria; História Moderna e Contemporânea; Botânica e Zoologia. 5ºano: Latim; Inglês; Trigonometria; Física, Botânica e Zoologia; Grego e Alemão. 6ºano: Latim; Grego; Alemão; Italiano; Filosofia (Lógica e Metafísica); Retórica; História Antiga; Química e Física. 7ºano: Latim; Grego; Alemão; Filosofia Moral e História da Filosofia; Retórica e Poética; Análise e Crítica dos Clássicos Portugueses; História da Literatura Portuguesa e Nacional; Química, Geologia e Mineralogia.

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Fato inédito nesse currículo foi a instituição do Português como uma das

disciplinas, embora com um espaço muito reduzido. A Reforma Pombalina, em 1759,

que visou à modernização do sistema educacional, até então a cargo dos jesuítas,

impôs a língua portuguesa como idioma do ensino no Brasil. Assim, a língua portuguesa

passou a fazer parte dos conteúdos curriculares, mas seguindo os moldes do ensino de

Latim, com o nome de Gramática Nacional. Mas de fato, como disciplina curricular, foi

introduzida somente nesse primeiro currículo do Pedro II. Apesar da mudança de nome,

de Gramática Nacional para Português, o conteúdo era o mesmo: gramática tradicional

de tradição latina, aliada a conteúdos retóricos, no que dizia respeito à produção textual.

.Aí registram-se sobreposições de conteúdo, uma vez que havia também nesse currículo,

além de uma disciplina Retórica, uma disciplina Retórica e Poética. Essa última,

fusão de duas disciplinas, revela a confusão existente também entre essas disciplinas.

Aristóteles separou retórica e poética, tendo escrito dois tratados distintos dedicados a

cada uma delas. No entanto, constatam-se remissões recíprocas, o que evidencia a

proximidade delas. No modelo aristotélico, grosso modo, a retórica se ocupa sobretudo

com oratória, raciocínio e persuasão e a poética trata principalmente da poesia, da

mimesis, da verossimilhança e da catarse. Na Idade Média, O sistema de ensino

medieval não incluiu a poética entre suas disciplinas, uma vez que domina a identidade

retórica e poética. A posição da poesia no trivium oscilava entre a retórica e gramática.

No início da idade moderna começa a se reforçar a distinção entre retórica e a poética.

Posteriormente, com a "morte" da retórica, houve a fusão, por sincretismo, de retórica

e poética. O nome Retórica e Poética dessa disciplina do currículo do Pedro II já revela

uma tendência a esse sincretismo.

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Esse currículo inicial se manteve até 1857, quando foi fixado um novo currículo

que em nada alterou as disciplinas que nos interessam. O português, como disciplina,

continuou tendo espaço diminuto nesse currículo, situação que se manteve até 1869.

Em 1869, quando o exame de Português foi incluído entre os exames preparatórios para

o ingresso nos cursos superiores, foi dada maior ênfase e maior espaço a essa

disciplina, que passou a ser dada no 1º, 2º , 4º e 5º anos; mantiveram-se Retórica e

Retórica e Poética. A literatura nacional era ensinada no currículo de Retórica e

Poética, disciplina exigida nos Preparatórios das faculdades de direito, e na disciplina

História da Literatura Nacional.

Vejamos agora uma pequena amostra de programas e recomendações

pedagógicas relativas à disciplina Português, focalizando as partes relativas à produção

textual, em que se evidencia a presença da retórica. Começamos com o período de 1837

a 1891 - 1ª fase - em que essa disciplina convivia com as disciplinas Retórica e

Retórica e Poética. No todo, os programas de Português continham uma parte de

gramática tradicional, com matérias estritamente gramaticais, seguida da parte

dedicada à composição. É essa parte que vai nos interessar especialmente.

