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Liberalismo

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    IDEOLOGIA LIBERAL E MOVIMENTOS SOCIAIS:QUEM CIDADO?

    Wilson Francisco Correia1 e Camila Queiroz Capuzzo2

    Resumo:Este artigo enfoca a relao entre cidadania, movimentos sociais e educao. Testa asmodernas concepes de cidadania com a noo que os movimentos sociais tmdesse termo. Demonstra que se ambas assumem a educao como fator importante construo da cidadania, elas divergem naquilo que entendem ser a condio cidad.Enquanto as teorias modernas privilegiam o individualismo do sujeito racional,moralmente autnomo, politicamente emancipado, livre, igual e proprietrio, osmovimentos sociais afirmam o sujeito que vive em plenitude com os processos coletivosno mbito da produo material da vida, na sociabilidade e na produo cultural.Realizado segundo as regras da pesquisa bibliogrfica, por meio das tcnicas da coletae registro, anlise e sntese de dados tericos, o trabalho procura afirmar a tese de queo conceito de cidadania coletiva dos movimentos sociais intenta recusar a negao dacidadania existente nas sociedades liberais modernas. Sugere que um conceito amerecer ateno o que expressa a idia de cidadania como participao ativa naproduo e apropriao de bens materiais, sociais e simblico-culturais.

    Palavras-chave: filosofia, escola, emancipao, excluso, incluso.

    LIBERAL IDEOLOGY AND SOCIAL MOVIMENTOS: WHO ISCITIZEN?

    Abstract:This article focuses on relation between citizenship, social movements and education.It tests the modern conceptions of citizenship with the notion that the social movementshave about this term. It demonstrates that if both assume the education as importantfactor for the construction of the citizenship, then they diverge in what they understandas being the c citizen ondition. While the modern theories privilege the individualismof the rational citizen, morally independent, emancipated politically, free, equal andproprietor, the social movements affirm the citizen that lives in fullness with thecollective processes, in the scope of the material production of the life, in the sociabilityand the cultural production. This work was carried through according to rules of thebibliographic research, by means of the techniques of the collection and record, analysisand synthesis of theoretical data, with the objective of confirm the thesis that theconcept of collective citizenship of the social movements attempt to refuse the negationof the existing citizenship in the modern liberal societies. It suggests that a conceptthat deserves attention is what expresses the idea of citizenship as active participationin the production and appropriation of corporeal properties, social and symbolic-cultural.

    1 Pesquisador do grupo PAIDIA. [email protected] Advogada, ps-graduada em Direito Tributrio pela UCB e em Direito Pblico pela FESURV, comMBA em Direito Empresarial pela FGV. [email protected]

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    Key words: philosophy, school, emancipation, exclusion, inclusion.

    Introduo

    Entre ns, formas variadas de discriminao, de segregao e mesmo deexcluso so um fenmeno antigo, parte constitutiva de nossa histria.Alm de atravessar nosso passado, a matriz escravista de nossasociedade est ainda presente no cotidiano brasileiro (FONTES, 2001, p.118). Historicamente a relao movimentos sociais-educao tem umelemento de unio, que a questo da cidadania (GOHN, 1992, p. 11).

    Nem sempre o conceito de cidadania se realiza nas prticas sociaiscontemporneas. Desde a Revoluo Francesa, quando formulado paraqualificar como igual, livre e proprietrio o burgus em ascenso poltica,econmica e cultural, o termo sofre constantes mutaes, variando conformeos interesses em jogo e a ideologia que o justifica. Por isso faz-se necessria ainvestigao no sentido de estabelecer a compreenso desse vocbulo, umavez que perceber o que cidadania torna-se um ato decisivo ao entendimentodas razes pelas quais os movimentos sociais trabalham com a idia de que aescola integra o conjunto de bens indispensveis realizao da condio cidad.

    Do ponto de vista da ideologia liberal, ora a cidadania compreendida comoexpresso de emancipao poltica e de autonomia moral do indivduoracionalizado, ora nomeada como idia legtima argumentao a favor danecessidade de se elaborar estratgias voltadas para o controle social, oadestramento do trabalhador e at para fomentar a cooperao, segundo o quese entende por solidariedade nas sociedades capitalistas.

    Todas essas acepes tm sido mobilizadas ao nvel terico como finalidadesprecpuas da prtica educativa. Entretanto, o que digno de nota o fato deque, alm de ser fundado em uma concepo individualista, o conceito modernode cidadania, como componente da ideologia liberal, quase sempre se presta anegar aquilo que preconiza: a condio cidad.

    Com uma postura que se contrape a essa noo, os movimentos sociaisconcebem a cidadania como conquista e vivncia de direitos sociais capazesde potencializar a sociabilidade ativa, especialmente no que concerne s

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    produes materiais, sociais e culturais da existncia, indispensveis salvaguarda da insero na qualidade de vida, na pragmtica poltica da cidadee na dignidade da pessoa humana.

    Ao que parece, a concretizao do senso de pertencer ao conjunto dosseres humanos citadinos seria o objetivo maior dessa reivindicao, o qualpossibilitaria a vivncia dialtica e em p de igualdade entre o individual e ogrupal, o particular e o geral, o local e o global, o singular e o universal. Assim,o indivduo seria o sujeito que, por ser parte do corpo poltico, participaria datarefa coletiva de dirigir os destinos da plis.

