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j\ \ J '\ '3 (1't; CARLOS GUILHERME MOTA BIBLIOTECA DA EDUCAÇÃO Série 4 - HISTÓRIA Volume 1 Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) IDÉIA DE REVOLUÇÃO NO BRASIL (1789-1801) Mota, Carlos Guilherme, 1941- Idéia de revolução no Brasil, 1789-1~01 : estudo das for- mas de pensamento / Carlos Guilherme Mota. _ 2. ed. _ São Paulo : Cortez, 1989. Bibliografia. ISBN 85-249~192-6 1. Brasil - História - 1789-1801 2. Revoluções _ Bra- sil 3. Revoluções - Brasil - Filosofia L Título. 89~989 CDD-981.012 -320.50981 -321.090981 Estudo das formas de pensamento 3." edição índices para catálogo sistemático: 1. Brasil: História, até 1821 981.012 2. Brasil: Idéias revolucionárias : Ciência política 321.090981 3. Brasil: Pensamento politico: Ciência politica 320.50981 4. Brasil: Revoluções : Ciência política 321.090981 { ®~~ ..... eJÇj-6'7[};O

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CARLOS GUILHERME MOTA

BIBLIOTECA DA EDUCAÇÃOSérie 4 - HISTÓRIA

Volume 1

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

IDÉIA DE REVOLUÇÃONO BRASIL(1789-1801)

Mota, Carlos Guilherme, 1941-Idéia de revolução no Brasil, 1789-1~01 : estudo das for-

mas de pensamento / Carlos Guilherme Mota. _ 2. ed. _São Paulo : Cortez, 1989.

Bibliografia.ISBN 85-249~192-6

1. Brasil - História - 1789-1801 2. Revoluções _ Bra-sil 3. Revoluções - Brasil - Filosofia L Título.

89~989CDD-981.012

-320.50981-321.090981

Estudo das formas de pensamento

3." edição

índices para catálogo sistemático:1. Brasil: História, até 1821 981.0122. Brasil: Idéias revolucionárias : Ciência política 321.0909813. Brasil: Pensamento politico: Ciência politica 320.509814. Brasil: Revoluções : Ciência política 321.090981

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Impresso no Brasil - 1989

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IDÉIA DE REVOLUÇÃO NO BRASILCarlos Guilherme Mota

Capa: Edição de arte: Roberto Yukio MalUoFoto: Escada, Eduardo Ayrosa (col. do Autor)arte-final: Maria Regina Da Silva

Composição: LinoarrCoordenação editorial: Ana Cândida CostaEditoração: Danilo A. Q. MoralesRevisõo: Maria Aparecida Amaral, Ana Maria BarbosaSupervisõo editorial: Antonio de Paulo Silva

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Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autWizaçãoexpressa do autor e do editor.

© 1989 by Carlos Guilherme Mota

Direitos para esta edição

CORTEZ EDITORARua Banira, .387 - Tel: (011) 864-011105009 - São Paulo - SP CDC/lIPIFj

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UE virá a companhia Inglesa e porsua vez comprará tudo e por suavez perderá tudo e tudo volverá anada e secado o ouro escorrerá oferro, e secos morros de ferro tapa-rão o vale sinistro onde não maishaverá privilégios, e se irão os últi-mos escravOS,e virão os primeiroscamaradas".

Carlos Drul11mond de Andrade

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III

IDÉIA DE REVOLUÇÃO. FORMAS DEPENSAMENTO REVOLUCIONARIAS

a. A estabilidade perdida. "Modos de pensar",Urbanização, opinião pública e revolução. A difusão de idéias

A principal preocupação na colônia no fim do século XVIIIestá relacionada com fi ordem das coisas. O ritmo da vida, que seacentua extraordinariamente no Brasil nos últimos tempos do pe-ríodo colonial, provoca a angústia que se insinua em todas as esfe-ras. Reintroduzir o equilíbrio é o problema com o qual se defron-tam nesse momento.

Se a atmosfera em que vivem é revolucionária, o ideal évoltar à antiga situação. As idéias revolucionárias são contrapostasàs "idéias de quietação", como se observa em Tomás AntônioGonzaga." O pr6prio Tiradentes não estará preocupado senão em"restaurar" o ambiente."

Guiados pelos exemplos externos, especialmente da AméricaInglesa 44, os coloniais brasileiros são homens inquietos, que dis-

42. ADIM, IV, 252, nos Autos de perguntas feitas a Tomás AntÔnioGonzaga.43. "Não é levantar", dizia de. 56 que para tal, para "restaurarmos a nossaterra", nas suas palavras, tornava-se imprescindível uma reorganização dopoder (ver ADIM, I, 185). ~ também, por certo, o caso de Domingos deAbreu Vidra, Tenente Coronel do Regimento de Cavalaria Auxiliar de MinasNovas que não "consentia que o seu nome interviesse em semelhantedesordem" (ADIM, I, 94).44. Jô; de se notar como tantos historiadores já chamaram a atenção que arevolução nas colônias inglesas funcionou como importante estímulo e exem-plo aos coloniais brasileiros. Importante é constatar, porém, que o termo"revolução" surge muito raramente nos documentos oficiais. l! especialmenteraro para designar O movimento aqui intentado em 1789. Mesmo pata desig-

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cutem agressivamente sobre a situação dos negócios públicos, daadministração, e que, integrados às vezes apenas formalmente navida social de uma monarquia absolutista colonizadora, são alcan-çados pelas transformações da mentalidade européia. Possuem, emalguns casos, a consciência de que "todos os homens são fiéis mui-tos anos ao menos nas suas ações exteriores, enquanto não chegao ponto e ocasião de deixarem de ser fiéis". <l É o regime absolu-tista que começa a entrar em crise ao nível das consciências.

Nessa crise, que expressa a desagregação de todo um regimee de urna colonização, é gerado o espírito revolucionário. Espíritorevolucionário que, de resto, não é alimentado apenas por leiturasimportadas da Europa ou da América Inglesa.

Na verdade, nesta margem do Atlântico encontramos todauma problemática de raízes populares para pensar e entender ocomportamento revolucionário.

Para perceber-se a idéia que os coloniais faziam da Revo-lução não basta um simples levantamento das ocorrências do ter-mo "Revolução". Até pelo contrário, encontra-se com relativadificuldade tal conceito. O pesquisador que estiver preocupadocom a análise de palavras-chave deve lembrar-se que, para essaépoca, conceitos como os de "Revolução" nem sempre aparecemsaturados historicamente, isto é, claramente elaborados e explíci-tos. As dificuldades para os contemporâneos apreenderem o pro-cesso por eles vivido começavam, quase sempre, pela inexistênciade um equipamento conceitual adequado que, de alguma forma, jáestava melhor estruturado em áreas de ocorrência de Revoluçõesburguesas, como na França e na Inglaterra. O conceito aparecefreqüentemente implícito, encoberto, no Brasil Colônia. É o caso,em Minas Gerais, do delator Inácio Corrêa Pamplona, preocupadoem "achar urna justa idéia que bem pudesse mostrar" ao Viscondede Barbacena "o importante peso desta tão árdua como interes-sante ação"." A "justa idéia" é, evidentemente, a idéia de Revolu-ção. Também para o representante do poder central, Visconde d_s

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nar a revolução cm .outras áreas, o termo surge discretamente. Veja-s~, nuõ1dos poucos exemplos, ADIM, I, 168, em relação a "revolução na AméricaInglesa". ..J\. ,~45. ADIM, V, 136. Auto de continuação de perguntas feitas a Faustino Soa-res de Araújo, a 12 de outubro de 1791. .. -!_YL ..

46. ADIM, I, 39, na denúncia do Mestre de Campo Inácio Corrê. Pamplona.

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Barbacena, o conceito de Revolução não surge explícito: é, quasesempre, um "grave negócio"." O padre mineiro Miguel Eugênioda Silva Mascarenhas, por sua vez, "nunca ouviu formar geralmen-te conceito lixo nesta matéria".<18 "Grave matéria" ou "negócio",não importa: por trás de tais expressões esconde-se uma realidadecomplexa: a Revolução.

Mais importante será observar que o "levante" era esperado"em todas as Minas", "em toda Capitania" 49 e, em alguns casos,em todo o Brasil.ê' Nos ajuntamentos urbanos, muitas vezes a opi-nião pública se manifestou favorável aos sediciosos. Se, de um lado,eram estimados pela mentalidade oficial como "facinorosos", mui-tos tinham consciência, por outro lado, que "sem eles não se fazemcousas grandes" .51

É muito expressiva a posição do poder central na menciona-da crise. Suas medidas não eram imediatistas. Dizia, por exemplo,Luis de Vasconcelos e Souza a Martinho de Melo e Castro, emjulho de 1789, referindo-se à atmosfera revolucionária das Minas,que não havia pelo "que recear quanto ao presente; mas sim queprevenir para o futuro". E a consciência revolucionária, inquieta,provocava a preocupação do Vice-Rei justamente porque o "modode pensar na Capitania de Minas" começava a agravar o mau com-portamento dos súditos, o que era tanto pior quando o mesmoVice-Rei sabia que tal "modo de pensar", naquela Capitania, era"quase o mesmo em todos os que de algum modo nela figuram"."Portanto, é o "modo de pensar" que deve ser posto em discussão.

Já não se vive mais no momento em que as preocupações dopoder central português estavam voltadas para questões como a doequilíbrio populacional entre Metr6pole e Colônia. Agora, nas últi-mas décadas do século XVIII, é a população colonial que está in-quietá. E, nas Minas, a inquietação será maior a partir da década

47. ADIM, I, 238, ofício do· Visconde de Barbacena ao DesembargadorCoelho Torres.48. ADIM, I, 200, grifo nosso.49. ADIM, I, 116, na inquirição da 7.' testemunha, Bacharel Soares deCastro.50. ADIM, IV, 266, nos Autos de perguntas a Gonzaga.51. ADIM, IV, 357, nos Autos de perguntas ao Coronel Francisco Antôniode Oliveira Lopes.52. Carta datada de 17 de julho de 1789, do ruo de Janeiro. Grifos nossos.

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dos 70, exatamente quando a produção aurífera já está diminuída.PSe, antes, as preocupações estavam voltadas para o controle dosmovimentos de população em direção às minas 54, agora "crescerãotanto os povos, que fundarão as grandes vilas", colocando em dis-cussão a obediência devida ao monarca.

O estabelecimento de novos núcleos de interesse, o enfraque-cimento dos laços sociais existentes na Metrópole e de bases tra-dicionais propiciaram o surgimento de novas visões do mundo,que nem sempre eram percebidas pelas autoridades colonizadoras,imersas nos valores da velha ordem.55 Nos novos tempos, com adiversificação dos interesses, com a existência de núdeos urbanosrecém-constituidos, como o comportamento arrivista, próprio deáreas recentemente colonizadas, "o dinheiro vencia tudo"," Vencia,inclusive, uma possível austeridade dos administradores. As novasrealidades escapavam por entre as peças de um aparelho adminis-trativo ineficaz e que não se atualizara paralelamente aos avançosda colonização. A indefinição e atropelo das funções administrati-vas, tão bem caracterizados por Caio Prado Júnior 51, acentuavam-se nas Minas, onde aos problemas da lavoura e da mineração, ajun-tavam-se os oriundos de um processo de urbanização acelerado.

Os problemas postos pela colonização, até aqui, não apre-sentavam características excepcionais, até porque estavam circuns-critos às zonas ribeirinhas ao Atlântico e voltados para a agricultu-

53. A queda da produção já vinha de muito antes, talvez mesmo da décadados quarenta, mas foi nos sessenta e setenta, quando o pagamento do quintonão atinge o vulto esperado, é que se evidencia a decadência. Daí tomar-se,freqüentemente, esse período como sendo o marco do declínio de atividade,em atitude que vem sendo corrigida por modernos pesquisadores, que evi-denciam que o declínio começou muito cedo.54. Triunfo Eucarístico, Prévia Alocutória, p. 18.55.... "cujas idéias não perceberam os ditos Ministros", ADIM, VI, 179.Há, porém, casos mais dolorosos de desajustamento, ao mesmo tempo religio-so, político e militar, como é o de Manoe1 de Santa Anna, soldado do 2.° Re-gimento de Salvador, que foi castigado com pauladas por causa dessas idéiassobre o dogma da Imaculada Conceição, sobre Dona Maria I e sobre oregime francês. Não parece ter dado resultado a tentativa de ajustamento apauladas, pois Santa Anoa desertou e participou, posteriormente, da Inconfi-dência de 1798, dita dos Alfaiates.56. ADIM, IV, 178.57. Caio Prado Júnior. Formação do Brasil Contemporâneo, cap. "Adminis-tração". São Paulo, Brasiliense, 7.' ed., 1963, especialmente p. 298 e 299.

