CANDIDO, Antonio.Vários Escritos. 3a edição, São Paulo, Duas Cidades, 1995, pp. 235-263

7

Transcript of CANDIDO, Antonio.Vários Escritos. 3a edição, São Paulo, Duas Cidades, 1995, pp. 235-263

5/9/2018 CANDIDO, Antonio.V rios Escritos. 3a edi o, S o Paulo, Duas Cidades, 1995, pp. 235-263 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/candido-antoniovarios-escritos-3a-edicao-sao-paulo-duas-cidades-1995-pp-235-263-559ca2e37d069

e o c t - C o~

VARIOS ESCRITOS

4 " e d ii ao , r eo tg a ni za da p ef o a u to r

I)U;IS CiducJ c ll l Ou r e snbrc A zul I S,;{l 1';1I11!) I R io de landm 201)·1

5/9/2018 CANDIDO, Antonio.V rios Escritos. 3a edi o, S o Paulo, Duas Cidades, 1995, pp. 235-263 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/candido-antoniovarios-escritos-3a-edicao-sao-paulo-duas-cidades-1995-pp-235-263-559ca2e37d069

Oassunto que me foi con fiado nesta se rie e aparentementemeio desligado dos problemas rea is: "Di reitos humanos e

l ite rature" As manei ras de aborda-lo sao muitas, mas nao

posse comecar a falar sobre 0 terna especif ico sem fazer algumas re-

f lexoes previas a respeito dos pr6pr ios direi tos humanos.

E impressionante como em nosso tempo ~omos contradit6rios

neste capitulo. Corneco observando que em ~p-arac;: ao a eras pas-

sadas chegamos a urn maximo de racionalidade tecnica e de domi-

nio sobre a natureza. Isso permite imaginar a possibi lidade de resol-

ver grande numero de problemas materiais do homem, quem sabe

inclusive 0 da alimentacao. No entanto, a . irracio1.1_W..dade !2 _ com-

portamento e tambern maxima,_se~vida freqtientemente tt:.1os ~es-

mns meios que deveriam realizar os q~~igu.ills_d_a_J:acionalidade.As-

sim, com a energia atomics podemos ao mesmo tempo gerar forca

criadora e destruir a vida pela guerra, com 0 incrivel progresso in-

dustrial aumentamos 0 (onforto ate alcancar niveis Bunca sonha-

~ d~, ma'x~1 uilil!i;oklele_as.grandes l l 1 a s ~ ~ ' g ~ ~ n a e n l l m O $ ~!}is~~_. . , ,; fr ff~ en.l certos palses., como 0 Brasi l, quanta mais crcsce a r iquez~,

~ ff finis aumenta a p.b:iima distnibnicao.dos hens. Portanto, podemos

* 0 / 1 : . . . dizcr que os mesmos mcios que pcrmitcm ()p rngresso podcm pro-

~)f"~;st vocar a degradacao da maior ia.

~ . . J " J t ' Ora, na Grec ia antiga , por exemplo, teri a sido imposslvel pensar

(Y !~_.Y ' numa dist ribuicao equitativa dos bens materi ais, porque a tecnica

d ,J' i J l ainda nao perrnitia superar as formas brutais de exploracao do

· r 'V ~ , y , .~ " ' ..!' hom em. nem criar abundancia para todos. Mas em nosso tempo e?~ iY possivcl pCllsar nisso, e no entunto pensamos relat ivarnente pouco.

r y ? Essa insensibilidade nega um a das linhas mais promissoras da his-

tori a do homem ocidental , aque la que se nutriu das ideia amadure-

cidns no corrcr dos seculos XVIII c XIX, gerando o liberal ismo e tendo

169

o DIREITO A . LlTERATURA

1

".'

5/9/2018 CANDIDO, Antonio.V rios Escritos. 3a edi o, S o Paulo, Duas Cidades, 1995, pp. 235-263 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/candido-antoniovarios-escritos-3a-edicao-sao-paulo-duas-cidades-1995-pp-235-263-559ca2e37d069

VARIOS 1.SCRI"fIlS 170

no social ismo a sua manifestacao mais coerente, Elas abr iram pers-

pectivas que pareciarn levar a solucao dos problemas dramaticos da

vida em sociedade. E de fa to, durante mui to tempo acreditou-se

que , removidos uns tantos obstaculos, como a ignorancia e os sis-

temas despoticos de governo, as conquistas do progresso seriam ca-

nalizadas no rumo imaginado pelos utopistas , porque a ins trucao, 0

saber e a t e cn ica levar iam necessariamente a felicidade coletiva. No

entanto, mesmo onde estes obs taculos foram rcmovidos a barbiir ie

cont inuou entre os homens,

~sabcmos qu~~~sa epoca e profund:'!lente ba~bara~em-

bora se t rate de uma barbarie l igada ao maximo de civilizacao. Penso

que ~ m~vimento p~los ~jrei tos human~s se entronca iii:pois sp~sA- ;

a pnmeira _erada his toria em que teonc~mente e posslve~ev:~

uma sol5ao pa~~_grandes desarmo~~l1a~.9ue geramaInjttsfica

contra a qual lutam os homens de boa vontade--~ b~c-a :~ao ~ai s do

e~~on~i~~-p~l~;-~t~pi;t~;racion~_is q~~E;s a~tecederam,

m~'!_?__!_~_~i~<:,_,'_ijy~L_g~..g!!~l~ilg~_~h~~!ift<!,em correlacao a cada

momento da hist6ria.

Mas esta verificacao desalentadora d ev e s er compensada por ou-

t ra, mais otimista: nos sabemos que hoje os meios materi ais neces-

sarios para nos aproximarmos desse estagio melhor existe rn, e que

_v~~lUi~o .(~oque era.simples utopia se torno.lI possibilidade real. Se as

d.?'}posslbIl1dades existern, a luta ganha maror cabimento e se torna

( / ~ ; .,?"~mais esperancosa, apesar de tudo 0 que 0 nosso tempo apresenta de

;;r @A' negati~(~.?uem acr~dita nos d,ireitos humanos procura transforrnar

~ '<:) sl9 a,p~sslhilldade teorica em realidade, ernpenhando-se em fazer coin-

I(j'/- Ij {' cidir uma com a outra. Inversamente, urn trace sinistro do nosso

.J':f:! -;/,~c( tempo e saber que e possivel a solucao de tantos problemas e no en-.y c)~ u~

y r J 7 J ! ! tanto nao se empenhar nela. Mas de qualquer modo, no meio da si-

I tuacao atroz em que vivemos ha perspectivas anirnadoras,

E verdade que a barbaric continua ate crescendo, mas nao se ve

mais 0sel l elogio, como se todos soubessem que cia c algo a ser ocul-

tado e nao proclamado. Sob este aspecto, os tribunals de Nuremberg

forum urn s inal dos tempos novos, rnostrando que ja niio c admissivel

a l im g ene ra l v it or io s o rnandar fazcr insni,f)~'s d iz cn d o q ue construiu

17 1 o IlIRf.ITO A I.ITEII;ATUIIA

uma piramide com ascabecas dos inimigos mortos, ou que mandou

cobrir as muralhas de Nlnive com a s s ua s p el es e sc o rc ha d as . P az er n-

se coi sas parecidas e ate piores, mas elas na~ const ituem motivo de

c e le b ra c ao . P am emitir um a nota posit iva no fundo do horror, ache

que isso e urn sinal favoravel, poi s se 0mal e praticado, mas nao

proclamado, quer dizer que 0 hornem nao 0 aeha mais tao natural .

No mesmo sentido eu inte rpreta ria certas mudancas no compor-

tamcnto quot idiano e na fraseologia das c lasses dominantes. Hoje

nao se afirma com a mesma tranquil idade do meu tempo de menino

que haver pobres e a vontade de Deus, que des nao tern as mesmas

necessidades dos abastados , que os empregados dornest icos nao pre-

cisam descansar , que s6 morre de fome quem for vadio, e coisas assim.