    Nesse contexto, a noo de educao aparece no como processo deracionalizao, desenvolvimento cognitivo, disciplinamento e moralizao doindivduo, mas com o sentido de formao do sujeito poltico que possa sesentir de fato um agente portador de poder, que o instaura, o exercita, o coordenae o avalia. Mas, o que implica a operacionalizao desse conceito, diferenciadodaquele que compe o iderio liberal?

    Essa a temtica, contextualizada e problematizada anteriormente, que sebusca aprofundar nesse texto, enfocando a relao trifactica entre movimentossociais, educao e cidadania. A finalidade deste artigo testar as modernasteorias da cidadania com a tese da condio cidad que produzida no mbitodos movimentos sociais, buscando demonstrar os encontros e desencontrosentre ambas.

    Com esse intuito, o processo metdico adotado nessa investigao o dapesquisa bibliogrfica. Ele compreende trs momentos interdependentes, a saber:a coleta sincrtica de dados tericos, a apurao analtica do material recolhidono momento precedente e a sntese crtico-discursiva do contedo. Essacomposio destinada a se tornar pea favorvel inteligibilidade do objetode estudo investigado, bem como ao fomento da participao em debates sobreo assunto, alm de poder ser utilizado como material de apoio na lide pedaggicacotidiana em ambientes escolares e acadmicos.

    Na tentativa de concretizar esses intentos, o trabalho se organiza em trspassos: o primeiro, dedicado abordagem relativa gnese do conceito decidadania, com nfase na modernidade; no segundo feita a tentativa de

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    compreender o que so os movimentos sociais, com destaque para as relaes

    com as instncias oficiais do Estado; e o terceiro voltado para a busca deaproximao perceptiva da articulao entre movimentos sociais, educao ecidadania, dando nfase diferenciao entre os objetivos individualistas e asreivindicaes coletivas dos segmentos que articulam as causas populares.

    Perpassa o texto a tese de que, para os movimentos sociais, a cidadaniatem sido motivo de luta contnua, algo a ser conquistado, e no uma ddiva doEstado ou de outras instncias da sociedade civil, instituies essas que quasesempre a negam s camadas populares de nosso pas, seja por meio demecanismos de controle e tutela, programas assistencialistas ou promoo deuma falsa emancipao.

    Por fim, o trabalho tambm assinala que a idia de cidadania coletiva temsido tomada como um dos motivos para a arregimentao de foras necessriasao enfrentamento de bandeiras de lutas coletivas, busca de objetivos comunse ao estabelecimento de projetos participativos, levadas a efeito para concretizaraspiraes grupais, notadamente de liberdade conjunta e estilo existencialcompartilhado.

    Cidadania: entre conceitos e ideologias

    Desde Aristteles, recorrente na cultura ocidental a idia de que o serhumano um animal poltico, destinado vida na cidade, onde encontra condiespara viver bem. Desse modo, o cidado o sujeito que se insere na vida urbanaativa, de maneira a pertencer ao conjunto dos indivduos que formam o corpopoltico responsvel pela administrao do coletivo civilizado (ARISTTELES,1997). Entretanto, quem pode ser considerado membro legtimo do grupo polticoque comanda os destinos da plis? Essa parece ser a questo que, desde osgregos antigos, est colocada apreciao de quem estuda o tema em pauta.

    Por isso, ao longo da histria, emergem outros entendimentos acerca doque seja a cidadania, uma vez que o assunto nunca deixou de ser objeto depreocupao de estudiosos e pensadores diversos. A cada nova re-elaborao

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    do conceito, diferentes matizes sociais, polticos, econmicos e simblicos vosendo captados pela formulao conceitual com uns e outros, refletindo oscomponentes ideolgicos assumidos e defendidos por quem os prope.

    Uma dessas re-elaboraes surge durante a Revoluo Francesa, em 1789,e ganha forma na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, odocumento que o lugar simblico onde acontece a gnese da noo modernade cidadania e no qual o velho senhor feudal cede espao ao cidado daRepblica, conforme Buffa (1999). nesse momento que se consagra a idiado cidado como homem livre, igual e, sobretudo, proprietrio.

    A partir de ento, a burguesia cria um paradoxo relativo ao conceito decidadania: por um lado, expressa a idia de que ela deve ser universal, paratodos; por outro, restringe a fruio da condio cidad ao homem livre, igual,proprietrio, no muito diferente daquilo que os gregos antigos aconselhavam,na teoria e na prtica. E, ao que parece, pelo menos em nvel ideolgico, oconceito propalado, e do qual ainda se lana mo em nossos dias, aquele como significado que a burguesia lhe d na primeira acepo, ainda que suarealizao continue destinada a quem se insere ativamente na ordem do ter.

    Foi esse posicionamento poltico-ideolgico que demandou justificativas naperspectiva conceitual, as quais podem ser encontradas em pensadores alinhadoss exigncias da burguesia, ento em vias de se consolidar como classe detentorade poder econmico, poltico, cultural e miditico. A tarefa desses tericos,filiados s mais variadas reas do saber, era responder pergunta: quem ocidado?

