Carlos Alberto Faraco “Modalidade escrita formal”

6
1 Considerações sobre a competência 1 “Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa” Carlos Alberto Faraco (UFPR) Na prova de redação do ENEM, pede-se aos candidatos que escrevam “um texto em prosa do tipo dissertativo-argumentativo sobre um tema de ordem social, científica, cultural ou política”. Essa caracterização do texto a ser produzido busca situar os candidatos no vasto mundo dos gêneros de discurso, eliminando, pela delimitação, inumeráveis outras possibilidades. Orienta esse recorte um determinado delineamento do perfil que devem ter os concluintes da Educação Básica sobre o qual há, certamente, um relativo consenso. Em linhas gerais, espera-se que, em língua portuguesa, eles estejam aptos a ler e compreender um texto de mediana complexidade; e de escrever um texto legível (coerente e claro), adequado às características de um determinado gênero de amplo uso social (informativo ou argumentativo) e que corresponda quando for o caso às expectativas socioculturais que recobrem a modalidade escrita formal da língua (sua adequação ortográfica e léxico-gramatical). Dentre as várias possibilidades para avaliar esta última competência, escolheu-se a produção de um texto dissertativo- argumentativo sobre um tema de ordem social, científica, cultural ou política. Não é aleatória essa escolha. Atrás dela está o pressuposto de que qualquer cidadão, numa sociedade democrática, deve ser capaz de defender uma opinião, uma tese, um ponto de vista sobre um tema de interesse geral com argumentos consistentes. E, além disso, deve ser capaz de organizar esses argumentos coerente e coesamente de modo a formar uma unidade textual escrita. Acrescenta-se, como exigência, que o texto seja redigido de acordo com a modalidade escrita formal da língua portuguesa. De novo, faz-se um recorte no vasto mundo das variedades constitutivas da língua, eliminando, pela delimitação, inúmeras outras possibilidades. Com essa exigência, situa-se o texto a ser produzido num contexto de formalidade. Ou seja, os candidatos devem assumir como destinatário um público amplo distante, portanto, do seu círculo de relações próximas. Esse virtual destinatário não aparece explicitado em nenhum ponto dos documentos do ENEM ou da prova de redação. Contudo, está implícito na própria exigência quanto à modalidade a ser empregada. Quando o destinatário não pertence ao círculo das relações próximas de quem escreve, há uma expectativa social (construída

Transcript of Carlos Alberto Faraco “Modalidade escrita formal”

Page 1: Carlos Alberto Faraco “Modalidade escrita formal”

1

Considerações sobre a competência 1 – “Demonstrar domínio da

modalidade escrita formal da língua portuguesa”

Carlos Alberto Faraco (UFPR)

Na prova de redação do ENEM, pede-se aos candidatos que

escrevam “um texto em prosa do tipo dissertativo-argumentativo sobre

um tema de ordem social, científica, cultural ou política”.

Essa caracterização do texto a ser produzido busca situar os

candidatos no vasto mundo dos gêneros de discurso, eliminando, pela

delimitação, inumeráveis outras possibilidades.

Orienta esse recorte um determinado delineamento do perfil que

devem ter os concluintes da Educação Básica sobre o qual há, certamente,

um relativo consenso. Em linhas gerais, espera-se que, em língua

portuguesa, eles estejam aptos a ler e compreender um texto de mediana

complexidade; e de escrever um texto legível (coerente e claro),

adequado às características de um determinado gênero de amplo uso

social (informativo ou argumentativo) e que corresponda – quando for o

caso – às expectativas socioculturais que recobrem a modalidade escrita

formal da língua (sua adequação ortográfica e léxico-gramatical).

Dentre as várias possibilidades para avaliar esta última

competência, escolheu-se a produção de um texto dissertativo-

argumentativo sobre um tema de ordem social, científica, cultural ou

política.

Não é aleatória essa escolha. Atrás dela está o pressuposto de que

qualquer cidadão, numa sociedade democrática, deve ser capaz de

defender uma opinião, uma tese, um ponto de vista sobre um tema de

interesse geral com argumentos consistentes. E, além disso, deve ser

capaz de organizar esses argumentos coerente e coesamente de modo a

formar uma unidade textual escrita.

Acrescenta-se, como exigência, que o texto seja redigido de acordo

com a modalidade escrita formal da língua portuguesa. De novo, faz-se

um recorte no vasto mundo das variedades constitutivas da língua,

eliminando, pela delimitação, inúmeras outras possibilidades.