Existe em relacao ao pobre uma nova ati tude, que vai do sentimento

de culpa a te 0medo. Nas caricaturas dos jornais e das revistas 0 es-

farrapado e 0 negro nao sao mais terna predileto das piadas, porque

a sociedade sentiu que eles podem ser urn fator de rompimento do

estado de coisas, e 0 temor e um dos caminhos para a compreensao,

Sintoma complernentar eu vejo na mudan~a do discurso dos R O -

~iticos e empresarios quando aludem a sua posicao ideologica ou aos

problemas sociais, Todos eles, a cornecar pe lo p r esiden te da Republica,

f azem af ir r nacoes que ate poueo tempo ser iam consideradas subver-

s ivas e hojc fazern par te do palavreado bern-pensante, Por exemplo,

que nao e mais possivel tolerar as grandes diferencas economicas,

sendo necessario promover uma distribuicao equitativa. E claro que

ninguem se empenha para.que.de.fato isto acont~<ra, mas tais ati-

tudes e pronunciamentos pare~~_q~e~g(l_!:;)Jt.imagem da

injus tica social .c(~f_l~tral~:;que a insensibi lidade em face da mise-

ria deve ser pelO menos disfarcada, porque pode comprometer a

imagem dos di rigentes. Esta hipocrisia generali zada , tributo que a

in iquidade p<lga a justica, e urn modo de mostrar que 0sofrimento

l < ! . E . a o deixa_t~.QjJl_cjJfh~l}!.~,~_m¢dia da opiniao.

Do rncsmo modo, os polit icos e emp~e~~ri ';~de hoje nao sedecla-

)1 .~~L£Q.!:!~rvad,~~~sL~~~110antes, quando a e x p r e s s u o a a ~ e s conser:---k"(!doms~(a:'.",~tn-gaJarda(). 'Iodos sao invariavelmcnte d~F ate

' . . O J - : ; de n·"tnH'S(II~~:~;!l'lH:llIs~c os fl'an,,:amcnt:,rc~do~~t~:--?' nem

~ '0'P5 Q .A ·.0, . _( -1 / ' - ,Vr-: ~-t--}v' V- IlV (}y'-'

r p .C ; ) ,}N · ( , ,~ ~ ?frO o J -

"

5/9/2018 CANDIDO, Antonio.V rios Escritos. 3a edi o, S o Paulo, Duas Cidades, 1995, pp. 235-263 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/candido-antoniovarios-escritos-3a-edicao-sao-paulo-duas-cidades-1995-pp-235-263-559ca2e37d069

I/

VARIOS I.SCl lI lnS, .:». 172

. .

. !:_:.:.~~._:;-;'~_:. ~ < =- :: . ~. ~ ~ ~ ; :" . " poderiam dizer outra coisa, num tempo em que a televisao mostra a

;.:cad<i instante, em imagens cujo intuito e mero sensacionalisrno, mas

. .:.cujo. efeito pode ser poderoso para despertar as consciencias, cri-

ancas nordestinas raqufticas, populacoes inteiras sem casa, posseiros

massacrados, desempregados rnorando na rua.De urn angulo otimista, tudo isso poderia ser encarado como ma-

nifestacao infusa da consciencia cada vel:rnais generalizada de que a

desigualdade e insuportavel e pode ser atenuada consideravelmente

no estagio atual dos recursos tecnicos e de organizacao. Nesse senti-

do, talvez se possa falar de urn progresso no sent imento do proximo,

mcsmo sem a disposicao correspondente de agir em consonancia, E

al entra 0problema dos que lutam para que isso aconteca, ou seja:

entra 0problema dos direitos humanos.

: •...

1- s " t ? ; ~ - . ,

2

~Por que? Porque pensar em direitos humanos tern u6essupostg:;

reconhecer que aquilo gue considctal.!los indispensav'eip r i " l 1 6 ; e

- - e > tarnbemJ~~!.i>p~!!~~y~l_ruu:a..Qp-(Qximo.Esta me parece a essencia do

l}roblcn~a, inclusive no plano cstritamente individual, pois e necessario f ~um grande esforco de educacao e auto-educacao a fim de reconhecer-11}

1ll0S sinceramente este postulado. Na verdadc, 3.telldencia..mais..funda (g _Cr i0 ~

. ~ "~ -if c achar que os 110SS0~ direitos _:;_~~!1]ais__!:!!g£DJ.<!S_qUc.-os-do_p.r6xitllO. . g.J?__&,~ ,_~sse ponto as pessoas sao frequentemente vit imas de uma curiosa S

:J ;:sr' '" ~"'f<,bl1ubiI3fYad. Elas afirmam que 0 proximo tem direito. sem duvidu.:'q__

V' , 'v.~'f! ~ 01 :,'rh)S I)l'n~ flln,d01mcntai~, ~~)~!~~_~~~~';"~0I~~~~~_i.!1~~~~~!C;5_(~.a~d~.J-.J.j.

~ ! ? '& (015aS q ue I lI ll gUC Il l bern lormado minute hojc em dia que sCJam

privilegio de minorias, como sao no Brasil. Mas sera quepensam

que o seu scmelhante pobre teria direito a Ier Dostoievski ou ouvir

os quartetos de Beethoven? Apesar das boas intencoes no outro

sctor, talvez isto nfio lhes passe pela cabeca. E nao por mal, mas 50-

mente porque quando arroJam os seus direitos n50 estendem todos

eles ao semelhante, Ora, 0 csfor<;:.~_J~.a2:~.JEE!~ semelhante l l? ( "

n~~~Q~ dc_hens_que_xci.yingj!;;_<ln1Qs_€;$JAn_<l!l3sea reflexao

sobLe._.D.S..irciios ill!manos.

U 1>1RI\ITC~_ A . I.ITHIIATURA

~'V

\

A estc respeito c fundamental 0 ponto de vista de um grande so- )1 - ,., d , - ! ' ciologo frances, 0padre dominicano Louis-Joseph Lebret, fundador . ; i ' f . _ . f !J Y 0 rr do movimento Economia e Humanismo, com qucm tive a sorte de .J ; .f

~~#~:tilonvive.r e que atuou mUitOto . .Brasilcntre-os-anus...de _ _ l 2 4 0 . _ : _ . .~~O. C). if

o k; {.'u\\ Penso na sua distincao ent r~~l?ens compresslveis" ~bens incom-l r-t,t' ~ que esta ligada a meuverrotri-oproolem~do5aireitos-' 8humanos, pois a maneira de conceber a estes depende daquilo que

classificarnos como bens incornpresslvcis, isto e , os que nno podem

ser negados a ninguem.

Certos bens sao obviarnente incornpresslveis, como 0 alimento, a

GISa,a roupa. Outros sao compressivcis, como 05 cosmeticos, os en-

feites, as roupas superfluas, Mas a fronteira entre ambos e muitas

vezes dificil de fixar, mesmo quando pensamos nos que sao conside-

rados indispensaveis, 0 primeiro li tro de arroz de uma saca e menosimportante do que 0ultimo, e sabemos que com base em coisas como

esta se e la bo ro u em E co no rn ia P ol iti ca a teo r ia d a "u ti li d ad e ma rg in a l"segundo a qual 0valor de uma coisa depende em grande parte da ne-

cessidade rela tiva que temos dela . 0 fato e que cada epoca e cada cul -

tura fixam os criterios de incompressibilidade, que estao ligados a di-visao da sociedade em classes, pois inclusive a educacao pode ser

instrumento para convencer as pessoas de que 0que e indispensavel

p ara u ma cam ad a social nao 0e para o u tr a, N a c la ss e media brasileira,

os t in minha idade a in d a l cmb ra rn 0tempo em que se dizia que os

empr eg ad o s n ii o tin ham necessidade.de.sobremesa n~mJi.e.fQlga aos

do III ingo5,porque ~ estando acostu mad.Qs_a.iss_o.lla.<"l_S..enli.al!lfalt~.;.1

Portuuto, c preds'1Il 'J ' criterios segums para abordar o problema dos

hens incornprcssivcis, seja do ponto de vista individual, seja do pontode vista social. Do ponto de vista individual, e importante a consci-

encia de cadu um a respci to, sendo indispensavel fazer sent ir desde a

infancia que os pobres e desval idos tern direito aos bens materiais (e

que portanto. niio setrata de exercer caridade), assirn como as mino-

rias tern dircito a igualdade de tratamento, Do ponte de vista social

c precise haver leis especificas garantindo este modo de ver.