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ra. Ademais, até o século XVIII, há dificuldades em encontrarno Brasil, e mesmo em outras áreas de colonização portuguesa,centros ou cidades expressivas. O controle da vida económica e apossibilidade de repressão aos eventuais distúrbios eram em grandeparte facilitados pelo caráter litorâneo da colonização.

Mas, a partir das três primeiras décadas do século XVIII, asituação fora fundamentalmente alterada. A definição de uma eco-nomia diferente da que dominara a vida colonial, distanciada daszonas portuárias, criara um novo tipo de horizonte mental, novapossibilidade de concepção das coisas e do mundo onde a Metró-pole contava menos.58

Nos recentes núdeos de povoamento fervilhavam outrasidéias. Fenômeno novo advinha-se na vida da sociedade brasileira,especialmente nas Minas: as movimentações de opinião pública.Já se vive de maneira menos estática; sabe-se "o que se dizia geral-mente por todos" 59, ouve-se "publicamente dizer" 60 o que "vogavapela Villa" 61, as notícias vão se "espalhando pela estrada" 62, che-ga-se em outra cidade e percebe-se "vulgarizada a mesma novidade,em que publicamente se falava".63 A opinião pública já se tornainfluenciável, fácil de ser orientada no sentido de incompatibilidadecom os governos. Em Minas, Cláudio Manuel da Costa e o cônegoLuís Vieira da Silva, entre outros, parecem ter espalhado notíciassobre instruções que teriam os governadores não s6 para limitaras riquezas dos colonos como, também, caso não lograssem êxitona limitação de suas posses, para prendê-los por serem "inconfi-dentes" e extraditá-los para Portugal. Como dizia o delator ao

58. Já se tem a idéia em 1734, em Minas, por exemplo, que Portugal deveao Brasil "grandiosos auxilios, e quantiosos reddimentos; sem duvida osrnayores a Coroa do Monarcha; a America a gloria, a afluencia das riquezas,que lhe reparte; todo Mundo o copioso, e fino ouro, que recebe em seusReynos; ... ", in Triunfo Eucarístico, p. 27. Em 1789, Tiradentes julgará"escusados na maior parte os gêneros que se introduzem de Iora" (ADIM,I, 109), contraditando uma das características básicas da colonização,59. ADIM, V, 187, nos Autos de perguntas a José de Sá Bittencourt.60. ADIM, I, 270, na inquirição do Cabo de Esquadra do Regimento deCavalaria Regular Pedro de Oliveira e Silva.61. ADIM, I, 158, na inquirição do Padre José Lopes de Oliveira.62. ADIM, I, 270, inquirição de Pedro de Oliveira e Silva.63. ADIM, I, 275. Rio de Janeiro, no caso. O comentário de tudo, seja avida particular ou '0 procedimento das autoridades, é também constantemen-te referido em passagens das Cartas Chilenas.

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governador, eram "sementes qqe têm espalhado para fazer a VossaExcelência odioso para com o povo ..... 64

Neste final do século XVIII vive-se em inquietação no Brasil.As comunicações, já de si difíceis, tornam-se apertadas à propaga-ção do pensamento revolucionário 65, dado o maior controle daopinião pública e dos grupos inquietos. A correspondência, em es-pecial, é dificultosa e mesmo um autopoliciamento se insinua nasmentes sediciosas; era preciso que se "visse bem não levasse algu-ma carta, ou papel, que lhe examinassem". Afinal, "actualmenteestavam as cousas melindrosas" 66, murmurava-se.

É assim que se cristalizam algumas posições de espírito nacolônia. Chegam as notícias, por vezes, a funcionar como verdadei-ros catalisadores de opinião. Boatos são captados e transmitidosnão só nas altas camadas, nos pequenos grupos ilustrados, mastambém nos homens "rústicos" e até nos últimos elementos da"plebe"." São Ireqüentes, nas Minas, notícias de violências no Riode Janeiro.68 A turbulência dá, às vezes, a sensação de que se umgritasse todos o seguiriam.69

Nesta atmosfera de agitação, fortalecem-se opiniões, comoaquela segundo a qual "tudo o que fosse homem do Reino haviade morrer"." E não há que excluir o elemento escravo de talcomportamento. A presença dele se faz sentir não apenas na vidacotidiana, na utilização de sua mão-de-obra, mas também nas ima-gens que se construíram os "nacionais" e portugueses. São muitosos episódios em que o negro é utilizado como porta-voz: afinal,

64. ADIM, I, 30/31. Denúncia do Tenente·Coronel Basílio de Brito Ma-Iheiro do Lago.65. Mesmo para áreas urbanizadas, como em Minas Gerais, constata-se queos elementos responsáveis pela revolta - os inconfidentes - moravam em"fazendas em grande distância um dos outros, e nellas se demoravam pormuitos mezes" (ADIM, VII, 70).66. Padre Bento Cortês de Toledo, vigário de São José, ver ADIM, I, 223.Observe-se também à p. 226, no mesmo sentido.67. ADIM, VII, 118. Para Pernambuco, em 1801, as formulações prove-nientes da "baixa plebe" eram carregadas de "insensatez". Dessa forma, épossível entrever, também, o earáter elassista de certas formas de pensa-mento. Consulte-se, por exemplo, D. H. Cx, 64.68. ADIM, r, 179.6~. Idem, ibidem.70. ADIM, r, 106,Tenente·Coronel do

na inquirição de Basilio de Brito Malheiro do "Lago,1.0 Regimento de Cavalaria Auxiliar de Paraearu.

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o perigo constante do escravo pesava, de alguma forma, nas cons-ciências dos brancos escravizadores. 1::: nessa medida que os negrossurgem como os responsáveis por pasquins subversivos que lhessão atribuidos 71,quase sempre artificiosamente.

Sensível ao século, o clero participava intensamente da in-quietação. Em todos os pontos da colônia encontram-se religiososvoltados menos para os problemas de suas ordens que para osque incandesciam as almas de suas freguesias. Desde o Rio de Ja-neiro, na Candelária 72, com alocuções inflamadas e prisões inespe-radas, até a alimentação de correspondência suspeita nas Minas 73,

sem falar nos elementos dispersos pelo território que aproveitavama oportunidade de uma oração fúnebre para imiscuir-se em proble.mas políticos 74, os elementos eclesiásticos funcionaram, em núme-ro expressivo de casos, como verdadeiros agentes da Revolução,contribuindo, não raras vezes, para o retorno das dissenções entreIgreja e Estado.

As idéias do século penetravam também as consciências da-queles que seriam os esteios formais da ordem estabelecida: ossetores militares. Não se suponha Com isso, no entanto, que suatotalidade estivesse anestesiada por tais novidades. Mas, aqui e ali,eram encontradiços se tores mais frágeis, mais propensos a criticara velha ordem. Havia, como é o caso de Minas, "justo receio deestar algum tanto contaminada das mesmas idéias a tropa regu-1ar".75Não se deve esquecer - e esta talvez não seja uma lembran-ça banal - que o próprio Tiradentes era militar.

Vivem-se nas Minas, no final do século XVIII, momentosde insatisfação - a lembrança de um passado perdido _, quepropiciam novas atitudes e novos laços de solidariedade entre oshomens. Era nas tavernas que "publicamente" se "formavam dis-

71. Idem, ibidem.72. Ver ADIM, VI, p. 422 e 423.73. ADIM, I, 150.

74. ~, de alguma forma, o caso de D. Luís Antônio Carlos Furtado deMendonça, em sua Oração /unebre recitada na capella Real da Corte do Riode Janeiro nas solenes exequias da senhora D. Maria I rainha lideiissim«do reino unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves. Rio de Janeiro,Impressão Régia, 1816 (Coleção Lamego).75. ADIM, VI, 190. Carta do Vice-Rei D. Luís de Vasconcelos e Souzapara Martinho de Melo e Casrro, dizendo da projetada Revolução de Minas.

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cursos sediciosos" .76E mais: não era necessário ser amigo an tigopara beber-se "à saúde dos novos Governadores" 77, numa críticahostil aos atuais. O ambiente de crise aproxima os elementos co-loniais criando um vínculo diverso dos que caracterizavam a so-ciedade até então. Vê-se o drama de um colonial, envolvido naDevassa da Inconfidência Mineira, preocupado em mostrar quenão tinha "amizade com o Tiradentes,,7S, muito embora houvessenum brinde participado da crítica à ordem estabelecida.

Seria errôneo pensar, entretanto, que é um fenômeno urbanoa revolta em Minas. Não só se encontram referências, na documen-tação oficial, às fazendas e áreas de faiscação: também participamda inquietação simples viandantes, como aquele encontrado naSerra denominada do Azevedo, que tinha consciência de estaremas "Minas em grande desordem".79 Ainda aqui, distante de centrosurbanos, volta-se ao ponto central da inquietação, que consistena procura da ordem perdida. Ordem que é procurada num mo-mento em que o regime e o sistema estavam sendo postos emdúvida e discussão.

Por outro lado, esses núcleos urbanos não eram isolados. Anecessidade de abastecimento abria canais de difusão de idéias.Idéias que nem sempre eram adequadas ao ambiente aos quaischegavam. Disso tinha-se consciência em Minas. O comércio, ativi-dade vital, servia de via de cornunicaçâo para os pensamentosperigosos e as autoridades não raro com ele se inquietaram.f

76. ADIM, VII, 154. Acórdão definitivo.77. ADIM, VII, 260. Ver também ADIM, I, 132 e 133: " ... um delles eque era o mais fraca-roupa, em um copo de vinho proferira estas palavras -La vae á saude, de quem ainda dentre deste anno de oitenta e nove ha dever novos governadores - ao que o dito Costa lhe disse - como novoGovernador, se ainda outro dia veiu o Senhor Visconde General? e o refe-rido fraca-roupa lhe respondeu - isto é cá outra cousa" ... Em todo o caso,sempre era mais grave fazer ceias de carne na quinta-feira da Paixão, com"vivas a Bonaparte", como aconteceu em Salvador, em 1798, cf. Braz doAmaral, "Conspiração Republicana da Bahia de 1798", in Fatos da Vida doBrasil, Bahia, 1941, p. 11.78. ADIM, VII, 261, nos embargos apresentados pelo advogado José deOliveira Fagundes.79. ADIM, I, 144. Grifo nosso.80.... "é bem perigoso que pela vizinhança e relação continua do COmIDer-cio, se possa communicar á esta (Capitania) tão grande mal, que apenaspressentido devo procurar destruir" ... ADIM, VI, 355. A formulação de

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Não é razoável pensar, porém, na facilidade de tais veicula-ções de idéias. Até pelo contrário, se não é a concentração urbanaapenas que explica o revolucionarismo e sua difusão, tornam-seavultadas as dificuldades das comunicações. Basta que se faça umlevantamento das propriedades de alguns dos participantes da In-confidência Mineira e logo se percebem problemas colocados peladistância, dificultando a polarização dos interesses comuns. É ocaso, por exemplo, do sobrinho do vigário Carlos Corre a de To-ledo, que utilizou como álibi na Devassa o fato de estar "isentode comunicações por trabalhar na Fazenda".'l

Em suma, vivia-se num ambiente de opressão e incerteza, decomunicação difícil, mas onde a sensação de decadência invadiaa todos. Dadas as precárias condições econôrnicas dos tempos 82, asautoridades "iam apertando tanto o povo" com seus impostos esua vigilância "que ainda este, desesperado, havia de fazer algumlevante, e estabelecer a República" .83 A procura de uma novaordem inquietava os espíritos coloniais mais sensíveis.

Em tal ambiente de intranqüilidade e suspeita, aos olhos dasautoridades, haveria de parecer subversivo até mesmo o compor-tamento de um Gonzaga, sempre tão meticuloso com seus bor-dados, seus tratados e suas odes, ao não observar "uso de lutopela morte do Infante"."