Com essa exigência, situa-se o texto a ser produzido num contexto

de formalidade. Ou seja, os candidatos devem assumir como destinatário

um público amplo – distante, portanto, do seu círculo de relações

próximas.

Esse virtual destinatário não aparece explicitado em nenhum ponto

dos documentos do ENEM ou da prova de redação. Contudo, está

implícito na própria exigência quanto à modalidade a ser empregada.

Quando o destinatário não pertence ao círculo das relações

próximas de quem escreve, há uma expectativa social (construída

Page 2: Carlos Alberto Faraco “Modalidade escrita formal”

2

historicamente) de que se use uma variedade linguística mais monitorada.

Face a essa expectativa social, tem-se como certo que a escola

básica deve garantir a seus concluintes o domínio dessa variedade

linguística, chamada, nos documentos do ENEM, de modalidade escrita

formal da língua portuguesa. E, por isso, exige-se, na prova de redação,

que os candidatos façam a devida adequação de sua expressão linguística.

Avaliar o domínio dessa modalidade deveria ser, em tese, um

processo relativamente tranquilo – bastaria verificar o grau de adequação

da expressão linguística de cada redação às características do uso

socialmente corrente em textos da mesma natureza.

Contudo, temos algumas pedras no meio do caminho. Não existe –

seja entre os especialistas, seja entre os instrumentos normativos mais

abalizados (dicionários e gramáticas) – um consenso razoável sobre as

características da modalidade escrita formal da língua portuguesa

contemporânea em efetivo uso no Brasil,

Essa situação tem uma causa histórica. Quando, no século 19, o

Brasil se tornou independente politicamente, nossos escritores românticos

(em especial Gonçalves Dias e José de Alencar) defenderam que

adotássemos como quadro de referência para as nossas práticas de escrita

a variedade da língua portuguesa falada correntemente pelos letrados

brasileiros em situações formais.

Em outras palavras, deveríamos adotar como modelo para a escrita

monitorada as características léxico-gramaticais comuns (normais) na fala

culta brasileira. Ou seja, o projeto deles era estabelecer uma norma para a

escrita brasileira tendo como parâmetro a norma da fala dos segmentos

letrados da população.

O termo norma aqui está tomado no seu sentido técnico: refere-se

ao conjunto de características linguísticas de uso corrente, costumeiro,

habitual (normal) num determinado grupo de falantes.

Por ser de uso normal, esse conjunto de características linguísticas

identifica os membros do grupo e acaba por ser de regra (por ser norma)

em seu comportamento; tem, portanto, um determinado caráter normativo

– o normal normatiza; o normal dá o parâmetro para a ação. Ou, como

dizia o grande pedagogo romano, Marco Fábio Quintiliano, no primeiro

século da nossa era, o uso culto é o melhor mestre da fala e da escrita

culta.

No fundo, o que os intelectuais românticos defendiam era que o

processo de constituição de nossa modalidade escrita formal (de nossa

norma culta escrita) reproduzisse o que tinha ocorrido nas sociedades

europeias. Nelas, a variedade linguística que se consolidou como norma

nas práticas de escrita formais se calcou na variedade linguística usada

Page 3: Carlos Alberto Faraco “Modalidade escrita formal”

3

nas práticas de fala formais (na norma culta falada).1

No nosso país, no entanto, houve uma forte resistência à proposta

dos escritores românticos. Segmentos sociais mais conservadores,

idealizando o Brasil como uma sociedade branca e europeia (virando as

costas para o país real, portanto) se opuseram ao abrasileiramento da

nossa expressão escrita e defenderam que imitássemos estritamente a

variedade usada pelos escritores românticos portugueses.

O resultado desse embate foi o surgimento, entre nós, do fenômeno

que o filólogo Celso Cunha (em seu artigo “Política e cultura do idioma”)

veio a chamar de “dualismo de normas”. Ao lado da variedade culta

efetivamente praticada pelos falantes brasileiros (uma variedade real e

endógena, resultante da dinâmica histórica da nossa sociedade), passamos

a ter uma variedade culta importada (exógena) que não combina com o

nosso senso linguístico, mas que nos tem sido imposta por um discurso

pseudopurista que contamina, em particular, o sistema escolar e o

imaginário cultivado pela mídia sobre a língua portuguesa do Brasil.

Vivemos, então, há século e meio, um tormentoso conflito

linguístico entre o real e o artificial, entre o efetivamente praticado e o

equivocadamente idealizado. E esse conflito se reproduz na maioria das

nossas gramáticas e nos nossos principais dicionários.