Por isso, a luta pelos di rei tos humanos pressupoe a consideracao

de tais problemas, c chcgundo mais pcrto do tema el l lcmbruria que

5/9/2018 CANDIDO, Antonio.V rios Escritos. 3a edi o, S o Paulo, Duas Cidades, 1995, pp. 235-263 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/candido-antoniovarios-escritos-3a-edicao-sao-paulo-duas-cidades-1995-pp-235-263-559ca2e37d069

174,\ H 1 O S f·. S ('1<1 ro s

b ~ ' "

. ' . , " ' ~ O bens incomp.r~~_~y.dU!.!()__penas O Squ:_a~2e.m.tram_~l s~i-,;" '_,.,. ",,' ... ,,,> ' Y ; ~ ' 5 , / {~~l fisicaCI~l nivcis dc~~n~~,nl~lS-()S-q~!~g~~~~!~tcl~la_~ntegrida~1c

......,.. ' : "',, ::,.,;,..~ , .~S'.~~~al. :Sac,i ll lcompresslvels cer t~mente a ~hmenta~1io,a moradia,

' . ' , ' y ' : \ 0 ves tuar io , a instrucao, a saude, a l iberdade individual, 0 amparo da

"" :"c

justice publica, a resistencia a opressao etc.; e tarnbem 2 . dircito acrenca, a 02ini50, ao lazer e, por que naoJ}.<t. tte e a lite~~~;r'Mas a fruicao da arte e da literatura estar ia mesmo nes ta categor ia?

Como noutros cases, a resposta so pode SCI' dada se puderrnos res-

ponder a UIlHl questao previa, isto < 5 , elas so poderao scr consideradas

bens incornpressfveis segundo uma organizacao justa da sociedade se

corrcspondercm a necessidades profundus do ser humane, a necessi-

dades que nilo podem deixar de ser satisfeitas sob pena de desor-

ganizacao pessoal , ou pelo menos de frustracao mutiladora. A nossa

questao basica, portanto, e saber sea literatura e uma necessidade des-

te tipo. $6 entao estaremos em condicoes de concluir a respeito .

175 o DIRF.ITO it. I.ITf.RATI)R,\

3

samba carnavalesco. Ela se manifesta desde 0 devanelo amoroso ou

cconomico no unibus ate a atencao fixada na novela de tclevlsso ou

na lei tura seguida de urn romance.

Ora, se ninguern pode passar vinte e qua tro ho ras scm mergulhar

no universe da f i c< ;aoe da poesia, a Ji tera tura concebida no sentidoamplo a que me refe ri parece corresponder a uma necessidade uni -

versal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfacao constitui urn direito,

Altcrando um conceito de Otto Ranke sobre 0mito, podemos

dizer que a literatura eo sonho acordado das civil izacoes, Por tanto,

assirn como nao e possfve l haver equi libr io pslquico sem 0 sonho

durante 0 SOJlO, talvez niio haja equillbrio social sem a literatura, Des-

te modo, cia c fator indispensavel de humanizacao e , sendo assim,

confirma 0 hom em na sua humanidade, inclusive porque atua em

grande parte 110 subconsciente e no inconsciente. Neste sentido, eta

pode ter irnportancia equivalente a das formas conscientes de incul-

camento intencional, como a educacao fami lia r, grupa l ou escolar.Cada sociedade cria assuas rnanifestacoes f iccionais, poeticas e dra-

maticas de acordo com os seus impulsos, as suas crencas, os seus sen-

timentos, as suas normas, a fim de fo rtalece r em cada urn a presen~a

c atuacao deles.

Por isso e que nas nossas sociedades a li tera tura tem sido urn ins-

t rumcnto podcroso de inst rucao e cducacao, en trando nos curr lcu-

los, sendo proposta a cada um como equipamento in telectual e a fe-

t ivo, Os va lores que a sociedade precon iza , ou os que considera pre-

judic ia i s, estiio p resentes nus divcrsas manifestacoes da ficcao, da

p ocs ia c da a c ;i io d r un u it ic a . A l it cr at ur a confirma C IH .' ga , propoee

dcnuncia, apoia c combatc, fornccendo a possihi lidade de vivcrmosdiulcticamente os problemas. Pur isso e indispensavei tanto a l itera-

tu ra sancionada quanta a lit era tura proscri ta ; a que os poderes suge-

rem e a que nascc dos movimentos de negacso do estado de co isas

prcdominante,

A respci to destes dois lados da l it eratura, convem lembrar que ela

na o c uma exper ienc ia inofensiva, mas uma aventura que pode causar

problemas pslquicos e morais, como acontece com a propria vida ,

du qual e imagcm c transfiguraolo. lsto signi fica que c ia tem papel

Charnarei de Iit era tura, da manei ra rnai s ampla possivel , todas as

criacoes de toque poetico, f iccional ou drarnatico em todos os nlveis

de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde 0 que cha-

mamos folc lore , lenda, chiste , a te as fonn~\s mais complexus e din-

ccis da producao escri ta das grandcs civil izacoes,

Vista destc modo a literatura aparece clararnente como rnanifes-

tacfio universal de todos os hornens em todos os tempos. Nfio ha

povo e nao lui hom em que possa viver scm cia, isto (', scm a possi-

bilidade de cntrar em contacto com alguma cspecie de fabulacao.Assim COIHO lot ios sonham todas as noires, ningucm c capaz de pas-

sar as vinic e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega

ao universo fabu lado. 0 sonho assegura durante 0 sono a presence

indispcnsavel destc universe, indcpcndentcmentc da nossa vontade.

E durante a vigil ia a c riacao ficciona l ou poe tica, que e a mala da Ii-

t era tura ern todos os seus nivei s e modalidades, esra presente em

cada um de nos , analfabeto ou erudito , como anedota, causo, his t6ria

e m q ua dr in ho s, n otic ia ri o p ol ic iu l, c an c;i io p op ul ar, m o da tit' viola,

5/9/2018 CANDIDO, Antonio.V rios Escritos. 3a edi o, S o Paulo, Duas Cidades, 1995, pp. 235-263 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/candido-antoniovarios-escritos-3a-edicao-sao-paulo-duas-cidades-1995-pp-235-263-559ca2e37d069

VARIOS I ,SCRITIIS 176 177 o D IRUTO " L 1T f. RATU ILA

..s ~)

.: formador da.personalidade, mas nao segundo as convencoesi seria

, , .antessegl .. lndo a forca indiscr iminada e poderosa da pr6pr ia reali-

dade. Por i sso, nas maos do le itor 0 livro pode ser fa tor de pertur-

bacao e ~nesmo de risco. Dai a arnbivalencia da sociedade em face

dele, susci tando por vezes condenacoes violentas quando ele veicu-

Ianocoes ou oferece suges toes que a visao convencional gos taria de

proscrever, No ambito da instrucao escolar 0 l ivro chega a gerar con-

Ilitos, porquc 0scu cfcito transcende as nor rnas cs tahc lec idas ,

Numa pales tra fei ta ha mais de quinze anos em reuniao da Socie -

dade Brasileira para 0 Progresso da Ciencia sabre 0 papel da li te-

ratura na formacao do homem, charnei a atencao entre outras coisas

para os aspectos paradoxais desse pape l, na medida em que as edu-

cadores ao mesmo tempo preconizam e temern 0 efeito dos textos

l iterar ios, De fato (dizia eu) , ha "confli to entre a ideia convencional

de uma l ite ratura que eleva e edifica (segundo os padroes oficiais) e

a sua poderosa forca indiscriminada de inic iacao na vida, com uma

variada cornplexidade nem sernpre desejada pelos educadores. Ela

nao corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livrernente em si

a que chamamos 0bern e 0que chamamos 0mal, humaniza em sen-

t ido profundo, porque faz viver".

4

simultanea dos tres aspectos, embora cos turnemos pensar menos no

primeiro, que corresponde a maneira pela qual a mensagem e cons-

trufda; mas esta maneira e 0 aspecto, senao mais importante, com

certeza crucial, porque e 0que decide se uma comunicacao e literaria

ou nao. Comecemos por ele.