    Segundo o filsofo Locke (1973), por exemplo, o cidado o proprietrio.Ocorre que, alm da propriedade da terra e das criaturas inferiores, o homem dono absoluto de sua pessoa, de si mesmo, do prprio corpo e do fruto dotrabalho que resulta do emprego de suas foras fsica e mental. pelo trabalhoque ele adquire e exerce a possibilidade de se apropriar dos diferentes tipos debens, visando elevar-se condio de proprietrio, inclusive por meio do hbitode economizar.

    Ora, esse raciocnio de Locke fundamental consolidao de uma novanoo de propriedade privada, em desenvolvimento desde os comeos da

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    ascenso burguesa. Ele consiste no seguinte: se o trabalho possibilita a aquisioda propriedade privada, isso significa que terras e outras posses no sonaturalmente dadas s pessoas, como se acreditou ao longo de quase toda aIdade Mdia. Ele alcanado mediante a atividade produtiva, notadamentepor meio de dinheiro: quem tem com que pagar, compra e consume toda sortede mercadorias, inclusive terras.

    Desse modo, a antiga idia de direito natural propriedade vai sendosuperada, uma vez que a ordem feudal do Ancien Rgime3 passa a sofrersrias contestaes que faz com que ela seja transformada no sentido de perderaceitao, reconhecimento e legitimidade para que a nova ordem burguesapossa continuar em construo e consolidao. Entretanto, a naturalizao dodireito de propriedade no sepultada, pois outra maneira de reinvent-lacomea a ganhar os contornos exigidos pelos interesses burgueses.

    Com essa idia, Locke (1973) expressa um raciocnio formal ao modoaristotlico, o qual poderia ser formulado nos seguintes termos: todo homem proprietrio; o trabalhador homem; logo, o trabalhador proprietrio. Otrabalhador tem um corpo. Esse raciocnio lgico parece realizar uma operaoideolgica perversa, pelo fato de nivelar os proprietrios a um mnimo que indiferente s discrepncias que podem ser criadas desse ponto de partida emdiante e desenvolvidas ao lado do direito de acesso equitativo s riquezassocialmente produzidas, mas privadamente possudas. Nesse sentido, adesigualdade se realizaria dependendo da modalidade e da quantidade depropriedade privada que cada indivduo chega a ter. Porm, esse problema opensamento universalizante de Locke no consegue resolver.

    Diante disso, a pergunta a seguinte: ter um corpo condio suficientepara algum ser considerado cidado? Locke no est interessado em responderessa outra questo. Uma possvel resposta colocaria a olhos nus o teor ideolgicode seu discurso, sendo que tal lacuna destruiria pela raiz o seu modo de pensar.Dessa maneira, ele insiste na idia de que ser proprietrio um atributo universalda humanidade. Assim, ao elevar todo homem condio de proprietrio natural,

    1 Ancien Rgime: em francs o nome dado, na historiografia da Revoluo Francesa, ao regimepoltico vigente na Frana at aquele momento histrico.

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    de si mesmo e do produto do prprio trabalho, o filsofo ingls d umacentralidade nunca vista ao proprietrio, propriedade, ao domnio do ter.

    O assombroso feito de Locke foi basear o direito de propriedade nodireito natural e na lei natural, e depois remover todos os limites da leinatural do direito de propriedade. (...) E essa proposta exige, claramente,o postulado de que os homens tm direito natural propriedade, umdireito que antecede a existncia da sociedade e do governo(MACPHERSON, 1979, p. 207-208)

    Esse julgamento de Macpherson pode ser melhor compreendido ao serecorrer s palavras do prprio Locke, cuja filosofia poltica constitui-se emum dos pilares da ideologia burguesa, fundada no possessivismo, noindividualismo tico, na cultura narcsica e na prtica consumista, a sndromeda aquisio.

    Ele afirma:

    Se o homem no estado de natureza to livre (...), se senhor absolutoda sua prpria pessoa e posses, igual ao maior e a ningum sujeito, porque abrir ele mo dessa liberdade, por que abandonar o seu imprio esujeitar-se- ao domnio e controle de qualquer outro poder? Ao que bvio responder que, embora no estado de natureza tenha tal direito, afruio do mesmo muito incerta e est constantemente exposta invasode terceiros porque, sendo todos reis tanto quanto ele, todo homemigual a ele, na maior parte pouco observadores da eqidade e da justia,a fruio da propriedade que possui neste estado muito insegura,muito arriscada, embora livre, est cheia de temores e perigos constantes;e no sem razo que procura de boa vontade juntar-se em sociedadecom outros que esto j unidos, ou pretendem unir-se, para a mtuaconservao da vida, da liberdade e dos bens a que chamo depropriedade (LOCKE, 1973, p. 88).