Incorrerá em grave erro de perspectiva quem considerar astransformações brasileiras dos fins do século XVIII ausentes dasindagações européias. Sobre o Atlântico correram muitas informa-ções, muitas cartas dando conta, aconselhando ou criticando a par-ticipação brasileira na trama revolucionária. Um bom exemplo de

Ernest Labrousse ganha concreção, ao mesmo tempo em que ilumina. a rea-lidade que intentamos explicar: "Or, sur l'économique, retarde le social,quand l'impulsion vient de l'économique. Inversement, le social retardel'économique, quand il a lui-même l'initiative. Autrement dit, la structuresociale est une résistence. Mais sur le social, le mental retarde à son touroEt le freinage du mental est plus fort de tous. ta mentalité du milieu chan-ge plus lenrernent que ce milieu lui-même". Introdução a L'Histoire Sociale.Sources et Méthodes. Paris, P. U. F., 1967, p. 5.81. ADIM, II, 177, no Auto de perguntas a Félix Corrêa de Toledo.82. Celso Furtado. Formação Econ6mica do Brasil. Rio de Janeiro, 1959,p. 114.

83. ADIM, IV, 65. Palavras de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradenres.84. ADIM, IV, 260, nos Autos de perguntas ao Desembargador Gonzaga.

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como na Europa se reagiu a tal participação pode ser colhido emJosé Álvares Maciel. Deixou Maciel registrada, em sua passagempela Devassa, a impressão que lhe causou a surpresa das Corteseuropéias, pelas quais andou, em relação à "moleza, e indolência,com que o Brasil se tinha portado, sem fazer o menor movimento,nem a vista das Américas Inglesas".85

A possibilidade de revolução foi, sem dúvida, pressentida porMaciel. As conversas sediciosas eram "triviais até em Lisboa, eCoimbra" 86, e delas com certeza participaram outros brasileiros.

A idéia de revolução ocidental e integração do Brasil em talprocesso é enriquecida quando se percebe que, realmente, emCoimbra havia consciência de que se intentava levante no Brasil 87e, sobretudo, quando se constata que posteriormente, na própriasede da monarquia portuguesa, após a sufocação da Revoluçãopremeditada, "se tinha levado muito a mal esta acção dasprisões" .38

Se há inquietação nas colônias 89, também na metrópole elase faz sentir. O colonialismo é um sistema, e alteração numa peçaprovoca modificações no conjunto.

b. Projeção da Revolução no mundo das palavras

Bem observadas as transformações dos fins do século XVIIIno Brasil, uma questão salta à vista: os movimentos subterrâneosda sociedade se fazem sentir no universo das palavras. À medidaem que se avança na crise do sistema há mudança de atitude deespírito: da descrição passa-se à interpretação e crítica das realida-

85. ADIM, IV, 138, nos Autos de perguntas ao Coronel Inácio José de

Alvarenga Peixoto.86. " ... e que estando elle em Londres se publicara, que no Rio de Janeirotinham matado ao Ilmo., e Exmo. Vice-Rei, cuja noticia até na Gazeta sahira,e logo os Negociantes quizeram armar em defesa à3 cidade" ... ADIM, IV,138 e 139. Tal jornal parece ter sido recolhido depois pelas autoridades.87. ADIM, III, 370, testemunha 21.". Provavelmente a carta referida é de

estudantes e não de freira.88. ADIM, III, 187.89. Incluindo-se a de Goa, em 1789, evidentemente.

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des." Tal mudança de atitude pode ser observada através de algunsdocumentos expressivos.

Já se tem uma certa noção, neste fim de século, que os "actosexternos são demonstrativos dos internos" .91 Os acontecimentos desuperfície são regidos pelas transformações de profundidade: étodo um sistema que está sendo posto em questão. Também nasexpressões encontra-se tal mudança: as palavras são conscientiza.das, ganham conteúdos novos e já se percebe que nem sempre sãosuficientes. É preciso ir mais longe, "da palavra à obra", "do abs-trato ao concreto" 92, da quietação à Revolução.

O vassalo integrado no sistema já não funciona como carac-terística indiscutível. Por vezes ainda permanece apenas exterior-mente enquadrado no sistema, com um comportamento que nãodeixa dúvidas quanto à sua fidelidade à Coroa e à religião. Suasformas de expressão são as típicas do regime. Mas, dadas as con-dições desse fim de século, "ainda que seja occulro o animo comque se proferem as palavras não deixa contudo muitas vezes deconhecer-se a intenção dellas pela pessoa que as profere segundoas circunstâncias, de tempo, lugar, e modo" ... 93

A inquietação freqüentemente é subterrânea, as formas deexteriorização são apenas as consentidas pela ordem estabelecidae pelo ambiente.

As palavras consideradas isoladamente, entretanto, não cons-tituem critério para medir a revolução e discutir as origens do pen-samento revolucionário no Brasil. Mesmo pelos contemporâneos,como se observa no caso antecedente. Até porque, se há algo quepreocupa largos se tores colonizadores, é o sentido das palavras.Sabem já que por trás das mesmas podem estar ocultas realidadesnem sempre agradáveis aos seus interessesP' Este é um comporta-

90. Antônio Cândido já notara que a veia poética cede lugar à politica.Panfletos, tratados de economia, ensaios etc. substituem a poesia, que perdequalidade, "tomam o seu lugar no espírito dos melhores e contribuem paracriar a atmosfera de cujo adensameoto sairiam as iniciativas de independêncialiterária". ln: Formação da Literatura Brasileira. São Paulo, 1964, 2.' ed.,p.73.91. ADIM, VII, 76, nos embargos apresentados a favor do réu Tenente-Coronel Francisco de Paula Freire de Andrade.92. ADIM, VII, 72. Grito nosso.93. ADIM, VII, 261. Grifos nossos.94. Está o regime num processo de crise em que é "essencial para conservarileza a Monarquia", uma "maior energia no Governo". Veja-se a carta de

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mente encontradiço em todas as devassas realizadas na crise dosistema colonial português. O esforço em pressentir realidades, emlevantar acontecimentos possíveis, apura a utilização do vocabu-lário, favorece a elaboração de conceitos. Por vezes são discutidas,nesse ambiente de crise, formulações que estão próximas daquelassediciosas, "sem que no sentido (de tais palavras) indicassem pre-cisamente a rebelião" ... 95 É no ambiente de suspeita que as idéiasde Cláudio Manuel da Costa podem exteriorizar-se através de"mysteriosas palavras" 96 ou que se chega à conclusão que formu-lações não-sediciosas, expressas através das "referidas palavras te-nham algum sentido diverso, do que ellas mesmas significam"."Há que perceber-se que tais ocorrências ganham sentido na medidaem que surgem num mundo de "palavras" sem "malícia alguma" 9&,

palavras que contêm comportamentos e expressões perfeitamenteajustadas ao sistema.

O estabelecimento de uma regra para se compreender a men-talidade colonial é tarefa muito arriscada, entretanto. A coexistên-cia de formas diversas de expressão e de compreensão do tempodificulta sobremaneira tal pesquisa. O perigo de cair num esque-matismo que nada tenha a ver com a realidade deve ser evitado,especialmente quando se verifica que nem sempre há relação direta

28 de setembro de 1798, datada do Palácio de Queluz; de Rodrigo de SouzaCoutinho a Fernando José de Portugal, texto integral em Braz do Amaral,op. cit., p. 19. De um ponto de vista teôrico, Mannheim já deixou claro, noseu célebre ensaio sobre o Pensamento conservador, que "words neversignify the sarne thing when used by different groups even in the sarnecounrry, and sligbt variations of meaning provide the best clues to thediffc:rent trends of thought in a cornmunity", in Essays on Soci%gy andSocial Psychology, 2.' ed., London, Routledge and Kegan Paul, 1959, p. 77.95. ADIM, VII, 183. Acórdão definitivo. Grifo nosso. Por vezes, não obs-tante a palavra vem explicitamente referida à Revolução, tal como aquelepardo do Sêrro que _ "applicando disfarçadamente o ouvido percebeu apalavra - levante -", in ADIM, I, 101.96. ADIM, I, 105, grifo nosso, na inquirição do Tenente-Coronel Basilio deBrito Malheiro do Lago.97. ADIM, II, 20. Grifo nosso. Confrontar com ADIM, II, 27, a propósitode "palavra" e "conceito".98. ADIM, 371, II. Grifo nosso. Maliciosas são as palavras que indicam umcomportamento divergente dentro do sistema. Há que vislumbrar as media-ções e entender a projeção, ao nível das expressões, das formações econômi-ce-sociais concretas. À ordem estabelecida, colonizadora, é que tais palavrassurgem com ou sem "malícia".

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e eficaz entre pensamento e ação, fato aliás que alguns setores dapopulação colonial já percebiam. Considerados certos setores deMinas, por exemplo, há que observar "que o ponderar, que poderiao Brasil seguir a um Príncipe da Casa Real, que cá viesse, nãotem nada com a Sublevação presente, porque, são discursos quemuitas vezes occorrem em uma conversação, sem que dahi sesigam idéias de sublevação".99

No universo das palavras, no Brasil dos fins do século XVIII,há que distinguir, porém, as palavras faladas daquelas escritas. Defato, os pensamentos perigosos, como os outros, se espalham demaneiras diferentes, e conforme o meio considerado. Em Salvador,por exemplo, uma das maneiras de medir seus efeitos é analisar a"indisciplina, falta de subordinação, máo estado em que se achaa Tropa dessa cidade". Neste ambiente, as palavras faladas ga-nham importância, pois "chega-se aqui a dizer que se ahi appare-cessem algumas Tropas Francezas nem a Tropa resistiria't.P? Aindaem Salvador, Agostinho Gomes, "homem Rico", não fora acusadonão apenas como uma das pessoas "mais afeiçoadas aos princípiosFrancezes", mas também como alguém "de quem se diz que emSexta-Feira da Paixão dera hum Banquete de carne" ... ?' 101 Defato, o dizer assume imensa importância num momento em quea comunicação escrita não pontua as relações entre os homens.Nessa medida é mais grave - e excepcional - a atuação de Ci-priano Barata que, associado a um músico, não teve dúvida "depublicar as suas depravadas paixões entre os rústicos povos, já

99. ADIM, IV, 316. Note-se que a fidelidade à Coroa permaneceria de algu-ma forma. O que importa ressaltar, entretanto, é que o poder central não écompreendido em termos absolutos e que uma atmosfera de crítica pode serentrevista em tais formulações. São idéias "que muitas vezes ocorrem emuma conversação". Por outro lado, vale notar que neste trecho dos Autosé sugerida uma hipótese que antecipa de certa forma aquilo que de fatoaconteceu na Independência, algumas décadas mais tarde. O Brasil realmen-te veio a seguir um Príncipe da Casa Real. Na problemática do tempo, jáera cabível nos espíri tos dos coloniais uma solução que de fato se concreti-zou graças a uma alteração no equilíbrio europeu devida a Napoleão, coma invasão da Península Ibérica, que provocou a transmigração para o Brasilda familia real portuguesa. Vale lembrar que outra solução era aventadaem Salvador em 1798, quando brindes eram levantados a Napoleão.100. Ofício de Rodrigo de Souza Coutinho a Fernando José de Portugal,4 de outubro de 1798, integra in Braz do Amaral, op. cit., p. 12/13.101. Idem, ibidem.

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com palavras, já com escriptos, feitos huns novos legisladores'U"Este talvez seja um aprofundamento significativo da inconfidênciabaiana, em relação à mineira: a agitação que é feita também porescrito 103 e sempre com uma sólida marca popular.