' Ioda obra literaria e antes de mais nada umaespecie de objeto, de

objeto construido: e e grande 0 poder humanizador des ta constru-

J,'ao, ( ' /111/1111/ to cottstruiiio.

De fato, quando elaboram uma estrutura, 0 poe ta ou 0 narrador

nos propocm urn modele de coerencia, gerado pela forca da palavra

organizada, Se fosse possivel abstrair 0sentido e pensar nas palavras

como tijolos de uma construcao, eu dir ia que esses t ijolos represen-

tam urn modo de organizar a mater ia , e que enquanto organizacao eles

exercem papel ordenador sobre a nossa mente . Quer percebamos

c1aramente ou nao, 0 cara ter de coisa organizada da obra li tera ria

torna-se urn fator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa

propria mente e sent imentos; e, em consequenc ia, mais capazes de

organizar a visao que temos do mundo.

Por isso, urn poema herrnetico, de entendimento diftcil, sem ne-

nhuma alusao tanglvel a realidade do espirito ou do mundo, pode

funcionar neste sentido, pelo fato de ser urn tipo de ordem, suge-

rindo u rn mo de le de superacao do c ao s, A producao literar ia t ira as

palavras do nada e asd ispoe como todo art iculado. Este eo primeiro

nlve l hurnanizador, ao cont rario do que gera lmente se pensa. A or-

ganizacao da palavra comunica -se ao !lOSSO espi rito e 0 leva, pri-

mc ir o, a s e o rg an iz ar : em s cg ui da , a organizar 0mundo , Isto ocorre

dcsde asformas mais simples, como a quadrinha, 0proverbio, a his-

tor ia de bichos, que s intetizam a exper iencia e a reduzem a suges tao,

norma, conselho ou simples espetaculo mental.

"Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga." Este

proverhio Clima frase solidumente construida, com dois membros

de : scte s il ab as c ad a l im , e stn be lc ce nd o u rn ri trn o que realca 0 con-

ceito, tornado mais forte pelo efeito da rima toante: "aj-U-d-A':

"madr-U-g-A': A construcao consist iu em descobrir a expressao la-

. p idur c ordcrui-la segundo mcios Ic rnit:os que imprcssionam a pcr-

A funcao da literatura esta ligada a complexidade da sua natureza,

q ue e x pl ic a inclusive 0papel contraditorio mas humanizador (talvez

humanizador porque contradi t6rio ). Ana lisando-a , podemos dis-

tingui r pelo menos Ires faces: (I) c ia c uma construcao de objctos

autonomos como estrutura e s ignificado; (2) ela e uma forma de

expressao, isto e, manifesta emocoes e a vi sao do mundo dos indivi -

duos e dos grupos, (3) ela e uma forma de conhecimento, inclusive

como incorporacao difusa e inconsciente,

Em geral pensamos que a l ite ratura atua sobre n6s devido ao tcr-

ceiro aspecto, isto e, porque transmite l ima especie de conhecimento,

que resulta em aprendizado, como seela fosse urn tipo de ins trucao.

Mas nan c assim. () efcito da s producocs litcrtirias f: dcvido i'I allla,iio

5/9/2018 CANDIDO, Antonio.V rios Escritos. 3a edi o, S o Paulo, Duas Cidades, 1995, pp. 235-263 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/candido-antoniovarios-escritos-3a-edicao-sao-paulo-duas-cidades-1995-pp-235-263-559ca2e37d069

C " . ' .w-•.~<

,i

v ARlns l iSC:~ I1"OS 179 o I )J R Ii IT O A I .I T F. R AT U I IA178

·cep<;~o.')~'mensagem e inseparavel do c6digo, mas 0 c6digo e a•condi~ao\i~~'asscgura 0 seu efeito.

.. ,. . M.asaspaiavr~s organizadas sao mais do que 3presence de urn co-

digo: elascomimicam sempre alguma coisa, que nos toea porque

obedece a certa ordem. Quando recebemos 0impacto de uma produ-

<;aoliteraria, oral ou escrita, ele e devido a fusao inextricavel da men-

sagem com a sua organizacao, Quando digo que um texto me im-

prcssiona , quero dizer que ele impressiona porque a sua possibili -

dade de impressionar foi de terminada pela ordenacao recebida de

quem 0produziu. Em palavras usuais: 0conteudo s6 atua por causa

da forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de

humanizar devido a coerencia mental que pressupoe e que sugere. 0

caos originario, isto e, 0materia l bruto a part ir do qua l 0 produtor

escolheu uma forma, se torna ordem; por isso, 0meu caos interior

tambem se ordena e a mensagem pode atuar . Toda obra literaria pres-

supoe esta superacao do caos, de terminada por urn arranjo especial

das palavras e fazendo uma proposta de sentido.

Pensernos agora num poema simples, como a LIRA de Gonzaga

que comeca com 0verso "Eu, Marl lia, nao fui nenhum vaqueiro" Ele

a escreveu no calabouco da ilha das Cobras e se poe na situacao de

quem esta muito tri st e, separado da noiva. Entao comeca a pensar

nela e imagina a vida que teriam tido se nao houvesse ocorrido a

catastrofe que 0 jogou na prisao. De acordo com a convencao pas-

toral do tempo, transf igura-se no pastor Dirceu e transf igura a noiva

na pastora Maril la , t raduzindo 0 seu drama em terrnos da vida

campestre, A certa altura diz:

're s no comeco c no fim, cercando os Pes do meio e formando com

eles uma sonoridade magica que contribui para elevar a experiencia

amorfa ao nivel da expressao organizada, figurando 0 afeto por meio

de imagens que marcam com eficiencia a transfiguracao do meio na-

tural . A forma permi tiu que 0 conteudo ganhasse maior significado

e ambos juntos aumentaram a nossa capaddade de ver e senti r,

Digamos que 0conteudo atuante gra-;as a forma constitui com ela

um par indissoluvel que redunda em certa modal idade de conheci-

mento. Este pode ser u r na aq ui si c ao consciente de n oco e s, emocoe s,

.sugcs toes , inculcamentos ; mas na maior par te se processa nas cama-

das do subconsc iente e do inconsciente, incorporando-se em pro-

fundidade como enriquecirnento difici l de avaliar . As producoes l i-

terar ias, de todos os t ipos e todos os niveis, satisfazem necessidades

basicas do ser humane, sobretudo a traves dessa incorporacao, que

enriquece a nossa p er ce pc ao e a nossa visao do mundo. 0que ilustrei

por mcio do proverbio e dos versos de Gonzaga ocorre em todo 0

campo da I iteratura e explica por que ela e uma necessidade universal

dais na casca das arvores, Mas na exper ienc ia de cada urn de no s esses

scntirncntos e evocacoes sao geralmente vagus , informulados, e nao

tern consistencia que os tome exemplares. Exprimindo-os no en-

quadramento de urn estilo literario, usando rigorosamente os versos de

dez .silabas, explorando certas sonoridades, combinando as palavras

com pericia, 0poeta transforma 0 informal ou 0 inexpresso em estru-

tura organizada , que se poe acima do tempo e serve para cada urn re-

prcsentar mcntalmente as situacoes amorosas deste tipo. A alternancia

regulada de sllabas tonicas e silabas Monas, 0poder sugestivo da rima,

a cadencia do ritmo - criaram uma ordem definida que serve de pa-

drat! para todos e,deste modo, a todos humaniza, isto e , permite que os

sentimentos passem do estado de mera emocao para 0da forma cons-

trufda, que assegura a generalidade e a perrnanencia, Note-se , por

exemplo, 0efeito do jogo de cer tos sons expresses pelos fonemas T e P

no ultimo verso, dando t ran scendenc ia a urn gesto banal de namorado:

Toucar- Te de PaPoulas na flores'Ia.

Propunha-me dormi r no teu rega \"o

As quentes horas da comprida sesta;

Escrever teus louvores nos olmeiros,

'Ioucar- te de papoulas na f loresta.