    Nessa perspectiva, a propriedade se presta conservao da vida, daigualdade e da liberdade, valores quase estranhos s pessoas durante ofeudalismo. Por essa razo, segundo Hobsbawm (1996), as exigncias dohomem burgus, expressas na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidadode 1789, funcionou como um manifesto contra a sociedade feudal, fato queno significou a defesa de uma sociedade democrtica e igualitria. Se, por um

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    lado os homens nascem livres e iguais, como pude-se notar nas palavras deLocke (1973), por outro tambm so aceitas distines sociais, com nfasenas formas de ser proprietrio Segundo a Declarao, a propriedade umdireito natural, sagrado, inalienvel e inviolvel, o que convinha a uma oligarquiarural, a quem era mais interessante uma monarquia constitucional do que umarepblica democrtica. Por isso o burgus liberal clssico no era umdemocrata, mas, sim, um devoto do constitucionalismo, de um Estado secularcom liberdades civis e garantias para a empresa privada e de um governo decontribuintes e proprietrios (HOBSBAWM, 1996, p. 20).

    Ser naturalmente proprietrio significa encontrar o ponto de apoio para aidia de igualdade: se todos so proprietrios, ento todos so iguais. Lockeest afirmando que existe uma igualdade natural, inata, entre os homens, e isso o novo nesse momento histrico, a ruptura com o passado (BUFFA,1999, p. 17). Antes disso, com exceo da idia corrente em alguns setoresque afirmava a idia de que o homem filho de Deus, no havia um lastrosobre o qual assentar a igualdade humana. Da, as sociedades divididas emsenhor e escravo, ou servo, e em estados, como ocorreu no feudalismo,abertamente justificadas. Em Locke no, essas modalidades de desigualdadepassam a ser rechaadas: os homens no so mais naturalmente desiguais,como desde os gregos se entendia por toda parte.

    Nesse novo contexto, pelo fato de haver um atributo comum a todos oshomens, que os faz iguais e livres, no deve haver entre os eles sujeitos queso senhores e outros que se resignam a papis e lugares servis. Os proprietrios,iguais e livres, exercem essas qualidades por meio do ato de estabelecercontrato. Celebr-lo no um ato mecnico, mas a instaurao da autonomia,compreendida na idia de que o contrato faz a lei entre as partes. Ora, sealgum o estabelece, ento esse algum autnomo, pois ele elabora a lei quequer obedecer. No vale mais a idia de relaes sociais baseadas naheteronomia, seja ela de natureza religiosa, poltica ou jurdica, at entoconsiderada legtima. Quem pode o maior, pode o menor: se o homem primeiramente dono de si, como impedi-lo de fazer a lei que ele quer obedecer?

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    Essa capacidade de o indivduo criar a lei que quer seguir bsica s relaesassalariadas de produo. Como foi assinalado anteriormente, agora j no hmais lugar para o escravo ou para o servo, cujas relaes estavam previamentefundamentadas, justificadas e sacramentadas com base nos mais variadoscritrios. O tempo o do trabalhador livre, no sentido de que nada o impede deescolher a quem quer prestar seus servios, por quem quer ser explorado.Afinal, segundo esse juzo, seu corpo, sua energia, o produto do seu trabalholhe pertencem. E ele pode fazer o que bem entender desses bens por meio docontrato, como prevem os cdigos de leis.

    Percebe-se, pois, que a igualdade proposta pela burguesia primeiramente a igualdade na troca baseada no contrato de cidadoslivres e iguais e depois tambm a igualdade jurdica a lei igual paratodos e todos so iguais perante a lei. Sabe-se, hoje, que a igualdadejurdica esconde, na verdade, a desigualdade dos indivduos concretos:de um lado, o proprietrio privado; de outro, o trabalhador assalariado.Para o proprietrio privado, o livre contrato permite uma nova forma dedomnio social com o que subordina os demais a si mesmo. Para otrabalhador assalariado, esse mesmo livre contrato significa s uma novaforma de servido, pela qual se subordina ao outro (BUFFA, 1999, p. 18).

    Em face desses dados, uma anlise crtica evidencia que os trabalhadoresassalariados, entendidos pela ideologia burguesa como proprietrios, livres eiguais, em verdade no o so no plano concreto da vida. Seria absurdo admitircomo economicamente iguais o homem que detm os meios de produo e umoutro que possui apenas a capacidade de produzir. Por isso, o proprietrioprivado capitalista, que, em decorrncia da atividade produtiva, se apropria delucro, e no de salrio, esse tem formas variadas de alcanar a condio cidad,e o faz plenamente. De outro modo, ao trabalhador relegada uma cidadaniade segunda categoria. Veja porqu!

    Na relao assalariada de produo o trabalhador tem unicamente sua forade trabalho. A ferramenta j no lhe pertence, mas ao dono da empresa para oqual trabalha. Tambm no lhe prpria a viso sobre a totalidade do processoprodutivo, uma vez que se tornou trabalhador parcelar, que se especializa emuma funo e a executa sob o ritmo da mquina, qual se alinha em termos de

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    tempo, comportamento e modo de produzir. Produzida a mercadoria, ela tambmno lhe pertence, mas ao capitalista. Assim, resta-lhe as alternativas de sesujeitar ao mecanicismo da produo e de se deixar mecanicizar.

    A mquina iguala, novela todos os trabalhos. Os trabalhadores soiguais, pois para trabalhar com a mquina preciso possuir um mnimo jgarantido pelo fato de ser homem. No h mais segredos do ofcio, nemhierarquia, e assim a subordinao do trabalho ao capital no tem limites(BUFFA, 1999, p. 14).