1870 Programa do 2º ano (...) Exercícios: Além da leitura e recitação, que serão pelo modo já indicado na parte do programa relativa ao 1º ano, o professor preparará os alunos para os exercícios de redação, lendo-lhes trechos de algum clássico, e acrescentado às explicações, que der para fazer bem compreender o sentido e a significação das palavras, as observações que entender convenientes sobre o tom, qualidades gerais e particularidades do estilo em que estiver escrito. Feito isto, os alunos repetirão verbalmente, com redação sua, a matéria do trecho já examinado, e, depois de mostrarem tê-lo compreendido, trá-lo-ão por escrito no dia seguinte. Programa do 3º ano (...) Composições

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Os exercícios de composição versarão sobre assuntos usuais, e serão executados pelos alunos depois de explicações do professor. Exemplos: o regime disciplinar do colégio, a descrição do edifício e de suas imediações, os estudos feitos na aula até aquele dia ou na semana anterior, a descrição de qualquer objeto de uso comum, observações sobre sua utilidade, propriedades e aplicações. 1881 Programa do 1º ano (...) Composição: períodos simples a completar e a formar pelos alunos sobre assuntos a seu alcance; breves narrações seguidas de perguntas a que terão eles de responder de viva voz e por escrito. Simples reprodução de breves narrativas feitas pelo professor, podendo o aluno conservar, pouco mais ou menos, a mesma forma e ordem dos pensamentos. Imitação de pequenos trechos ditados e convenientemente explicados e desenvolvidos pelo professor. Programa do 5º ano (...) Composição: períodos a formar pelos alunos com pureza, propriedade e precisão de dicção; redação de escritos de uso comum sem subsídio ministrado pelo professor, mas sobre assunto que este indicar; imitação de narrações, descrições e cartas, modelos em seu gênero, à escolha do professor Recomendações sobre a composição escrita: (...) Quando tiver consagrado tempo suficiente a tais exercícios, passará aos de composição propriamente dita. Dando aos alunos as noções indispensáveis concernentes ao estilo e formalidades a guardar nos escritos de uso comum, marcará o assunto dos que deverão eles preparar em casa, para serem corrigidos no dia seguinte na aula.Oportunamente, traçados os preceitos relativos a cada gênero, passará a ler-lhes alguma descrição ou narração tida geralmente por obra prima, fazendo-os notar os mais belos pensamentos e as principais expressões. Feito isso, exigirá que os alunos exponham o assunto com redação sua e depois o imitem em casa, trazendo seu trabalho no dia seguinte para a devida correção na classe. 1882 Programa do 1º ano (...) Os exercícios de composição versarão especialmente sobre: 1- Simples reprodução de breves narrativas feitas pelo professor, podendo o aluno conservar, pouco mais ou menos, a mesma forma e ordem dos pensamentos. 2- Imitação de pequenos trechos ditados e convenientemente explicados e desenvolvidos pelo professor.

A análise da amostra dos programas dessa 1ª fase , de 1831 a 1891, revelou-os

calcados na retórica e na pedagogia retórica. Há claras evidências dessa vinculação:

A valorização da oralidade – na leitura em voz alta, nas reproduções orais,

composições orais, recitação, respostas orais a perguntas, valorização da dicção

pura, a declamação, a redação oral precedendo a redação escrita;

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A importância do papel do professor, como leitor privilegiado, como condutor

da aprendizagem, orientador, avaliador, modelo;

A valorização dos aspectos estilísticos, da clareza , pureza; propriedade, beleza,

correção;

A presença da imitatio em várias atividades ;

A importância do modelo – clássico, canônico;

A consideração de sentido natural e figurado ;

A consideração da dicotomia forma/conteúdo;

A exploração de gêneros clássicos: epístola, fábula, apólogo, provérbio,

parábola, apresentando e explicando os protótipos;

A exploração de tipos textuais: narrativa, descrição, retrato, apresentando e

explicando os protótipos.

Considerando que existiam também as disciplinas Retórica e Retórica e Poética,

constata-se uma triplicação dos conteúdos, o que se pode ver no seguinte programa de

Retórica e Poética:

1877 Programa do 5º ano (da disciplina de Retórica e Poética) (...) Exercícios de composição de narrações, descrições, cartas e discursos; declamação. Romance, conto, novela, seus caracteres, regras. Exercícios de composição de narrações, descrições e retratos adequados ao romance, ao conto e à novela.Gênero epistolar, seu caráter, regras. Noções do desenvolvimento histórico do gênero epistolar. Exercícios de composição. (...) Epístola, fábula, apólogo, provérbio, parábola, conto. Noções do desenvolvimento histórico das espécies mencionadas. Modelos.