Alguns desses instrumentos normativos tendem a ignorar ou

chegam mesmo a condenar fatos normais da variedade culta brasileira,

ainda que fartamente abonados pelo uso de nossos melhores escritores,

como casos de regência verbal (em especial os verbos que

tradicionalmente se constroem com complementos indiretos, regidos pela

preposição „a‟, e que, modernamente e com o mesmo sentido, se

constroem também com complementos diretos. Estão nessa classe verbos

como „assistir‟, „atender‟, „aspirar‟, „visar‟, „obedecer‟. E há também os

verbos que passaram por um processo contrário: eram transitivos diretos

e se tornaram, sem mudança de sentido, transitivos indiretos como

„implicar‟ e „namorar‟ – ao lado da construção tradicional “a decisão

implica prejuízo”, “Maria está namorando Pedro”, temos hoje as

construções com complemento preposicionado “a decisão implica em

prejuízo”, “Maria está namorando com Pedro”).

Outros instrumentos normativos acolhem estes fatos, mas apenas

timidamente, isto é, reconhecem que são de uso corrente na variedade

formal brasileira, mas inexplicavelmente (e paradoxalmente)

recomendam que não sejam usados (ainda que abonados por escritores

1 É importante deixar claro, neste ponto, o sentido com que o adjetivo culto é

empregado nessas expressões. Ele apenas qualifica (sem qualquer outra conotação) as

variedades linguísticas que são costumeiramente usadas em situações mais

monitoradas (formais, portanto), na fala ou na escrita, pelos falantes plenamente

escolarizados e familiarizados com a cultura letrada.

Page 4: Carlos Alberto Faraco “Modalidade escrita formal”

4

consagrados).

Há também curiosas contradições na apresentação de certos fatos.

Por exemplo, as mesmas regras de colocação de pronomes átonos ora são

arroladas como “obrigatórias”, ora como “preferenciais”. No frigir dos

ovos, ficamos sem saber se somos obrigados a determinadas colocações

ou se podemos escolher seguir ou não certas tendências preferenciais.

Diante desse quadro, como avaliar o uso da modalidade escrita

formal da língua portuguesa nas redações do ENEM?

O Guia do Participante do ENEM 2013 lista as seguintes

propriedades como identificadoras da modalidade escrita formal da

língua:

ausência de marcas de oralidade e de registro informal;

precisão vocabular;

obediência às regras gramaticais de

concordância nominal e verbal;

regência nominal e verbal;

pontuação;

flexão de nomes e verbos;

colocação de pronomes oblíquos (átonos e

tônicos);

grafia das palavras (inclusive acentuação gráfica e

emprego de letras maiúsculas e minúsculas);

e divisão silábica na mudança de linha

(translineação).

Essa lista pode, claro, auxiliar os avaliadores, delimitando aspectos

que merecem especial atenção. Sabemos, por exemplo, que a

concordância verbal é a área em que existem as diferenças mais salientes

entre as diversas variedades da língua falada, bem como entre a fala culta

e a escrita culta.

No entanto, os avaliadores precisam estar conscientes de que nem

tudo está claramente pacificado em vários desses tópicos nos principais e

mais abalizados instrumentos normativos de que dispomos.

As questões ortográficas são, em princípio, as mais pacificadas. A

grafia das palavras raramente varia e não há pontos controversos quanto à

acentuação gráfica e à translineação.

Page 5: Carlos Alberto Faraco “Modalidade escrita formal”

5

Há as dificuldades próprias da ortografia do português, que

combina transparência fonológica (regularidades e previsibilidade,

portanto) e memória etimológica (característica responsável por

diferentes tipos de irregularidades e imprevisibilidade).

Dessa face irregular e imprevisível decorre o fato de que mesmo

pessoas altamente letradas e já maduras na prática da escrita não têm

segurança ortográfica absoluta: pela vida afora têm dúvidas e cometem

eventualmente pequenos lapsos ortográficos. Por isso, os critérios de

avaliação do ENEM admitem que redações com escassos e

insignificantes lapsos de ortografia possam receber pontuação máxima na

competência 1.

Quanto à ortografia há um outro aspecto que não pode escapar da

atenção dos avaliadores: duas ortografias estão em vigor no Brasil até

2016 – a do Formulário Ortográfico de 1943 e a do Acordo Ortográfico

de 1990. Embora as diferenças sejam poucas, esse fato tem implicações

para o processo de avaliação das redações.

