ENSAIO - Bakhtin - a invasao silenciosa e a má-leitura (FARACO 1988)
Carlos Alberto Faraco “Modalidade escrita formal”
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Considerações sobre a competência 1 – “Demonstrar domínio da
modalidade escrita formal da língua portuguesa”
Carlos Alberto Faraco (UFPR)
Na prova de redação do ENEM, pede-se aos candidatos que
escrevam “um texto em prosa do tipo dissertativo-argumentativo sobre
um tema de ordem social, científica, cultural ou política”.
Essa caracterização do texto a ser produzido busca situar os
candidatos no vasto mundo dos gêneros de discurso, eliminando, pela
delimitação, inumeráveis outras possibilidades.
Orienta esse recorte um determinado delineamento do perfil que
devem ter os concluintes da Educação Básica sobre o qual há, certamente,
um relativo consenso. Em linhas gerais, espera-se que, em língua
portuguesa, eles estejam aptos a ler e compreender um texto de mediana
complexidade; e de escrever um texto legível (coerente e claro),
adequado às características de um determinado gênero de amplo uso
social (informativo ou argumentativo) e que corresponda – quando for o
caso – às expectativas socioculturais que recobrem a modalidade escrita
formal da língua (sua adequação ortográfica e léxico-gramatical).
Dentre as várias possibilidades para avaliar esta última
competência, escolheu-se a produção de um texto dissertativo-
argumentativo sobre um tema de ordem social, científica, cultural ou
política.
Não é aleatória essa escolha. Atrás dela está o pressuposto de que
qualquer cidadão, numa sociedade democrática, deve ser capaz de
defender uma opinião, uma tese, um ponto de vista sobre um tema de
interesse geral com argumentos consistentes. E, além disso, deve ser
capaz de organizar esses argumentos coerente e coesamente de modo a
formar uma unidade textual escrita.
Acrescenta-se, como exigência, que o texto seja redigido de acordo
com a modalidade escrita formal da língua portuguesa. De novo, faz-se
um recorte no vasto mundo das variedades constitutivas da língua,
eliminando, pela delimitação, inúmeras outras possibilidades.
Com essa exigência, situa-se o texto a ser produzido num contexto
de formalidade. Ou seja, os candidatos devem assumir como destinatário
um público amplo – distante, portanto, do seu círculo de relações
próximas.
Esse virtual destinatário não aparece explicitado em nenhum ponto
dos documentos do ENEM ou da prova de redação. Contudo, está
implícito na própria exigência quanto à modalidade a ser empregada.
Quando o destinatário não pertence ao círculo das relações
próximas de quem escreve, há uma expectativa social (construída
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historicamente) de que se use uma variedade linguística mais monitorada.
Face a essa expectativa social, tem-se como certo que a escola
básica deve garantir a seus concluintes o domínio dessa variedade
linguística, chamada, nos documentos do ENEM, de modalidade escrita
formal da língua portuguesa. E, por isso, exige-se, na prova de redação,
que os candidatos façam a devida adequação de sua expressão linguística.
Avaliar o domínio dessa modalidade deveria ser, em tese, um
processo relativamente tranquilo – bastaria verificar o grau de adequação
da expressão linguística de cada redação às características do uso
socialmente corrente em textos da mesma natureza.
Contudo, temos algumas pedras no meio do caminho. Não existe –
seja entre os especialistas, seja entre os instrumentos normativos mais
abalizados (dicionários e gramáticas) – um consenso razoável sobre as
características da modalidade escrita formal da língua portuguesa
contemporânea em efetivo uso no Brasil,
Essa situação tem uma causa histórica. Quando, no século 19, o
Brasil se tornou independente politicamente, nossos escritores românticos
(em especial Gonçalves Dias e José de Alencar) defenderam que
adotássemos como quadro de referência para as nossas práticas de escrita
a variedade da língua portuguesa falada correntemente pelos letrados
brasileiros em situações formais.
Em outras palavras, deveríamos adotar como modelo para a escrita
monitorada as características léxico-gramaticais comuns (normais) na fala
culta brasileira. Ou seja, o projeto deles era estabelecer uma norma para a
escrita brasileira tendo como parâmetro a norma da fala dos segmentos
letrados da população.
O termo norma aqui está tomado no seu sentido técnico: refere-se
ao conjunto de características linguísticas de uso corrente, costumeiro,
habitual (normal) num determinado grupo de falantes.
Por ser de uso normal, esse conjunto de características linguísticas
identifica os membros do grupo e acaba por ser de regra (por ser norma)
em seu comportamento; tem, portanto, um determinado caráter normativo
– o normal normatiza; o normal dá o parâmetro para a ação. Ou, como
dizia o grande pedagogo romano, Marco Fábio Quintiliano, no primeiro
século da nossa era, o uso culto é o melhor mestre da fala e da escrita
culta.