Seria sem sentido pensar que o aparelho administrativo por-tuguês funcionou como uma s6 peça, fria e radicalmente intole-rante. Também para ele as palavras devem ser discutidas, pensadase julgadas. Embora nem sempre possam ser encontrados nesse apa-relho elementos ponderados como o ilustrado D. Fernando Joséde Portugal, percebe-se que não se devia dar crédito indiscrimina-damente às acusações que nascessem do simples ouvir dizer ("devoz vaga", diria D. Fernando), "por não terem os acusados pro-nunciado factos ou palavras que dessem a conhecer o seu maupensar".IOolNessa linha de raciocínio é que se pode bem avaliar aimportância de testemunhas e de delatores para os acontecimentosque não se enquadrassem nas coordenadas do sistema: a palavraoral assumia grande importância, uma vez que a escrita não sedisseminara.

c. "Do abstracto ao concreto"

A sistematização da Revolução falhada, a passagem "do abs-trato ao concreto", o caminho "da palavra à obra", foi melhorrealizado pela repressão. De fato, nas Devassas encontramos odenominador comum num certo tipo de mentalidade, que informao poder central em crise, poder central colonizador.

lOsTalvez im-

precisamente, vamos denominá-la mentalidade oficial.

102. Denúncia do Padre José da Fonseca Neves, datada de Nossa' Senhorado Monte, a 3 de maio de 1798. íntegra in Braz do Amaral, op, cit., p. 13.Grifo nosso.103. Braz do Amaral diz que vários escritos foram afixados nas esquinasde Salvador, além daqueles que "foram introduzidos no hospício da Palma,dos frades agostinhos. na igreja dos frades capuchinhos à Piedade, e na daLapa", op. cit., p. 20.104. Carta de Fernando José de Portugal a Rodrigo de Souza Coutinho,datada da Bahia de 13 de fevereiro de 1799. íntegra in Braz do Amaral,op. cit., p. 15 a 18. O trecho citado é da p. 16.105. Uma das e.xpres5Óesmais acabadas da mencionada crise está num trechoda áspera carta de Rodrigo de Souza Coutinho a Fernando José de Portugal,

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~'.

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Melhor que os revolucionários de 1789 e 1798, perceberamos repressores que há fases diversas no processo revolucionário.É bem verdade que, mais uma vez, as palavras funcionaram comoelementos de indicação de revolta e ao mesmo tempo de resistênciaà Devassa.

Especialmente em Minas, as diligências tornaram-se dificulto-sas "por ser a conjuração só tratada de palavras".l06 Era difícilestabelecer precisamente o número de vassalos infiéis 107 e, "nãotendo havido factos" 108, como estipular a punição? Como saberdaqueles que, como diria Gonzaga, foram tomados pelas "idéias epaixões de uma Sedição"?

d. A idéia de Revolução e seus problemas

Não parece haver muitas dúvidas de que o conceito de revo-lução foi melhor elaborado pela reação. É nela que encontramosa consciência nítida de que movimentos de tal natureza têm diver-sos instantes sucessivos, quais sejam: "cogitação", "intenção", "as-sociação e conjuração", "plano" e "modo de executarem". Taissão as fases colocadas de maneira extremamente didática no Acór-dão 'definitivo das Devassas da Inconfidência em Minas.109 E umtan-to desolador verificar-se que, apesar da atmosfera altamenterevolucionária, não houvesse nenhum plano claro estabelecido

de 4 de outubro de 1798, já citada: "Repito novamente a V. Ex., de ordemde Sua Magestade, que premio e castigo são os dois Polos sobre que estriba-se toda a Machina Politica e que no momento presente toda a uigilanciacontra os máos be indispensavel e absolutamente necessaria e que V. Sa.sera responsável de ioda a frouxidão que houver na execução destas ReaesOrdens". Grifos nossos.106. ADIM, VI, 377, no oflcio do Desembargador José Pedro MachadoCoelho Torres ao Vice-Rei.107. ADIM, VI, 379, idem.108. ADIM, VI, 377, idem.109. ADIM, VU, 190. A propósito, sempre vale lembrar, para um períodomais avançado em relação àquele em que situamos esta análise, as posiçõesde Silvestre Pinheiro, em sua "Mem6ria Política sobre os Abusos Geraes emodo de os Reformar e Prevenir a Revolução Popular" (de 1814 e 1815),in RlHCB, LI, p. 239 a 378 e especialmente Sierra y Mariscal, "TdeasCeraes sobre a Revolução no Brasil e suas conseçuencies", 1823, ABN,n.· 43/44.

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pelos sediciosos das diversas áreas, com passos bem marcados, comarticulações bem ponderáveis. Em Minas, por exemplo, fala-se dolevante, mas nem sempre se fala nos "projectos", porque estes"ainda não haviam". 110 São raras e desconexas as informações res-peitantes a um "Plano't.!" Não obstante, observa-se certa noção dofenômeno em elemento como o Tenente-Coronel Domingos deAbreu Vieira, que ouvia as conversas sediciosas "com o intentounicamente de observar o estado, e progressos daquelle negocio,e os sujeitos, que nelle interessavam, para ver o rumo, que tomavasemelhante desordern'L'" Em Salvador, perguntava-se em algunssetores: "Que fazem estes malditos Povos que se não levantão?_ Para quando se guardão?" m, e falava-se de maneira vaga em"dignissima revolução", "fruição da dita revolução e liberdade" Il~,

"liberdade, igualdade e fraternidade do Povo", bem como "Liber-dade Popular" .115 Já no Rio de Janeiro, baseavam-se os indiciadosem idéias da Sagrada Escritura, que "assim como dá poder aos Reispara castigar os Vassalos, o dá aos Vassalos para castigar osReis". 116

Se a discussão realizada até aqui, balizada na ocorrência depalavras, não ganha concreção de maneira facilmente perceptível,poder-se-ia apelar para um recurso que por certo tornaria maisponderáveis os resultados obtidos em tal discussão.

Partamos do que é mais visível: a verificação pura e simplesde que conceitos como o de Revolução são mais freqüentes naBahia que em Minas Gerais. Talvez não ganhe tanto sentido senão nas lembrarmos que os setores em que ocorrem não só sãomais populares como também compostos de população maisjovem. 117

110. ADIM, VII, 133, no embargo a favor do réu Faustino Soares.111. ADIM, I, 94.112. ADIM, II, 26. Grifo nosso. Ver ainda sobre sua recusa à participaçãoem ADIM, I, 93 e 94.113. Denúncia do capitão do Regimento Auxiliar dos Homens Pretos, Joa-quim José de Santa Anna, também cabeleireiro, Integra in Braz do Amaral,op. cit., p. 49/53. Trecho cit., p. 50.114. 5.' aviso ao Povo Bahiense, in Braz do Amaral, op, cit., p. 42.115. 8.' aviso ao Povo Bahiense, in Braz do Amaral, op. cit., p. 43.116. Abertura da Devassa Ordenada pelo Vice-Rei Conde de Resende, 1794,ABN, 61, 1939.117. "Os revolucionários bahianos de 1798", diz Braz do Amaral, "estavamquase todos entre os 17 e os 30 anos", op. cit., p. 10.

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Por outro lado, neste final de século XVIII, há uma certanoção no Brasil que as notícias e idéias podem ser associadas àcondição socialP: Assim é que, certa vez, o Sargento-Mor das Or-denanças de Minas Novas, Manoel Antônio de Moraes, não deuimportância a uma informação do levante que estaria por estourarem todas as Minas simplesmente porque tal informação provinhade grupos de baixa posição social.!" As informações e o valordas idéias são avaliados através de uma concepção hierárquica dasociedade. Ilustrativo também é o caso do revolucionário Luís Gon-zaga, em 1798, em Salvador, que, além de tudo, tem implicaçõesde ordem racial: fizera ele requerimento ao Governador da Bahiapedindo para ser indicado para o regimento de milícias dos homenspardos dizendo que estes deveriam ser tratados como brancos.l"Não é de se desprezar ainda o caso de Tiradentes, que "por tersido preterido quatro vezes" 121 nas promoções militares acabou l'

sendo engrenado violentamente no processo revolucionário. ~Pois bem, por baixo de cada uma das formulações indicadas

está a base social e racial comandando e explicando a ação dosagentes. Estudar as formas de pensamento sem considerar suas "-origens sociais bem corno as camadas da sociedade em que tais ••formas ganham sentido pode redundar em perda de visão do pro-blema central. É a análise da base social que torna possível acompreensão do surgimento, veiculação ou adaptação de conceitose expressões.

Para a compreensão da idéia de Revolução no Brasil, no pe-ríodo considerado, é necessário observar que os elementos colo-niais já tinham certa consciência do que era ser "rico" ou ser

118. E também à situação racial, COmose verá.119. ADIM, I, 233. Entrevê-se aqui a possibilidade ou não de difusão deidéias, condicionada à situação na escala social dos grupos considerados.120. Cf. Braz do Amaral, op. cit., p. 21.121. Ver ADIM, IV, 45. Tal indicação é preciosa, uma vez que contémboa medida para avaliar-se o problema da ascensão social através da ativi-dade militar. O ressentimento e a atitude crítica em relação ao sistemaprovém daqueles setores que não foram bem integrados. ~ digno notar nocaso de Tiradentes o preconceito racial em relação aos negros, várias vezesperceptível nas suas manifestações. Veja-se, por exemplo, sua idéia de queé necessário "restaurarmos a nossa terra, que fazem de nós Negros" (ínADIM, I, 185, nos Autos de perguntas a Tiradentes).

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"pobre" 122 e de que como estas condições faziam com que parti-cipassem de maneiras diversas - e por vezes antagônicas - noprocesso em curso. É nessa perspectiva que se pode entender aperplexidade de alguns cidadãos coloniais que foram convidadospara participar da sublevação em Minas, como aquele 123 que" nãoera rico". Se não o era, por que fora convidado? Ou a desculpadaquele outro que era "pobre" e totalmente "sem meios de poderservir cousa alguma na dita sublevação".124 A noção de que devehaver "meios" para a açâo é dado seguro para avaliar quais asligações entre propriedade e Revolução no Brasil no final do séculoXVIII.12S Especialmente quando se observa que no Rio de Janeiro,por exemplo, esboçava-se uma tendência revolucionária da qual, deresto, os mineiros tinham notícias: tendência que possuía comoelementos dinamizadores alguns comerciantes que eram suportesde consciência de interesses bem defiriida; desejavam "que a revo-lução principiasse por lá" .C!6 Da mesma forma, em Minas são os

122. Não encontramos, entretanto, como para a Inglaterra de um séculoanterior a estes acontecimentos, certas condições sociais associadas a estadosde espírito (ver, por exemplo, a canção da época de Guilherme de Orange"As Delícias dos Fabricantes de Tecidos de Lã, ou A Alegria dos Ricose as Tristezas do Pobre", analisadas por nós no artigo citado nas Observa-ções Preliminares).123. ADIM, III, 335.124. ADIM, V, 129. Comparem-se tais ocorrências com as idéias de algumaforma ingênuas sobre a sociedade e a colonização contidas num dos princi-pais documentos para compreender Minas da primeira metade do séculoXVIII, que é o Triunfo Eucarístico (especialmente p. 7, 15, 19 e 23 da"Prévia A1ocutória"). À página 15 percebe-se, de maneira muito clara, comoos problemas sociais eram entendidos. Embora haja referências àqueles de"cabedaes inferiores" e aos "opprimidos", ainda não temos .indicação nítida,ao nível dos conceitos, das condições sociais, tal como acontecerá no períodode crise, aproximadamente a partir de 1770.125. Tais ligações serão analisadas com vagar no capitulo VI.126. Ver ADIM, II, 423, na Carta de Domingos Vidal Barbosa ao Viscon~de de Barbacena: ... "haviam 5 ou 7 negociantes no Rio de Janeiro quequeriam que a revolução principiasse por lá" ... ; também em ADIM, III,368 (era desejo de negociantes do Rio que "a revolução principiasse por lá",aliás "como em Gibraltar"); ainda em ADIM, IV, 340 (onde se fala em"cinco Negociantes" e em "revolução"). Ê muito importante observar que,para Minas Gerais, são essas três as principais ocorrências do conceito deRevolução nos Autos de Devassa; e é evidente que não é por acaso que oconceito é referido a uma categoria social das mais n!tidas na vida social

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"Grandes", os "principais", que estão na base das cogitações sedi-ciosas. Há sérios indícios de que proprietários não só polarizaramo processo em relação a pequenas clientelas próximas como tam-bém aspiraram - a partir de sua condição de proprietários - aum lugar de destaque na nova ordern.F' Não é por acaso que ele-mentos mais subversivos, como o Padre José da Silva de OliveiraRolim, exerciam sua ação revolucionária em relação à base con-creta fornecida pelos bens dos proprietários, "que já passam de 60dos principais destas Minas".I1!