A extrema simpJicidade desses versos remete aatos ou devaneios dos

namorudos de todos os tempos: ficar com a cabeca no colo da namo-

r ad a , ap an h ar f lo r es p a ra fazer urna g r ina lda , e sc reve r as respectivas ini-

5/9/2018 CANDIDO, Antonio.V rios Escritos. 3a edi o, S o Paulo, Duas Cidades, 1995, pp. 235-263 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/candido-antoniovarios-escritos-3a-edicao-sao-paulo-duas-cidades-1995-pp-235-263-559ca2e37d069

VARIOS ES(:RtTOS 180 181 o DIREITO . I t . LITERATURA

i , " < ' "? "';i""';"'< ,:' ".' imperiosa, e por que frul-Ia e urn direito das pessoas de qualquer

,< _ . < : : ' " ;"';':;i;;-,c~-':k ,,,:;.-,-:., i;;;>:-sociedat\e, desde 0indio que eanta as suas proezas de caca ou evoca

'.'_; - dancando a.lua eheia, ate 0 mais requintado erudito que procura

. <'" ,; -,,-_-;_,- _._, " " , .,;: .-,.captar com sabias redes os sentidos flutuantes de um poema her-

metico, Em todos Esses cases ocorre humanizacao e enr iquecimen-

to, da persona lidade e do grupo, por meio de conhecimento oriun-

do da expressao submetida a urna ordem redentora da confusao,

Entendo aqui por humanizacao (j a que tcnho falado tanto nela) 0

proccsso que confinna no hom em aqueles traces que reputamos

essenciais, como 0exerdcio da reflexao, a aquisicao do saber, a boa

disposicao para COI11 0 proximo, 0 afinamento das emococs, a capa-

c idade de pene tra r nos problemas da vida , 0 senso da be leza, a per-

ccpcao da eomplexidade do mundo e dos se res, 0cultivo do humor.

A literatura desenvolve em nos a quota de hurnanidade na medida em

que nos torna rnais compreensivos e abertos para a natureza, ~ so-

ciedade, 0semelhante.

Isso pos to , devemos lembrar que alem do conhecimento par ass irn

dizer la tente, que provem da organizacao das emocoes e da visao do

mundo, ha na li ter atura nive is de conhec imento intencional, isto e,

planejados pelo autor e conscientemente ass imilados pelo receptor.

Estes nive is sao os que charnarn imediata rnente a a tencao ee neles

que 0autor injeta as suas intencoes de propaganda, ideologia, crenca,

revoIta, adesao e tc. Urn poerna abol ic ionista de Castro Alves atua

pela e fic ienc ia da sua organizacao fo rmal , pela qualidade do senti -

mento que exprime, mas tarnbem pela natureza da sua posicao po-

Iitica e humanitaria, Nestes casos a Iitcratura satisfaz, em outro

nivel, a ncccssidade de conhccer os scntimentos c a sock-dade , aju-

dando-nos a tomar posicao em face delcs, f~ai que se situa a litera-

tu ra soc ia l , na qual pensamos quase exclusivamente quando se t rata

de lima rcalidade Hio pol lti ca e humanitari a quanto ados dire itos

humanos, que par tem de uma analise do universe social e procurarn

rctificar as suas iniquidadcs.

Falemos portanto alguma coisa a respeito das producoes I iterar ias

nas quais 0 autor descja exprcssamente assumir pos icdo em face dos

problemas. Disso rcsu lta lima l itc ratur a cmpenhada, que parte de

posicocs eticas, pollticas, religiosas ou sirnplesrnente humanlsticas,

Sao cases em que 0autor tern conviccoes e deseja exprimi-Ias; ou par-

te de certa visao da realidade e a rnanifesta com tonalidade crltica .

Da i pode surgir urn perigo: a firmar que a l iteratura s6 alcanca a ver-

dadeira funcao quando e des te t ipo. Pam a Igreja Cat6lica, durante

multo tempo, a boa l it e ra tur e era a que mostrava a verdade da sua

doutr ina, premiando a vir tude, cas tigando 0pecado. Para 0regime

sovie ti co, a Ii tcra tura autenti ca era a que descrevia as lu tas do povo,

cantava a const rucao do socia li smo ou ce lebrava a c1asse operaria ,

Sao posicoes falhas e prejudiciais a verdadeira producao literaria, por-

que tern como pressuposto que cIa sc justi flca por meio de final ida -

des alheias ao p lano esteti co, que e 0decis ive. De fato, sabernos que

em literatura urna mensa gem etica, polit ica, rel igiosa ou rnais geral-

mente socia l s6 tem eficiencia quando for reduzida a est rutura li te-

rari a, a forma ordenadora . Ta is mensagens sao val idas como qua is-

quer outras, e na o podem ser proscri tas; mas a sua validade depende

da forma que Ihes da existencia como urn certo t ipo de obje to.

5

Feita esta ressalva, vou me demorar na modalidade de literatura

que visa a descrever e eventualmente a tomar posicao em face das ini-

quidades socials, as mesmas que alirnentam 0combate peIos direitos

humanos.

Fa le i h a poueo de Castro Alves, exemplo brasileiro que geralrnente

lcmhrarnos nesscs c as os , A sua ohm fo i em parte ur n poderoso libeJo

contra a escravidao, pois ele assumiu posic;ao de luta e contr ibuiu

para a causa que procurava servir, 0seu cfeito foi dcvido ao talento

do poeta, que fez obra autentica porque foi capaz de eJaborar em

termos cstct icamcntc validos os pontes de vista humani ta rios e po-

ll ticos, Animado pelos mesmos scnt imentos e dorado de tempera -

menlo igualmcnte gcncroso foi Bernardo Guimaraes , que escreveu 0

romance A escmva lsaura tarnbem como libelo. No entanto, vis to que

so a intcncao e 0 assunto 11aObastarn, esta e uma obra de r n a quali-

dude c nao sat isfaz os requi si tes que asscguram a eficiencia rea l do

5/9/2018 CANDIDO, Antonio.V rios Escritos. 3a edi o, S o Paulo, Duas Cidades, 1995, pp. 235-263 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/candido-antoniovarios-escritos-3a-edicao-sao-paulo-duas-cidades-1995-pp-235-263-559ca2e37d069

VAHIOS f"SC~nns1 1 1 2

1 1 1 3 o I)IUITO A . LlTUATOkA

C _

texto, A paixao abolicioni st a estava presente na obra de ambos os

'""<lut<jrcs,:\11iisumdeles foi capaz de criar a organizacao literaria ade-

" ",i<;' ~luadae)()(6\ltro nao, A eficacia humana e funcao-da eficacia esteti-

,", L'd;'~ portirit60 que na literatura age como forca humanizadora e a

pr6pr iiHteratura, ou seja, a capacidade de criar formas per tinentes ,

Isso nao quer dizer que so serve a obra perfe ita . A obra de menor

qualidade tam bern atua, e em geral urn movimento literar io e cons-

ti tuido por textos de qual idade a lta e textos de qua lidade modesta,

forrnando no conjunto uma massa de significados que influi em

nosso conhecimento enos nossos sentimentos,

Para exemplificar, vejarnos 0caso do romance hurnanitario e social

do comeco do seculo XIX, por var ios aspectos uma respos ta da lite-

ratura ao impacto da indus tr ializacao que, como se sabe, promoveu

a concentracao urbana em esca la nunea vista , c riando novas e rnai s

terriveis formas de rniseria, inclusive a da rniseria posta diretamente

ao lado do bem-es tar, com 0pobre venda a cada ins tante osprodutos

que na o poder ia obter . Pela primeira ve z a rniseria se tornou urn

espetaculo inevitavel e todos t iveram de presenciar a sua terrfvel rea-

lidade nas imensas concent racoes urbanas, para onde eram condu-

zidas au enxotadas as massas de camponeses des tinados ao trabalho

industria l, inclusive como exerc ito faminto de reserva. Saindo das

rcgioes afastadas e dos intersticios da soeiedade, a miseria se instalou

110S palcos da c ivil izacio e foi se tornando cada vez mais odiosa, a

medida que se percebia que ela era 0quinhao injustamente imposto

aos verdadeiros produtores da riqueza , o s operarios, nos quai s foi

precise um seculo de lutas para verem rcconhecidos os dirci tos mais

elcmcntares. Niio e precise recapitular0

que todos sabem, mas ape-nas lembrar que naqucle tempo a condicno de vida sofreu uma dete-

rioracao terrlvel, que logo alarmou as consciencias mais sensiveis e os

observadores lucidos , gerando nao apenas l ivros como 0 de Engels

sobre a condicao da classe trabalhadora na Inglaterra, mas uma serie

de romances que descrevem a nova si tuacao do pobre.

