CARLOS MÁRCIO NORBERTO BICALHO
Transcript of CARLOS MÁRCIO NORBERTO BICALHO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
Carlos Márcio Norberto Bicalho
Considerações sobre o Ponteio e Dansa
para violoncelo e piano de Camargo
Guarnieri, contribuições para a didática
do violoncelo a partir de uma peça
brasileira.
Belo Horizonte
Outubro de 2014
Carlos Márcio Norberto Bicalho
Considerações sobre Ponteio e Dansa para violoncelo
e piano de Camargo Guarnieri, contribuições para a
didática do violoncelo a partir de uma peça brasileira.
Dissertação de Mestrado apresentada junto ao
Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de
Música da Universidade Federal de Minas Gerais como
requisito à obtenção do título de Mestre em Música.
Linha de Pesquisa: Performance Musical
Orientadora: Profa. Dra. Margarida Maria Borghoff
(UFMG)
Belo Horizonte
Outubro de 2014
B583c Bicalho, Carlos Márcio Norberto
Considerações sobre Ponteio e Dansa para violoncelo e piano de Camargo Guarnieri: contribuições para a didática do violoncelo a partir de uma peça brasileira/ Carlos Márcio Norberto Bicalho. --2014.
88 fls., enc.; il. Acompanha um Digital Vídeo Disc Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Música. Orientadora: Profa. Dra. Margarida Maria Borghoff
1. Música para violoncelo e piano. 2. Nacionalismo (Música). 3. Guarnieri, Camargo – Ponteio e Dansa – Análise musical. I.Borghoff, Margarida Maria. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Música. III. Título.
CDD: 787.307
Agradecimento
Ao longo de dois anos de pesquisa, tive o privilégio de receber o apoio
de muitas pessoas. Muitas pessoas participaram direta e indiretamente desde
processo de profundo aprendizado e crescimento profissional e pessoal.
Agradeço inicialmente a duas pessoas: Cláudio Urgel e Elise Pittenger.
Meu aprendizado com o professor Dr. Cláudio Urgel durante a graduação,
dentre outras coisas, passou pelo estudo de peças brasileiras do repertório do
violoncelo, portanto, sem o contato com o professor Cláudio, esta pesquisa não
existiria. Elise Pittenger foi a pessoa que me incentivou a ampliar meus campos
de estudo e atuação através deste curso de mestrado, agradeço pela
motivação e ajuda em todo o período do curso.
Fico grato também aos funcionários do Programa de pós-graduação da
UFMG desde o Coordenador, professor Sérgio Freire, aos funcionários da
secretaria do programa Alan e Geralda. Agradeço também a CAPES pelo
benefício concedido através da bolsa, fator primordial para fazermos nossa
pesquisa com mais tranqüilidade.
Um agradecimento especial faço a minha orientadora Professora
Doutora Margarida Borghoff pela paciência, disponibilidade e principalmente
pelas críticas e informações necessárias para o meu amadurecimento pessoal,
musical e acadêmico. Ela tornou esta pesquisa possível.
Programa do Recital de Mestrado
Villa-Lobos
Pequena Suíte (1914)
Romancette
Legendária
Harmonias Soltas
Fugata
Andantino
Gavotte
Guerra Peixe
Pequeno Duo (1946)
Camargo Guarnieri
Ponteio e Dança (1946)
Guerra Peixe
Trio n. 2 para violino, violoncelo e piano (1960).
Elias Barros - violino
Carlos Márcio - violoncelo
Hélcio Vaz do Val - piano
RESUMO
Este trabalho aborda a obra Ponteio e Dansa escrita em 1946 por
Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993), compositor paulista que exaltou
através de suas composições diversas manifestações musicais do Brasil.
Conhecido por sua técnica composicional e influência no movimento
nacionalista, Camargo Guarnieri escreveu oito obras para o violoncelo, vindo
este trabalho agregar-se às pesquisas já realizadas sobre o compositor e
ressaltar o nacionalismo presente desde o título até as raízes sertanejas dos
dois movimentos da presente obra. Após uma breve biografia do compositor, o
trabalho propõe-se a esclarecer algumas questões sobre a importância desta
peça na obra camerística brasileira para violoncelo, sublinhar as raízes
culturais brasileiras presentes na obra, observar suas contribuições para
didáticas do instrumento e fazer uma edição com sugestões técnico-
interpretativas.
Palavras-chave: Camargo Guarnieri, Violoncelo e piano, Nacionalismo,
Ponteio e Dansa, Viola caipira, viola nordestina, ponteado.
ABSTRACT
This work discusses the piece Ponteio and Dansa, written in 1946 by
Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993), composer from São Paulo, who
worked to exalt through his compositions the various musical manifestations
existing in Brazil in that time. Known for his compositional technique and
influence in the nationalist movement, Camargo Guarnieri wrote eight
compositions for cello that have no considerable bibliography. This work,
therefore, comes to accrete up the previous research about the composer,
highlighting, through the study of this piece, his nationalist focus that is present
from the title of this work to the roots that came from the inner of the country in
the two movements that constitute the piece. After a brief biography of the
composer, the work proposes to clarify some issues about the importance of
this piece for the Brazilian chamber works for cello, highlighting the Brazilian
cultural roots present, observe their contributions to the teaching of the
instrument and make an edition with technical and interpretative suggestions.
Keywords: Camargo Guarnieri, Cello and piano, Nationalism brazilian,
Dansa and Ponteio, Viola Hick, Viola the northeastern Brazil, Ponteado.
Sumário
Índice de Figuras .............................................................................................. 11
Introdução ........................................................................................................ 14
1. Traços biográficos de Mozart Camargo Guarnieri ........................................ 17
1.1. Primeiros anos ....................................................................................... 17
1.2. São Paulo: Aprendizado e Reconhecimento .......................................... 17
1.3. Guarnieri conhece Mário de Andrade .................................................... 19
1.4. Guarnieri, profissão: Compositor............................................................ 21
1.5. Últimos anos .......................................................................................... 22
2. Ponteio e Dansa para violoncelo e piano ..................................................... 24
2.1. Uma breve explanação sobre Ponteio e Dansa ..................................... 24
2.2. A viola dedilhada .................................................................................... 27
2.3. Pontear .................................................................................................. 29
2.3.1. Melodia solo ..................................................................................... 31
2.3.2. Toque de viola ................................................................................. 32
2.3.3. Arraste ............................................................................................. 33
2.3.4. Oitavas de viola ............................................................................... 35
2.4. A idiossincrasia nos ponteios de Guarnieri ............................................ 39
2.4.1. Oitavas de Viola ............................................................................... 40
2.4.2. Toques de Viola ............................................................................... 42
2.5. Uma dança nordestina ........................................................................... 43
2.5.1. As características da viola nordestina na Dansa ............................. 44
2.5.2. Pedal ................................................................................................ 45
2.5.3. Melodias nordestinas: contingências do improviso .......................... 47
2.5.4. O modo Nacional ............................................................................. 51
2.5.5. Ritmo ............................................................................................... 53
2.5.6. Baião de Viola .................................................................................. 53
2.6. Interlocuções entre o piano e o violoncelo ............................................. 57
2.7. A idiossincrasia em três danças de Guarnieri ........................................ 58
2.7.1 Miscelânea de modos ....................................................................... 59
2.7.2. Ostinato ........................................................................................... 62
2.7.3. Considerações sobre o material melódico ....................................... 63
2.7.4. Elementos de uma hipótese ............................................................ 65
3. Questões idiomáticas e sugestões técnico-interpretativas ........................... 66
3.1. Dificuldades técnicas ............................................................................. 66
3.1.1. Os estudos de Dotzauer .................................................................. 66
3.1.2. Os Cadernos do Método Suzuki ...................................................... 67
3.2. Ponteio ................................................................................................... 69
3.2.1. Mudanças de posição ...................................................................... 69
3.2.2. Variações do Arco: velocidade, ponto de contato e peso ................ 72
3.2.3. Mudanças Métricas .......................................................................... 75
3.3. Dansa ..................................................................................................... 78
3.3.1. Velocidade ....................................................................................... 78
3.3.2. Elasticidade ..................................................................................... 78
3.3.3. Cordas Duplas ................................................................................. 81
4. A obra aplicada a pedagogia ........................................................................ 83
5. Conclusão .................................................................................................... 85
Referências Bibliográficas ................................................................................ 87
Anexo................................................................................................................89
11
Índice de Figuras
Figura 1 - Camargo Guarnieri, Ponteio. Compassos 1-4 ................................. 32
Figura 2 - Camargo Guarnieri, Ponteio para Violão. Compassos 1-3 .............. 32
Figura 3 - Camargo Guarnieri, Ponteio. Compassos 1-7 ................................. 33
Figura 4 - Retirado do trabalho de Saulo Dias (2010) ...................................... 34
Figura 5 - Camargo Guarnieri - Ponteio, compasso 5 - parte do violoncelo ..... 34
Figura 6 - Camargo Guarnieri - Ponteio. Compassos 1-3 ................................ 35
Figura 7 - Camargo Guarnieri - Ponteio. Compassos 4-9 ................................ 36
Figura 8 - Camargo Guarnieri - Ponteio. Compassos 18-20 ............................ 36
Figura 9 - Camargo Guarnieri, Ponteio compassos 1 – 3 - Afinação Natural transliterada ...................................................................................................... 37
Figura 10 - Camargo Guarnieri, Ponteio. Compassos 12-13............................ 38
Figura 11 - Camargo Guarnieri, Ponteio. Compassos 23-24............................ 38
Figura 12 - Camargo Guarnieri, Ponteio. Compassos 29-30............................ 38
Figura 13 - Camargo Guarnieri, Ponteio. Compassos 35-37............................ 38
Figura 14 - Camargo Guarnieri, Ponteio nº 6. Compassos 1-27 ...................... 40
Figura 15 - Camargo Guarnieri, Ponteio. Compassos 1-9 ............................... 41
Figura 16 - Camargo Guarnieri, Ponteio nº 3 para piano. Compassos 25-27 .. 42
Figura 17 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 1-6 ................. 42
Figura 18 - Camargo Guarnieri, Dansa. Compassos 1-8 ................................. 43
Figura 19 - Camargo Guarnieri, Dansa. Compassos 7-13 ............................... 45
Figura 20 - Camargo Guarnieri, Dansa. Compassos 85-88 ............................. 46
Figura 21 - Camargo Guarnieri, Dansa. Compassos 89-100 ........................... 46
Figura 22 - Camargo Guarnieri, Dansa. Compassos 1-10 ............................... 48
Figura 23 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 20-28 ............. 48
Figura 24 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 31-34 ............. 49
Figura 25 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 36-45 ............. 49
Figura 26 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 46-51 ............. 50
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Figura 27 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 52-59 ............. 50
Figura 28 - Figura Escala do “modo nacional”, assim nomeado por José Siqueira. ........................................................................................................... 51
Figura 29 - Camargo Guarnieri, Dansa. Partitura do Violoncelo. Compassos 1-11 ..................................................................................................................... 51
Figura 30 - Camargo Guarnieri, Dansa. Partitura do Violoncelo. Compassos 16-29 ..................................................................................................................... 52
Figura 31 - Exemplo escala Frígio .................................................................... 52
Figura 32 - Exemplos dos modos relativos, sendo a fundamental o sexto grau da escala com base em Dó. ............................................................................. 52
Figura 33 - Padrões rítmicos encontrados na Dansa. ...................................... 53
Figura 34 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 1-11 ............... 54
Figura 35 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 1-4 ................. 54
Figura 36 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 7-14 ............... 55
Figura 37 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 20-24 ............. 55
Figura 38 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 20-28 ............. 56
Figura 39 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 29-35 ............. 56
Figura 40 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 60 - 75. .......... 57
Figura 41 - Camargo Guarnieri, Dansa Brasileira. Compassos 1-9 ................. 59
Figura 42 - Escala do modo Jônio .................................................................... 59
Figura 43 - Camargo Guarnieri - Dansa Brasileira. Compassos 9-18 .............. 60
Figura 44 - Escala do modo Mixolídio .............................................................. 60
Figura 45 - Camargo Guarnieri, Dansa Negra. Compassos 1- 12 .................... 60
Figura 46 - Escala modo Mixolídio ................................................................... 61
Figura 47 - Dansa Negra, Camargo Guarnieri e Modo escala Dórico. ............. 61
Figura 48 - Camargo Guarnieri, Dansa Negra. ................................................. 61
Figura 49 - Modo não classificado .................................................................... 62
Figura 50 - Camargo Guarnieri, Dansa Negra. Compassos 1-6....................... 62
Figura 51 - Camargo Guarnieri, Dansa Brasileira. Compassos 1-9 ................. 63
Figura 52 - Camargo Guarnieri, Dansa Negra. Compassos 1-6....................... 64
Figura 53 - Camargo Guarnieri, Dansa Negra. Compassos 45-54 ................... 64
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Figura 54 - Schinichi Suzuki - Caderno nº 1, música 1. Compassos 1-6 ......... 67
Figura 55 - Schinichi Suzuki - Caderno nº 4, música Chanson Triste, primeira vez que apresenta a clave de Dó ..................................................................... 68
Figura 56 - Schinichi Suzuki - Caderno nº 3, música Humoreske. Compassos 33-40 ................................................................................................................ 68
Figura 57 - Schinichi Suzuki - Caderno nº 5, música The Swan, posição do capotasto será estuda ...................................................................................... 68
Figura 58 - Camargo Guarnieri, mudanças de posição em Ponteio ................. 71
Figura 59 - Camargo Guarnieri, Ponteio. Compassos 10-11............................ 71
Figura 60 - Camargo Guanieri, música Ponteio, indicação de caráter tristonho e íntimo ............................................................................................................... 73
Figura 61 - Camargo Guanieri, música Ponteio, necessidade de usar o ponto de contato......................................................................................................... 73
Figura 62 - Camargo Guanieri, música Ponteio. Compassos 9-12 .................. 74
Figura 63 - Camargo Guanieri, música Ponteio, indicações. Compassos 9-12 74
Figura 64 - Partitura Ponteio ............................................................................ 76
Figura 65 - Camargo Guanieri, música Ponteio, indicação de andamento. ..... 76
Figura 66 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Primeiro movimento. Compassos 14-20 ............................................................................................ 77
Figura 67 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Primeiro movimento. Compassos 24-28 ............................................................................................ 77
Figura 68 - Camargo Guarnieri, escrita idiomática. .......................................... 79
Figura 69 - Possíveis dedilhados ..................................................................... 79
Figura 70 - Compassos 24-34 .......................................................................... 80
Figura 71 - Indicação do compasso 30, passagem rápida. .............................. 81
Figura 72 - Camargo Guanieri, música Dansa. Compassos 64-71 e 99-102 ... 81
Figura 73 - Camille Saint-Saëns, música Concerto nº 1................................... 82
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Introdução
Este trabalho trata da peça Ponteio e Dansa, obra para violoncelo e
piano de Mozart Camargo Guarnieri, observando-a sob o ponto de vista da
inserção do compositor no movimento nacionalista e refletindo sobre as
questões idiomáticas da escrita para o violoncelo que nela se apresentam e
sua aplicação na didática do instrumento. Camargo Guarnieri foi personagem
atuante da vida musical brasileira do século XX e através dos anos foi objeto
de pesquisas por suas posições, atitudes, pensamentos e polêmicas, mas,
principalmente por sua música. Vários estudos foram realizados sobre o
compositor, alguns mostrando a força com que o pensamento nacionalista
estava impregnado em sua alma ou discorrendo sobre a relação de Mário de
Andrade e Camargo, outros discutindo a famosa “Carta aberta aos músicos do
Brasil” ou mesmo as crises com o grupo Música Viva1, além de diversos
materiais biográficos publicados. O foco deste trabalho, porém, não serão
essas discussões, mas sim, as questões técnicas interpretativas e as
dificuldades da idiomática do compositor para o violoncelo, tendo como objeto
de estudo a peça Ponteio e Dansa (sic) 2. O trabalho se propõe também a
mostrar nesta obra questões técnicas do ensino do violoncelo geralmente
trabalhadas em obras do repertório europeu. Intencionou-se ampliar a
divulgação do repertorio de obras brasileiras para violoncelo e piano.