Em decorrência da reforma do ensino promovida por Benjamim Constant, de

caráter positivista, um novo currículo foi fixado em 1891. Vejamos:

Currículo de 1891 1º Ano: Aritmética e Álgebra, Português, Francês, Latim, Geografia, Desenho, Ginástica e Música; 2º Ano:Geometria e Trigonometria, Português, Francês, Latim, Desenho, Ginástica e Música; 3º Ano:Geometria, Álgebra, Cálculo Diferencial e Integral, Geometria Descritiva, Latim, Inglês ou Alemão, Desenho, Ginástica e Música. Revisão inicial; 4º Ano: Mecânica e Astronomia, Inglês ou Alemão, Grego, Desenho, Ginástica e Música. Revisão de Cálculo, Geometria, Português, Francês, Latim e Geografia;

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5º Ano: Física e Química, Inglês ou Alemão, Grego, Desenho, Ginástica e Música. Revisão de Cálculo, Geometria, Mecânica, Astronomia, Geografia, Português, Francês e Latim; 6º Ano:Biologia, Zoologia e Botânica, Meteorologia, Mineralogia, Geologia, História Universal, Desenho e Ginástica. Revisão de Cálculo, Geometria, Mecânica, Astronomia, Química, Francês, Inglês ou Alemão, Grego e Geografia; 7º Ano: Sociologia, Moral, Noções de Direito e Economia Política, História do Brasil, História da Literatura Nacional, e revisão geral." Como se pode ver, as disciplinas Retórica e Retórica e Poética foram banidas

desse currículo. Permaneceram as disciplinas Português e História da Literatura

Nacional. Vejamos agora uma amostra de programas da disciplina Português nessa 2ª

fase:

1892 Programa do 1º ano (...) Narrações, transcrições, cartas de uso freqüente escritas pelos alunos conforme os subsídios que lhes ministrar o lente. Programa do 2º ano (...) Exercícios de redação, sem subsídio ministrado pelo lente, mas sobre assunto que este indicar. 1893 Programa do 1º ano (...) Exercícios de redação, sobre assuntos fáceis, com auxílio ministrado pelo lente. Programa do 2º ano (...) Exercícios de composição gradualmente mais difíceis, com subsídios ministrados pelo lente. Programa do 3º ano (...) Exercícios de composição, sem subsídio ministrado pelo lente. 1917 Programa do 3º ano (...) Composição: exercícios em que gradualmente se exijam não somente correção gramatical, mas algumas qualidades estilísticas.

Examinando os programas dessa fase ( Segunda fase - 1891 a 1929), a

impressão que se tem é que os mestres, com o fim da retórica, ficaram perdidos, sem

saber o que ensinar e como ensinar. A elaboração dos programas parece ter sido o

simples cumprimento de uma formalidade. Esse tipo de programa, lacônico e sucinto,

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permanece até o ano de 1929, portanto por 37 anos, quando finalmente aparece um

programa mais adequado e se inaugura uma terceira fase, de 1929 a 1961.

Pode-se dizer, portanto, que foi a partir de 1929 que a extinção da retórica

começou a promover alguma mudança na concepção de ensino do Português. É

também, a partir desse marco, que se pode notar uma tendência à exclusão também da

gramática do ensino do vernáculo. Nota-se também que não se poderá mais, nessa 3ª

fase, entender que o ensino é calcado na retórica, mas sim que há resquícios da retórica

no ensino.

Analisemos agora uma amostra dos programas dessa 3ª fase. As modernidades

detectadas nos programas serão destacadas em negrito. As influências − resquícios − da

retórica, em sublinhado.

1929 Programa do 5º ano (...) 5- Gênero descritivo. Evolução desse gênero em português 6- Gênero narrativo. A narração nos contos e romances modernos 7- A dissertação. Dissertação didática (...) 11- A fábula; teoria. A composição modelar de La Fontaine e as deturpações de seus tradutores em português 12- Gênero epistolar. Estilo das cartas de Vieira. Estilo das cartas de Camilo Castelo Branco. 1931 Orientações (...) Nas duas primeiras séries do curso, o ensino será acentuadamente prático, reduzidas ao mínimo possível as lições de gramática e transmitidas por processos indutivos. A conversação bem orientada, as pequenas exposições orais e a reprodução livre de um trecho lido na aula darão ensejo a que o professor corrija a linguagem dos alunos e,assim, prepare os subsídios para a composição escrita, mais aconselhável nas séries superiores. (...) Somente na 4ª série começará a redação livre, dando-se-lhe daí por diante, até o termo do curso, maior atenção. Cerca de três quartas partes do tempo letivo deverá ser destinado à correspondência, às descrições e narrações, entremeadas com exercícios de estilo e análise literária de textos. Os trabalhos de composição escrita serão preparados fora da classe, indicando-se ao aluno, tanto quanto possível, as leituras a que convém recorrer afim de melhor executá-los. Para que a correção seja eficaz, recomenda-se ao professor recolher as provas e,fora da aula, nelas assinalar todos os erros, classificando em lista especial os