    Dessa maneira, se sobra alguma igualdade ao trabalhador, ela se configurana mecanizao do corpo, do comportamento, da mente, padronizados peloritmo da produo mecnica, mbito produtivo do qual o capitalista nem semprefaz parte. E mesmo que se inclusse nesse critrio de igualdade, o proprietriodos meios de produo se tornaria desigual na hora de se apropriar dasmercadorias produzidas. Desse modo, a realidade desautoriza Locke, pois otrabalhador sequer tem domnio dos gestos produtivos que executa, dosmovimentos do prprio corpo. Esse trabalhador concreto, que se revela, naprtica efetiva cotidiana, apeado pelas cordas da alienao, da perda de simesmo em nome do modo material de produo da vida, pode ser consideradocidado?

    Essas indagaes mostram como as classes populares sob o capitalismopodem se encontrar em situaes de marginalizao e descompasso com modosmais elementares de fruir a cidadania, estado que pressupe a capacidade deagir com liberdade. Talvez seja em nome da tentativa de recusar a negao dacidadania que os movimentos sociais se formam, se consolidam e atuam emnossa sociedade.

    Buscando compreender os movimentos sociais

    Segundo Ricci (2005), em quem esse ponto se fundamenta, o conceito demovimentos sociais surge na Modernidade, quando se defende a criao deuma cincia da sociedade que se dedique ao estudo desses movimentos, em

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    especial, o do operariado francs e do socialismo. O tema se torna imperiosoante a novidade que eles passam a representar para as instituies pblicas,principalmente com o aparecimento de despossudos em pleno processo deindustrializao europia.

    Engels, por exemplo, ao fazer referncia s condies de vida de umanova classe social que passa a habitar os lugares perifricos dos espaos urbanos,escreve, em 1840:

    O mercado est instalado nas ruas: cestos de legumes e frutos, todosnaturalmente de m qualidade e dificilmente comestveis, ainda reduzema passagem, e deles emana, bem como dos talhos, um cheiro repugnante.As casas so habitadas das caves aos telhados, so to sujas no interiorcomo no exterior e tm um tal aspecto que ningum a desejaria habitar.Mas isto ainda no nada ao p dos alojamentos nos ptios e vielastransversais onde se chega atravs de passagens cobertas, e onde asujidade e a runa ultrapassam a imaginao; no se v, por assim dizer,um nico vidro inteiro, as paredes esto leprosas, os batentes das portase os caixilhos das janelas esto quebrados ou descolados, as portas quando as h so feitas de pranchas velhas pregadas juntas (...). aque habitam os mais pobres dos pobres, os trabalhadores mal pagos(...). Mas St Giles no o nico bairro miservel de Londres. Nestegigantesco labirinto de ruas, existem centenas de milhares de ruas eruelas estreitas, cujas casas so demasiado miserveis para quem querque possa ainda consagrar uma certa quantia a uma habitao humana...(ENGELS, 1975, p. 60).

    Motivados pela situao descrita acima, em fins do sculo XIX, vm luzalguns estudos sobre essa realidade, feitos por autoridades e intelectuaispreocupados em produzir conhecimento que os ajudasse a explicar a novaconfigurao social. desse modo que se produz o conceito de movimentossociais, como uma resposta desigualdade scio-econmica que j se faziasentir. A finalidade ltima desses estudos seria servir de base criao deestratgias de controle social, muito na idia de que se no possvel darcondies de acesso condio cidad plena, ento preciso manter a ordempor meio da dominao.

    Assim, no bojo dessas tentativas de compreender os novos fenmenos nombito social, surgem dois modos de abordar o assunto. O primeiro, uma

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    perspectiva da suspeio, expressa um entendimento negativo a respeito dosmovimentos sociais, tidos como manifestaes malficas de segmentos pobres,violentos e destrutivos. O segundo assume uma perspectiva legitimadora aocaptar o sentido positivo dos movimentos sociais, vendo neles o lugar autnticode reivindicaes que contingentes excludos da sociedade expressam comocondio de insero social ativa.

    J no sculo XX, pelo fato de os movimentos sociais no terem obtidorespostas positivas para suas demandas, parece que eles caram noconformismo. Com o esvaziamento da ao para a conquista de seus direitos,o Estado tornou-se o lugar legtimo onde a gesto pblica deveria serdesenvolvida no sentido de se especializar para fornecer atendimentoinstitucionalizado a quem estivesse margem da sociedade. Ento, o poderpblico buscou respostas estatais para as demandas dos movimentos sociais ese viu entre as possibilidades de cair no assistencialismo, ou de adotar polticassecuritrias para atender a quem precisasse de ajuda por motivos de acidente,doena ou velhice.

    Contudo, a poltica estatal de benefcios ento adotada como resposta aessa questo passou a garantir aos no-proprietrios o mnimo necessrio sobrevivncia. Nesse sentido, justificou-se a execuo de servios pblicoscom vistas constituio da propriedade coletiva e impessoal, sendo o Estadoo local privilegiado de gesto da coisa pblica. As conseqncias dessenorteamento foi o fortalecimento da relao indivduo-Estado, a qual levou desmobilizao dos grupos demandantes, fragmentando as reivindicaes queempunhavam, conformando-os burocracia estatal que se dividia em agnciasespecializadas.