No ano de 2009, ao me propor a fazer um concerto apenas com obras
de compositores brasileiros, notei a facilidade em encontrar obras de Villa-
Lobos, e a dificuldade em encontrar obras de outros compositores nacionais.
Nesta época, já me interessava pelas peças de cunho nacionalista, pois acho
1 O “Música Viva” foi um movimento musical brasileiro formado por um grupo de compositores iniciado no Rio de Janeiro em 1939, sob liderança de Hans-Joachim Koellreutter. Em sua primeira fase, o grupo foi integrado por figuras tradicionais do meio musical nacional, tendo como seu patrono Villa-Lobos. A partir de 1944, com a entrada de novos alunos de Koellreutter (Guerra Peixe, Eunice Catunda e Edino Krieger) o grupo foi assumindo um ar de modernidade radical, confrontando-se com as tradições estabelecidas no meio musical. 2 No manuscrito autoral o título da obra a palavra dança está escrita da forma usual da época em que foi publicada. Como não existe publicação da obra em português manteremos neste trabalho o título na forma original.
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relevante a valorização dos compositores que se dedicaram a materializar a
identidade musical brasileira.
Construindo o repertório deste concerto, cheguei aos nomes de
Francisco Mignone e Camargo Guarnieri. O programa do concerto constituía-se
de duas obras de Villa-Lobos, uma de Mignone e a uma de Guarnieri. Dentre
as peças escolhidas para o concerto, as de Villa-Lobos eram obras que ainda
não transmitiam a força nacionalista do compositor por serem obras escritas
entre 1910 e 1920, período em que ele estava voltado para um estilo francês
de composição. Já as obras de Mignone e Guarnieri tinham características
nacionalistas nos próprios títulos: “Modinha”, e “Ponteio e Dansa”. Ao realizar o
concerto programado, me chamou atenção a reação positiva do público ao
“Ponteio e Dansa” de Camargo Guarnieri. Sobretudo o segundo movimento, a
“Dansa”, causou maior vibração na plateia, talvez por possuir um caráter
rítmico tipicamente brasileiro. Por ser o público, naquela situação, de ouvintes
não frequentadores de salas de concerto, conclui que houve uma maior
identificação dos brasileiros com sua música, com sua brasilidade.
Esse fato fez meu interesse para com o nacionalismo ser maior, o que
me levou a iniciar um levantamento sobre o movimento e as obras escritas
naquele período. Constatei que dificilmente são executadas em concerto obras
de compositores nacionais, exceção feita a Villa-Lobos. Diversas razões podem
ser encontradas para que tal fato se perpetue: partituras apenas na forma de
manuscritos, ausência das obras nas bibliotecas das universidades, escolas de
música e demais instituições de ensino musical e bibliografia insuficiente sobre
as obras para o violoncelo.
A proposta deste trabalho é mostrar um caminho para a interpreção
fundamentada de Ponteio e Dansa, digitalizar a partitura criando uma edição de
performance com sugestões de arcadas e dedilhados tornando sua execução
mais acessível. Com a publicação desta pesquisa procura-se, também,
colaborar com a ampliação de material bibliográfico sobre obras brasileiras
para violoncelo, para torná-las mais presentes nos meios acadêmicos e
artísticos.
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Durante a pesquisa, pudemos constatar que há apenas um trabalho
acadêmico sobre a obra para violoncelo e piano de Camargo Guarnieri, tendo
sido realizado3 por Paulo César Rabelo (Professor da Universidade de Juiz de
Fora) para sua tese de Doutorado apresentada na Universidade de Ohio/EUA.
A obra de Camargo Guarnieri comentada no presente trabalho foi
escrita em 1946. Não estamos, portanto, diante de um jovem compositor em
busca de sua afirmação na corrente nacionalista, e, sim, diante de um
compositor amadurecido, que cria mais livremente.
3 Em uma entrevista por telefone com Vera Guarnieri, viúva do compositor, Rabelo foi informado de que aquele era o primeiro estudo acadêmico sobre a obra para violoncelo de Guarnieri.
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1. Traços biográficos de Mozart Camargo Guarnieri
1.1. Primeiros anos
A origem da família de Guarnieri, como a dos demais brasileiros,
exceto os descendentes indígenas, não é o Brasil. O nome de família do
compositor tem raízes na Itália, Guarnieri. A família Guarnieri desembarcou em
Santos em 1895, por um erro de escrita do escrivão brasileiro, passou a ser
Guarnieri.
Os Guarnieri estabeleceram-se em Parnaíba, cidade do interior do
Estado de São Paulo. Passados alguns anos, a família se muda para Tietê,
onde em 1907, no primeiro dia do mês de Fevereiro, nasce Mozart Camargo
Guarnieri. Seu primeiro nome, Mozart, foi dado pelo pai que era pianista e
amante das composições do gênio austríaco.
Com 7 anos de idade, Camargo Guarnieri inicia seus estudos ao piano,
seus estudos desagradavam ao pai, pois na maior parte do tempo, o menino
improvisava sobre as obras estudadas, improvisava também motivos novos,
iniciando assim seu processo criativo. Esse processo se materializa em 1920,
com sua primeira obra Sonho de Artista, que curiosamente só foi publicada
porque seu pai, Miguel, pagou por sua publicação.
1.2. São Paulo: Aprendizado e Reconhecimento
Em 1922, a família de Guarnieri muda-se para São Paulo, o jovem
Mozart então com 15 anos passa a fazer aulas de piano com Ernani Braga4 e
4 Era considerado um grande músico a sua época, sua formação ocorreu no Rio de Janeiro, além de Paris. Era também compositor e mais tarde fundou um Conservatório em Pernambuco.
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aulas de flauta e violino com seu pai. Entretanto, sua condição de filho mais
velho exigia dele ajuda financeira a família, ele trabalhava em vários lugares,
incluindo uma loja de música: Casa di Franco. Assim o jovem Guarnieri teve
contato com as obras de Bach, Chopin, Mozart e Rachmaninoff, o que
posteriormente enriqueceria sua obra como um todo, em conhecimento técnico
composicional.
Passados três anos, Camargo Guarnieri sente que o seu mestre não
mais lhe podia acrescentar sabedoria e passa a procurar um novo professor
(VERHALLEN, 2006), o nome encontrado foi o de Antônio Sá Pereira5, neste
período o pai de Guarnieri conseguiu melhores empregos, assim, a dedicação
do compositor para a vida musical se tornou maior. Com Sá Pereira, Guarnieri
estudava piano, o jovem compositor mostrou-lhe algumas obras que já havia
escrito. As obras causaram boa impressão, tanto que Sá Pereira levou o jovem
compositor para um professor exclusivamente de composição, Agostino
Cantù6.
No ano de 1926, pelos jornais Guarnieri vê que em uma turnê pelo
Brasil se apresentará o maestro italiano Lamberto Baldi7. Camargo então após
o concerto vai à procura no camarim do regente. Posteriormente se
encontraram, e o maestro italiano fica impressionado com os trabalhos já feitos
pelo compositor brasileiro e concorda em ter Camargo Guarnieri como aluno.
Baldi era um homem que se rendia aos compositores do passado, mas
também se debruçava sobre as obras modernas.
5 Sá Pereira estudou na Alemanha, França e Suíça, entre 1900 e 1917, quando retornou ao Brasil. Em 1918 fundou e assumiu a direção do Conservatório Musical de Pelotas1 , a convite de Guilherme Fontainha. Exerceu o cargo até 1923, quando mudou-se para São Paulo. Ali participou ativamente do movimento modernista, tendo sido diretor de Ariel, a principal revista modernista dedicada à música, na qual também colaborou Mário de Andrade como crítico musical.Mais tarde em 1937 institui o Conservatório Brasileiro de Música, primeiro órgão no Brasil a utilizar o método Dalcrose. PEREIRA. Antônio de Sá. Ensino Moderno de Piano: Aprendizagem Racionalizada. 2ª ed. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1948. 94p. 6 Maestro italiano radicado no Brasil. Chegou ao Brasil em 1908 contratado pelo recém-criado Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e formou dezenas de pianistas e compositores eruditos brasileiros, como Francisco Mignone, Savino De Benedictis e João de Sousa Lima. CENNI, Franco - Italianos no Brasil, Andiamo in 'Merica. São Paulo: EDUSP, 1958. 7 Baldi tinha vindo para São Paulo como regente de uma companhia de ópera italiana, mas acabou transferindo sua residência para a cidade. Além de trabalhar como professor, Baldi foi regente da Sociedade Sinfônica de São Paulo e diretor musical da Sociedade Rádio Educadora Paulista. Em 1932 mudou-se para Montevidéu.
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1.3. Guarnieri conhece Mário de Andrade
Em 1928, Camargo Guarnieri conhece Mário de Andrade na casa do
intelectual durante um pequeno sarau em sua casa. Naquela ocasião o
compositor executou a Sonatina nº1 para piano e a Dança Brasileira. A duas
obras causaram uma empatia imediata entre Andrade e Guarnieri. Mário de
Andrade fica perplexo com o grau de consciência nacional presente nas obras
como subtítulos escritos em português e formas do folclore nacional. No
segundo movimento, Andrade relata que “lembrava distintamente uma serenata
para violão” 8. Nesse encontro Mário de Andrade se interessou pelo jovem
compositor e passou a apoiá-lo, encorajando-o quando necessário e criticando-
o construtivamente, para seu amplo desenvolvimento.