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mais comuns (erros de ortografia, pontuação, concordância, regência, impropriedades, etc); na aula seguinte, mandando fazer, no quadro negro, as emendas necessárias, com a colaboração na classe, deve verificar se os interessados as transportam para as respectivas provas. Composição oral: pequenas descrições de cenas comuns da vida humana e da natureza; breves narrativas, fábulas, contos populares. 1942 Seção outros exercícios 1ª série (...) 3- Breves exposições orais, reprodução livre de trechos lidos na aula, redação escrita de frases curtas e pequenas descrições à vista de gravuras. 2ª série (...) 2- Redação de cartas, bilhetes, telegramas e documentos oficiais 3- Exercícios de composição 1943 Seção outros exercícios 1ª série (...) 3- Exercícios de redação e composição sob a forma de cartas, documentos oficiais, narrativas, descrições e dissertações. 2ª série (...) 2- Exercícios de redação e composição, constantes, sobretudo, de biografias de grandes vultos da literatura portuguesa, de pequenos estudos de fases e escolas literárias e de ensaios de crítica. 3ª série (...) 2- Exercícios de redação e composição, constantes, sobretudo, de biografias de grandes vultos da literatura portuguesa, de pequenos estudos de fases e escolas literárias e de ensaios de crítica. 1951 Programa da 1ª série (...) c) Reprodução resumida e oral de assuntos lidos em aula; narração oral de fábulas e contos populares. (...) e) Breves exercícios escritos de redação feitos em aula, a propósito de textos lidos, com subsídios ministrados pelo professor. Programa da 2ª série (...) c) Reprodução resumida e oral de assuntos lidos em aula; narração oral de ocorrências da vida escolar e social. (...) e) Breves narrações escritas e cartas familiares, feitas em aula, com subsídios ministrados pelo professor. Programa da 4ª série (...)

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c) Exercícios orais, impressões de leituras feitas fora da classe, narração de episódios da história do Brasil, exposição de pontos do programa já tratados em aula. d) Exercícios escritos: descrição de paisagens, cenas e tipos; cartas, requerimentos, dissertações, notícias para jornais. Orientação: Começará na 4ª série ginasial a composição livre, para a qual, além das indicações do professor, muito servem como recursos preliminares os exercícios de estilo e a análise literária elementar de textos breves, de preferência modernos. (...) Instruções metodológicas gerais para o segundo grau Redação, composição e análise literária Os trabalhos de redação, sempre muito fáceis, devem ser executados de preferência em aula, individual ou coletivamente, orientados pelo professor ou sugeridos pela leitura explicada. Como exercícios subsidiários, são recomendáveis, entre outros, os seguintes: 1) Formação de frases com aplicação do vocabulário ensinado. 2) Substituição de frases por outras de forma diversa e sentido equivalente. 3) Conversão de períodos compostos em períodos simples. 4) Transformação de orações subordinadas em coordenadas e vice-versa; substituição de subordinadas adjetivas por adjuntos atributivos ou por apostos; de subordinadas de forma conjuntiva pelas reduzidas correspondentes, etc. 5) Conversão de voz passiva na ativa e vice-versa. 6) Exercícios de concisão. 7) Resumo oral de leituras feitas fora da classe. 8) Paráfrases de textos breves. 9) Correção de trabalhos apresentados pelos alunos, feita pela turma, sob a direção do professor. Nesses currículos dessa terceira fase ( de 1929 a 1961), embora mais

modernos, ainda convivem resquícios da retórica com posturas mais modernas. Como

se pode ver nos meus grifos inseridos nesses programas, foram localizados os seguintes

índices de influência da retórica:

A valorização da oralidade – no resumo oral, nas exposições;

A consideração do estilo – exercícios de estilo;

A presença da imitatio - em atividades de paráfrase;

A presença de exercício de concisão – resumos orais e escritos

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A exploração de gêneros clássicos: epístola, fábula, provérbio, máximas,

encômio; textos históricos;

A exploração de tipos textuais: narrativa, descrição;

A consideração de modelos canônicos.