    De todo modo, a estrutura burocrtica estatal pode ser entendida comoparte significativa dos movimentos sociais ao longo do sculo XX, apesar dasimbiose entre grupos reivindicantes e rgos estatais dedicados ao atendimentosocial. Esse tipo de relao anteriormente caracterizado fomentou duasmodalidades de aes por parte dos movimentos sociais: uma, reativa, motivadapela condio de marginalizao; outra, corporativa, assentada no clientelismo.assim, ocupando os espaos limtrofes da estrutura burocrtica estatal, os

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    movimentos sociais tiveram sua ao delineada pelas polticas de Estado, razopela qual reagem s prprias carncias de modo fragmentrio.

    Assim, agncias estatais e movimentos sociais mantm uma relaocaracterizada pela tenso, dado o visvel descompasso entre os objetivos deumas e de outros, sobretudo pelo fato de o Estado optar por uma prtica cujoescopo o controle e a tutela, renegando a participao por meio da aberturados rgos estatais afins. Por isso, estranhamento a palavra que melhorcaracteriza essa relao entre Estado e parte da sociedade civil ao longo dosculo XX. nesse perodo que acontece a tentativa de deslegitimar a aodos movimentos sociais, uma vez que reconhec-los implicaria admitir a inclusode grandes contingentes populacionais nas esferas de poder. Em vez disso,opta-se pela cooptao, notadamente por meio de polticas sociais de assistncia,sem falar da represso pela fora ou do convencimento pela ideologia.

    Nesse prisma, mesmo que os movimentos sociais tentassem alcanarlegitimidade para seus direitos, eles acabariam perdidos em meio a rgosburocrticos que os atendiam, comprometendo seu propsito de formulaogeral. E o impassse que surgiu nessas circunstncias se fez sentir no confrontode dois entendimentos: um, que via os movimentos sociais como corporativismo;outro, que os compreendia, principalmente os que emergiram na dcada de1980, como tentativa de institucionalizao de novos direitos, recriao daengenharia pblica e a configurao de uma nova sociedade civil.

    Na dcada de 1990, novos movimentos sociais comeam a se estruturarem todas as partes do Brasil, notadamente no meio rural. O critrio bsico dearticulao desses movimentos o territrio, secundarizando a carnciaespecfica que enfrentam. Com isso, passam a envolver amplos contingentespopulacionais, disseminando justificativas de uma nova institucionalidade pblicapor meio de fruns ou conselhos regionais de desenvolvimento e financiamentoautogerenciado.

    O lado positivo dessa relao que a prtica desses movimentos acaba porcontribuir para o estabelecimento de uma democratizao social e para orompimento de autoritarismos institucionais (SCHMUKLER apud RICCI,2005). Assim, ao adotarem prticas polticas inovadoras para ampliar espaos

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    de participao na formulao de polticas oficiais, eles alargam a noo degesto pblica e a projetam para alm do mbito meramente estatal. Ademais,esses movimentos agem com a finalidade de articular atores sociais diversos,fugindo da lgica corporativista. E, mediante a possibilidade de um novoprocesso de institucionalizao do espao pblico, h um posicionamento derelativa independncia ante o setor oficial, ocorrncia que traz certa autonomiaaos movimentos ao enfrentar o Estado.

    Nesse sentido, Riechmann e Buey (apud RICCI, 2005) caracterizam essesmovimentos como sendo de sobrevivncia e emancipao, pelo fato dedefenderem uma humanidade livre, justa e de autodefesa social contra aburocratizao e a mercantilizao da existncia, por privilegiarem os espaosda sociedade civil, colocando em segundo plano os espaos oficiais. Almdisso, esses movimentos so de orientao antimodernista, no sentido de nodefenderem as idias de progresso, perfectibilidade, felicidade, paz e realizaohumana plena, como se fez no interior do movimento iluminista dos sculosXVIII e XIX .

    Outras marcas que esses novos movimentos sociais apresentam so:composio social heterognea, busca da concretizao da mxima do pensarglobalmente e agir localmente, alm de exibirem uma estrutura organizacionaldescentralizada e anti-hierrquica, sem falar na politizao da vida cotidianade mbito privado e da ao coletiva no convencional como a desobedinciacivil, a resistncia passiva e a ao direta.

    Enfim, os novos movimentos sociais buscam ampliar a esfera pblica, visandoa integrao e reproduo social, com menos nfase em distribuio. Nessesentido, suas aes concorrem para a democratizao da sociedade, reforandoanseios por reforma institucional e democratizao da sociedade poltica. Emoutras palavras, a luta por transformaes no sentido da institucionalizao dedireitos o que resulta das aes dos novos movimentos sociais. Desse modo,eles estariam desempenhando aes efetivas na luta pela conquista da condiocidad, inclusive quando reivindicam melhores condies de escolarizao.

    Assim, a compreenso sobre o que sejam os movimentos sociais mostraque se trata de movimentos que se justificam por manterem bandeiras comuns

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    de reivindicaes, no embate contra o status quo, visando a instaurao deuma ordem social baseada em critrios que contribuam para a inseroeqitativa das classes populares na vida social ativa. Para tanto, sugerem umanova ordem na qual o Estado, em suas diferentes instncias, e as variadasinstituies sociais possam atuar no sentido de uma nova configurao de foras,a fim de contribuir para que, por meio da qualificao poltica, cultural e social,a cidadania coletiva seja uma possibilidade, e no uma quimera, ou instrumentoda retrica liberal.