Desde esse encontro Mario de Andrade passou a ser o mentor
intelectual de Camargo Guarnieri que segundo sua viúva, Vera Silvia Camargo
Guarnieri, o considerava um pai9. Mario de Andrade era um intelectual
nacionalmente respeitado nesta época. Escrevia diariamente no jornal Diário
de São Paulo a respeito do compositor paulista, o que gerava oportunidades
para a vida musical de Guarnieri. Neste mesmo ano, 1928, Guarnieri é
contratado como professor do Conservatório Dramático e Musical de São
Paulo.
O relacionamento entre Mário de Andrade e Guarnieri era recheado de
discussões feitas com muito respeito, porém intensas. Para ilustrar este
relacionamento, usarei uma dessas discussões acaloradas descritas em
correspondência entre o escritor e o compositor onde o assunto é a sonata nº 2
para violino e piano, segundo movimento. Mário envia a seguinte opinião a
respeito da obra para Guarnieri, de acordo com o artigo de André Cavazotti:
[...] Mas carece não esquecer que uma dissonância por mais dura que seja, é igualmente boba, desde que não tenha razão de ser, não seja essencial, esteja mal empregada. Ora eu não consigo perceber
8 VERHAALEN, Marion, “Camargo Guarnieri, Espressões de uma vida”, tradução de Vera Silvia Camargo Guarnieri. – São Paulo: Editora da USP, Imprensa Oficial, 2001; pág. 23. 9 SILVA, André Cavazzoti e, “Camargo Guarnieri e Mário de Andrade: Crônicas de um relacionamento”, p.1
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nenhuma razão nem de invenção, nem intelectual, nem harmônica, nem rítmica, nem mesmo puramente técnica que justifique esse ondular vazio de nonas e sétimas. E a sistematização delas por duas páginas, sem justificação nenhuma, só posso chamar de sadismo e masoquismo. [...]10
Cavazzoti analisa o comportamento do musicólogo em relação a
Guarnieri da seguinte forma:
[...] A reação exagerada de Mário de Andrade aos elementos atonais desta sonata, que não chegam a ameaçar o perfil claramente tonal da obra, revela um paradoxo interessante: se por um lado sua posição frente à literatura e às artes visuais era decididamente progressista, seu posicionamento estético frente à música era consideravelmente conservador. [...] (CAVAZOTTI, 1999)11
.
Esse gênio forte de Mário, porém, não impunha a Guarnieri nenhum
tipo de subserviência (CAVAZOTTI, 1999), a seguir, veremos a resposta do
compositor ao musicólogo.
Você se engana em pensar que uso a dissonância pela dissonância, por ser moda afinal![...] A razão pela qual elas foram usadas é de ordem puramente expressiva. Nenhum outro intervalo (harmônico) produziria o efeito por mim desejado. [...] Se você não sentiu isso, talvez fosse por falta de disposição da sua parte, o que é uma coisa muito possível. [...] Sei que seu tempo vale ouro, não quero roubá-lo mais, por isso paro por aqui. Na próxima confissão (!), farei o possível para explicar o meu abuso modulatório (no seu dizer) e as minhas ideias sobre o muito discutido atonalismo. Um abraço do Camargo Guarnieri.12
Embora com palavras menos rudes que as de Mário, Camargo
Guarnieri mostra respeito à opinião do escritor ao mesmo tempo em que o
provoca, em palavras do próprio compositor, pela sua “falta de disposição” com
as dissonâncias de características atonais presentes na obra.
A coincidência entre a publicação do Ensaio sobre a música brasileira
de Mário de Andrade, e o início de sua amizade com Camargo Guarnieri, é um
fato relevante (WARNET, 2009). Neste momento Mário parece ter a ideia de
realmente sistematizar uma forma de composição nacional, incentivando a
busca pelo folclore nacional, elemento fundamental para a criação de tal estilo,
segundo o musicólogo. Guarnieri se tornou uma espécie de porta-voz da
10 Carta de Mário de Andrade a Camargo Guarnieri, 1934. 11 SILVA, André Cavazzoti e, Camargo Guarnieri e Mário de Andrade: Crônica de um Relacionamento, ANPPON, 1999. Pág. 7. 12 Carta de Camargo Guarnieri a Mário de Andrade, p. 2, São Paulo, 13 de agosto de 1934.
21
composição nacionalista, ganhando a atenção especial de Mário de Andrade
como podemos notar em seu livro, Música Doce Música no trecho:
O mais bem orientado nesse sentido me parece ser o compositor paulista Camargo Guarnieri. Sem abandonar os rythmos negros, jamais buscando inspiração na thematica ameríndia, a sua base de inspiração é exatamente caipira. É da moda caipira que lhe derivam as melodias, e creio que disso lhe vem a sua excepcional qualidade melódica, de largos arabescos, de uma grave intensidade. (ANDRADE, 1963)
1.4. Guarnieri, profissão: Compositor
O ano em que Camargo Guarnieri torna-se reconhecido pela sua vida
musical é o de 1935. Neste ano acontece sua primeira aparição pública como
compositor dentro da Semana de Arte Moderna. No programa deste concerto é
apresentada a Sonata nº1 para Violoncelo e Piano, executada pelo
violoncelista Calixto Corazza; um grupo de quatro canções, vários Ponteios,
para piano, escritos entre 1931 e 1935; o Quarteto 1 para cordas de 1932.
Sobre esse concerto temos a crítica de Mário de Andrade:
[...] Mas este concerto define perfeitamente a muito notável proposição em que ele já se colocou entre os compositores da América. Brasileiro, a obra dele se apresenta fundamentalmente racial. Mas o seu nacionalismo já não é propriamente mais aquele primeiro e necessário nacionalismo de pesquisa, que é característico da obra de Villa-Lobos, e principalmente dos compositores menores da geração deste. É um nacionalismo de continuação [...] 13
Podemos notar o esforço e simpatia do musicólogo em direção ao
compositor. Andrade atribui a Guarnieri a “continuação do projeto nacionalista”,
que para o musicólogo, inicia-se com a pesquisa e utilização direta do folclore
nacional por Villa-Lobos, solidificando-se através de Camargo Guarnieri, que
ainda segundo ele, apoia-se no populário e tem como característica
fundamental a erudição das obras. A proposta nacionalista e dissonante de
Guarnieri causou boa impressão em seus primeiros concertos não só em São
Paulo como posteriormente no Rio de Janeiro.
13 VERHAALEN, Marion, “Camargo Guarnieri, Espressões de uma vida”,2006. Mario de Andrade, “Camargo Guarnieri”, Diário de São Paulo, 28 de Maio de 1935. pág. 53
22
Guarnieri partiu para Paris em 1938, permaneceu na “cidade luz” até
dezembro de 1939. Em 1940, Guarnieri apresenta seu primeiro programa após
sua curta temporada na Europa, recebe duras críticas. Mário de Andrade entra
em sua defesa exaltando que apesar da experiência em Paris, Guarnieri não
perdera sua “musicalidade brasileira” e originalidade livre. Neste ano, seu 1º
Concerto para violino e orquestra (1940) foi agraciado com um prêmio
internacional promovido pela The Fleishcer Music Collection of the Philadlphia
Free Library.
Ainda no ano de 1940, Guarnieri aceitou uma proposta que surgiu
posteriormente feito pela União Pan-Americana, no Departamento de Estado
Norte-americano, ficando nos Estados Unidos por seis meses. Nesta
passagem pelos Estados Unidos, Guarnieri foi bastante celebrado, houveram
programas de radio dedicados exclusivamente a obras do compositor brasileiro
com criticas muito elogiosas da imprensa norte americana. Sendo bem
sucedido naquele país, Camargo Guarnieri foi convidado para reger a
Orquestra Sinfônica de Boston em março de 1943, por duas apresentações de
sua Abertura Concertante.
Desde sua volta ao Brasil, o compositor passa por um período marcado
por muitos prêmios para suas composições, incluindo sua primeira sinfonia
intitulada “Um Paulista de Curuçá”, seguindo seu trabalho como importante
expoente da escola de composição brasileira e diversos trabalhos como
regente até o fim de sua vida.
1.5. Últimos anos
Trataremos a seguir dos últimos anos do compositor, e de um fato que
o abalou consideravelmente. Em 1990, o filho de Guarnieri, Daniel Paulo, de 18
anos, sofreu um grave acidente automobilístico, que o deixou em coma por
meses. Essa situação por si só já seria traumática, porém outro fato angustiava
a família Guarnieri. Apesar de todo o sucesso e reconhecimento nacional e
internacional do compositor, essa nova situação acarretava em gastos
23
substanciais. Segundo Verhaalen, amigos e o Governo procuraram ajudar o
compositor promovendo concertos para que Guarnieri os regesse. Além de a
situação de seu filho Daniel, e da situação financeira desfavorável, sua saúde
começava a declinar-se, naquele ano, Guarnieri completaria 83 anos. Camargo
Guarnieri descobriu um tumor maligno na garganta neste período, entretanto
suas apresentações haviam de continuar, pois seu filho ainda estava em coma.
Em 1992, Guarnieri viaja pela última vez, para receber a condecoração de
Comendador em Portugal, das mãos do Presidente da República daquele país.
No fim deste ano, com seu estado de saúde agravado, recebe o prêmio de
Maior músico das Três Américas, prêmio oferecido pela OEA, Washington D.C.
No dia 13 de Janeiro de 1993, o compositor sucumbe ao câncer.
24
2. Ponteio e Dansa para violoncelo e piano
2.1. Uma breve explanação sobre Ponteio e Dansa
O violoncelo se faz presente na obra de Guarnieri: além de fazer parte
em trios e quartetos, o compositor paulista escreveu sete obras para violoncelo
e piano, três sonatas, três cantilenas, Ponteio e Dansa e o Choro, para
violoncelo e orquestra.
A primeira obra escrita para violoncelo por Camargo Guarnieri foi a
Sonata nº 1, de 1930, dezesseis anos antes da composição de Ponteio e
Dansa que data de 1946. Durante este período, Guarnieri é cada vez mais um
personagem presente e atuante, para que a estética nacionalista se consolide
como música nacional. Como dito no primeiro capítulo, a formação do
compositor paulista não foi em escolas ou conservatórios, e sim através da
convivência com Mario de Andrade e com maestros e compositores – como
Lamberto Baldi. Dessa forma é que os ensinamentos sobre estética, cultura,
harmonia, composição, etc, eram por ele assimilados. Para Andre Egg14, o ciclo
de formação de Camargo, se encerrou com a estreia da Sinfonia no 1, em
1945. Coincidentemente, no ano em que o compositor se solidifica como
compositor nacionalista, Mário de Andrade falece precocemente aos 51 anos.
Apesar da importância de Andrade para a cultura e a arte brasileira em seus
diversos campos, sua morte não provocou qualquer reação do governo oficial
devido à posição do mesmo, contrária ao regime de Getúlio Vargas, que
presidia o país. Portanto, no ano em que Guarnieri compôs a peça objeto deste
trabalho, 1946, completava-se um ano da morte do seu grande mentor, Mario
de Andrade. Estes fatos podem ter reforçado a presença dos elementos
nacionalistas nesta obra; seria uma forma de perpetuar os ideais de seu mestre
intelectual e homenagear o velho amigo.
14 EGG, Andre, “Fazer-se compositor: Camargo Guarnieri 1923 -1945”, USP, São Paulo, 2010. Pág. 74
25
Neste período, Guarnieri já era detentor de algumas premiações
internacionais e tornava-se cada vez mais o expoente do nacionalismo
brasileiro. Em sua primeira sonata para violoncelo e piano os elementos
nacionalistas estão presentes, pois, como gostava de dizer Mário de Andrade,
o nacionalismo era inerente às obras de Guarnieri. Nesta sonata, podemos
notar que o jovem compositor estava ligado a questões do desenvolvimento de
seu contraponto, técnica que foi utilizada pelo compositor ao longo de sua obra
musical. Na biografia do autor escrita por Verhaalen (2006), podemos ler a
crítica de Calixto Corazza sobre a Sonata nº 1:
[“...] Sente-se que ela foi criada segundo o livre fluxo da inspiração e tem o mérito de uma grande sinceridade não obscurecida por uma cerebração (sic) que talvez viesse a prejudicar o nobre entusiasmo e a generosa inspiração”. (VERHAALEN, 2006 )
Neste comentário, podemos entender a “cerebração” de Guarnieri
como a preocupação com os aspectos do desenvolvimento da técnica
composicional; mais ainda do que com os conceitos nacionalistas apregoados
pelo seu mentor, Mário de Andrade, os quais já lhes eram naturais.
Já em Ponteio e Dansa, podemos ouvir um compositor criando mais
livremente. É perceptível uma forma mais simples e clara de exaltar o
nacionalismo, até mesmo pelo título escolhido para a obra. Observamos no
Ponteio alusão aos ponteados da viola caipira e, na Dansa, às características
nordestinas melódicas e rítmicas. No mesmo ano de 1946, Guarnieri compôs a
Danza Negra (sic), de inspiração totalmente nordestina15, mostrando que
naquele momento estava com as atenções voltadas para a cultura daquela
região do Brasil.
