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         c     a       d     e

         r     n     o     s    p

        e     t       f       l

         o     s     o       f     a

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    M e t a f í s i c a :F u n d a m e n t a ç ã o e C r í t i c a

    e a r t i g o s v a r i a d o s

    2013

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    Os cadernospetflosofa são uma publicação do Departamento de Filosoa da UniversidadeFederal do Paraná

    editoresConiã Costa Trevisan, Eduardo Emanoel Dall’Agnol de Souza, Gustavo Perlingeiro Beltra-me, Luiz Alberto Thomé Speltz Filho, Marcos Sirineu Kondageski.

    grupo pet

    Leandro Neves Cardim (professor-tutor), Rodrigo Brandão (professor-tutor), Clara Mari-ana Romanovski, Coniã Costa Trevisan, Eduardo Emanoel Dall’Agnol de Souza, FelipeAugusto Campos de Lima, Gustavo Perlingeiro Beltrame, Kamila Cristina Babiuki, LuanGonçalves da Silveira, Luiz Alberto Thomé Speltz Filho, Marcos Sirineu Kondageski,Nicole Martinazzo, Renato Alves Aleikseivz, Tatiane Aparecida Martins Lima.

    pareceristas desta edição

    Adriano Bueno Kurle, Adriano Marcio Januario, Alberto Marcos Onate, Amaro de Ol-iveira Fleck, André Gustavo Biesczad Penteado, Andre de Macedo Duarte, Diogo Gon-dim Blumer, Edmilson Menezes Santos, Evaldo Becker, Filipe Bravim Tito de Paula, IsraelAlexandria Costa, Libanio Cardoso Neto, Luame Cerqueira, Lucio Souza Lobo, ScheilaCristiane Thomé, Vicente Azevedo de Arruda Sampaio, Wandeílson Silva de Miranda.

    Reitor: Zaki Akel Sobrinho

    Vice-reitor: Rogério Andrade MulinariPró-Reitora de Graduação: Maria Amélia Sabbag Zainko

    Diretora do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes: Maria Tarcisa de Silva Bega

    Chefe do Departamento de Filosofia: Maria Adriana Camargo Cappello

    Coordenador do Curso de Graduação em Filosofia: Vivianne de Castilho Moreira

    Departamento de Filosofia UFPR

    Rua Doutor Faivre 405 6º andar 80060-150 Curitiba Brasil

    Telefone (41) 3360 5098

    www.losoa.ufpr.br

    PET-Filosofia UFPR

    [email protected]

    http://petlosoaufpr.wordpress.com/

    ISSN 1517-5529

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      e   d   i   t  o  r   i  a   l

    Os cadernospetflosofa são uma publicação do PET (Programa de Educação Tu-

    torial) do curso de Filosoa da UFPR (Universidade Federal do Paraná), dedicada à

    divulgação da pesquisa realizada por estudantes de graduação e pós-graduação em

    Filosoa. Trata-se, assim, de uma revista de estudantes, editada por estudantes (sob a

    supervisão de professores-tutores) e endereçada a estudantes de losoa, visando ofe-

    recer-lhes um certo modelo e padrão de pesquisa desenvolvida por seus pares no Brasil.

    Os cadernospetflosofa recolhem textos em torno de um núcleo temático, que

    serviu de norte aos seminários e ao ciclo de conferências realizados pelo grupo PET-

    -Filosoa UFPR no decorrer do ano. Os artigos publicados nos cadernospetflosof

    estão divididos em duas partes: a primeira parte com o Dossiê de artigos que tratam

    especicamente do respectivo tema da revista; e a segunda parte, com artigos de

    tema livre.

    O tema do Dossiê do número 14 dos cadernospetflosofa (tema em torno do qual

    foram realizados os seminários e conferências do PET-Filosoa no ano de 2012) é Me-

    tafísica: Fundamentação e Crítica . A metafísica , ou a losoa primeira , foi desde o

    início da história da losoa caracterizada como o saber próprio do lósofo enquanto

    tal. Assim, Aristóteles designará a losoa primeira como um saber do ser enquanto

    ser, o qual deve ser o fundamento de todos os outros saberes, na medida em que eles

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    lidam com objetos cujo ser e cuja natureza eles apenas pressupõem. A metafísica sur-

    ge, desse modo, como um saber que concentra a atividade losóca por excelência,

    da qual todo o conhecimento humano depende direta ou indiretamente.