Assim, 0 pobre entra de fato e de vez ria Iiteratura como tema

importante, trat ado com dignidade , nao mais como delinquente ,

pe rsonagern comico ou pi toresco . Enquanto de um lado () opera rio

cornccava a se organizar para a grande luta secular na defesa dos

seus direi tos ao minimo necessario, de out ro Iado os escri tores co-

mecavarn a perceber a realidade desses direi tos, iniciando pela oar-

ra tiva da sua vida , suas quedas, seus triunfos, sua rea lidade desco-

nhccida pelas classes bern aquinhoadas. Este fenomeno e em grandepar te l igado ao Romantismo, que, se teve aspectos francamente tra-

diciona lista s e eonservadores, t eve tambem outros messianicos e

humani ta rios de grande generosidade, bastando lembrar que 0 50-

cialismo, que se configurou naquele momenta, e sob muitos aspec-

tos urn movimento de inf luencia romantica.

Al i pelos anos de 1820-1830 116svemos 0 aparec imento de urn

romance social, por vezes de corte humanitario e mesmo eertos

toques messianicos, focalizando 0pobre como tema literar io impor-

tante. Foi 0 easo de Eugene Sue, ese ritor de segunda ordem mas ex-

tremamente s ignificative de urn momenta his torico, Nos seus l ivros

ele penetrou no universo da miseria, mostrou a convivencia do crimee da virtude, misturando os delinqiientes e os trabalhadores honestos,

descrevendo a persistenc ia da pureza no meio do vicio, numa visao

complexa e mesmo eonvulsa da sociedade industria l no seu Inicio,

'lalvez 0 livro mais caraeteristico do humanitarismo romantico seja

Os m i s erdvei s , de Victor Hugo. Urn dos seus temas bas icos e a ideia deque <1 pobrcza, a ignorancia e a opressao geram 0 crime, ao qual 0

homem e por assirn dizer condenado pelas condicoes socials, De

maneira poderosa , apesar de declamatoria e prolixa, ele retra ta as

contradicoes da sociedade do tempo e focalize urna serie de problemas

graves. Por excruplo, 0da crianca brutalizada pela familia, 0orfanato,

a fiibrica, 0explorador - 0que ser ia urn traco frequente no romancedo seculo X I X . N' O s m i se ra v ci s ha a hist6ri a da pobre mae solte ira

Fantine , que eonfia a filha a urn par de sinistros malandros, de cuja

t irania brutal ela e salva pelo criminoso regenerado, Jean Valjean.

Victor Hugo manifestou em varies outros lugares da sua obra a

picdudc pe lo menor desvalido e bruta li zado, inclusive de mane ira

simbol ica n' 0 homem que ri, historia do filho de um nobre Ingles

proscrito, que e entregue a urna quadrilha de bandidos especializados

em dcforrnar criancas para vcnde-las como objetos de diver timento

..... '. . "- ~-". j:".

5/9/2018 CANDIDO, Antonio.V rios Escritos. 3a edi o, S o Paulo, Duas Cidades, 1995, pp. 235-263 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/candido-antoniovarios-escritos-3a-edicao-sao-paulo-duas-cidades-1995-pp-235-263-559ca2e37d069

VARIOS F.SCIUTOS . 18 4 18 5 o DIRF.JTO A UTERIt.Tua.t

...," :: :0"':'' '' . :":C'<'dosgrandes.No caso, 0 pequeno e operado nos labios e rmisculos;,:·~·,·.:c.;:;;;,,,,,c_ :",i.<" (;,L -faciais.demaneira a ter um rictus permanente que 0mantem como

.' :: ,,,:,,~, ,:~;: -; ;:: ::, id:~eestiv.essesempre rindo, E Gwymplaine, cuja mut ilacao representa

',: :; ': ·':k·. '. 'i" '1:,';"" ,'~ ' siLnbolkamente a est igma da sociedade sabre a desvalido,

Dickens tratou do assunto em mais de uma obra, como Ol i ve r Twi s t,onde narra a iniquidade dos orfanatos e a utilizacao dos meninos

pclos ladroes organizados , que os transformam no que hoje chama-

Il1()S trornbadiuhas, Leiter de Eugene Sue e Dickens, Dostoievski levou

a extremes de patetico 0problema da violencia contra a infancia, ate

chegar a violacao sexual confessada por Stavroguine em Os dembnios.

Muito da literatura mess ianica e humanitaria daquele tempo (nao

estou incluindo Dostoievski, que e outro setor) nos parece hoje

decla rnatori a e por vezes comica . Mas e curioso que 0 seu travo

amargo resi st e no meio do que ;a envelheceu de vez, mostrando que

a preocupacao com 0 que hoje charnamos di reitos humanos pede

dar a l iteratura uma forca insuspeitada. E reciprocamente, que a lite-ratura pode incutir em cada urn de nos 0sentimento de urgencia de

tais problemas. Por i sso, c reio que a ent rada do pobre no temario do

romance, no tempo do Romantismo, e 0fato de ser t ratado nele com

a devida dignidade, e urn momenta relevante no capitulo dos direi tos

hurnanos atraves da literatura.

A parti r do perlodo romant ico a narrativa descnvolveu cada ve z

mais 0lado social, como aconteceu no Naturalismo, que timbrou em

tornar como personagens centrais 0operario, 0campones, 0pequeno

artesao, 0d e sv a li do , a prostituta, 0discriminado em geral. Na Franca,

t ill ite Zola conscguiu fazer uma verdadeira epopeia do povo opri -

mido c explorado, em varies livros da serie dos Raugon-Macquart,retratando as consequencias da miser ia, da promiscuidade, da espo-

liacao economica, 0que fez de le urn inspirador de at itudes e ideias

poltticas, Sendo de proprio inicialmentc apolltico, interessado apenas

em analisar objet ivamente os diversos niveis da sociedade, esta con-

sequencia da sua obru nuda tinha a vcr com Sll.IS intcncoes, Mas c

inte ressante que a forca pol iti ca latente dos seus textos acabou por

leva-In ; 1 a c; ii o e l or 11 < 1- 10 l im dos maiores militantes na his t6ria da

intc ligencia cm penhada, Isto se dell quando de ussumiu posi . .iio

contra a condena . .ao injusta do capitan Alfred Dreyfus, c u jo p ro c es -

s o, g ru ca s a o s el l famoso panfleto j'acCltse,entrou em fase de revisao,

terminada pela absolvicao f inal . Mas antes desse desfecho (que nao

chegou a ver , porque ja morrera) , Zola foi julgado e condenado a

p ri sa o p or of e n s a ao E x er ci to , 0que 0obrigou a se refugiar na Ingla-terra. Ai e sr a um exemplo completo de autor identif icado com a vis~o

social da sua obra, que acaba por reunir producao litera ria e mili-

Wi ld a p o ll ti ca .