Trataremos a seguir de alguns aspectos em outros ponteios e danças
presentes na obra de Guarnieri. Não há em toda a sua obra, peças em que o
compositor una os dois movimentos como na obra analisada nesta pesquisa.
Portanto, vale à ressalva que essa peça é a única da obra de câmara de
Guarnieri em que um ponteio e uma dança estão juntos. Consultando
15 Guarnieri escreve esta obra inspirado em uma viagem a Bahia, onde, ao lado do escritor Jorge Amado, vai a uma cerimônia de candomblé, em 1937. Durante o caminho até o local da cerimônia, os dois foram escutando, em silêncio, os cantos e danças. (Veerhalen, 2006, pag. 132).
26
pesquisadores da obra de Guarnieri, trabalhos sobre o nacionalismo brasileiro
e o único trabalho feito sobre as obras para violoncelo e piano do compositor,
buscaremos o porquê desses movimentos estarem unidos em uma mesma
obra, já que existem ponteios e danças como obras independentes.
A palavra “Ponteio” aparece por diversas vezes na obra de Guarnieri.
Para Verhaalen16, essas são as obras que melhor expressam o “brasileirismo”
do compositor. Interrogado sobre o que seriam os Ponteios, Guarnieri
respondeu:
[...] É um prelúdio. Em vez de ‘Prelúdio’ uso ‘Ponteio’ porque diz mais com o caráter das minhas despretensiosas composições. A palavra “Ponteio” é uma prova da minha
tendência nacionalista (WARNET, 2009, p.45).
Guarnieri escreveu 50 peças para piano com esse título, que foram
distribuídas em 5 cadernos e, escreveu um único Ponteio para violão.
Enfocaremos com maior importância exemplos dos ponteios para piano como
referência para nosso estudo. O primeiro caderno de ponteios para piano
apresenta os ponteios de 1 a 10, escritos entre os anos de 1931 e 1935; o
segundo apresenta os ponteios de 11 a 20, escritos entre os anos de 1947 e
1949. Nesses ponteios encontramos características que os diferenciam do que
era chamado de prelúdio no continente europeu. Essa afirmação vai
diretamente contra a fala acima de Guarnieri, na qual ele dá a entender que
prelúdio e ponteio teriam o mesmo significado, seria uma simples mudança de
títulos. Algumas características encontradas nos Ponteios de Guarnieri
remetem aos ponteados da viola brasileira, que são os elementos que
aproximam o compositor do interior do Brasil e da música nordestina
(GIOVELLI, 2008).
Paulo César Rabelo17 é o único pesquisador, até o momento, a
escrever sobre grande parte da obra para violoncelo e piano do compositor. Ele
16 VERHAALEN, Marion, “Camargo Guarnieri: expressões de uma vida”, tradução de Vera Silvia Camargo Guarnieri, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Imprensa Oficial, 2001. Pág. 128. 17 RABELO, Paulo Cesar, “As obras para violoncelo e piano de Camargo Guarnieri”, Universidade Estadual de Ohio, Estados Unidos, 1996. Pag75.
27
afirma que no Ponteio há a presença de características da modinha brasileira
na obra. Segundo a biógrafa do compositor, Marion Verhaalen18, Dansa é a
obra com “maior fragrância do modo do nordeste” que o compositor escreveu;
essa suposição pode ser constatada ao observarmos sua rítmica, que nos
lembra o baião, ritmo nordestino, que apesar de muitas divergências entre os
pesquisadores e folcloristas sobre a exata origem do ritmo, acredita-se que
seja oriundo de um ritmo chamado Baiano, executado pelos violeiros da região.
Constatamos isto principalmente no momento em que a parte do violoncelo
apresenta, durante alguns compassos, quintas com métrica e acentuação típica
do ritmo em ostinato.
Julga-se de interesse citar as três gravações dessa obra, que
encontramos durante este trabalho, feitas por: Antônio Guerra Vicente e o
pianista Luis Carlos de Moura Castro; Shummel Magen e Frederico Egger; e
por Watson Clis e Sonia Maria Vieira. Encontramos ainda uma transcrição para
viola e piano, feita pelo próprio compositor, que foi gravada pelo violista Perez
Dworecki e o pianista Fritz Jank.
Discutiremos a seguir alguns aspectos da origem dos dois movimentos
de Ponteio e Dansa de Guarnieri, onde poderemos constatar a sua inspiração
nos ponteados das violas brasileiras.
2.2. A viola dedilhada
Este tópico discorre brevemente sobre a viola da família dos
cordofones, que inspirou esta peça. Nossa argumentação partirá, então, das
especificidades desta viola cordofone, chamada no Brasil de viola brasileira,
apesar de ser um instrumento de origem europeia, com berço em Portugal.
A história deste instrumento é longa, de aproximadamente 800 anos de
existência (VILELA, 2011). Portugal e Espanha passaram por muitas invasões,
18 VERHAALEN, Marion, “Camargo Guarnieri: espressões de uma vida”, tradução de Vera Silvia Camargo Guarnieri, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Imprensa Oficial, 2001.Pag 339.
28
guerras, disputas territoriais, que sempre resultavam em uma mistura entre a
cultura local e a dos povos invasores. Sendo a cultura portuguesa resultado da
miscigenação de povos, podemos supor que a viola tenha sido concebida
nesse ambiente de fusão cultural. Deduzimos então que os instrumentos dos
povos que passaram por aquele local influenciaram de alguma forma a
construção da viola tal como a conhecemos. REFERENCIA? Dentre estes
instrumentos destacaremos dois que continham características parecidas com
as da viola europeia e que também refletiram no formato do instrumento no
Brasil, são eles: o oud e a guitarra latina (VILELA, 2011). O oud ou alaúde
árabe era um instrumento com pares de cordas em uníssono ou bordões, que
eram utilizados como pedal, assim como acontece na viola brasileira. A guitarra
latina, do século XVIII, tinha o formato da viola brasileira atual, sendo o
instrumento antigo com quem esta viola mais se assemelha (OLIVEIRA, 2000).
A viola cordofone, tal como a conhecemos, existe desde o século XIII.
Em terras lusitanas as violas também se diferenciam. Os contrastes culturais
de Portugal suscitaram distintos modos de tocar, específicos de cada região.
Lá a viola tornou-se um instrumento popular nos séculos XV e XVI (VILELA,
2011), momento em que ocorrem as grandes descobertas, incluindo-se nelas a
do Brasil. Neste período, o termo viola ganha notoriedade e é largamente
difundido pela população portuguesa, apesar das diferentes características que
apresentava em cada região, como podemos ver em Vilela:
“Cada região criou sua própria viola. No norte a viola bragueira, no nordeste, a viola amarantina ou de dois corações, no centro a viola beiroa, mais abaixo, próximo a Lisboa, a viola toeira e mais ao sul, no Alentejo, a viola companiça.” (VILELA, 2011, p.118).
Através dos trabalhos de Dias (2010), Nogueira (2008) e Vilela (2011),
dentre outros, podemos reiterar que há relatos da presença da viola cordofone
já na época da chegada dos portugueses ao Brasil, no século XVI, tendo sido
muito utilizadas na catequização dos índios pelos Jesuítas: “Quanto à data de
chegada da viola no Brasil, temos descrição de Pe. Anchieta, vinculando sua
prática ao primeiro século da História no Brasil” (NOGUEIRA, 2008, p26).
29
Portanto a história do instrumento no Brasil tem pelo menos 500 anos, desde
suas formas primitivas até as variações caracterizadas como brasileiras.
A viola chega ao Brasil e seu uso atrelado à catequese jesuíta foi aos
poucos popularizando o instrumento aqui, que foi se enraizando culturalmente,
principalmente nas regiões do nordeste, centro-oeste e sudeste. A cultura
própria de cada região brasileira influiu na modificação da construção do
instrumento, no modo de tocar e na afinação das violas que surgiram pelo país.
Os tipos mais recorrentes de viola encontrados no Brasil são: viola caipira, viola
sertaneja, viola de dez cordas, viola cabocla, viola de arame, viola de folia,
viola nordestina, viola de cocho, viola de repente, viola de festa e viola de feira.
A principal semelhança entre as violas portuguesas e as brasileiras é a
força na lidimidade nas variações das violas concebidas em cada região,
mesmo tendo cada país dimensões territoriais muito diferentes. A principal
diferença que podemos encontrar é nas afinações, haja vista que, das nove
afinações advindas de Portugal (NOGUEIRA, 2008), somaram-se trinta e três
novas no Brasil (CORREA, 2000).
2.3. Pontear
Em Camargo Guarnieri a mudança na designação dos movimentos e
títulos das obras apresenta os fundamentos indicados por Andrade (1928). A
escolha de “Ponteio” para definir o primeiro movimento da peça estudada neste
trabalho tem razões definitivamente nacionalistas, como podemos ver nas
palavras do próprio compositor, citadas por WARNET (2009) e transcritas neste
trabalho no item 2.1. A afirmação do compositor pode soar como uma simples
mudança de título, porém vemos tanto no Ponteio e Dansa quanto em outras
obras do compositor, preceitos que alicerçam seus ideais nacionalistas.
O título do movimento Ponteio, já nos indica uma peça de cunho
nacional, visto que, os ponteios brasileiros têm a mesma função que o prelúdio
na música europeia. O “Prelúdio”, como se sabe, tem origem na música
30
barroca, época em que os alaudistas harmonizavam e improvisavam em seus
instrumentos na tonalidade da peça que iriam executar. Nos primórdios da
música barroca esses prelúdios não eram escritos por serem improvisos,
entretanto, quando começaram a ser escritos, os compositores integram-no à
estrutura das suítes e sonatas de câmara. Podemos observar essa estrutura
nas seis suítes para violoncelo solo de Johann Sebastian Bach.
Guarnieri tinha conhecimento desse passado da música ocidental,
sobretudo da europeia, porém, naquele momento da vida artística brasileira -
movimento nacionalista modernista, do qual o compositor fazia parte - exigia,
pela autoridade exercida por Mario de Andrade, uma caracterização das obras
com elementos nacionais, com a estrutura composicional baseada na tradição
europeia. Como muitas das atitudes de Guarnieri, essa forma de intitular as
obras é descrita no Ensaio de Mario de Andrade19 que pregava a mudança do
nome dos movimentos ditos “europeus”.
Aprofundando-se no estudo sobre os ponteios de Camargo Guarnieri,
encontramos alguns trabalhos acadêmicos e outras peças interessantes do
compositor para piano solo e violão solo. A sua obra para piano é bem mais
difundida do que as composições camerísticas e orquestrais, havendo já
muitos trabalhos feitos a respeito dessas obras. Observamos neles que a
idiossincrasia dos ponteios “guarnierianos” não está apenas na mudança de
nome, como alguns indivíduos poderiam apreender da fala simplista do
compositor, mas, sim, na evocação das estruturas, nas características e nas
formas de tocar de um instrumento do interior do Brasil: a viola de cordas
dedilhadas.
Nos trabalhos de Oliveira (1966), Souza (2005), Nogueira (2008),
Giovelli (2008), Dias (2010), etc, observamos que técnicas, formatos, afinações
e estilos da viola são distintos pelo Brasil. Entretanto, em todas essas
pesquisas notamos a presença das palavras “ponteado” ou “ponteio” para
designar elementos comuns às formas de tocar. Podemos então depreender
que com esses elementos retirados diretamente do contexto histórico e da
prática do tocar das violas brasileiras, Guarnieri inspirou um novo gênero
19 ANDRADE, Mario. “Ensaio sobre a música Brasileira”, 1928.
31
musical. Esse novo gênero tem elementos da escola composicional tradicional
– forma ABA’ e é monotemático, (VERHAALEN, 2001) - e elementos que têm
influências da música do interior do Brasil. Podemos constatar este fato já que
encontramos o gênero “ponteio” em obras de outros compositores brasileiros
como Guerra-Peixe e Cláudio Santoro. Pode-se concordar com Verhaalen
quando a biógrafa do compositor determina que os Ponteios de Guarnieri são
um gênero musical lídimo brasileiro.
Voltando-nos para a peça objeto de estudo deste trabalho, vamos
usufruir da pesquisa de Giovelli (2008) que nos elucida de maneira concisa
alguns ponteados da viola caipira. Giovelli refere-se aos procedimentos usados
pelos violeiros, descritos no livro de Andreia Carneiro Souza, Viola instrumental
brasileira, chamando-os de “ponteados”. No trabalho do autor, podemos
perceber nas peças para piano de Guarnieri uma estruturação formada pelo
agrupamento de diferentes ponteados da viola caipira. Levando-se em conta
algumas características dos ponteados apontados por Giovelli em sua
pesquisa, vamos aclarar os que percebemos estar presentes no primeiro
movimento do Ponteio para violoncelo e piano de Guarnieri. São eles: Melodia
solo, Toque de viola, Arraste Oitavas de viola e afinações de viola.