    Ao longo de sua história, no entanto, a metafísica não só conheceu novas fun-

    damentações, diferentes daquela de Aristóteles, como também críticas que rom-

    peram a identicação entre losoa e metafísica. Assim, se de um lado Tomás de

    Aquino introduz em seus “Comentários à Metafísica de Aristóteles” uma interpre-

    tação que sublinha a identidade entre metafísica e teologia, e Descartes, por sua

    vez, abandona o método aristotélico e procura fundamentar a losoa primeira apartir do sujeito de conhecimento (o cogito), de outro lado, pelo menos a partir do

    século XVIII, somam-se críticas radicais e ao mesmo tempo diferenciadas sobre a

    possibilidade de uma fundamentação da metafísica: Hume, Kant, Marx, Nietzsche,

    Carnap, Wittgenstein, Adorno, cada um a seu modo pretendeu mostrar, sempre

    com novas premissas e no interior de novos contextos históricos e losócos, que

    a losoa primeira havia perdido sua razão de ser ou, pelo menos, que as vias até

    então seguidas caíram no descrédito.

    Com isso, porém, tais críticas à metafísica levantam a questão de saber o que

    vem a ser losoa, se ela não mais se identica com uma reexão metafísica ge-

    nuína. Além disso, trata-se de saber se essas críticas não pressupõem argumentos e

    ideias que poderiam ser classicadas também de metafísicas. Ou trata-se de saber

    se não é possível um novo tipo de pensamento metafísico que possa escapar aos

    problemas apontados por aquelas críticas.

    Nas páginas que se seguem, os nove artigos do Dossiê de um modo ou de outro

    giram em torno dessa questão onipresente na história da losoa.

    Os Editores

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      s  u  m   á

      r   i  oMetafísica: Fundamentação e Crítica

    O possível m da metafísica: Kant e os devaneios da razão/ Marcio Tadeu Girotti 

    O Problema de Kant/ Glauber Cesar Klein

    Voltaire e os Limites da Metafísica ou A Metafísica dos Escombros / João Carlos Lourenço Caputo 

    O Dogmatismo de Platão em Nietzsche e Deleuze,entre a Crítica e a Promoção/ Maria Fernanda Novo dos Santos 

    A losoa da vida e o círculo hermenêutico segundo Wilhelm Dilthey/ João Evangelista Fernandes 

    A tese da primazia da ontologia da Vorhandenheit (disponibilidade) e anecessidade de uma destruição da história da ontologia em Ser e Tempo/ Marcel Albiero da Silva Santos 

    Notas sobre o problema da fundamentação da moral na Dialética do Esclarecimento/ Jéverton Soares dos Santos 

     Jacques Maritain e a Noção de Tomismo como “Verdadeira Filosoa”/ Felipe Sérgio Koller 

    Revolução Cientíca e o Papel da Filosoa

    / André Rosolem Sant’Anna  Artigos variados

    A gênese do sofrimento segundo Arthur Schopenhauer/ Paulo Rodrigues Souza do Nascimento 

    Poder Político em Rousseau: do estado de natureza à sociedade civil/ Fabrício Behrmann Mineo 

    normas de publicação

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    Marcio Tadeu Girotti

    Doutorando em Filosoa / Universidade Federal de São Carlos

    [email protected]

    O possível fim da metafísica:Kant e os devaneios da razão

    Resumo O artigo aborda alguns escritos da década de 1760, da losoa

    kantiana, com o intuito de apontar quais são os elementos de cunho crítico

    presentes nesses escritos, que desembocam na obra Träume eines Geistersehers,

    erläutert durch Träume der Metaphysik  (1766). No ano de 1763, com Der einzig

    mögliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Daseins Gottes  e com o Versuchden

    Begriff der negativen Größen in die Weltweisheit einzuführen, Kant aponta para

    o papel da experiência na existência do simples possível e para o papel da

    oposição real para os acontecimentos da ordem fenomenal. Tem-se, por parte

    de Kant, uma preocupação com o estatuto da metafísica tradicional que se apoia

    em provas não concretas e busca, por meio de inferência e pelo princípio de

    contradição, mostrar a ordem do mundo e a existência do real. Nesse sentido,

    Kant começa a engendrar uma crítica ao racionalismo de cunho dogmático,

    em especial a escola Leibniz-wolfana, tendo como inuências as inovações da

    ciência newtoniana e o ceticismo de David Hume. Assim, é possível encontrar,

    nos Träume  eines Geistersehers , ‘pistas’ que conduzem à interpretação da obra

    como um fechamento da losoa pré-crítica de Kant, abrindo as portas para

    o criticismo presente na Dissertação de 1770 , segundo o próprio autor (Carta a

    Tieftrunk em 1797).