No fundo, o que os intelectuais românticos defendiam era que o
processo de constituição de nossa modalidade escrita formal (de nossa
norma culta escrita) reproduzisse o que tinha ocorrido nas sociedades
europeias. Nelas, a variedade linguística que se consolidou como norma
nas práticas de escrita formais se calcou na variedade linguística usada
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nas práticas de fala formais (na norma culta falada).1
No nosso país, no entanto, houve uma forte resistência à proposta
dos escritores românticos. Segmentos sociais mais conservadores,
idealizando o Brasil como uma sociedade branca e europeia (virando as
costas para o país real, portanto) se opuseram ao abrasileiramento da
nossa expressão escrita e defenderam que imitássemos estritamente a
variedade usada pelos escritores românticos portugueses.
O resultado desse embate foi o surgimento, entre nós, do fenômeno
que o filólogo Celso Cunha (em seu artigo “Política e cultura do idioma”)
veio a chamar de “dualismo de normas”. Ao lado da variedade culta
efetivamente praticada pelos falantes brasileiros (uma variedade real e
endógena, resultante da dinâmica histórica da nossa sociedade), passamos
a ter uma variedade culta importada (exógena) que não combina com o
nosso senso linguístico, mas que nos tem sido imposta por um discurso
pseudopurista que contamina, em particular, o sistema escolar e o
imaginário cultivado pela mídia sobre a língua portuguesa do Brasil.
Vivemos, então, há século e meio, um tormentoso conflito
linguístico entre o real e o artificial, entre o efetivamente praticado e o
equivocadamente idealizado. E esse conflito se reproduz na maioria das
nossas gramáticas e nos nossos principais dicionários.
Alguns desses instrumentos normativos tendem a ignorar ou
chegam mesmo a condenar fatos normais da variedade culta brasileira,
ainda que fartamente abonados pelo uso de nossos melhores escritores,
como casos de regência verbal (em especial os verbos que
tradicionalmente se constroem com complementos indiretos, regidos pela
preposição „a‟, e que, modernamente e com o mesmo sentido, se
constroem também com complementos diretos. Estão nessa classe verbos
como „assistir‟, „atender‟, „aspirar‟, „visar‟, „obedecer‟. E há também os
verbos que passaram por um processo contrário: eram transitivos diretos
e se tornaram, sem mudança de sentido, transitivos indiretos como
„implicar‟ e „namorar‟ – ao lado da construção tradicional “a decisão
implica prejuízo”, “Maria está namorando Pedro”, temos hoje as
construções com complemento preposicionado “a decisão implica em
prejuízo”, “Maria está namorando com Pedro”).
Outros instrumentos normativos acolhem estes fatos, mas apenas
timidamente, isto é, reconhecem que são de uso corrente na variedade
formal brasileira, mas inexplicavelmente (e paradoxalmente)
recomendam que não sejam usados (ainda que abonados por escritores
1 É importante deixar claro, neste ponto, o sentido com que o adjetivo culto é
empregado nessas expressões. Ele apenas qualifica (sem qualquer outra conotação) as
variedades linguísticas que são costumeiramente usadas em situações mais
monitoradas (formais, portanto), na fala ou na escrita, pelos falantes plenamente
escolarizados e familiarizados com a cultura letrada.
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consagrados).
Há também curiosas contradições na apresentação de certos fatos.
Por exemplo, as mesmas regras de colocação de pronomes átonos ora são
arroladas como “obrigatórias”, ora como “preferenciais”. No frigir dos
ovos, ficamos sem saber se somos obrigados a determinadas colocações
ou se podemos escolher seguir ou não certas tendências preferenciais.
Diante desse quadro, como avaliar o uso da modalidade escrita
formal da língua portuguesa nas redações do ENEM?
O Guia do Participante do ENEM 2013 lista as seguintes
propriedades como identificadoras da modalidade escrita formal da
língua:
ausência de marcas de oralidade e de registro informal;
precisão vocabular;
obediência às regras gramaticais de
concordância nominal e verbal;
regência nominal e verbal;
pontuação;
flexão de nomes e verbos;
colocação de pronomes oblíquos (átonos e
tônicos);
grafia das palavras (inclusive acentuação gráfica e
emprego de letras maiúsculas e minúsculas);
e divisão silábica na mudança de linha
(translineação).
Essa lista pode, claro, auxiliar os avaliadores, delimitando aspectos
que merecem especial atenção. Sabemos, por exemplo, que a
concordância verbal é a área em que existem as diferenças mais salientes
entre as diversas variedades da língua falada, bem como entre a fala culta
e a escrita culta.
No entanto, os avaliadores precisam estar conscientes de que nem
tudo está claramente pacificado em vários desses tópicos nos principais e
mais abalizados instrumentos normativos de que dispomos.
As questões ortográficas são, em princípio, as mais pacificadas. A
grafia das palavras raramente varia e não há pontos controversos quanto à
acentuação gráfica e à translineação.
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Há as dificuldades próprias da ortografia do português, que
combina transparência fonológica (regularidades e previsibilidade,
portanto) e memória etimológica (característica responsável por
diferentes tipos de irregularidades e imprevisibilidade).