O trabalho de correção feito pelos próprios alunos. Como índices de modernidade, registram-se:

A menor importância do papel do professor;

A consideração de maior variedade de gêneros: conto, romance moderno,

dissertação didática, dissertação moral, dissertação literária, bilhetes, telegramas,

documentos oficiais,requerimentos, biografias, ensaios de crítica, contos

populares, notícias para jornal, artigos para revista escolar, impressões de

leitura;

Recomendação de ensino prático;

Redução do ensino gramatical;

Ênfase no nível da frase;

Redação de preferência nas séries superiores;

Trabalho com temas sociais e do cotidiano;

Reprodução livre;

Trabalhos de livre-escolha do aluno.

Cumpre também notar, que a disciplina Português, além de cuidar de aspectos

gramaticais, continua incorporando os aspectos ligados ao nível textual, antes de

competência dos estudos retóricos, e passou também a incorporar os estudos literários,

como se pode ver nos programas analisados que incluem:

Análise literária de textos

Fases e escolas literárias

Crítica literária

Autores clássicos

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Preferência por autores modernos

Passamos agora a analisar uma quarta fase, de 1961 a 1980, iniciada com a

publicação4 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 4.024 de 20 de

dezembro de 1961), portanto não mais com base nos programas do Pedro II.

1961 - (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

(...) Os estudos teóricos de gramática e estilística são meramente subsidiários e, por conseqüência, hão de constituir apenas o meio para desenvolver, no discente, a sua capacidade de expressão. Por isso, importa considerar: (...) 2º- Expressão Escrita Nos exercícios escritos, procurar-se-á levar o aluno à utilização correta, ordenada, eficaz das palavras, a fim de que logre alcançar uma expressão clara do pensamento. Para isso, convirá partir da elaboração de frases breves, sem pretender, todavia, a uniformidade estilística. Cumpre resguardar, e até estimular, a liberdade de expressão individual, dentro das possibilidades de escolha permitidas pelo idioma. Aos progressos por parte dos alunos no domínio da sintaxe deve corresponder mais ampla liberdade na eleição dos temas para redação, abrindo-se oportunidade à prática da análise literária, que irá desenvolver-se no segundo ciclo.

Como se pode constatar, mesmo nas orientações da LDB de 1961, portanto mais

modernas, ainda se deixam flagrar ligeiras influências da retórica: nas considerações

sobre estilo - na concepção de estilo como escolha - e na valorização de clareza. Por

outro lado, como índices de modernidade, constata-se mais uma vez a tendência à

relativização da importância da gramática e da estilística, estudos que devem ser

subsidiários, e também uma tendência à linguística do nível da frase, do texto visto

como uma soma de frases.

Em suma, no ensino brasileiro em relação a gramática e retórica, constatam-se

quatro fases:

uma fase (1837 a 1891) em que conviviam o Português ( incluindo gramática e

conteúdos retóricos), Retórica e Retórica e Poética como disciplinas

curriculares. Nessa fase, eram muitas as sobreposições de conteúdo: conteúdos 4 Esta Lei não prescreveu currículo fixo nem programas de disciplinas, apenas foram apresentadas orientações gerais de como deveria ser o ensino

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retóricos eram tratados nas aulas de Português, nas aulas de Retórica e nas

aulas de Retórica e Poética.

uma fase (1891 a 1929) em que, banidas do currículo as disciplinas Retórica e

Retórica e Poética, além da matéria estritamente gramatical, não se sabia o que

ensinar, mais especificamente, não se sabia ensinar a produção textual.

uma fase (1929 a 1961) em que as matérias retóricas passam a participar

discretamente dos programas de Português, convivendo com modernidades,

como, por exemplo, a relativização da importância da gramática.

uma fase (1961 a 1980) em que a influência retórica diminui drasticamente, mas

não desaparece, deixando-se ainda flagrar nos programas de Português, agora

mais calcados na gramática.

Segundo Soares (2001, p. 152), foi somente a partir da segunda metade dos

anos oitenta que as novas teorias desenvolvidas na área das ciências lingüísticas,

introduzidas nos currículos de formação de professores a partir dos anos 60,

começaram a alterar fundamentalmente essa situação, não só em relação à retórica mas

também à gramática.

A partir daí, houve algo como a "morte" − pelo menos oficial − da gramática

tradicional no ensino do vernáculo, que ficou sem retórica e sem gramática. Mas foi

só nos anos 90 que essas ciências linguísticas modernas começaram a chegar de fato à

escola, "aplicadas" ao ensino da língua materna, inaugurando a fase atual.

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