    Cidadania coletiva: a escola como meditao

    Retomando a idia de cidadania surgida na Modernidade, parece certoque esse termo emerge na ideologia liberal como qualificativo existencial daqueleque tem direitos naturais inalienveis relativos liberdade, igualdade perante alei e direito propriedade. Alm disso, o cidado moderno aquele que tambmparticipa dos direitos da nao, compreendidos como soberania nacional eseparao dos poderes em executivo, legislativo e judicirio. A esse iderio sealinha, j no sculo XVIII, o sonho iluminista de universalizao da condiocidad, tal como inicialmente a burguesia havia proposto.

    Os iluministas, ao colocarem nfase na racionalidade ilustrada, entendendoque fazer histria implica o desenvolvimento do esprito por meio da autonomiada razo e da emancipao poltica, sem as quais no haveria salvaguarda daordem, do progresso, da felicidade e da paz universal, propem escola atarefa de atuar na conscincia do indivduo pela via da instruo. Dessa forma,a cidadania passa a ser uma questo educacional. Nesse sentido, instruirsignificava emancipar, formar o cidado (GOHN, 1992).

    Mas, entre os universalistas de tempos mais remotos, encontravam-se osniveladores, que, por paradoxal que seja, defendiam o direito de voto paratodos, mas excluam sistematicamente de suas propostas de sufrgio universaldois tipos de indivduos: os empregados assalariados e os mendigos(MACPHERSON, 1979).

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    Locke (1973), referido anteriormente, em que pese ser um universalistanuma determinada perspectiva, tambm entende que os operrios no podemfazer parte do corpo poltico, pois eles sequer tm e nem podem viver uma vidaracional. Ele no estava sozinho. Outros pensadores eminentes, como Diderot,entendiam que s os proprietrios podiam ser cidados, uma vez que apropriedade leva afeio coisa pblica, porque o proprietrio que seinteressa pela boa gesto do Estado (GOHN, 1992).

    Por isso, analisando essa questo, Arroyo considera o fato de essespensadores defenderem o confinamento do trabalhador no campo religioso.Essa idia motivada pela compreenso de que o trabalhador no proprietrio,nem sabe pensar, caracterstica que o conduz concluso de que, segundoesse pensamento que exclui e nega a cidadania aos trabalhadores, a maioria incapaz de pensar, precisa acreditar (ARROYO, 1999, p. 44).

    nessa direo que, medida que o capitalismo vai se consolidando, outrasacepes para o termo cidadania vo aparecendo. Num primeiro momento, aeducao reaparece como meio de controle social. Adam Smith, por exemplo,entende que a diviso do trabalho pressupunha a educao dos trabalhadores,os quais deveriam saber ler, contar e escrever. O povo educado seria ordeiro,submisso, livre de crendices e supersties. Da a cidadania passiva.

    Para os que pensavam sobre esse assunto na perspectiva da economia, opovo no era compreendido como sujeito poltico, diferentemente do quedefendiam os adeptos do Iluminismo. A vida econmica tinha precedncia nasmotivaes para educar: no era o caso de emancipar, mas de disciplinar corpose mentes para o trabalho, uma vez que o importante era a produo demercadorias.

    Observa-se, assim, que a noo de cidadania passa a se descaracterizarde sua concepo original clssica. Chega a neg-la, media que sereduz a ver o processo educativo para a cooperao ao bem comum.Passa a ter uma conotao eminentemente moral, como obrigao moral,de disciplinamento para o convvio social harmnico com os cidadossemelhantes (GOHN, 1992, p. 14).

    Assim, se na concepo iluminista a questo da cidadania estava associada

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    ao exerccio da racionalidade, emancipao poltica e autonomia moral, nosculo XIX ela emerge com nfase na dimenso poltica, entendida comomoralizao das massas para melhor control-las. Nesse contexto, educar erasinnimo de persuadir, esclarecer e moralizar. E nisso consistia a educaopara a cidadania.

    J no sculo XX, a tnica recai na questo dos direitos e deveres, mais nossegundos do que nos primeiros. E deveres para com o Estado, o interlocutoroficial da sociedade civil. E, com o objetivo de garantir que o indivduo cumpraseus deveres, o Estado toma a feio de organismo regulador. A cidadaniadeixa de ser conquista para ser uma concesso do Estado. Sob o neoliberalismo,que recrudesce ao longo do mesmo sculo XX, defendida a idia de cidadaniacomo exerccio da solidariedade e compartilhamento de interesses, o que d escola a tarefa de educar para a cooperao geral.

    Enfim, cidadania como emancipao universal, como controle social e comocooperao: esses so os trs modelos principais identificados nodesenvolvimento do conceito, em funo dos quais a escola deveria atuar.Entretanto, a quarta afirmao justamente a assumida e proposta pelosmovimentos sociais. Trata-se da cidadania coletiva, no individualista,contrariamente ao que a ideologia liberal vem defendendo por meio dasasseres anteriormente referidas. Ento, se objetiva formar para a cidadania,a escola precisa ser socialmente referenciada.