Dessa face irregular e imprevisível decorre o fato de que mesmo
pessoas altamente letradas e já maduras na prática da escrita não têm
segurança ortográfica absoluta: pela vida afora têm dúvidas e cometem
eventualmente pequenos lapsos ortográficos. Por isso, os critérios de
avaliação do ENEM admitem que redações com escassos e
insignificantes lapsos de ortografia possam receber pontuação máxima na
competência 1.
Quanto à ortografia há um outro aspecto que não pode escapar da
atenção dos avaliadores: duas ortografias estão em vigor no Brasil até
2016 – a do Formulário Ortográfico de 1943 e a do Acordo Ortográfico
de 1990. Embora as diferenças sejam poucas, esse fato tem implicações
para o processo de avaliação das redações.
Em princípio, os candidatos podem escolher a ortografia que vão
utilizar. Contudo, em nenhum lugar se diz que eles devem seguir
consistentemente a ortografia escolhida. Assim, penso que não podem
perder pontos se usarem em sua redação ora esta, ora aquela ortografia.
Por exemplo, se usarem trema na primeira ocorrência de uma palavra
(“cinqüenta”) e deixarem de usar nas demais ( “cinquenta”).
O mesmo problema afeta o uso de letras maiúsculas. Não só
variam as regras entre as duas ortografias, como há também casos
obrigatórios pelo Formulário de 1943 e que são facultativos pelo Acordo
de 1990. Talvez o mais adequado aqui seja restringir a avaliação às
maiúsculas iniciais de período e as maiúsculas em nomes próprios de
qualquer natureza, deixando os demais casos como facultativos.
Mas a situação alcança níveis angustiosos no caso do emprego do
hífen nas palavras compostas e nas formações por prefixação,
recomposição e sufixação.
Este sempre foi o ponto mais mal regrado de nossa ortografia em
toda a sua história. Embora o Acordo de 1990 tenha tentado racionalizar
seu uso, estão em vigor, somando as regras de 1943 com as de 1990, um
total de 43 regras (afora ainda algumas exceções introduzidas pelo
Acordo como caixa-d’água, cor-de-rosa e pé-de-meia, entre outras), com
o agravante de que regras de 1990 propõem algumas soluções opostas às
de 1943.
Nem o mais letrado dos falantes consegue dominar essa balbúrdia
da nossa ortografia, mesmo considerando que algumas das 43 regras
coincidem nas duas ortografias. Por isso, proponho que o uso do hífen
nas palavras compostas e nas formações por prefixação, recomposição e
sufixação seja inteiramente desconsiderado na avaliação das redações.
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Indo agora para os tópicos de morfologia e sintaxe, é preciso ter
consciência de que, se há relativo consenso quanto à flexão dos verbos e
nomes, e quanto a boa parte das regras de concordância verbal e nominal,
há, como comentamos anteriormente, conflitos e contradições entre
nossas melhores gramáticas e nossos principais dicionários quando o
assunto é, por exemplo (e entre outros tópicos), a colocação de pronomes
oblíquos e a regência verbal. Além de juízos divergentes sobre fatos de
regência verbal, não podemos esquecer que ela tem implicações diretas
para o uso do sinal de crase (“assistiu às aulas/ as aulas”) e para a
ocorrência de preposição antecedendo o pronome relativo nas orações
adjetivas (“o jogo a que assisti/ o jogo que assisti”).
Diante desse quadro de incertezas, parece que o primeiro cuidado
dos avaliadores deve ser de cautela. Estar ciente dos conflitos e
contradições é fundamental para não procedermos injustamente,
avaliando como “erro” o que não é “erro”. Talvez o caminho melhor seja
deixar que nossa intuição de falantes letrados paute nosso julgamento –
que nossa intuição de falantes letrados valha muito mais que regras muito
rígidas e artificiais.
Enquanto não tivermos descrições consensuais de todos os fatos
cultos, proponho que adotemos um olhar mais holístico e não
excessivamente pontual. Se não existir efetivo conflito entre o uso que os
candidatos fazem e nosso senso linguístico de falantes letrados é porque o
fato linguístico em questão pertence à modalidade escrita formal da
língua contemporânea do Brasil.
Talvez, com o andar da carruagem, devamos propor a elaboração
de um Guia Normativo atualizado, que aproveite todo o saber já
acumulado quanto à norma culta brasileira real (falada e escrita) e que
sirva de referência para o ENEM e, por consequência, para o ensino de
português nas nossas escolas.
Por fim, é fundamental, na análise das redações, não perder jamais
de vista que estamos avaliando a formação básica de um jovem de 17/18
anos que é solicitado a escrever um texto num espaço de tempo
relativamente curto, sob a tensão própria dos exames e sem acesso aos
instrumentos de que normalmente se utiliza quem escreve (dicionários e
prontuários gramaticais).
Mas que fique bem claro o seguinte: não há aqui, nestas propostas,
nenhuma liberalidade, mas apenas um profundo senso de realidade.
Diante das questões não pacificadas quanto a seu pertencimento à
modalidade escrita formal da língua portuguesa contemporânea do Brasil,
é preciso ter muita cautela e bom senso na avaliação da redação de um
aluno concluinte do Ensino Médio para não perdermos o norte do que é
razoável.