Ao que parece, o problema pode ser colocado exatamentenos mesmos termos para a Bahia: "modos de pensar" podem servinculados à condição social. Ou, em outras palavras, não se podepensar em expressões e comportamentos dissociados dos meiossociais em que foram produzidos e pelos quais se difundem. Bastaque se observe a conclusão a que chegam os representantes dopoder central na Devassa do levantamento de 1798 para se verificarque, neste caso, as distâncias entre o social e o mental são nítidase bem delimitadas. Os principais autores dos papéis sediciosos nãoeram "pessoas de consideração, nem de entendimento, ou que ti-vessem conhecimento e luzes"; eram, isto sim, "pardos, de péssimaconduta e faltos de Religião". Sua ineficácia revolucionária, aliás,parece refletir-se no "contexto dos Papéis sediciosos tão mal orga-nizados" e na ausência de "planos formados de revolução".l29 Seriaerrôneo entender as camadas inferiores da cidade de Salvador comoum bloco coeso nesse clima de agitação. Relativamente aos gruposdas camadas inferiores que não eram brancos, observar-se-ã queexistiam oposições entre "pardos e pretos", até porque - e aquivolta novamente o problema da ascensão social ligado à diversifi-cação racial - os "pardos", como bem nota D. Fernando José,

da Colônia: o fenômeno "Revolução" s6 se torna claro se referido a grupossociais concretos.127. ADIM, I, 8. '" "procurauão O meu partido por saberem que eudeu ia a S. M. coantia a Vultada e q.' estta logo me seria perdoada, e q.'como tinha rn'as fazendas e duzentos e tantos Escravos me cigurauão fazerhum dos Grandes".128. ADIM, r, 7, na Denúncia por Joaquim Silvério dos Reis, Coronel deCavalaria dos Campos Gerais.129. Carta de Fernando José de Portugal a Rodrigo de Souza Coutinho,datada da Bahia a 20 de outubro de 1798. íntegra in Braz do Amaral,op. cit., p. 56 a 61.

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"são reputados como mais astutos e sagazes para qualquer em-

preza" .'lOÉ claro que os portadores da mentalidade oficial têm sua

maneira própria de compreender os problemas sociais da época.E não é só. No caso citado de D. Fernando há consciência de certaoposição entre mulatos e pretos, mas sobretudo há consciênciaque os revolucionários eram, em sua esmagadora maioria, "de baixaesfera". E não fica aqui apenas a visão da sociedade de D. Fer-nando: é preciso cortar o mal em sua raiz, porque não se podeesquecer _ apesar da notada oposição entre negros e mulatos -que o processo implica "contagio", o que é extremamente pe-rigoso "em hum Paiz de escravatura".13I

Feita a análise por outro ângulo, vamos verificar que .tambémos sediciosos baianos tinham sua visão "especíHca" da organizaçãoda sociedade e já vislumbravam algumas categorias como desejáveisna nova ordem que se queria implantar. É o caso, por exemplo, domulato alfaiate João de Deus, que achava que não mais "erão pre-cisos ministros para a governança dos Povos e por isso devião serlogo mortos à faca". Como se vê, representantes da velha ordem.No nova ordem, porém, deviam permanecer "intactos os negocian-tes, à bem do pilblico".1J2 E mais - o que nos dá preciosa medidado equipamento conceitual do mencionado revolucionário -, acha-va João de Deus que existiriam "tropas de linha com comandantesbrancos, pardos e pretos e sem distinção de qualidade e sim de

capacidade" .Não parece impossível, apesar de tudo, e especialmente apesar

da mencionada crise do sistema, que o interlocutor de João deDeus, um Capitão do Regimento Auxiliar dos Homens Pretos(que além de militar era cabeleireiro), estivesse mais próximo darealidade e melhor integrado no sistema: não só entendia bemo que dizia João de Deus, como também tal eventualidade "lhe

130. Idem, Ibidem.131. Doe. cit., p. 61. Configura-se o colonizador: estamos num "Paiz de

conquista" (p. 60).132. Denúncia do Capitão do Regimento Auxiliar dos Homens Pretos Joa-quim José de Santa Anna. integra in Brsz do Amaral, op. cit., p. 49 a 53.Trecho cito p. 51. :e curioso que desejavam um "systema de liberdade comdestruição de todos os Membros da Administração Publica e Economica querege este continente" (p. 50).

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parecia ímpossível't.P' Revolução, alteração violenta nos postos,quebra de hierarquia - inclusive com a idéia sedutora de sua pas-sagem para coronel do Segundo Regimento de Tropa de Linha _era coisa de que este homem do sistema "não podia capacitar-se't.!"Por aí se observa, em suma, como há certas formas de pensamentoque não são absorvidas facilmente quando inseridas em meios di-versos daqueles em que foram elaborados, ainda que seus conteú-dos venham no sentido dos interesses dos agentes' considerados.Há todo um problema de maturação e que depende das condiçõessociais, sem a qual não é possível a compreensão de certos con-ceitos que permitirão aos agentes atuar nos processos em curso.

Após essas verificações, chega-se aos seguintes problemas:que idéia se fazia de uma Revolução no Brasil no final do períodoconsiderado, pelos seus contemporâneos? Que tipos de consciênciarevolucionária podiam ser encontrados? Quais os limites de taistomadas de consciência? Quais estímulos estão na base da expli-cação de tais comportamentos?

Em primeiro lugar, é necessário deixar claro que não é pos-sível estabelecer uma única e inflexível resposta válida para asdiversas regiões da Colônia. Esta seria uma forma de empobrecera realidade que é rica e matizada. :É necessário levar em conside--raçâo as variantes regionais do conceito de revolução: aqui apenasindicaremos algumas daquelas que nos parecem mais significativas.

Em segundo lugar, tal análise implica no trato de idéias ecomportamentos que só ganham sentido quando inseridos nosmeios sociais concretos em que OCorreram: estudá-los desvincula-dos dos seus meios seria critério esvaziador dos conteúdos dessasocorrências.

:É fundamental perceber-se, finalmente, que tais idéias e com-portamentos contrastavam agudamente com a mentalidade do-

133. Doe. cit., p. 50. Vê-se que o interlocutor de João de Deus aspirava"ser completo official e de servir com satisfação á frequentar por repetidasvezes os quartéis dos Regimentos de linha para aperfeiçoar-se em tudoquanto pertence ás funcçoens militares". Como se vê, um homem esforçando-se por ajustamento ao sistema. Ainda assim, ele é atingido por um dosproblemas mais agudos da crise que se revela no racismo: "sentia a suadesconsolação por ouvir dizer que 5(: nomeava hum sargento mór brancopara seu Regimento, e que sendo isso verdade desistiria em duvida dassuas maiores aplicaçoens" (grifo nosso).134. Idem, ibidem.

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I

rninante, que até então não fora posta em dúvida de maneiraexpressiva: só então estaremos sintonizados com o momento emdiscussão, entendendo por que as idéias revolucionárias faziam.. tremer e estremecer" 135 àqueles que, por estarem bem ajustadosno sistema, não possuíam inquietação.

e. Para uma tipologia do pensamento revolucionário

Um dos espíritos mais críticos que podem ser encontradosneste ambiente colonial é, sem dúvida, Tomás Antônio Gonzaga.Não era propriamente indivíduo que estivesse disposto a fazerrevolução "fosse como fosse", comportamento que encontramosem alguns de seus contemporâneos.l36 Pelo contrário, tinha umasensibilidade especial que o capacitava a perceber a história sub-terrânea, a história de fundo. Se julgava que era possível "levantaros Povos do Brasil" - e nele temos uma das raras ocorrências deidéia não-regional de revolução -, tal era apenas hipótese e nãouma realidade concreta.!" Mas seria injusto julgá-lo apenas um ho-mem que freqüentasse vagamente e sem inquietações grupos emque "alguma vez se podia falar em se poderem levantar os Povosdo Brasil". Nada disso. Tomás Antônio foi mais longe, por sermais lúcido: atuou junto a uma das molas da Revolução em Minas.Quando percebeu que a inquietação poderia ser sistematizada -o ponto de partida para a Revolução! - com o estabelecimento·da Derrama, faz tudo para que ela 'realmente se efetivasse. Ecumpre não esquecer que esse foi o argumento que mais pesoucontra ele na Devassa.l38 Tomás Antônio, aliás, tinha sólidas bases

135. ADIM, III, 182.136. Ver ADIM, II, 52 e 53, por exemplo.137. .., "não podia ser senão em uma hypothese de potencia e não deacto" ... Ver ADIM, IV, 266, nos Autos de perguntas a Gonzaga.138. Ver em especial ADIM, VII, 169 (Acórdão definitivo), e ADIM, VII,245 (Embargo apresentado pelo advogado José de Oliveira Fagundes). Oque era tanto mais grave, quando se observa que Gonzaga sabia exatamenteque o "tributo era grande, e que temia alguma revolução no Povo". ADIM,IV, 252. Do ponto de vista da utilização de conceitos, é digno de nota o[ato de aparecer em Gonzaga a ocorrência do termo "revolução". Em outrosencontramos simplesmente, em sua grande maioria, levante, sublevação ousedição. O texto do acórdão definitivo, datado do Rio de Janeiro a 18 de

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para entender o processo em curso. Não apenas pelos seus contatoscom os livros e com o cônego Luís Vieira da Silva, mas tambémcom seu mestre Cláudio, que cultivou de maneira refinada o es-tudo do passado. Era a partir de tais bases que podia entender oseu momento e perceber o que significavam as idéias de revolu-ção, em oposição às "idéias de quietação" .139

Evidentemente, Gonzaga não esteve a salvo das transforma-ções de sua sociedade. Pelo contrário, foi atingido com violênciapor tais mutações. Apenas soube, como nenhum outro, exteriori-zar os sentimentos e interesses do grupo social a que pertencia.Classisra, não era "algum vaqueiro" que vivesse de "guardaralheio gado, de tosco trato, de expressões grosseiro" ... 140

Nesse momento de agitação e de inquietação, o poeta revo-lucionário sente-se relativamente emancipado da propriedade, dos"bens", e nem lhe "cega a paixão que o mundo arrasta".'? Sabeque pode "emendar a ventura ganhando, astuto, a riqueza", masprefere deixar "os bens, que aos homens cegam".142É nessa pers-pectiva que se distancia provisoriamente dos valores de seu tempo,que se descola da tendência geral de seu momento: é nessa pers-pectiva, também, que se deve entender seu revolucionarismo. Nãohá .dúvida que não está ainda bem ajustado ao sistema, tanto do

abril de 1792, é bem daro: "Mostra-se que sendo a base do levante ajustadoentre os Réus o Jançamento da derrama, pelo descontentamento, que suppu-nham que causaria no povo, este Réu foi um acerrimo perseguidor do Inten-dente Procurador da Fazenda, para que requeresse a dita derrama, e parecen-do-lhe talvez que não bastaria, para inquietar o povo o lançamento pela dividade um anno, instava ao mesmo Intendente para que a requeresse, por toda adivida dos annos atrasados" ( ... ) "seria evidente que ella não podia pagar-se" (ADIM, VII, p. 169). A stuação de Tomás Antônio Gonzaga já foiobjeto de lúcida análise do Prof. Rodrigues Lapa, no prefácio às ObrasCompletas de Tomás Ant6nio Gonzaga. São Paulo, C.E.N., 1942. Ver espe-cialmente p. XXIX e XXX.139. ADIM, IV, 252, nos Autos de perguntas a Gonzaga.140. Lira L ln: Obras Completas de T. A. Gom:aga. Edição crítica deRodrigues Lapa, Rio de Janeiro, 1942, p. 3.141. Lira r. ln: op. cit., p. 5. Ver à p. 4 louvando o agrado de Marília,Dirceu dizendo como "é bom ser dono de rebanho, que cubra monte eprado" (grifo nosso).142. Gonzaga. Obras completas, p. 38. Ver ainda a pertinente nota deRodrigues Lapa à p. 13, onde Gonzaga se incumbe da administração dosbens de Alvarenga Peixoto.

ponto de vista político como do ponto de vista familiar.1O

Seuajustamento só se dará após o exílio para Moçambique, em 1792,onde casou com a filha da casa mais próspera local, ligada aosnegócios de escravos. Ainda propalou várias idéias relativas à revo-lução, mas tais manifestações eram amortecidas num ambiente játrabalhado pelas infiltrações de idéias da Revolução Francesa.