Tanto no caso da literatura messianica e idealis ta dos romanticos,

quanto no caso da li tera tura real ista, na qua l a c rlt ica assume 0 cu-

nho de verdadeira inves tigacao orientada da sociedade, estamos em

facede exemplo de l ite ratura e rnpenhada numa ta refa l igada aos d i-

reitos hurnanos. No Brasil i sto foi c laro nalguns momentos do Na-

turalismo, mas ganhou forca real sobretudo no decenio de 1930,

quando 0 homem do povo com todos os seus problemas passou a

primeiro plano e as escritores deram grande intensidade ao trata-men to literar io do pobre.

lsso foi devido sobretudo ao fato do romance de tona lidade soc ial

ter passado da denunc ia re t6rica, ou de mera descricao, a uma espe-

de de critica corrosiva, que podia ser explicita, como em Jorge Amado,

ou implicit a, como em Gracil iano Ramos, mas que em todos eles foi

multo eficiente naquele per iodo, contr ibuindo para incentivar os

sent imentos radica is que se genera lizaram no pais. Foi uma verda-

de ira onda de desmascaramento socia l, que aparece nao apenas nos

que ainda Iemos hoje , como os dois ci tados e mais Jose Lins do Rego,

Rachel de Quciroz Oll Erico Verisslmo, mas em autores rnenos

lcmbrudos, como Abguar Bustos, Guilhcrmino Cesar , Emil Farhat ,Amando Fontes, para nao falar de tantos outros praticamente

esquecidos, mas que contr ibulram para formar 0batalhao de escri-

tores ernpenhados em expor e denunciar a miseria, a exploracao

economica, a marginalizacao, 0 que os torna, como os outros, fi-

gurantes de lima luta vir tual pelos direi tos humanos, Ser ia 0caso de

[oao Cordeiro, Clovis Amorim, Lauro Palhano etc.

5/9/2018 CANDIDO, Antonio.V rios Escritos. 3a edi o, S o Paulo, Duas Cidades, 1995, pp. 235-263 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/candido-antoniovarios-escritos-3a-edicao-sao-paulo-duas-cidades-1995-pp-235-263-559ca2e37d069

186 187 o DIR~ITO A . UTI:IIATIJRA

•• -" r

' . ;.~ ' ·)r c- ',_:~J 1_ ~:)!~~ ,. ' '-. ;" "

6 em pafscs como 0Brasil, onde a maioria d .a populacao e analfabeta,ou

quase, e viveem condicoes que nao permitem amargem de lazer indis-

pensavel a lei tura. Par isso, numa sociedade estratificada des te t ipo a

fruicao da Iiteratura se estratiflca de maneira abrupta e alienante.

Pelo que sabemos, quando ha urn esforco real de Igualitarlzacaoha aumento sensivel do habito de Ieitura, e portanto difusao cres-

cente das obras, A Uniao Sov iet ica (que oeste capitulo e modelar)fi:z 1 1 1 1 1 grande esforco para isto, c Mas tiragens editorials alcancam

numeros para nos inverossimeis, inc lusive de textos inesperados,

como os de Shakespeare. que em nenhum outro pa is e tao l ido, se·gundo vi regis trado naJgum lugar . Como seria a si tuacao numa 50-

ciedade idealmente organizada com base na sonhada igualdade

cornpleta, que nunca conhecemos e talvez nunea venhamos a conhe-

cer! No entusiasmo da construcao socia lists, Trotski previa que ne-

laa media dos homens seria do nlve l de Aristoteles, Goe the e Marx ...

Utopia a parte. e certo que quanta mais iguali tar ia for a sociedade, e

quanta mais lazer proporcionar, maior deveni ser a difusao hurnani-

zadora das obras l iterar ias, e , por tanto, a possibi lidade de contr ibui-

rem para 0amadurecimento de cada urn.

Nas sociedades de extrema desigualdade, 0esforco dos govern os

esclarccidos e dos homens de boa vontade tenta remediar na rnedida

do possivel a fa lta de oportunidades cul turai s. Nesse rurno, a obra

mais impress ionante que conheco no Brasi l foi de Mario de Andrade

no breve per iodo em que chefiou 0Departamento de Cul tura da Ci-

dade de Sao Paulo, de 1935a 1938. Pela primeira vez entre nos viu-se

uma organizacao da cultura com vista ao publico mais amplo pos-

sivcl, Alcm da rcmodclucao em larga escala da Biblioteca Municipal.

forum criados: parques infantis nas zonas populares; biblioteeas

ambulantes, em furgoes que estacionavam nos diversos ba irros; a

discoteca publica; as concertos de ampla difusao, baseados na novi-

dade tit: conjuntos crganizados aqui , como quarte to de cordas, trio

instrumental, orquestra sinfonica, corais. A part ir de entao a cul tura

musical media alcuncou puhlicos muiores c subiu de nlvel, como

demonstram as fichas de consulta da Discoteca PUblica Municipal e os

programas t i l . ' cvcntos , pelos quais sc obscrva diminuicf to do gos to

'... \ ,;,

,::_> Acaoe"i 'deldcalizar a relacao da literatura com os direi tos huma-

nosd~ddifal igulos diferentes, Primeiro, ver if iquei que a literatura

corresponde a uma necessidade universal que deve ser sat is feita sobpena de mutil ar a personalidade , porque pelo fato de dar forma aos

sentimentos e a visao do mundo e la nos organiza, nos libert a do caos

c portanto nos humanize. Ncgar a Iruicao du lit erature c mut ila r a

nossa humanidade. Em segundo lugar, a Ji te ratura pode se r um ins-

trurnento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as

s ituacoes de res tr icao dos direi tos, ou de negacao deles, como a mise-

ria, a servidao, a mutilacao espiritual. Tanto num nivel quanto no

out ro e la tern muito a ver com a luta pelos di reitos humanos,

A organizacao da sociedade pode restringir ou amplia r a fruicao

deste bern humanizador. 0 que hade grave numa sociedade como a

brasileira e que e la rnantem com a maior dureza a estra tifi cacao das

poss ibil idades, tratando como se fossem cornpress iveis muitos bens

mater ials e espir ituais que sao incompress iveis. Em nossa sociedade

ha fruicao segundo as classes na medida em que urn hornem do po-

vo esta prati camente privado da possibi lidade de conhecer e apro-

ve it ar a leitura de Machado de Assis ou Mario de Andrade . Para e1e,

fi cam a Iite ratura de massa, 0 foldore, a sabedoria espontanea, a

cancao popular, 0 proverbio. Estas moda lidades sao importantes e

nobres, mas e grave considera -las como sufic ientes para a grande

maioria que. devido a pobreza e a ignorancia, e impedida de chegar

a s obras cruditas.

Nessa altura c preci se fazer duas considc racocs: uma rela tive adifusao possivel das formas de I iteratura erudita em funcao da estru-

tura e da organizacao da soc iedade; outra , relat iva a cornunicacao

entre as esferas da producao literar ia ,

Para que a llteratura chamada crudita dcixe de scr privi lcgio de pc-

quenos grupos, e precise que a organizacao da sociedade seja fei ta de

mancira a garantir uma distribuicao cquitativa dos bens, Em principii),

so numa sociedade igualitar ia os produtos l iterar ios poderao circular

scm barreiras , c ncste domlnio a silU<l,ao Cparticularmcnte dram,lt ira

5/9/2018 CANDIDO, Antonio.V rios Escritos. 3a edi o, S o Paulo, Duas Cidades, 1995, pp. 235-263 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/candido-antoniovarios-escritos-3a-edicao-sao-paulo-duas-cidades-1995-pp-235-263-559ca2e37d069

"'" .

VARIUSI.SCRITOS· ;, ,_ ,188 189 o J)l l1£ITO A I .ITF .I IATURA

ate entaoquase exclusive pela opera e a solo de piano, com incre-

. mentoconcomitante do gosto pe la musica de camara e a sinfonica,

E tude i ssoconcebido como at ividade destinada a todo 0 povo, nao

<apenasaos grupos restritos de amadores.

Ao mesmo tempo. Mario de Andrade inc rementou a pesquisa fol-clorica e etnograf ica, valor izando as culturas populates , no pressu-

posto de que todos as niveis sao dignos e que a ocorrencia deles efunctio da dinamica das sociedades. Ele entendia a princ lpio que as

criacoes populares eram fonte das eruditas, e que de modo geral a

arte vinha do povo. Mais tarde. inclusive devido a uma troca de

ideias com Roger Bast ide.sentiu que na verdade ha uma corrente em

dois sentidos, e que a esfe ra erudita e a popula r trocam influencias

de maneira incessante, fazendo da cria<;:1' ioi tera r ia e art ls tica urn

fenorneno de vasta intercomunicacao.