2.3.1. Melodia solo
A melodia solo, de acordo com a denominação acolhida por Giovelli, é
um tipo de ponteado onde o violeiro executa apenas a melodia da música, sem
acompanhamento algum. Esse tipo de técnica para alguns estudiosos era, na
verdade, uma forma de destacar a melodia através de seu isolamento.
Camargo Guarnieri utiliza este ponteado na peça aproveitando-se da
característica melódica do violoncelo.
O Ponteio inicia-se com uma linha ascendente solo, executada pelo
violoncelo, na qual podemos perceber a intenção do compositor de aproximar a
escrita do violoncelo à dos instrumentos de cordas dedilhadas, mais populares
no Brasil. Analogamente ao início do seu Ponteio para violão solo, observamos
sonoridades e alturas de notas similares (ver fig. 2). Podemos notar que
32
Guarnieri utiliza nas duas composições as cordas soltas do violão tradicional,
que possui seis cordas - instrumento com afinação padronizada. As cordas
soltas são também um recurso constantemente utilizado na viola caipira, que
faz com que a viola soe mais brilhante e tenha uma sonoridade mais forte.
Assim Guarnieri se inspira no instrumento do folclore brasileiro para escrever
seus ponteios, como podemos ver nos exemplos a seguir:
Figura 1 - Camargo Guarnieri, Ponteio. Compassos 1-4
Vale ressaltar que nestas duas peças, após a apresentação do início
da linha melódica, Guarnieri não apresenta uma das características mais
constante em sua obra, o contraponto. A falta dessa característica pode ser
vista de duas formas, Guarnieri se afasta da composição dos prelúdios
europeus que tem o contraponto como seu forte e deixa explícita a intenção de
Guarnieri de não se afastar de seu foco nestas composições: os ponteados da
viola caipira.
2.3.2. Toque de viola
Uma das características marcantes da viola caipira é a técnica do
rasgueado, que DIAS (2010) cita em seu trabalho como sendo “(...) uma
técnica muito utilizada”.
Figura 2 - Camargo Guarnieri, Ponteio para Violão. Compassos 1-3
33
Neste trabalho chamaremos o rasgueado de “toque de viola”, assim
como definido por Giovelli (2008). No Ponteio podemos observar a presença do
ponteado ‘toque de viola' na parte do piano do exemplo a seguir:
O toque de viola é utilizado quando o violeiro acompanha uma canção
ou quando utiliza esta técnica para destacar as notas da harmonia. Podemos
ver no exemplo anterior que as mudanças dos acordes são evidenciadas neste
ponteado, efeito que para Nogueira (2008, p161) “provoca a sensação de
vozes separas e não de blocos harmônicos”. Pode-se justificar o destaque que
Guarnieri dá a esses acordes por eles formarem um encadeamento bem
tradicional: I V I, que afirma a presença da tonalidade na peça, ferramenta
substancial da música nacionalista.
2.3.3. Arraste
Figura 3 - Camargo Guarnieri, Ponteio. Compassos 1-7
34
O arraste é outro tipo de ponteado que podemos encontrar neste
ponteio. Segundo Dias (2010), a técnica “consiste no movimento do dedo sobre
as cordas, de uma nota musical a outra”, ele ainda cita o professor Rui Torneze
(1998) que diz que esta técnica faz a viola “chorar”.
No Ponteio, no compasso 5 da parte do violoncelo, Guarnieri utiliza-se
do que na música erudita chamamos de portamento. Porém, em conformidade
com o que citamos acima, podemos concluir que a passagem ilustrada a
seguir, é mais um aspecto que liga a obra aos preceitos nacionalistas, sendo
este portamento, portanto, mais um ponteado da viola: o arraste.
Podemos enfatizar nossa linha de raciocínio ao consultarmos o artigo
“Cantoria de Viola: Expressão de alegria e esperança do povo nordestino”,
escrito pelo Professor José Maria Tenório Rocha que cita as palavras do
etnomusicólogo Antônio José Madureira:
Pelo fato de suas cordas serem de aço e ordenadas em pares, seu som nos lembra o cravo, antigo instrumento europeu. Acredito, porém, que sua expressividade seja maior, pois a viola permite o portamento e o vibrato. (ROCHA, 1971)
Figura 4 - Retirado do trabalho de Saulo Dias (2010)
Figura 5 - Camargo Guarnieri - Ponteio, compasso 5 - parte do violoncelo
35
Através destas palavras podemos perceber que o violoncelo e a viola
possuem uma característica semelhante: a expressividade. Este atributo em
comum reforça nosso argumento de que há a presença do ponteado arraste
nesta obra.
2.3.4. Oitavas de viola
Apesar das diversificadas afinações que a viola apresenta desde seus
primórdios na Europa até as variações existentes no Brasil, podemos notar que
em quase todas as combinações há cordas oitavadas. Este é mais um
ponteado que podemos encontrar na peça de Guarnieri. Segundo Giovelli,
Guarnieri utiliza-se de oitavas de viola em trechos onde há o ponteado melodia
solo, evidenciado anteriormente.
Durante praticamente todo o primeiro tema da peça, enquanto o
violoncelo faz a melodia solo, o piano acompanha-o fazendo o ponteado
descrito neste tópico:
Figura 6 - Camargo Guarnieri - Ponteio. Compassos 1-3
36
Figura 8 - Camargo Guarnieri - Ponteio. Compassos 18-20
Figura 7 - Camargo Guarnieri - Ponteio. Compassos 4-9
37
2.3.5 Afinações de Viola
Como descrito anteriormente, a viola caipira possui diversas afinações.
Para Vilela (2011) é possível estabelecer relações entre as afinações e a
localidade de sua proveniência. De acordo com a bibliografia existente sobre a
presença da viola caipira no Brasil, podemos listar alguns tipos de variações de
afinação tais como Paraguaçu, Rio Abaixo, Cebolão, Cana Verde, Meia
Guitarra, Natural, Cebolinha, Rio Acima, Boiadeira, Paulistinha e Natural. Cada
uma dessas afinações possui um padrão de encordoamento.
Sendo Ponteio uma obra inspirada no universo da viola caipira e tendo-
se em vista o contexto histórico nacionalista e as informações contidas na
partitura, pode-se confirmar a presença das afinações Natural e Paraguaçu.
Vilela (2011) descreve algumas dessas afinações. Observamos na Natural, a
afinação de 4ª justa, 4ª justa, 3ª maior, 4ª justa e na Paraguaçu 4ª justa, 4ª
justa, 3ª maior, 3ª menor. Podemos concluir que Guarnieri tinha conhecimento
dessas afinações, caracterizando assim o Ponteio com uso desse material
musical, trazendo o interior do Brasil para as salas de concerto.
Observemos a seguir os trechos circulados abaixo:
Figura 9 - Camargo Guarnieri, Ponteio compassos 1 – 3 - Afinação Natural transliterada
38
Figura 10 - Camargo Guarnieri, Ponteio. Compassos 12-13
Figura 11 - Camargo Guarnieri, Ponteio. Compassos 23-24
Figura 12 - Camargo Guarnieri, Ponteio. Compassos 29-30
Figura 13 - Camargo Guarnieri, Ponteio. Compassos 35-37
Ressaltamos que o motivo destacado aparece sempre relacionado a
inícios ou finais de seção, ora na linha do violoncelo, ora na do piano. O
Ponteio é estruturado em 3 partes, seções A, B e A’. A primeira vez em que
39
este motivo aparece (figura 9), temos o violoncelo solo iniciando a peça na
seção A. Nas figuras 10 e 11, o motivo aparece na linha do piano antes e após
o violoncelo apresentar o tema da seção B. Na figura 12 o motivo aparece
novamente no violoncelo antes da repetição de A, na seção A’. Na figura 13, o
motivo no piano é repetido finalizando a peça.
Reafirmando nossa percepção sobre a influência do universo da viola
caipira na obra, podemos notar que nas imagens 9 e 13 os intervalos das notas
na figura destacada representam exatamente a afinação chamada pelos
violeiros de Natural. Nas figuras 10 e 11, as linhas do piano formam uma
sequencia de 3as maiores (no caso da figura 10 com a presença de uma 4ª
justa) e de uma mescla entre 3as maiores e menores da figura 11. Podemos
considerar então que estas são mais duas evidências de nossa afirmação.
2.4. A idiossincrasia nos ponteios de Guarnieri
Comparando o Ponteio e Dansa com os Ponteios para piano escritos
por Guarnieri na mesma época, podemos constatar que todos foram inspirados
no universo da viola caipira, mais especificamente, na forma de tocar os
ponteados. Giovelli (2008) comprova em sua pesquisa a presença dos
ponteados “melodia solo”, “toques de viola”, “oitavas de viola” nos Ponteios
para piano. Veremos agora as semelhanças entre os ponteios para piano
escritos entre 1931 e 1949 e o ponteio para violoncelo escrito em 1946.
Destacamos aqui dois ponteados presentes em diferentes obras do
compositor com intuito de salientar seu interesse relacionado à cultura
brasileira. Ao relacionarmos essas peças entre si podemos inferir que Guarnieri
estava imbuído, naquele momento, de um profundo interesse específico sobre
as manifestações culturais presentes no Brasil: a viola brasileira e seus modos
de tocar.
O principal contraste entre as composições para piano e o Ponteio e
Dansa se dá por um elemento simples, o ‘ponteado arraste’, que não é possível
40
ser realizado pelo piano, pois é o arrastar de um mesmo dedo de uma nota a
outra na viola, deixando audível esta mudança.
Podemos dizer que os ponteios de Guarnieri fundem os diversos
elementos extraídos do universo da viola caipira, criando um gênero com este
material amalgamado, o gênero Ponteio, como afirma Verhaalen (2006).
2.4.1. Oitavas de Viola
Percebemos semelhanças entre o Ponteio n 6 para piano e o ponteio
objeto de nosso estudo no que diz respeito ao ponteado “oitavas de viola”. A
peça para piano de Guarnieri é assim descrita por Verhaalen (2006):
Na mão direita, a melodia apaixonada é executada em oitavas, com grande abandono, liberdade rítmica e direcional, sobre um fluxo constante de semicolcheias no acompanhamento da mão esquerda. (p 138)
Comparemos agora a partitura do Ponteio nº 6 para piano com a do
Ponteio para violoncelo:
Figura 14 - Camargo Guarnieri, Ponteio nº 6. Compassos 1-27
41
Notamos nas duas partituras a presença do ponteado, no entanto a
forma como Guarnieri o utiliza é diferente. No ponteio para piano, a melodia
está oitavada e o acompanhamento movimenta-se de forma dissonante, em
uma escrita cromática, segundo Verhaalen (2006). Na partitura para violoncelo
e piano, esta ordem aparece invertida, ou seja, o acompanhamento do piano é
que está oitavado e, na melodia do violoncelo, é que encontramos muitos
cromatismos e dissonâncias. O uso das oitavas na melodia dos Ponteios para
piano é para ressaltar mais a melodia, enquanto que no acompanhamento no
Figura 15 - Camargo Guarnieri, Ponteio. Compassos 1-9
42
Ponteio para violoncelo assemelha-se ao uso dos bordões (cordas oitavadas)
quando acompanham uma melodia cantada ou tocada.
2.4.2. Toques de Viola
Podemos encontrar o ponteado “toque de viola” usado de maneiras
diferentes nas peças Ponteio n 3 para piano solo e Ponteio e Dansa para
violoncelo e piano:
Figura 16 - Camargo Guarnieri, Ponteio nº 3 para piano. Compassos 25-27
Figura 17 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 1-6
43
No Ponteio n 3, os acordes arpejados remetem à liberdade rítmica,
típica dos violeiros quando usam o “toque de viola” na melodia. Já na peça
para violoncelo, há a ideia do acorde que se destaca da melodia, separando
claramente o acompanhamento da mesma.
2.5. Uma dança nordestina
O segundo movimento, Dansa, abordado por Rabelo (1996) em sua
tese de doutorado, esclarece-nos sobre questões harmônicas, fraseológicas e
a técnica composicional. O autor discorre sobre a caracterização nacionalista
da obra principalmente quando aponta os modos presentes na peça – lídio e
mixolídio - e destaca a rítmica típica do baião, como pode ser observado na
figura abaixo:
Segundo Rabelo, “o ritmo do baião está presente na mão esquerda do
piano. Ao invés da tradicional síncope do 1º para o 2º tempo, temos um reforço
melódico na 2ª semicolcheia, que resulta em um efeito similar.“ (RABELO,
1996).
Figura 18 - Camargo Guarnieri, Dansa. Compassos 1-8
44
Pretendemos acrescentar novos aspectos que tornam esta Dansa, do
Ponteio e Dansa, uma dança “brasileira”. Começaremos por um fato
interessante a ser notado: esta é a única dança do compositor que esta ligada
a um ponteio. Por que teria o compositor feito desta forma?