    Para a formulao desse ltimo entendimento, algumas caractersticas docapitalismo passam a ser criticamente consideradas, a saber: a dimenso daexpropriao, massificao, descompasso entre desenvolvimento tecnolgicoe desigualdade social, consumismo, desrespeito dignidade humana e gannciapelo lucro. tentando recusar a negao da cidadania que grupos de mulheresfavelados, moradores pobres juntam-se em torno de objetivos comuns e passama reivindicar seus direitos.

    Com isso, outros segmentos das camadas populares se organizam. ocaso dos grupos que lutam em prol da vida, sade, educao, moradia esaneamento bsico, tentando reverter a situao de espoliao scio-econmicaque lhes afetam. O que almejam garantir que a liberdade, a igualdade, a

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    justia e o direito sejam de fato canais de insero ativa na vida social. nessesentido que tambm atuam os grupos que lutam pela cidadania de negros,homossexuais, pela paz e em defesa da ecologia.

    Nesse sentido, a educao se destaca, na condio de um direito que parte do bem comum. Ela se constri no espao desses movimentos, eles prpriosde natureza formativa. A compreenso, nesse caso, a de que:

    A cidadania no se constri por decretos ou intervenes externas,programas ou agentes pr-configurados. Ela se constri como umprocesso interno no interior da prtica social em curso, como fruto doacmulo das experincias engendradas. A cidadania coletiva constitudade novos sujeitos histricos: as massas urbanas espoliadas e as camadasmdias expropriadas. A cidadania coletiva se constri no cotidianoatravs do processo de identidade poltico-cultural que as lutas cotidianasgeram (GOHN, 1992, p. 17).

    Nos movimentos sociais, essa noo de cidadania no admitidapassivamente, pois expressa a idia de que o cidado aquele que os liberaisconcebem: racional, moralmente autnomo e politicamente emancipado,controlado, submisso e solidrio. Mas, formar para a cidadania coletiva, noconcebida como um bem particular, ainda figura como um desafio. Tarefa queos movimentos sociais, com suas prticas coletivas, tm levado adiante. Nessadireo atuam os profissionais da educao que so comprometidos com umasociedade de direitos, e no com aquela que se concretiza segundo as regrasdo mercado. Todos, de um modo ou de outro, tentando preservar o bem comum(GOHN, 2003). nesse prisma que se justifica o ato educativo entendidocomo prtica social.

    Consideraes Finais

    recorrente a referncia democracia direta de Atenas, a cidade-estadogrega, como uma modalidade de exerccio poltico que privilegia a vivncia dacidadania. Porm, os iguais entre os gregos eram os homens, sobretudo oslivres, e que tinham posses. Apenas esses indivduos podiam ser cidados. A

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    democracia ateniense negava participao na gora s mulheres, aos menoresde idade, aos escravos e aos estrangeiros (RIBEIRO, 2001, p. 12).

    Pelo exposto nesse artigo, as transformaes por que passam o conceito decidadania ao longo da histria parece nunca deix-lo livre da matriz grega:sempre vai atrelar a capacidade de exerccio da cidadania a quem tem podereconmico, referenciado no conceito de cidadania universal que a ideologialiberal moderna assume.

    E, pelo fato de essa concepo de cidadania continuar legitimando a exclusode grandes contingentes populacionais da condio cidad, os movimentossociais reivindicam a cidadania coletivamente conquistada e socialmentereferenciada. Somente escola e educao no bastam para a formao dapessoa cidad. Ao contrrio do que dizem alguns segmentos liberais, educaono tudo. No mximo, contribui para a formao do cidado. Ao lado dela preciso que exista a democratizao econmica, poltica e cultural.

    Em outras palavras, o teste dos pressupostos sobre a condio cidaddelineado nas pginas anteriores demonstra as discrepncias gritantes entre osda ideologia liberal moderna e os que so propostos pelos movimentos sociais.Os primeiros privilegiam o individualismo; os segundos, a prtica coletiva. Unsreafirmam o mercado; outros, o bem comum. Assim, se ambos os ladosentendem a cidadania como algo valioso realizao humana, eles divergemnaquilo que entendem como contedo da vida cidad.

    Diante desse impasse, talvez seja oportuna uma aluso posio de Severino(1992) sobre o assunto. Ele defende a idia de que para viver a cidadania preciso um pouco mais do que ser racional, livre, autnomo, emancipado esolidrio ao modo da ideologia liberal. Elevar-se condio cidad possvelse o sujeito participa ativamente da produo e apropriao de bens materiais,sociais e simblico-culturais, visando a manuteno do corpo biolgico, aqualificao da pessoa como portadora de poder e a fruio da cultura comocaminho realizao espiritual pela apreenso de informaes, conhecimentose saberes vitais s relaes concretas entre homens e mulheres com o mundoe com seus semelhantes.

    Talvez a sugesto do conceito acima inspire nossas prticas que so:

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    conceituais, voltadas para a avaliao terica; procedimentais, visando aformao humana em suas mltiplas dimenses; e ticas, relacionadas buscade um estilo existencial que privilegie o conceito de cidadania coletiva esocialmente fundamentada.

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