Em princípio, os candidatos podem escolher a ortografia que vão

utilizar. Contudo, em nenhum lugar se diz que eles devem seguir

consistentemente a ortografia escolhida. Assim, penso que não podem

perder pontos se usarem em sua redação ora esta, ora aquela ortografia.

Por exemplo, se usarem trema na primeira ocorrência de uma palavra

(“cinqüenta”) e deixarem de usar nas demais ( “cinquenta”).

O mesmo problema afeta o uso de letras maiúsculas. Não só

variam as regras entre as duas ortografias, como há também casos

obrigatórios pelo Formulário de 1943 e que são facultativos pelo Acordo

de 1990. Talvez o mais adequado aqui seja restringir a avaliação às

maiúsculas iniciais de período e as maiúsculas em nomes próprios de

qualquer natureza, deixando os demais casos como facultativos.

Mas a situação alcança níveis angustiosos no caso do emprego do

hífen nas palavras compostas e nas formações por prefixação,

recomposição e sufixação.

Este sempre foi o ponto mais mal regrado de nossa ortografia em

toda a sua história. Embora o Acordo de 1990 tenha tentado racionalizar

seu uso, estão em vigor, somando as regras de 1943 com as de 1990, um

total de 43 regras (afora ainda algumas exceções introduzidas pelo

Acordo como caixa-d’água, cor-de-rosa e pé-de-meia, entre outras), com

o agravante de que regras de 1990 propõem algumas soluções opostas às

de 1943.

Nem o mais letrado dos falantes consegue dominar essa balbúrdia

da nossa ortografia, mesmo considerando que algumas das 43 regras

coincidem nas duas ortografias. Por isso, proponho que o uso do hífen

nas palavras compostas e nas formações por prefixação, recomposição e

sufixação seja inteiramente desconsiderado na avaliação das redações.

Page 6: Carlos Alberto Faraco “Modalidade escrita formal”

6

Indo agora para os tópicos de morfologia e sintaxe, é preciso ter

consciência de que, se há relativo consenso quanto à flexão dos verbos e

nomes, e quanto a boa parte das regras de concordância verbal e nominal,

há, como comentamos anteriormente, conflitos e contradições entre

nossas melhores gramáticas e nossos principais dicionários quando o

assunto é, por exemplo (e entre outros tópicos), a colocação de pronomes

oblíquos e a regência verbal. Além de juízos divergentes sobre fatos de

regência verbal, não podemos esquecer que ela tem implicações diretas

para o uso do sinal de crase (“assistiu às aulas/ as aulas”) e para a

ocorrência de preposição antecedendo o pronome relativo nas orações

adjetivas (“o jogo a que assisti/ o jogo que assisti”).

Diante desse quadro de incertezas, parece que o primeiro cuidado

dos avaliadores deve ser de cautela. Estar ciente dos conflitos e

contradições é fundamental para não procedermos injustamente,

avaliando como “erro” o que não é “erro”. Talvez o caminho melhor seja

deixar que nossa intuição de falantes letrados paute nosso julgamento –

que nossa intuição de falantes letrados valha muito mais que regras muito

rígidas e artificiais.

Enquanto não tivermos descrições consensuais de todos os fatos

cultos, proponho que adotemos um olhar mais holístico e não

excessivamente pontual. Se não existir efetivo conflito entre o uso que os

candidatos fazem e nosso senso linguístico de falantes letrados é porque o

fato linguístico em questão pertence à modalidade escrita formal da

língua contemporânea do Brasil.

Talvez, com o andar da carruagem, devamos propor a elaboração

de um Guia Normativo atualizado, que aproveite todo o saber já

acumulado quanto à norma culta brasileira real (falada e escrita) e que

sirva de referência para o ENEM e, por consequência, para o ensino de

português nas nossas escolas.

Por fim, é fundamental, na análise das redações, não perder jamais

de vista que estamos avaliando a formação básica de um jovem de 17/18

anos que é solicitado a escrever um texto num espaço de tempo

relativamente curto, sob a tensão própria dos exames e sem acesso aos

instrumentos de que normalmente se utiliza quem escreve (dicionários e

prontuários gramaticais).

Mas que fique bem claro o seguinte: não há aqui, nestas propostas,

nenhuma liberalidade, mas apenas um profundo senso de realidade.

Diante das questões não pacificadas quanto a seu pertencimento à

modalidade escrita formal da língua portuguesa contemporânea do Brasil,

é preciso ter muita cautela e bom senso na avaliação da redação de um

aluno concluinte do Ensino Médio para não perdermos o norte do que é

razoável.