Outro tipo de consciência revolucionária digna de referênciaé a que pode ser observada no Capitão João Dias da Motta. Quan-do diz que "o levante não tinha fundamentos" 144, está apenas ten-tando eximir-se de qualquer culpa e justificar-se na Devassa. Mastal formulação permite inferir que, nessa época, é possível fazer-selevante desde que tenha fundamento. Em outras palavras, umlevante pode ser explicável, ter seus motivos. É claro que suporessa possibilidade já implica posição que se opõe à ordem abso-lutista e colonialista.

Tal tipo de consciência é sem dúvida menos ingênuo que odaquele padre que, referindo-se à revolução nas colônias inglesas,achava que "quem começou a urdir o levante na América Inglezafoi um Indivíduo que nada valia, e do seu falatório se originou" .145

143. Já em 1787 Gonzaga, num de seus conflitos com o Governador Cunhae Menezes, enviara à Rainha Maria I uma acusação violenta: "Nem meatrevo a representar coisa alguma a êste Exmo. General, por conhecer oseu notório despotismo. Êle tira os padecentes do patibulo; ele açoita cominstrUmentos de castigar os escravos as pessoas livres, sem mais culpa ouprocesso do que uma simples informação dos comandantes; ele mete osadvogados e homens graves a ferros; êle dá portarias aos contratadores paraprenderem a todos os que êles querem que lhes devam; êle suspende aoutros credores o pedirem pelos meios competentes as suas dívidas; êlerevoga os julgados ainda o mesmo das Relações. Enfim, Senhora, ele não temoutra lei e razão mais que o ditame de sua vontade' e dos seus criados".Exposição à Rainha em 21 de março de 1787, cit. por Rodrigues Lapa,op. cit., p. XXI e XXII. Curioso Dotar que não se confunde com "algumvaqueiro que viva de guardar alheio gado", e que acha que não se devecastigar as pessoas livres com instrumentos de castigar escravos. Há umcerto classismo na atitude geral de Gonzaga ("um aristocrata com o gostodo popular", já disse Rodrigues Lapa) que o identifica - mas não o integra_ com seu momento e que demonstra que algumas determinações geraisdo sistema podem ser captadas nas suas formulações, inclusive as poéticas.Do ponto de vista familiar, sabe-se que Gonzaga já era homem maduro,solteiro, que a família de: Mar1lia tudo fez para impedir o casamento.144. ADIM, V, 146, nos Autos de perguntas ao Capitão João Dias da Motta.145. Padre Assis, ADIM, II, 67.

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Não s6 se encontra implícita aí uma explicação para o fenômenoRevolução - indivíduo faz O levante, que tem Sua origem no "fa-lat6rio" - como também um julgamento do fenômeno: o pro-cesso é personificado no agente que nada vale e, portanto, as qua-lidades e defeitos do agente são transpostas para o processo.

Fazer a revolução "fosse como fosse" é outra maneira desituar-se em face do problema. Esse comportamento, que revelaum tipo de consciência, é encontradiço no Vigário de São José,o radical Carlos Corrêa de Toledo e Melo. Conhecido o projetodo levante em Minas pelas autoridades portuguesas, achava o Vi-gário que, embora devesse "estar chegando Tropa de Baixo (Riode Janeiro)", urgia que a "revolução" se fizesse antes de (a Tro-pa) cheg~r".l46

Este mesmo Vigário nos coloca em face de um comporta-mento expressivo e que se constitui em ponto de desencontro cru-cial entre os revolucionários, o problema do escravo, base do siste-ma, e ao mesmo tempo propriedade e mão-de-obra. Quando per-cebeu que o movimento foi descoberto, o Padre Carlos sugeriu aoCoronel Francisco António de Oliveira Lopes "que os désse, quebem podia apromptar vinte, e que um Negro com a carta de Alfor-ria na testa se deitava a morrer"."? Tal espírito revolucionário en-trevê a nova ordem, embora sua ação emancipadora pareça decorrermais de uma emergência. Mais expressivo é o comportamento doCoronel que, em face da nova ordem implícita na sugestão doVigário, diz que "se libertasse vinte Negros, ficava sem ter comquem trabalhar". Não parece ter adiantado a disposição do PadreCarlos em alforriar "todos os que pudessem ir" 148: sua ação esta-va delimitada pela noção de propriedade e trabalho do Coronel,segundo os padrões da velha ordem, isto é, do sisterna.!"

146. ADIM, II, 52 e 53.147. ADIM, II, 53.148. Idem, ibidem.149. Através do depoimento do padre José Lopes de Oliveira, pode-seconstatar que o padre Carlos tinha objetivos bem concretos e possuía claravisão das possibilidades do movimento intentado. Sua idéia de Revoluçãoestava referida à implantação de uma República, ainda que fosse necessárioeliminar todos os europeus daqui (ADIM, II, 250). Quando soube dadenúncia e da descoberta do movimento prematuramente chegou a dizerque "estavam acabadas as suas idéias porque se não podia fazer uma Re-pública" ... (ADIM, IV, 449).

Outro tipo de comportamento observado nesta crise do sis-tema e que merece destaque é o de José Aires Gomes, ainda emMinas Gerais. Para ele a Revolução não tinha sentido em prin-cípio. Era "uma asneira" o projeto, porque na nova ordem tambémhaveria organização do poder, embora com roupagens diferentes.De qualquer maneira, para ele haveria sempre governadores egovernados .ISO

Não há, neste caso, mera acomodação ao sistema. Há, nabase, um desajustamento que não se dá apenas em relação à reali-dade vivida, mas também às outras possibilidades além daquelaspermitidas pelo absolutismo e pelo colonialismo portugueses. Por-tanto, não estamos apenas diante de uma crítica ao regime 151, mastambém aos outros regimes. Vale lembrar que a simples possibili-dade de negação do Governo já representava ruptura violenta nopensamento de um vassalo e sintoma de crise da colonização. Afi-nal, o colonizador que não se submete às regras do sistema, quenão acredita no governo, pode provocar "damno imminente aoEs tado" .152

A idéia da Revolução mais nitidamente classista pertence,sem dúvida, a José Alvares Maciel. Em suas formulações percebem-se nitidamente as distâncias entre os objetívos do movimento e operigo representado pela participação escrava, além do problemarepresentado pelos europeus. Este revolucionário, de formação uni-versitária e viajado, leitor de histórias da América Inglesa e co-nhecedor das "Leis Constitutivas dos Estados Unidos", percebeumuito bem que envolver os escravos na Revolução constituía" ...arbítrio" ( ... ) "diametralmente oposto ao fim, que se' propu-nha" .153 Revolução e escravatura não podiam resolver-se por ummesmo caminho, uma vez que o "número dos homens pretos, eEscravatura dos Paiz" era "muito superior ao dos' brancos" ,154 E

150. ADIM, VII, 253... "o projecto era uma asneira, por que semprehavia de haver um que os governasse" ...151. Pelo visto, esta foi considerada devidamente, tanto que Aires Gomesacabou condenado para o degredo por toda a vida nos presídios de Embaqua.152. ADIM, VII, 254, nos embargos apresentados pelo advogado José deOliveira Fagundes. ""153. ADIM, II, 250, no Auto de perguntas a Maciel.154. Por isso, prossegue Maciel, "toda, e qualquer revolução, que aquellespressentissem nestes, seria certo motivo de elles mesmos se rebd1arem; e

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o problema era analisado de maneira muito clara por Maciel, quevia na mão-de-obra escrava a base da economia agrícola e minera-dora. Suas referências parecem ultrapassar os limites das Minas,quando declara que se libertasse "grandíssimo número de Escra-vos, que ha no Paiz, eis ahi ficavam sem haver, quem trabalhassenas terras tanto na mineração, como na cultura". A base classista,entretanto, é dada quando lembra que tal liberdade implicadiminuição dos bens dos proprietários de escravos, que ficam "semhaver de que subsistir't.P'

Quanto à morte dos europeus no Brasil, que tanto entusias-mou o vigário Carlos Corrêa de Toledo, Maciel é mais ponderadoe baseia seu comportamento na idéia de que "tanto os ( ... ) Ame-ricanos muitos dos seus Progenitores, e Parentes, nestas terras, nãoera possível que vissem o sangue frio, e até mesmo que concor-ressem para se dar morte a seus Paes, e Parentes't.!"

A propriedade atinge e envolve Álvares Maciel e, o que émais expressivo, atinge-o em seu futuro. Era. ele que, por seusconhecimentos e viagens, "pela sua instrucção nestas matérias",estava incumbido de dar início às manufaturas no BrasiV57 Portan-to, não apenas a propriedade de escravos - símbolo dos velhostempos - como também a propriedade baseada nas rnanufaturas- símbolo dos novos tempos - se projetavam na ação de Maciel.

Se discutimos aqueles que viram a Revolução mais como"hypothese de potencia, e não de acto", como diria Gonzaga, éimprescindível realizar a análise do que provavelmente esteve maispróximo da ação que da teoria, em Minas Gerais: o alferes Joa-quim José da Silva Xavier, o Tiradentes,

por consequencia ficaria frustrada toda, e qualquer acção intentada; e ascousas inda em peor estado" (ADIM, II, 249). Os revolucionários baianostinham consciência desse fato, mas para eles este dado positivo (vejam-se,adiante, as posições do mulato Lucas Dantas).155. ADIM, II, 250.156. Idem, ibidem.157. Ver ADIM, II, 247. Esta questão ganha significado quando se recordaque em 1785 foi expedido o Alvará de proibição das manufaturas no Brasil,oficializando uma situação de fato. Veja-se a mais recente análise do men-cionado alvará no artigo de Fernando A. Navais, "A proibição das manu-faturas no Brasil e a politica econômica portuguesa do fim do séculoXVIII", ín Revista de Histôria, São Paulo, n.· 67, 1966.

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Não era Tiradentes um homem ilustrado como Gonzaga ouviajado como Maciel. Reunia, entretanto, uma série de condiçõespara que se pudesse tomá-lo como o homem revoltado típico dessefinal de século nas Minas. Cheio de intuições, não se introverteu;antes, pelo contrário, difundiu mais que qualquer contemporâneobrasileiro a idéia de Revolução.P' Para os homens bem ajustadosde sua época, suas idéias e afirmações não eram "racionses'U"Os seus contemporâneos que viviam no mundo da "sã consciên-cia" 160 viam-no como elemento tomado pela "loucura't.!" Essaidéia que tinham de Tiradentes serviu até para eximir um seucontemporâneo de delação.r"

Suas palavras soavam como próprias de "um homem perigo-SO".163Já avançado nos quarenta anos 164, grisalho 165,preterido porquatro vezes nas promoções militares 166,.mascate anteriormente 167e tendo sido preso 168,tinha consciência que não era pessoa quetivesse "figura, nem valimento, nem riqueza".I69 Com efeito, nestaelite de proprietários, doutores e clérigos, que constituíam efer-vescente "grupo de opinião" 170, Tiradentes aparece como elementodos menos bem dotados, quer do ponto de vista de formação inte-lectual, quer do ponto de vista econôrnico. Sua açâo, não obstante,é informada 'pela visão de mundo daquele grupo, e por ela temseus horizontes definidos.17I Rigorosamente, não o encontramos

158. Vamos notar que era o único a possuir um "rnethodo de conversação"(ADIM, IV, 47).159. ADIM, I, 179, na inquirição de Pedro Affonso de São Martinho, Sar-gento-rnor do Regimento de Cavalaria Paga de Minas Gerais.160. Ver, a título de exemplo, ADIM, I, 156.161. Ver, especialmente, ADIM, VII, 129. Neste documento ocorre pelomenos quatro vezes a idéia. E não se trata de uma posição "oficial". Atétrapeiras formaram tal imagem (ver ADIM, III, 261).162. ADIM, III, 260.163. ADIM, I, 108 e 109, na inquirição do Capitão Vicente Vieira da Motta,164. ADIM, IV, 29, nos Autos de perguntas ao Alferes.165. ADIM, I, 184 e II, 414. .166. ADIM, IV, 45, já citado.167. ADIM, II, 460.168. ADIM, II, 461.169. ADIM, IV, 35, nos Autos de perguntas ao Alferes.170. Consulte-se o trabalho de Célia Galvão Quirino dos Santos, "A In-confidência Mineira", in Anais do Museu Paulista, tomo :XX.171. Observe-se, a título de exemplo, seu comportamento preconceiruosoem relação aos negros (ADIM, I, 185).