Analisando-se Ponteio e Dansa podemos constatar que é uma peça de
dois movimentos contrastantes, onde o Ponteio tem sua inspiração
composicional nas tradições da viola caipira e a Dansa apresenta claramente
alusão à música nordestina brasileira. Podemos então concluir que os
movimentos são uma combinação de elementos extramusicais de duas regiões
distintas.
A viola caipira, que inspirou o primeiro movimento, é apenas um dos
exemplos dos tipos do instrumento que se desenvolveram no Brasil. Por
intermédio de bibliografias historiográficas e outras de cunho cultural sobre a
viola em nosso país, notamos a presença de outras variantes como a viola de
cocho, a viola nordestina, a viola cebolão entre outras. Investigando a partitura
de Guarnieri sob a luz destes estudos, pudemos perceber na Dansa a
presença de características e de elementos da prática de uma dessas violas, a
viola nordestina.
Estas informações nos levam à provável resposta da pergunta feita há
pouco: o liame entre as duas peças é a viola brasileira. Evidenciamos neste
trabalho que o segundo movimento vem completar o primeiro, dando à obra
uma dimensão nacional, posto que através dela temos a celebração das
culturas do interior do estado de São Paulo - cerne da viola caipira (DIAS,
2010) -, e a do interior nordestino - palco da viola nordestina.
2.5.1. As características da viola nordestina na Dansa
A viola nordestina possui características físicas parecidas com as da
viola caipira, entretanto seu número de cordas é menor. A caipira,
tradicionalmente possui dez cordas, já a viola nordestina pode ser encontrada
45
com apenas sete cordas (CORRÊA, 2000). Contudo, as principais diferenças
se darão em três fatores: afinação, técnica de execução e função do
acompanhamento. Ulhôa (2004) faz uma distinção quanto à questão harmônica
onde diz que a música da viola caipira é tonal, enquanto a música da viola
nordestina é frequentemente modal.
2.5.2. Pedal
Uma das características que define a viola nordestina é a presença de
uma nota pedal - Ré - (DIAS, 2010), que podemos observar abaixo, na parte
do piano na Dansa:
Figura 19 - Camargo Guarnieri, Dansa. Compassos 7-13
46
Figura 20 - Camargo Guarnieri, Dansa. Compassos 85-88
Figura 21 - Camargo Guarnieri, Dansa. Compassos 89-100
47
O pedal da nota em destaque não é um pedal como empregado
usualmente no piano, entretanto sua presença é certamente evidente.
2.5.3. Melodias nordestinas: contingências do improviso
Detectamos dois temas, A e B, ao analisarmos a partitura da Dansa.
Esses temas, como nos esclarece Rabelo (1996), transitam entre os modos
lídio e mixolídio. Os temas A e B são reapresentados cada vez de maneira
diferente, nos instigando a averiguar as razões do compositor para tal
peculiaridade.
Veremos a seguir que as variações presentes nos dois temas da
Dansa nos levam diretamente ao encontro das características da viola
nordestina, evidência nacionalista que nos remete ao universo da viola do
Brasil.
Segundo Lamas (1973) os “cantadores” utilizam a viola nordestina em
suas cantorias; o autor afirma também que as melodias feitas por eles
apresentam uma base fixa, que, porém, devido às inflexões do momento ou da
emoção algumas dessas melodias fazem variações e, assim, “emprestam às
formas tradicionalmente estabelecidas uma constante imagem de renovação.
Esses fatores de acréscimo ou transformação contribuem para que a melodia
nunca se repita da mesma maneira” (LAMAS, 1973. p. 233-270).
Observando o exemplo abaixo podemos concluir que Guarnieri faz
exatamente o que os cantadores da viola nordestina fazem em suas melodias,
como citado em Lamas no parágrafo anterior: a cada apresentação, seja do
tema A ou B, o compositor faz variações que evitam a simples repetição.
48
Figura 22 - Camargo Guarnieri, Dansa. Compassos 1-10
Figura 23 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 20-28
49
Figura 24 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 31-34
Figura 25 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 36-45
50
Figura 26 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 46-51
Figura 27 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 52-59
51
2.5.4. O modo Nacional
Dansa apresenta um caráter harmônico modal, mesclando o modo lídio
e o mixolídio (RABELO, 1996). Segundo José Siqueira (1981), a mistura destes
dois modos gera o que ele chama de “modo nacional”, assim chamado pela
inexistência de sua escala nos modos eclesiásticos. Na figura abaixo estão
indicadas as notas que caracterizam os modos lídio e mixolídio dentro do que
consideramos o “modo nacional”.
Podemos ver este modo na apresentação do tema A da peça:
Rabelo afirma que a melodia da variação do tema A está na escala de
Mib maior: “O violoncelo apresenta o tema I três vezes. Na terceira vez ele
aparece no modo maior (Mib), ao invés do prévio modo lídio-mixolídio.”.
Modo Lídio Modo
Mixolídio
Figura 28 - Figura Escala do “modo nacional”, assim nomeado por José Siqueira.
Figura 29 - Camargo Guarnieri, Dansa. Partitura do Violoncelo. Compassos 1-11
52
Figura 30 - Camargo Guarnieri, Dansa. Partitura do Violoncelo. Compassos 16-29
Entretanto, neste trabalho percebemos esta variação de forma
diferente, afirmamos que ela está no modo frígio, com a fundamental em Sol:
Figura 31 - Exemplo escala Frígio
Como visto na figura, todas as notas da variação de A, estão presentes
no modo frígio, sendo mais congruente com a ótica que temos com este
trabalho.
Podemos ver em Friesen (2011) que Siqueira afirma que os modos
lídio, mixolídio, e o modo “misto” – que neste trabalho chamamos de “nacional”
– são recorrentes na música nordestina. No mesmo trabalho vemos que estes
modos, segundo Siqueira, têm seus modos “relativos”. Siqueira os caracteriza
desta forma, pois eles iniciam no sexto grau, das escalas citadas
anteriormente. Considerando-se a nota dó como fundamental, temos abaixo os
modos relativos: frígio, dórico ou “alterado”:
Figura 32 - Exemplos dos modos relativos, sendo a fundamental o sexto grau da escala
com base em Dó.
53
Trazendo esses pensamentos para a nossa peça de estudo, podemos
considerar que Guarnieri emprega esse relativismo citado para os modos de
uma forma peculiar, já que na apresentação do tema A ele usa o modo
“nacional” e em sua variação ele usa um dos modos considerados “relativo” a
ele, o frígio. Conciliando essas informações, podemos conjecturar que a
presença do modo frígio com a fundamental em sol na variação do tema A é
uma transliteração do que acabamos de ler sobre a composição do que
chamamos de música nordestina.
2.5.5. Ritmo
Primeiramente vale ressaltar que o baião é um ritmo sobre o qual não
existe informação precisa de sua origem. Não foram encontrados textos
acadêmicos sobre este assunto, todavia há relatos de importantes folcloristas
como Câmara Cascudo (1954) e José Ramos Tinhorão (1966). Na linha dos
folcloristas encontramos, em todas as versões, a origem do ritmo como sendo
proveniente do século XIX e como sendo uma derivação de um determinado
tipo de lundu. Câmara Cascudo atribui o termo baião à junção dos termos
“baiano” – ritmo popular no nordeste também do século XIX – e “rojão”,
pequeno trecho musical executado pelos violeiros nos intervalos dos desafios
das cantorias. (CASCUDO, 1954)
Figura 33 - Padrões rítmicos encontrados na Dansa.
2.5.6. Baião de Viola
Distinguimos na Dansa o uso do baião de viola. De acordo com a
descrição desse ponteado feito por Rocha:
54
No início de qualquer cantoria ou no intervalo entre uma estrofe cantada e outra, os cantadores tocam um trecho musical instrumental a que chamam de “baião de viola”. (ROCHA, JMT, 1992, P.8)
Podemos identificar este ponteado ao considerarmos o tema A como
uma estrofe:
Precedente ao início do tema A, que consideramos como estrofe,
podemos ver o seguinte trecho musical:
Posteriormente na obra, veremos que este é o tema B. Ao fim da
apresentação do tema, temos novamente um trecho musical que não
apresenta uma melodia definida, nem mesmo no violoncelo:
Figura 34 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 1-11
Figura 35 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 1-4
55
Esta ideia se repete nos compassos 21 – 23, novamente após o tema
A:
Isto acontece mais uma vez na obra, de forma diferente, quando o
compositor coloca o violoncelo antecedendo a figura musical que consideramos
como a principal:
Figura 37 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 20-24
Figura 36 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 7-14
56
Figura 38 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 20-28
Figura 39 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 29-35
Logo após o tema A, vemos a apresentação do tema B feita pelo piano,
onde o violoncelo toca figuras em ostinato. Veremos novamente este ponteado
57
dos compassos 64 – 69, onde o violoncelo tem uma cadencia que antecede a
volta do tema A, que é apresentado com pequenas alterações, ao qual
consideramos como A’.
2.6. Interlocuções entre o piano e o violoncelo
O Ponteio contrasta-se com a Dansa em vários dos aspectos
anteriormente descritos neste trabalho: apesar de remeterem ao mesmo
Figura 40 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Compassos 60 - 75.
58
elemento nacional, as violas brasileiras, os movimentos da peça são inspirados
em instrumentos e culturas diferentes.
Refletindo sobre as diferenças entre os dois movimentos da peça,
observamos que no primeiro não há uma independência das partes
instrumentais. Apesar de o violoncelo conduzir a melodia, o piano tem
participação relevante na condução da harmonia, o que é feito de forma
melódica. Muitas vezes a caracterização da viola caipira está presente nos
intervalos entre as duas vozes; os instrumentos se complementam ao longo da
peça. Já no segundo movimento podemos observar claramente um instrumento
solista e um acompanhante, com vozes inteiramente independentes. Os dois
instrumentos alternam a realização da tarefa: um faz a melodia e o outro
acompanha com ostinatos bem rítmicos, para em seguida inverterem os
papéis.
Segundo o Professor José Maria Tenório Rocha, em seu artigo
Cantoria de Viola: Expressão de alegria e esperança do povo nordestino, esse
contraste não se dá por acaso; em cada região os violeiros comportam-se de
maneira diferente. Na viola caipira os instrumentistas cantam em duetos,
enquanto que na viola nordestina cantam de maneira revezada. Podemos,
assim, reiterar mais uma vez neste trabalho as diferentes atribuições dadas a
cada movimento. A relação entre violoncelo e piano no primeiro e no segundo
movimento são correspondentes aos duetos dos violeiros, ora caipiras, ora
nordestinos.
2.7. A idiossincrasia em três danças de Guarnieri
As últimas obras de Guarnieri que recebem a alcunha de Dansa
são do ano de 1946: Dansa Brasileira, a Dansa Negra e a Dansa – o segundo
movimento da obra em estudo neste trabalho. Encontramos as particularidades
das práticas da viola nordestina também nas obras solo do compositor, como
descritas a seguir.
59
2.7.1 Miscelânea de modos
Constatamos anteriormente a presença dos modos mixolídio e lídio na
Dansa para violoncelo e piano de Guarnieri. Entretanto, a mescla de modos
feita pelo compositor não se limita a essa composição, visto que em outras
obras criadas de inspiração similar do compositor vemos a utilização constante
de dois modos.
A peça para piano solo Dansa Brasileira, escrita em 1928, apresenta
nas sessões A, A’, B e A’’ uma coloração tonal em Mi maior, que, no entanto é
diluída pelo uso de uma melódica modal, onde logo na apresentação do tema
A, são utilizados os modos Jônio e Mixolídio:
Figura 41 - Camargo Guarnieri, Dansa Brasileira. Compassos 1-9
Figura 42 - Escala do modo Jônio
Sob a ótica dos elementos nacionalistas brasileiros, evidenciamos
nesta peça a presença do modo Jônio no tema A, modo maior, que nesta peça
se apresenta na escala de Mi Maior. Porém, logo na segunda frase, Guarnieri
dá uma coloração modal através da presença do ré natural, tanto no pedal da
linha do baixo do piano, quanto no tema A da obra. Essa nota, destacada na
60
partitura abaixo dá esta coloração modal nesta primeira seção, caracterizando
o modo Mixolídio.
Figura 43 - Camargo Guarnieri - Dansa Brasileira. Compassos 9-18
Figura 44 - Escala do modo Mixolídio
Este uso de modos e sua mescla também pode ser observado em
outra composição de Guarnieri do ano de 1946, a Dansa Negra. Nesta dança
Guarnieri emprega os modos mixolídio e dórico, além de fazer uma amálgama
dos mesmos.