Isto faz lembrar que, envolvendo 0 problema da des igualdade so-

<;,iale econornica, esta 0 problema da intercomunicacao dos niveisculturais. Nas sociedades que procuram estabelecer regimes iguali-

tarios, 0pressuposto e que todos devem ter a possibi lidade de passar

dos niveis populares para as niveis eruditos como consequencia nor-

mal da transformacao de estrutura, prevendo-se a elevacao sens ivel

da capacidade de cada urn gracas a aquisicao cada vez maior de co-

nhecimentos e exper iencias, Nas sociedades que mantem a des igual-

dade como norma , e e 0caso da nossa, podem ocorrer movimentos e

rnedidas, de carater publico ou privado, para diminuir 0abismo en-

tre os nive is e fazer chegar ao povo os produtos eruditos. Mas, repi-

to. tanto num caso quanto no outro esta impllcita como questao

maier a correlacao dos n fv ei s, E a l a e x pe ri en c ia mos tr a que 0prin-cipa l obstaculo pode ser a fa lta de oportunidade, nao a incapacidade,

A partir de 1934 e do famoso Congresso de Escritores de Karkov,

gcneralizou-sc a questao da l it e ra tura prol e ta r ia , que vinha sendo

debatida dcsde a vi toria da Rcvolucao Russa, havendo uma especie

de convocacao universal em prol da producao soc ial mente empe-

nhada, Villa das alegacoes era a necessidade de dar 010 povo urn tipo

de l ite ra tura que 0 interessasse realmente, porque versava os seus

problemas cspeclficos de urn angulo progressista. Nessa ocasiao, um

escritor frances bastante empenhado, mas nan sectario, Jean Guehenno,

p ub li co u n u r cv is ta Europe alguns artigos rclatando uma ex pe ri e nc i a

simples: ele deu para ler a gente modesta, de pouca lnstrucao, ro-

rnances populis tas, empenhados na posicao ideologica ao lado do

trabalhador e do pobre. Mas nlio houve a menor interesse daparte daspessoas a que se dir igiu . Entao, deu-lhes l ivros de Balzac, Stendhal ,

Flaubert, que os fascinaram. Guehenno queria mostrar com isto que

a b oa l it cr at ur a tern alcance universal, c q ue cla seria acolhida devi-

damente pelo povo se chegasse ate ele. E par al se ve 0 efeito muti-

ladOr da segregacao cultural segundo as classes.

Lembro a inda de ter ouvido nos anos de 1940 que 0escritor e pen-

sador portugues Agostinho da Silva promoveu cursos noturnos para

operar ios, nos quais comentava textos de f ilosofos, como Platao, que

despertaram 0maior interesse e foram devidamente assimilados.

Maria Vit6ria Benevides narra a este respeito urn casu exemplar.

Tempos a tras foi aprovada em Milao uma le i que assegura aos ope-rarios cer to mimero de horas dest inadas a aperfeicoarnento cultural

em materias cscolhidas par eles proprios, A expectativa era que

aproveitariam a oportunidade para melhorar 0 seu n iv e l p ro fissional

por meio de novos conhec imentos tecnicos l igados a atividade de

cada um. Mas para surpresa geral, 0que quiserarn na grande maioria

foi aprender bem a sua lingua (muitos estavam ainda ligados aos

dialetos regionais) e conhecer a literatura italiana. Em segundo lugar,

queriarn aprender violino.

E s te b e lo e x er np lo leva a f al ar n o poder universal d os g ra nd es c la s-

sims. que ult rapassam a barre ira da cstrat iflcacao soc ial e de certo

modo podcm redimir as dis tancias impostas peia des igualdade eco-n 6m icn , p o is tC m a capacidade de intcressar a todos e portanto de-

vem ser levados ao maior numero. Para fi car na Ita lia , e 0 caso as-

sornbroso da Di v in o c om ed ia , conhecida em todos os nlveis socials e

por todos des consumida como alimcnto humanizador. Mais ainda:

dezenas de mi lhares de pessoas sabem de cor os trinta e quat ro can-

tos do INH1(NO; 11111nurnero rnenor sabe de cor nao apenas 0

INI'El(NO, mas tambem 0 PUR(;ATORIO; e mui tos mi l sabem alem deles

o 1'J\IIA(sO, num total de cern cantos c mais de trcze mil versos . ..

5/9/2018 CANDIDO, Antonio.V rios Escritos. 3a edi o, S o Paulo, Duas Cidades, 1995, pp. 235-263 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/candido-antoniovarios-escritos-3a-edicao-sao-paulo-duas-cidades-1995-pp-235-263-559ca2e37d069

:-~.----,--.

\\/

\I.l.IC'I<)~ F.~{;RITO"

.~'

190 191 o D1RE1TO A LlTI!RATURA

',.. ")C;ii~·d~,.,;:: ':;,it i : , . Lembro de ter conhec ido na minha infancia , em P0'r0s de Caldas, 0

. , , ; '_ , i \ : ~!;,,J i ii"(\" ,,;.;1;,:,1,., u~~lho~llputc;irp Italiano Crispino Caponi que sabia 0 INI'IlIlNO corn-

;, r' t gd)~(,',;(~+:.!:L;d~·;:;:.;:.pleto e .r,e5!t~yaqualquer canto que se pedi sse, sem parar de bate r as

, : (~; (! h;::.(,~.)S JIi.; }JT.,,):,~ ~_;.~: .~~:~~_~~~.spl~~,~, ,~:'.

Os italianos sao hoje alfabetizados e a I talia

eurn pai s saturado da

melhor cultura. Mas noutros pa ises, mesmo os anal fabetos podem

partic ipar bern da li teratura erudita quando lhes e dada a oportuni-dade, S C for pcrmltida outra lcmbranca pessoal, contarei que quando

eu tinha doze anos, na mesma cidade de Pecos de Caldas, urn jar-

dineiro portugues e sua esposa brasileira, ambos analfabetos, me

pediram para Ihes ler 0Amo r d e p er di ra o, de Camilo Castelo Branco,

que ja tinham ouvido de uma professora na fazenda onde traba-

lhavam antes e que os havia fascinado. Eu atendi e verifique i como

assimilavam bern, com einocao inteligente. '

o Fausto, 0 D om Q ui xo te , O s lu si ad as , Machado de Assis podem

ser fruidos em todos os niveis e seriam fatores inest imaveis de afina-mento pessoal, se a nossa sociedade iniqua nao segregasse as cama-

das, impedindo a difusao dos produtos culturais eruditos e confi-

nando a povo a apenas uma parte da cultura, a chamada popular. A

este respeito 0 Brasil se distingue pe la alt a t axa de iniqi iidade , pols

COmo e sabido temos de urn lade os mais altos niveis de instrucao e

de cultura erudita, e de outro a massa numericamente predomi-

nante de espoliados, sem acesso aos bens des ta, e alias aos pr6pr ios

bens materiais necessaries a sobrevivencia.Nesse contexto, e revoltante 0preconceito segundo 0 qual as rni-

norias que podem partic ipar das formas requintadas de cul tura sao

sempre capazcs de aprecia-las, 0que nao e verdade. As classes domi-nantes Saofrequenternente desprovidas de percepcao e interesse real

pela a rt e e a lit eratura ao seu dispor, e muitos dos seus segmentos as

fruem por mere esnobisrno, porque este ou aquele autor esta na

moda, porque da prestigio gosta r deste au daquele pintor. Os exem-

plos que vimos ha pouco sobre a sofreguidao comovente com que os

pobres e mesmo analfabetos recebem os bens culturais mais altos

mostram que 0que ha mesmo e espoliacao, privacao de bens espiri-

tua is que fazcm fa lta e deveriam estar an alcance como urn direi to.

7

Portanto, a luta pelos direitos humanos abrange a luta por urn

estado de c o is a s em que todos possam ter acesso aos diferentes nfveis

da cultura. A distinr;ao entre cultura popular e c u lt ur a erudita n30

deve se rvir para justi ficar e manter uma separacao iniqua, como se

do ponto de vis ta cultural a sodedade fosse dividida em esferas inco-

rnunicaveis, dando lugar a dois t ipos incomunicaveis de fruidores .

Uma sociedade justa pressupoe 0 respeito dos direi tos humanos, e a

fruicao da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos

us nlveis ~ um direi to inalienavel ,

(1988)