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com lugar de destaque nos encontros para trama da sublevação; émais eficaz nas ruas, lojas, estalagens e estradas.

Tiradentes tem algumas noções da necessidade de um míni-mo de condições para o êxito da Revolução. Nele não encontramoso refinamento de Gonzaga, que baliza sutilmente sua ação nadeclaração da derrama, mas constatamos que não achava ele propí-cia a atitude de Barbacena 172: "antes elle fosse um Diabo, peorque Luís da Cunha" 17), dizia Tiradentes. Facilitaria a Revolução.

Encontra-se em tal personagem nítida idéia da atmosfera re-volucionária que se instalou nas Minas nas duas últimas décadasdo século XVIII. Vendo de maneira muito obscura o corpo sociale suas separações, sabia que "pessoas da maior até a mais pequenadiziam que se puzesse a derrama, a não pagavam, e que sahiamda Capitania" 17\ sabia também das dimensões do contingente po-pulacional, "do Povo tão grande" 175 das Minas. Não era por acasoque era um "curioso de rnappas", que se preocupava em saber"quantas almas teria a Capitania de Minas Geraes", Mas o que émais de se surpreender no Alferes é sua reflexão - baseada noproblema quantitativo - de que as ditas "almas" poderiam sermelhor governadas "passando a América a ser República't.!" Emoutras palavras, seria a quantidade de população que imporia otipo de governo. Mas nenhuma crítica aos "poderosos", à "opu-lência", como o fizeram os artesãos baianos. Vê" pessoas da maioraté a mais pequena", mas não enxerga os antagonismos.

Certa consciência de sua própria atuação Tiradentes com cer-teza possuía. Tinha a noção - e isto sempre proclamava - quehaveria de "armar uma meada tal, que em dez, vinte, ou cem annosse não havia de desembaraçar't.!" Menos satisfatórias, entretanto,eram suas posições em relação a certas críticas que lhe faziam seuseventuais interlocutores, como aquela que lhe fez o Porta-Es-tandarte Francisco Xavier Machado, dizendo que a revolução "nun-

172. .... "muito agradavel, e muito attencioso para todos" ... , como disseum seu contemporâneo (ADIM, V, 85).17.3. ADIM, V, 85. Ver também, no mesmo sentido, ADIM, III, .319/.320.·174. ADIM, IV, 38, nos Autos de perguntas ao Alferes.175. ADIM, IV, .35, nos Autos de perguntas ao Alferes.176. ADIM, IV, 5.3, nos Autos de perguntas ao Alferes.177. ADIM, V, 11. Ver também, no mesmo sentido, ADIM, I, 108, eADIM, III, 335. .

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ca poderia succeder, porque Minas não tinha forças para se con-servarem, nem marinha para se defender, como tinha a AméricaIngleza" 118; respondia sempre com formulações excessivamenteamplas. Quando recorria ao auxílio de argumentos para melhorpersuadir seus conterrâneos, utilizava a imagem vaga do auxiliodo Rio de Janeiro e do "soccorro" das Nações Estrangeiras.F'

Não há que se imaginar, finalmente, um revolucionário au-sente dos problemas sociais de seu tempo. Pelo contrário, JoaquimJosé não só trazia as marcas das preterições na carreira militarcomo, na nova ordem, aspirava a ganhar "de renda mais de cin-coenta mil cruzados".I80 Ideal de proprietário, até porque já sabiaque para a Revolução que se propunha era preciso ter "figura","valimento" e "riqueza, para poder persuadir um Povo tãogrande" .181

A elaboração de uma tipologia do pensamento revolucionáriono Brasil nos fins do século XVIII esbarra em dificuldade pratica-mente insuperável: os revolucionários geralmente não deixaram es-critas suas formulações a respeito dos movimentos em curso. Serámais fácil encontrar cópias de teorias elaboradas fora do sistemacolonial português nos cadernos de anotações dos sediciosos -como é o caso das idéias de Volney, traduzidas no caderno dobaiano Luís Gonzaga das Virgens - que idéias próprias de taisagentes. Nessa medida, muito melhor sistematizadas e explícitas,surgem as visões dos denunciantes e dos representantes da ordemestabelecida.l" Freqüentf".mnete o pesquisador é obrigado a entre-ver as formas do pensamento revolucionário a partir da reaçáopor elas provocada nas formas ajustadas ao regime.

Outra dificuldade não menos ponderável reside no fato detais manifestações de inquietação e desajustamento surgirem numa

178. ADIM, I, 143, na inquirição de Francisco Xavier Machado.179. Ver, por exemplo, ADIM, IV, 56, nos Autos de perguntas ao Alferes.180. ADIM, I, 1.39, na inquirição de Simplício Maria de Moura.181. ADIM, IV, 35, nos Autos de perguntas ao Alferes.182. E. digno de observação que no caso da Inconfidência Mineira o pro-cesso revolucionário é analisado em todas suas fases pela reaçào. De fato,no Acórdão definitivo encontramos, como já foi referido anteriormente,"cogitação", "intenção", "associação e conjuração", "plano" e "modo deexecutarem" (ADIM, Vil, p. 190). São etapas melhor encadeadas na cons-ciência contra-revolucionária. Assim, em certa medida, o conceito de Revo-lução também é elaborado na Conrea-Revolução.

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sociedade de base religiosa. A sociedade colonial é religiosa, comobem indicou José Honório Rodrigues lAJ, e não será difícil encon-trarmos o comportamento revolucionário brotando em atmosferadecididamente religiosa. Não se deve estranhar, pois, a ocorrênciade cópias de textos revolucionários europeus, como os do men-cionado Volney, num caderno onde predominam as orações decunho religioso. No caderno de Luís Gonzaga das Virgens, apreen-dido na Devassa do levantamento intentado em 1798, impressionao número e a riqueza de orações que regulam praticamente todasas atividades cotidianas do cristão: há orações para antes da con-fissão, para o ato de contrição e para depois da confissão; há sú-plicas a Nossa Senhora para antes e depois da confissão; há oraçõespara antes da Sagrada Comunhão, bem como para antes e paradepois da missa; há longos trechos de acompanhamento de missa,em latim; oração a vários santos e à Santíssima Trindade, bemcomo para certos dias da semana. Curioso notar que não faltano caderno do revolucionário em foco uma oração "para se rezara Deos N. Senhor por nossos inimigos".I84 A vida estava reguladapela religião e uma oração especifica para cada atitude e momentose fazia necessãria.!" Tal religiosidade desmedida dá bem o sentidoda insegurança dos vassalos na colônia: era a variação religiosa de. Orna crise mais ampla.

Em tal ambiente impregnado de religião deveria provocarum vigoroso impacto a noção de que "a idea da Divindade nãofoi nunca hua revelação miraculosa de antes inviziveis, mas huaprodução natural do intendim. to hua opiniçâo do espirito huma-no, cuja ide a mesma tem seguido os seos progressos, experimen-tado immensas revoluçoens no conhecim. to do mundo".'86

183. José Honório Rodrigues. Conciliação e Reforma no Brasil _ Um Desa-fio Hist6rico-PoUtico. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p. 113. Os"Ponuguezes erão fanáticos", dizia o revolucionário baiano Lucas Dantas,pouco mais de um ano antes da tentativa de levante de 1798 (ADLSIB.XXXV, p. 14).184. ADLSIB, XXXVI, p. 5.39.185. Assim é que se observa oração "para quando nos lançamos a dormir",diversa daquela "quando entramos na Igreja" ou "quando tomamos AguaBenta", ou "Para ajudar ao Batismo solernne", ou para proteger duranteuma "grande tempestade", ou uma outra em "estando doente, ou em algumatribulação". Ver loc. cit., p. 540 e 544.186. Trecho de Volney, traduzido no caderno do revolucionário Luís Gon-zaga das Virgens, Ioc. cit., p. 553.

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A ideologia da Revolução Francesa atingia as consciências doselementos coloniais brasileiros, dando como resultado aquilo quearguto observador contemporâneo não deixara de notar: um "con-fuzo encon tro de ideas" .187

Ainda aqui, não há que isolar tais formas de consciênciado corpo social a que pertenciam, porque é exatarnente em relaçãoa ele que adquirem sua plena significação. No mencionado exem-plo, e no mesmo caderno de anotações religiosas e filosóficas, en-contra-se o documento que sugere a base social e racial do desa-justamento que conduz à compreensão do comportamento revol-tado de Luís Gonzaga; sofre ele porque não "he digno (deseraccéssivel na graduação dos postos, por ser homem pardo".

Não há que se falar em problema individual, no caso. Oexemplo mostra bem que já se pensa em termos de grupo socialocupando uma posição relativa no conjunto da sociedade, já sepensa em termos de classe mesmo. Por' pensar assim é que a LuísGonzaga parece ser "justo que elle, e todos os individues de suadesgraçada, classe sejão estrabidos de uma compatibilidade todopenoza, desgraçada, e ordenada de calunias".I83

Provavelmente é o desajustamento na sociedade que tornaLuís Gonzaga das Virgens tão sensível aos problemas da naturezareligiosa, corno aos de natureza político-filosófica. Se o sistema -que é de direito divino - não propicia suas realizações Pessoaise as de seus social e racialmente semelhantes, por que não pensarque a idéia de Divindade não foi nunca uma revelação miraculosade entes invisíveis, mas sim uma produção natural do entendi-mento humano?

Caso expressivo de desajustamento precoce é o do baianoManoel Faustino dos Santos Lira, alfaiate, pardo forro de apenas22 anos de idade 189, que sabia ler e escrever. Ao que parece, par-

187. É Luís dos Santos Vilhena, professor na Bahia, quem o nota emborase referindo à ação dos seminários. "Recopilação de Notícias Soteropolita-nas" ... , vol. I, p. 141.188. ADLSIB, vol, XXXVI, p. 522. Grifo nosso. É importante notar queo conceito de classe aqui não é quantitativo (ex.: classe dos indivíduos de15 a 20 anos): já se pensa em termos de camada social.189. Braz do Amaral exagerou tal precocidade, apontando a idade de 16anos para Faustino, à época da Devassa (op. cit., p. 25). A melhor hipótese(22 anos) é a de Alfonso Rui (A Primeira Revolução Social Brasileira. SãoPaulo, C.EN., 1942, p. 167).

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ncipou com desenvoltura de confabulações sediciosas a propósitode Revolução, formas de governo e problemas raciais. A Revolu-ção, para Manoel Faustino, tinha objetivos bem claros e, o que émais importante, deveria abranger todo ô "continente do Bra-sil".19OO critério adotado por Faustino superava os problemasraciais: entrariam num "Governo de igualdade" os "brancos, par-dos, epretos, semdistinção de cores". A nova ordem estaria basea-da apenas na "capacidade para mandar, egovernar". Do pontode vista econômico, as soluções viriam quando fossem saqueados"os cofres públicos, ereduzido todos ahum so, para delle se pagaras Tropas, eassistir as necessarias despezas do Estado" .191

Diferentemente de alguns contemporâneos revolucionários,Faustino optava pela manutenção do atual Governador, que seriao Presidente do novo Governo. Seu comportamento era - comoele mesmo dizia - político. Era de opinião que "sedevia conservaras Pessoas deLetras etudo pertencente a Religião por Politica".De outra maneira, seria impossível "evitar huma guerra civil".192

Como se vê, um jovem não-radical.Com tal solução de acomodação, entende-se por que Faustino

não era, como muitos dos revolucionários seus contemporâneos,voltado para as possíveis soluções francesas. Em relação aos fran-ceses, sim, era radical: para de, "os Franceses erão huns ladroens,que o viviam de piratarem roubando os navios".l9J

Já Lucas Dentas, de 23 anos, soldado pardo, era posrtiva-mente pela Revolução através do auxilio da França. No ambientereligioso do Recôncavo, irritava-se com o catolicismo "fanático"dos portugueses. O modelo para o movimento era o dos france-ses, que não tiveram dúvidas em "abandonar a Religião Católi-ca".I9-1É curioso notar que se impacientava, nas suas próprias pa-lavras, com a "fraqueza de espirito, que domina nos rapazes dest~continente". Para ele, um revolucionário como Faustino "pensamal". A Revolução pode ser feita de maneira bem mais profunda:somente de possíveis revolucionários conhece Dantas "mais de

190. ADLSIB, voL XXXV, p. 13.191. Idem, ibidem.192. Idem, ibidem, grifo nosso.193. Idem, p. 14.194. ADLSIB, voL XXXV, p. 14.