Figura 45 - Camargo Guarnieri, Dansa Negra. Compassos 1- 12
61
Podemos perceber, pelas alterações das notas e pelo fato de a nota si
ser natural, a escala do modo mixolídio em Do#, como exemplificada abaixo:
Analisando a frase B, percebemos o modo dórico ao evidenciarmos as
notas Mi natural na melodia e La#, presente no acompanhamento:
Na repetição da frase B, podemos identificar uma escala que não se
pode classificar, pois temos o Mi# com um La bequadro presente no
acompanhamento:
Figura 48 - Camargo Guarnieri, Dansa Negra.
Figura 46 - Escala modo Mixolídio
Figura 47 - Dansa Negra, Camargo Guarnieri e Modo escala Dórico.
62
Figura 49 - Modo não classificado
Podemos depreender através da explanação pregressa que, Camargo
Guarnieri utilizou-se de escalas modais para a composição destas danças.
Vimos na análise do segundo movimento de Ponteio e Dansa que este é um
elemento presente na viola nordestina. Podemos concluir que o compositor
inspira-se, da mesma forma, nos ponteados da viola nordestina para compor
suas peças para piano. A mescla do modo mixolídio (modo nordestino) com
outros modos e o uso de dois modos diferentes na mesma peça seguem os
preceitos nacionalistas que sugerem a transliteração de elementos brasileiros
pelos compositores modernistas.
2.7.2. Ostinato
Outra característica da viola nordestina que pudemos encontrar nas
danças para piano de Guarnieri é o ostinato rítmico, como nos afirma Dias:
Com esses cantadores nordestinos, talvez as diferenças mais evidentes sejam percebidas na sonoridade, o que é explicado por três fatores: afinação, técnica de execução e função de acompanhamento (ostinato rítmico) nas cantorias. (DIAS, 2010. p. 189).
Figura 50 - Camargo Guarnieri, Dansa Negra. Compassos 1-6
63
Figura 51 - Camargo Guarnieri, Dansa Brasileira. Compassos 1-9
Podemos encontrar padrões rítmicos nas peças Dansa Negra e Dansa
Brasileira para piano solo, como exemplificamos acima.
2.7.3. Considerações sobre o material melódico
Sob a ótica pela qual estamos norteando nosso trabalho, o universo da
viola brasileira, podemos notar algumas especificidades no material melódico
das danças. Vimos na Dansa para violoncelo e piano que a melodia se repete
de formas distintas, em modos diferentes ou com sua junção. Podemos ver nas
peças para piano Dansa Brasileira e Dansa Negra de formas similares, essas
características; por isso usaremos como exemplo a Dansa Negra, onde
Guarnieri repete o tema modificado, através de uma característica do piano,
ausente no violoncelo. O instrumento piano proporciona ao instrumentista
tocar, com destreza, uma melodia com muitas notas simultâneas. Percebemos
ao compararmos os trechos destacados abaixo que, na segunda vez, a
essência da melodia é igual a da primeira apresentação, entretanto, é
acrescida de quintas e oitavas:
64
Figura 52 - Camargo Guarnieri, Dansa Negra. Compassos 1-6
Figura 53 - Camargo Guarnieri, Dansa Negra. Compassos 45-54
65
A presença de quintas e oitavas na repetição da melodia reforça o
argumento da presença do universo da viola nestas composições,
considerando-se a presença de bordões – cordas oitavadas – e quintas em
suas diversas afinações pelo Brasil. O fato de Guarnieri escrever oitavas nas
repetições das melodias, tanto na Dansa Negra, quanto na Dansa Brasileira vai
de encontro ao que já vimos no tópico 2.3.4, Oitavas de viola, onde vimos que
no momento em que o compositor usa as oitavas, ele procura dar mais brilho à
melodia.
Outra peculiaridade do material melódico das danças do compositor
paulista é a presença do que podemos chamar de “refrão”. As três danças que
destacamos neste trabalho, possuem construções formais baseadas na
repetição de frases que produzem esse refrão, reportando-nos à cantoria da
viola nordestina onde temos sempre um verso ou uma estrofe como mote para
os improvisos seguintes.
2.7.4. Elementos de uma hipótese
Podemos perceber muitas semelhanças na maneira em que Guarnieri
compõe estas danças. Procuramos, através de elementos presentes tanto nas
peças para piano quanto na peça escrita para violoncelo e piano, trazer à luz
conceitos que usamos para o desenvolvimento deste trabalho, buscando,
através de evidências, ajudar na afirmação e na compreensão do propósito do
compositor.
Ao longo deste tópico observamos - no que se refere às danças
escritas até o ano de 1946 -, características que sinalizam para a ideia da
valorização do universo da viola brasileira na obra de Guarnieri,
especificamente na prática da viola nordestina. Acreditamos que há muito para
ser explorado, principalmente nas peças para piano. Procuramos trazer através
de nossas observações uma nova ótica também na análise das peças para
piano.
66
3. Questões idiomáticas e sugestões técnico-interpretativas
3.1. Dificuldades técnicas
Neste capítulo veremos alguns problemas da idiomática do violoncelo e
de execução, abordando questões da técnica do violoncelo. Os desafios
técnicos apresentados em Ponteio e Dansa justificam a inclusão da mesma no
repertório didático do instrumento, o que geralmente vem sendo feito por meio
de obras do repertório europeu.
Em relação às questões idiomáticas desta peça, Guarnieri utiliza, ao
máximo, a tessitura dos instrumentos para os quais ele compõe. O compositor
explora desde os registros mais graves até os mais agudos, aproveitando os
timbres e as nuances possibilitadas pelo instrumento.
Observando-se sobre o ponto de vista técnico, o primeiro movimento
da peça exige do executante um conhecimento mais adiantado da técnica do
violoncelo. Podemos fazer essa afirmação consultando como exemplos os
cadernos de estudos de Jean-Lois Duport (1749 – 1819), Friederich Dotzauer
(1783 – 1860), Sebastian Lee (1805 – 1887), Louis Feuillard (1872-1941) e
Shin'ichi Suzuki (1898 – 1998). Restringiremos-nos neste trabalho a fazer
analogias apenas com dois desses métodos de estudo do violoncelo, Dotzauer
e Suzuki, que apresentam linhas de pensamento diferentes: o primeiro é
voltado à técnica pura e é um método tradicional usado até os dias de hoje e, o
segundo, é mais musical e muito utilizado atualmente dia para o ensino em
grupo por se tratar de peças com melodias mais conhecidas.
3.1.1. Os estudos de Dotzauer
O método de Dotzauer possui 113 exercícios divididos em 4 cadernos:
o primeiro contêm os estudos de 1 a 34, direcionado ao aluno iniciante; o
67
segundo, estudos do 35 ao 62, introduzindo o aluno a uma técnica
intermediária; o terceiro, estudos do 63 ao 85 para alunos avançados; e inicia
o quarto caderno com o estudo 86, até chegar ao último estudo, o 113. Em
seus estudos, notamos uma sequencia didática onde o professor insere os
elementos da técnica de arco e da mão esquerda progressivamente.
Em seu primeiro caderno, do estudo 1 a 34, Dotzauer usa as quatro
primeiras posições do violoncelo com extensões, cordas duplas e introduz o
harmônico da corda Lá. No segundo caderno, Dotzauer inicia no estudo 35 a
quinta posição, nas cordas Lá e Ré. Sexta posição e suas variações. E
finalmente no terceiro caderno, exercício 69, inicia-se um estudo mais enfático
dessas posições intermediárias com a inclusão da clave de Sol. o, Dotzauer
introduz o capotasto em seus estudos:
3.1.2. Os Cadernos do Método Suzuki
Trataremos agora do método Suziki, que apresenta outro ponto de
vista da didática do instrumento: o ensino coletivo de instrumentos. Existem
métodos Suzuki para diversos instrumentos, todos baseados no método para
violino. Iniciam-se com um objetivo musical desde sua primeira lição, ou seja,
tratam os exercícios propostos como pequenas peças musicais:
Figura 54 - Schinichi Suzuki - Caderno nº 1, música 1. Compassos 1-6
68
Através de 10 volumes, o método Suzuki faz o aluno passar por
compositores como Bach, Handel, Schumann, Paganini, Mozart, etc. Dadas as
primeiras posições nos dois primeiros volumes, no caderno 3 temos a
introdução das posições intermediárias através de Humoreske de Anton
Dvorak:
3.1.3 Ponteio, principais contribuições didáticas
Figura 56 - Schinichi Suzuki - Caderno nº 3, música Humoreske. Compassos 33-40
Figura 55 - Schinichi Suzuki - Caderno nº 4, música Chanson Triste, primeira vez que
apresenta a clave de Dó
Figura 57 - Schinichi Suzuki - Caderno nº 5, música The Swan, posição do capotasto será
estuda
69
Considerando a cronologia didática do método Suzuki, concluímos que
Ponteio e Dansa, poderia ser colocada em um dos cadernos avançados deste
método, uma vez que possui diversos desafios técnicos como outras obras
apresentadas neles.
Ao observamos esses exemplos, podemos confirmar o avançado nível
técnico exigido pela obra de Guarnieri. Notamos também que nesse ponto da
técnica do violoncelo é comum o instrumentista já estar familiarizado com as
posições agudas. Para isto são geralmente utilizadas obras de compositores
como Saint Saens, Beethoven Samartine e Haydn, como pudemos verificar nos
exemplos extraídos do método Suzuki. Sem entrar em mérito sobre a qualidade
das obras, procuramos mostrar que obras brasileiras, pouco exploradas sob o
ponto de vista didático, têm, contudo dificuldades técnicas passíveis de serem
trabalhadas didaticamente, tais quais as obras tradicionais do repertório
europeu.
3.2. Ponteio
Ao nos depararmos com a partitura do o Ponteio, podemos notar alguns
desafios técnicos: grandes mudanças de posição - incluindo saltos de oitavas e
cromatismos -, mudanças métricas e variações de arco. Minuciaremos a partir
dos tópicos subsequentes os itens técnicos citados acima, por meio de
dissertações, teses, estudos, artigos e a minha própria experiência como
instrumentista. Analisando esse material, confirmaremos os desafios técnicos
em nível avançado da peça.
3.2.1. Mudanças de posição
Um fator importante na técnica do violoncelo e que muitas vezes gera
preocupação nos instrumentistas é a mudança de posição. Saltos entre notas
70
muito distantes podem causar tensão e insegurança em um instrumentista não
preparado ou inexperiente.
Para Suetholz (2011) a mudança de posição pode gerar tensão, para
Pleeth (1916 – 1999), pânico, Epperson (1921 – 2006) fala em medo. Podemos
asseverar, portanto, que a tensão causada por uma mudança de posição pode
ser causada por fatores psicológicos como o medo, pânico e mesmo
ansiedade, sobretudo em saltos amplos. Necessitamos, portanto uma
preparação mental para realizá-las. Para Starker (1924 – 2013), além da
preparação mental, temos de preparar-nos fisicamente para a mudança.
Refletindo sobre as ideias propostas pelos pesquisadores, pedagogos
e instrumentistas acima citados, e conhecimento acumulado pela minha
experiência como instrumentista, podemos através desses pontos de vista,
ponderar sobre o seguinte aspecto: quanto mais consciência técnica se tem,
mais seguros seremos, consequentemente mais relaxados, por conseguinte
faremos melhor a mudança de posição ocasionando uma performance que
podemos cognominar “limpa”.
Guarnieri utiliza grande parte da tessitura do violoncelo nesta peça.
Veremos alguns exemplos no primeiro movimento, o Ponteio, onde
encontramos dificuldades técnicas nas mudanças de posição. Do compasso
10 até o compasso 23 a linha do violoncelo tem muitos cromatismos e
mudanças rápidas da região média para a aguda. Essas mudanças rápidas de
tessitura caracterizam várias obras do compositor, principalmente seus
ponteios. Guarnieri utiliza-se desse recurso para gerar tensão na obra
(VERHAALEN, 2006).
No caso de Ponteio, alguns trechos possuem sistematizações que
ajudam o instrumentista a se municiar tecnicamente para futuras dificuldades.
As mudanças de posições mais significativas estão circuladas a seguir:
71
Nos três tipos de mudanças destacados, pode-se dizer que em cada
uma delas usaremos uma técnica específica para o melhor resultado sonoro.
Na primeira, que denominamos como atrasada, o violoncelista deve
mover a mão esquerda do Fá natural para o Ré sustenido sem mudar a direção
do arco. Dessa forma o objetivo sonoro será atingido, já que o compositor da
peça pede para que o instrumentista deixe soar o glissando. No compasso 10,
quando há uma mudança da primeira posição para a sétima:
Sugerimos que mudança de posição seja preparada da seguinte forma:
o violoncelista deve elevar o braço na nota dó, fazendo então uma preparação
antecipada da próxima posição. Esse movimento ajudará na mudança, já que a
sétima posição estará preparada antes da mudança efetiva. Para completar a
mudança, desliza-se a mão até a sétima posição chegando à nota si.