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cem, comcapacidade, para entrarem em hum Levante nestaCidade".E, mais uma vez, o fundo racial vem à tona, uma vez que temconsciência que o número de Regimentos de brancos era inferioraos de pretos e pardos. E "então seestes quizerern, quem lhe haderezistir? "19S

O problema religioso perpassa muitos dos revolucionáriosbaianos. É o caso de José Raimundo Barata de Almeida, irmão deCipriano Barata. Em suas sondagens, a religião era o ponto departida para discussões sobre Revolução. Para ele~ as coisas iambem, uma vez que "já atres annos havião nestaCidade muitaspessoas dezabuzadas", que não criam em "carapetoens da Re-ligião" .196

Um dos mais conhecidos revolucionários brasileiros começa-va então a se manifestar: Cipriano Barata. Nele já se encontra,neste findar de século, o observador atento dos processos em de-senvolvimento da época. Sua atenção está voltada, no momento,para os movimentos franceses na Europa, ou seja, para os desdo-bramentos da Grande Revolução. Desaconselha seus conterrâneosa fazerem o levante. Tinha consciência que "arnaior parte doshabitantes deste continente vivião debaixo da disciplina dehumcativeiro, enão tinhão capacidade para tal acção". Os franceses éque contavam, nesse momento, para a possibilidade de realizaçãoda Revolução no Brasil. "Porisso, dizia Barata, o melhor era espe-rar que viessem os Francezes, os quaisandavão nessa mesma dili-gencia pela Europa, elogo cá chegarão".I97 Parecia seguir aflitoos principais acontecimentos europeus: a grande política o interes-sava, desde a situação da Santa Sé até a possibilidade de invasãoda Inglaterra pela França.!" Já para as questões internas, Barataera um homem relativamente menos aflito: não havia mal que arevolução demorasse, uma vez que tal demora propiciaria maiore melhor arrebanhamento de sediciosos.l" Portanto, se era de

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195. Idem, ibidem (sic).196. Idem, ibidem.197. ADLSIB, vol. XXXV, p. 16.198. Idem, ibidem.199. Idem, p. 178. Dizia ele "que era melhor, quehouvesse essa demoraporque quanto mais fosse, maior numero degente se adquiria ao fim deserealizar".

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opimao que se deveria esperar os desdobramentos da RevoluçãoFrancesa aqui, tal espera se coadunava com a articulação dos ele-mentos revolucionários brasileiros.

Todavia, incorrerá o analista em grave erro se considerar Ci-priano Barata como um revolucionário emancipado dos problemassociais e raciais de seu momento. Este homem, formado em Filoso-fia pela Universidade de Coimbra, cirurgião, era também proprie-tário: proprietário de lavoura de cana 200 e proprietário de escra-VOS.201 Aliás, como proprietário de lavoura de cana, parece terarrendado parte de suas terras.102 Não deve ter sido bem-sucedidoem sua empresa, uma vez que o encontramos, pouco antes da De-vassa, passando "delavrador decanas; p.a de mandioca". Ele mes-mo já se considera, em carta dirigida a outro senhor de engenho,"um lavrador decanas defunto" .203

Como se vê, não é homem bem ajustado no sistema: estáperdendo posições num ambiente em que o ser senhor de enge-nho permanece sendo qualidade a que muitos aspiram, comodiria Antonil um século antes. A propriedade está na base dacompreensão de sua atitude, da sua revolta 204, bem como de seuclassismo. O sentimento de interesses idênticos de mesma camadasocial se revela na mencionada carta de Barata a seu amigo e tam-bém proprietário Luís Gercent: "cautela comesa canalha Africa-na e ... q. o tempo pede circunspeçam't.ê"

Afinal, a rebelião intentada na Bahia não era ainda aquelados sonhos dos proprietários: era intentada - dizia Barata -

'.'200. ADLSIB, vol. XXXV, p. 184.201. Idem, p. 183.202. ADLSIB, vol. XXXV, p. 184.203. Idem, ibidem.204. Sua revolta e inquietação, comparáveis à de um Jean-Paul Marat, po-dem ser entrevistas nos ferimentos que se infligiu, nas prisões; "o que tinhaja de costume porque tendo alguma paixão mais forte Jogo se feria ou faziaemsi cousa, que lhe cauzasse dor, pois com esta alliviava alguma parte damesma paixão, o que comprovou mostrando na mesma parte do peito quatrosecatrizes, que mostravão ser de feridas feitas com instrumento perfurante,dizendo tinhão sido feitas porelle proprio emsi em semelhantes occasions depaixão, epara ofim ja expressado". .. (ADLSlB, vol. XXXV, p. 186).205. Idem, ibidem.

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por escravos ,.detoda a casta, emesrno dos pretos, epardos libertosemque tentavão matar tosos os brancos".206

Observa-se que o revolucionário em questão - Bacharel emFilosofia _ embaraçava seus interlocutores de mais baixas ca-madas da sociedade. Quando, por exemplo, o alfaiate mulatoManoel Faustino lhe participava os projetos do levante em Sal-vador, Barata atalhava sua exposição falando do temperamentodos "habitantes deste continente" e dos grandes lances da políticaeuropéia 207, causando constrangimento e "embaraço" 208 ao inter-locutor. Isto acontece porque falavam linguagens revolucionáriasdiferentes.

Outro traço classista de Cipriano Barata, que aliás não lheé peculiar, mas sim àqueles que ocupavam social e racialmenteposições análogas às suas, pode ser surpreendido no momento daacareação entre ele e o revolucionário Manoel Faustino. Quandose pergunta na Devassa a Faustino, acareante, se conhece a Barata,acareado, diz aquele "quesim, ehe o Cirurgião Cipriano Joze Ba-rata de Almeida". Quando se pergunta ao acareado se conheciaao acareante, diz Barata que sim, "ehe Faustino pardo alfaiate".209Como se vê, a marca racial vem explícita nas relações não apenasentre "h~mens do sistema" e revolucionários, mas também nosrevolucionários entre si. Para Barata, Manoel Faustino, antes derevolucionário, é "pardo".

Portanto, há que entender Cipriano Barata como revolucio-nário sim, mas impregnado dos valores e preconceitos do gruposocial e racial a que pertencia. Manteve contatos sediciosos comvários elementos de baixas camadas, mas permaneceu com os va-lores de seu grupo bem rígidos e inviolados. Quando foi envol-vido na Devassa por causa de "algúas palavras e discursos, queelle declarante costumava com facilidade formar, sobre o Estado

206. Idem, p. 176. Não é por aCRSO que escreveu ao seu amigo que tinham

escapado "degrandisimo dezastre da rebeliam dos escravos, mulatos enegros;ainda osangue detodo senãm aqueceo, visto operigo aq. temos andado ex-postos" (íntegra da carta às p. 184 e 185). Notar que é uma das rarasocorrências do conceito de casta: não é por acaso que surge nos lábios deum proprietário.207. Idem, p. 179.208. Idem, p. 182.209. Idem, p. 181 (grifo nosso).

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Políríco da Europa", fazia questão de frisar que não tinham "apli-cação ao continente do Brasil".2lo Se de suas intenções então pode-mos desconfiar seriamente, não se pode duvidar entretanto quandodiz que seus discursos eram "mal ouvidos, e peior interpretados,por alguns desses pardos interessantes da revolução"."! Por aípode-se observar a dificuldade de difusão de idéias e conceitospelos meios sociais dos quais eles não são frutos, dificuldade quejá era pressentida - com outras preocupações - pelo revolucio-nário em questão. Revolucionário que, antes de tudo, era proprie-tário e branco.

Comportamento mais radical é encontrado em Manoel de San-ta Anna, "pardo", soldado do Segundo Regimento de Linha emSalvador. Filho de "pardo" com mulher branca (de destino igno-rado), tinha cerca de trinta anos quando da Devassa de 1798.Há em Santa Anna um comportamento que ultrapassa de muitoo comportamento de Cipriano Barata: deve-se, para ele, em Sal-vador, matar "atodas dasua Governança"; do ponto de vista dasrelações sociais, a revolução se fará "saqueando os cabedais daspessoas opulentas". Portanto, não há dúvida que além da revolu-ção dos proprietários há outra, mais profunda; em suma, comodiria o próprio Santa Anna, "huma formal, einteira sublevação".212. Observa-se que, no caso presente, o problema religioso voltaà tona: não só é acusado o revolucionário em foco de fazer críti-cas ao Estado, mas também à religião. Aliás, verifica-se claramen-te, através de suas formulações, que os dois problemas vêm juntos,nessa época. Negar "a subordinação, eobediencia ao Rei, esuasLeys" 213 é não respeitar o Estado, que é de direito divino. Disso jáse dava conta um amigo de Santa Anna, o já analisado LucasDantas. Para ele, "Isso de Religião he peta, devemos todos serhumanos, iguaes, "eliores de subordinação'íP" Liberdade religiosa

i.

II.

210. Idem, p. 180.21l. Queixa-se no caso de Antônio Simões da Cunha, "pardo", oficial depedreiro, com o qual tinha "conversaçoens politicas". " "dis/correndo sobreas revoluçoens do Mundo prezentes, e preteritas, e sobre o estado actual daEuropa, visto não serem prohibido estes discursos" (ADLSIB, XXXV,p. 180).212. ADLSffi, XXXVI, p. 294.213. Idem, ibidem.214. ADLSffi, XXXV, p. 105. Grifo nosso.

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andava associada à liberdade política, como se pode bem percebernessas formulações rústicas.

Para Manoel de Santa Anna o "systhema Frances" era o mo-delo: "era melhor aregencia demuitos, do que de hum só". Demais,não apenas devia se saquear as propriedades das "pessoas opulen-tas" e "os cofres da arrecadação publica", mas também era im-precindível a "liberdade atodos os creados", "estabelecendo humaRepublica deigualdade'V" Do ponto de vista religioso, seriamconsiderados "dezabuzados todos, os que estavão fixos nestas per-niciozas maximas" .216

Vale notar que a idéia que Santa Anna fazia da Revoluçãonão era própria. Apesar de ser contra a hierarquia vigente, a Re-volução foi-lhe ensinada pelo seu Tenente 217, que lhe falou do"miserável estado da Tropa Portugueza o pouco soldo, que perci-biâo os soldados e agrande sujeseção , ernque, vivião, o que nãosentia aMilicia Franceza".218 É o caso em que a inquietação e sub-versão vem das camadas mais altas para as mais baixas.

Não há que pensar em falta de resistência à idéia de Revo-lução. No caso presente, temos exemplo de reação à insubordina-ção. Diz Santa Anna a seu Tenente: "Que havemos de fazer, se oRei o quer assim?" Força o Tenente a tornada de consciência deSanta Anna, respondendo, do alto de sua posição, que "vocês sãofaltos de espírito, ede sentimentos, não são homens livres".219

O radicalismo do revolucionário Santa Anna deve ser, assim,entendido dentro de seus próprios limites. Não é, por exemplo,homem que tenha muita consciência do tempo. "Não pode fixarotempo certo" em que se iniciou com o Tenente nas práticas sub-versivas. Quando é envolvido pela Devassa e é exigida explicaçãopara a sublevação intentada, sabe dizer que era o "embaraço, quetinhão os pardos de irem aos Postos Maiores, eesta huma dascauzas principais, que os incitava"; mas não consegue localizar notempo as articulações que tinham em vista a Revolução_220

215. ADLSffi, XXXVI, p. 294.216. Idem, ibidem.217. Tenente Hermógenes de Aguillar.218. ADLSIB, XXXVI, p. 295 (sic).219. Idem, ibidem.220. ADLSIB, XXXVI, p. 297.

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