Mudança de posição atrasada
Mudanças de posições mais desafiadoras
Mudanças de posições próximas
Figura 59 - Camargo Guarnieri, Ponteio. Compassos 10-11
Figura 58 - Camargo Guarnieri, mudanças de posição em Ponteio
72
O estudo técnico da preparação das mudanças desses dois exemplos
pode auxiliar na sistematização da mudança de posição em um grau de
dificuldade moderado da técnica do violoncelo, por se tratar de uma passagem
lenta. Desta forma, ao encontrar o mesmo tipo de dificuldade técnica em uma
passagem rápida, o violoncelista estará preparado a realizá-la com menos
dificuldade. O instrumentista pode então perceber que para efetuar saltos e
mudanças de posição seu braço deverá estar na altura da posição de chegada.
3.2.2. Variações do Arco: velocidade, ponto de contato e peso
Trataremos agora das mudanças de velocidade e peso do arco que
acontecem no primeiro movimento da peça de Guarnieri. O andamento do
Ponteio de Guarnieri é lento, exigindo do instrumentista um domínio da técnica
chamada de “velocidade de arco”. O domínio dessa técnica é necessário tanto
por motivos técnicos como por motivos musicais, são eles:
Dinâmica;
Quantidade de arco necessária;
Timbre; e,
Coordenação entre a mão esquerda e a direita.
O instrumentista de cordas friccionadas, ao executar uma peça, possui
uma vasta gama de timbres e dinâmicas feitas através da variação de
velocidade e peso do arco. Através de conhecimento próprio e de professores
como Andre Navarra, Márcio Carneiro, e Cláudio Urgel, analisando pesquisas
realizadas sobre como as de Robert Suetholz (USP, 2011) e Meryelle Maciente
(USP, 2008), podemos concluir que quanto mais lento o arco está, mais difícil
será o seu domínio. Isso se deve a diferentes resistências da corda entre o
espelho e o cavalete. Acrescentamos então ao fator velocidade, o peso ou
pressão que se coloca no arco. Quando estamos próximos ao espelho à corda
vibra mais facilmente e com menos peso em comparação de quando estamos
próximos ao cavalete, onde a corda necessita mais peso para vibrar.
73
O domínio deste conhecimento técnico aplica-se à execução do início
da peça, onde Guarnieri nos indica o caráter tristonho e íntimo.
A dinâmica piano, a indicação do caráter “íntimo” e a arcada do
compositor são indícios de que este trecho deve soar leve, tranquilo,
aveludado, escuro. Este tipo de timbre será conseguido com a condução de um
arco veloz, próximo ao espelho, porém friccionado com pouco peso. Aqui o
instrumentista deve voltar a sua atenção ao ângulo correto do arco,
certificando-se que seu trajeto aconteça no mesmo ponto de contato, próximo
ao espelho. Este timbre se repete ao longo da obra, o que pode ser explorado
didaticamente, o domínio da sincronização entre velocidade e peso para obter
este tipo de timbre.
Abordaremos a seguir, outro fator de relevante importância para a boa
interpretação desta obra e para passagens semelhantes no repertório do
violoncelo, exploraremos o ponto de contato. A distância citada anteriormente
entre espelho e cavalete, estará em destaque novamente. Observemos o
trecho abaixo:
Figura 60 - Camargo Guanieri, música Ponteio, indicação de caráter tristonho e íntimo
Figura 61 - Camargo Guanieri, música Ponteio, necessidade de usar o ponto de contato
74
O trecho inicia-se na primeira posição do violoncelo, indo para a quarta
posição na nota Sol, indicada acima. Ao tocar o Sol o violoncelista já deverá ter
mudado de ponto de contato, aproximando-se um pouco do cavalete. Assim, o
timbre e a qualidade da produção sonora não sejam afetados uma vez que,
quando se avança em direção ao cavalete com a mão esquerda,
automaticamente deve aproximar-se o arco do cavalete. Entretanto a relação
velocidade x peso não será alterada, por se tratar de um ponto de contato
próximo.
Examinemos agora este trecho:
Percebemos que há um movimento ascendente em direção ao Ré#,
portanto, sendo esse um movimento ascendente, fica óbvio um movimento da
mão esquerda em direção ao cavalete. Portanto a mudança de ponto de
contato se torna imprescindível, assim como a variação da velocidade e do
peso. Indicaremos a seguir os momentos aonde o ponto de contato irá para
mais perto do cavalete, devido às necessidades técnicas para a melhor
produção sonora, citadas anteriormente:
Entretanto, nesta passagem teremos uma característica diferente dessa
relação velocidade x peso, como vemos em Suetholz:
[...] Contudo, nos agudos em forte, o som poderia ficar amassado ou engasgado, como se estivesse sendo
Figura 62 - Camargo Guanieri, música Ponteio. Compassos 9-12
Figura 63 - Camargo Guanieri, música Ponteio, indicações. Compassos 9-12
75
enforcado, necessitando mais velocidade de arco com um pouco menos de peso para melhorar a qualidade sonora. [...] (SUETHOLZ, 2011, p. 28)
Constatamos então que a variação dos parâmetros do arco –
velocidade, peso, ponto de contato – neste primeiro movimento trabalha
diferentes percepções do executante, ajudando a construir seu domínio técnico
sobre o arco.
3.2.3. Mudanças Métricas
Outro aspecto, que diferencia o Ponteio e Dansa de Camargo Guarnieri
de outras peças do repertório com o mesmo nível de dificuldade para o
violoncelo, é a mudança de métrica, recorrente na obra do compositor.
Observando a partitura a seguir, notamos as frequentes mudanças de métrica,
o que pode trazer para o intérprete dificuldade de realização. Podemos
considerar essas mudanças como um desafio tanto musical como técnico. Nos
cadernos de Dotzauer ele introduz esse conceito no estudo número 76 e no
método Suzuki só encontramos no caderno número 7, na peça Gavotte de
David Popper (1843 -1913). Observemos a partitura do Ponteio:
76
Esse tipo de escrita, mais sistematicamente empregada no século XX,
desafia o instrumentista com um nível médio de proficiência técnica. A atenção
do intérprete quanto à regularidade do seu pulso interno é essencial. No
repertório para violoncelo encontramos peças com conteúdo similar, porém,
com maior complexidade técnica, como, por exemplo, os concertos de
Shostakovich.
Figura 65 - Camargo Guanieri, música Ponteio, indicação de andamento.
Essa indicação nos mostra que o compositor gostaria que o movimento
não fosse tocado muito lentamente. Sugere-se para a melhor compreensão e
realização, iniciar o estudo com uma única unidade de tempo, a semínima,
ignorando as mudanças de compasso. Assim, na mudança métrica do
compasso 17 para o compasso 18, ¾ para 3/2, o compasso continuará a ser
sentido em semínimas, só que agora serão 6 no compasso. Isto facilita também
a execução das tercinas de semínima do compasso 17 e não correr-se o risco
de perder o pulso e haver desencontro entre piano e violoncelo no compasso
18, onde o piano faz um contracanto com colcheias.
Figura 64 - Partitura Ponteio
77
Figura 66 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Primeiro movimento. Compassos 14-20
Do compasso 24 ao 28, percebemos novamente a importância de
manter-se a semínima como unidade de tempo. Nestes compassos a melhor
forma de manter-se a pulsação é sentir o pulso em 5/4. Podemos justificar
nossa afirmação, pois, as frases do piano são construídas por Guarnieri a cada
dois compassos:
Figura 67 - Camargo Guarnieri, Ponteio e Dansa. Primeiro movimento. Compassos 24-28
Portanto, manter o pulso em semínimas facilita a execução e
compreensão destes compassos. Concluímos então que desta forma o
instrumentista pode passar pelas mudanças de compassos sem grandes
sobressaltos e com uma concepção melhor da obra. Constata-se, assim, mais
uma vez o valor contributivo desta peça de Guarnieri para compor o repertório
da didática do violoncelo.
78
3.3. Dansa
Os pontos a serem explorados na Dansa, são principalmente:
velocidade, diferentes combinações em posições iguais, elasticidade da mão
esquerda, cordas duplas.
3.3.1. Velocidade
O movimento allegro festivo que é indicado no começo da Dansa
indica-nos o desafio mais óbvio: a velocidade. Com a velocidade da peça todos
os movimentos da mão esquerda ficam mais rápidos, mas com a mesma
complexidade de movimentos lentos.
3.3.2. Elasticidade
Nas figuras abaixo estão indicados alguns trechos do segundo
movimento da obra de Guarnieri que não possuem uma boa escrita idiomática
para as posições consideradas normais do violoncelo gerando dúvida sobre o
dedilhado mais aconselhável:
79
Figura 68 - Camargo Guarnieri, escrita idiomática.
Na figura (X), podemos observar um movimento em direção a região
aguda do violoncelo, onde tocamos com o auxílio do polegar, chamada de
capotasto, como já foi dito. Faremos uma análise dos possíveis dedilhados:
Figura 69 - Possíveis dedilhados
Observemos a partitura abaixo:
80
Figura 70 - Compassos 24-34
Podemos ver que algumas das sequências de notas acima, não estão
dentro dos padrões das posições tradicionais do violoncelo. O dedilhado do
violoncelo moderno é atribuído a Jean Loius Duport, afirmação que pode
ratificada em Ribeiro:
[...] Durante sua estada na Prússia, escreveu o “Ensaio sobre o dedilhado do violoncelo e sobre a condução do arco, com uma série de exercícios, o qual permanece como um trabalho significativo para os fundamentos da técnica moderna do violoncelo”. [...] (RIBEIRO, 2003, p9)
Entre os compassos destacados acima, encontramos sequências notas
e posições que não são comuns à técnica da mão esquerda do violoncelo.
A consciência de onde se localizam as alturas dos sons em toda a
extensão do espelho (braço do instrumento) se torna primordial. Os
instrumentistas aprimorarão a elasticidade da mão esquerda, pois em alguns
momentos é necessário ter ao alcance dos dedos notas que não estão dentro
da ‘forma’ das quatro primeiras posições do violoncelo. No compasso 35, por
exemplo, a passagem é rápida e a sequência de notas Réb (na corda sol), fá,
Sib, Reb (na corda Lá), impõe ao violoncelista uma abertura da mão em que a
distância do primeiro dedo para o quarto será de 2 tons e meio, quando a
extensão normal é de 2 tons.
81
Figura 71 - Indicação do compasso 30, passagem rápida.
3.3.3. Cordas Duplas
Outro ponto para o desenvolvimento da técnica do violoncelo é o
estudo de cordas duplas. Sua importância verifica-se pela importância do
conhecimento do que podemos chamar de “geografia do instrumento”. O
estudo de cordas duplas auxilia também no fortalecimento muscular da mão
esquerda.
Na Dansa, esta técnica aparece de duas formas diferentes: quintas e
sextas:
Figura 72 - Camargo Guanieri, música Dansa. Compassos 64-71 e 99-102
Podemos ver a importância deste estudo ao vermos a partitura de um
concerto do repertório universal do violoncelo: O concerto n 1 para violoncelo e
orquestra de Camille Saint-Saens:
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Figura 73 - Camille Saint-Saëns, música Concerto nº 1
Verifica-se na peça do compositor francês a presença de uma sequência
de quintas e sextas em posição semelhante à encontrada na peça de Camargo
Guarnieri.
83
4. A obra aplicada a pedagogia
Podemos então concluir que os dois movimentos são contrastantes
não somente do ponto de vista estrutural como também do ponto de vista
técnico. O Ponteio é uma obra onde são trabalhadas as mudanças de posição
sem alteração da sonoridade, da qualidade timbrística e da afinação;
diferentemente da Dansa onde a atenção do instrumentista estará concentrada
na agilidade técnica e elasticidade da mão esquerda.
No capítulo 3, comparamos alguns estudos de métodos diferentes,
obras do repertório do violoncelo e pudemos perceber que a obra de Guarnieri
possui desafios técnicos que ajudam ao jovem instrumentista a se desenvolver
tecnicamente, tanto na mão esquerda, quanto na mão direita.
Os pontos técnicos a serem aplicados através desta obra são:
Estudo de dissonâncias;
Capotasto;
Desenvolvimento da agilidade dos dedos;
Diferentes velocidades de arco;
Cordas Duplas; e,
Elasticidade da mão esquerda.
Podemos inferir através destes itens e de tudo o que já foi dito neste
trabalho, que é uma obra para o desenvolvimento de um instrumentista de nível
médio.
Empenhamo-nos, portanto, em sua aplicação no repertorio da música
de câmara principalmente no Brasil, onde como dito na introdução, é voltada
para as músicas de Villa-Lobos. Não estamos aqui buscando um ufanismo
barato de nossa música, apenas buscamos exaltar neste trabalho que nossa
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música possui uma riqueza cultural importante para o nosso país que
inegavelmente não valoriza sua memória. Corroboramos, entretanto, que seu
uso didático possibilitará uma constante rememoração de um dos mais
importantes compositores brasileiros, que através de sua música representa
um período marcante em que a música de concerto brasileira era inspirada
pela cultura nacional.