    Palavras-chave  Jovem Kant. Racionalismo dogmático. Criticismo. Limites

    do conhecimento.

    A tríade de obras: Der einzig mögliche Beweisgrund zu einer Demonstration

      a  r   t   i  g  o

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    Marcio Tadeu Girotti

    12 Metafísica: Fundamentação e Crítica

    des Daseins Gottes (Único argumento possível - BDG), Versuchden Begriffder negativen Größen in die Weltweisheit einzuführen (Grandezas Negativas- NG) e Träume eines Geistersehers, erläutert durch Träume der Metaphysik(Sonhos de um visionário - TG) conguram, em diversos aspectos, a décadade 1760 da losoa do jovem Kant como um período antidogmático. Talcaracterização é dada levando em consideração a crítica kantiana dirigida àescola Leibniz-wolfana, uma crítica ao racionalismo que concede à razão,entre outras coisas, a força de determinar, por meio de conceitos lógico-formais, a existência de tudo o que pode existir.

    No livro de Daniel Omar Perez (intitulado “Kant pré-crítico: a desventuralosóca da pergunta”) encontra-se uma articulação entre as obras da

    década de sessenta no que diz respeito à determinação lógica e real, quedesembocam na crítica kantiana à metafísica tradicional.Em sua argumentação, Omar Perez arma que nos anos de 1750 Kant

    antecipa uma preocupação que será tratada nas Grandezas Negativas , natentativa de delimitar a explicação do real (a existência), através do princípiológico (princípio de contradição). Na Nova Dilucidatio  seu intuito era elucidaros primeiros princípios do conhecimento humano baseando-se no princípiode contradição, em que um sujeito não pode ser e não ser ao mesmo tempo,o que impossibilitaria sua existência, uma vez que a melhor formulação seriadizer que uma coisa é (existe) quando o seu oposto é falso.

    O princípio de contradição, tão caro ao princípio de identidade,transforma-se, em Kant, em princípio derivado e não primeiro, ou seja, eleé armativo e/ou negativo: “tudo aquilo que é, é”; “tudo aquilo que não é,não é”. Assim, na losoa kantiana o princípio de contradição é caracterizadodiante daquilo que se diz como impossível, isto é, não dá conta da existênciado real, uma vez que o conceito permanece como um simples possível e sehouver contradição ele se torna impossível.

    Na busca por esclarecer o problema da distinção entre lógico e real,empreende-se uma reformulação do princípio de razão suciente, que emKant é uma razão determinante (contra a concepção wolfana). Para Wolff,a razão esclarece porque uma coisa é em vez de não ser, ao passo que paraKant a razão se encontra na relação do sujeito com o seu predicado e, nessesentido, ele considera um princípio de determinação (razão determinante)que exclui de um predicado o seu oposto.

    Portanto, surge uma razão determinante que se divide em duas partesrespondendo ao quê e ao porquê, a razão de ser e a razão de não ser. Logo,Kant concebe uma razão anteriormente determinante “cuja noção precedeàquilo que é determinado”; e uma razão posteriormente determinante em

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    O possível m da metafísica: Kant e os devaneios da razão

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    que “a noção do determinado deve ser dada”. Essas duas determinaçõespermitem distinguir o estatuto lógico do estatuto do existente, ao passo

    que a armação wolfana acerca da razão não esclarece o existente e simaquilo que pode ser determinado de modo lógico. Ou seja, a razão produzexistentes com regras lógicas e não promove a existência de modo efetivo, oque levou Kant, no Único argumento possível , a uma crítica do modo lógicode determinar aquilo que só pode existir como mera possibilidade e mesmoassim é dada a sua existência como efetivamente válida.

    A proposta kantiana diante do existente caminha em direção à distinçãoentre ordem lógica e ordem real, uma vez que a existência de Deus édeterminada por si mesma, sendo uma operação de ordem ideal, não real.

    Tem-se a noção de Deus como ideia do ponto de vista da essência, que reforçaainda mais a possibilidade da razão, em seu uso lógico, determinar o existente,pois, ela pode somente congurar a essência de um conceito e prová-lo comoexistente, porém, não efetivamente em uma ordem real (somente conceitual).

     A diferença entre operações de ordem ideal e de ordem realcomeça a ser estabelecida, a partir da relação com o sensível. Aordem lógica, sem qualquer relação com o sensível é uma op-eração de caráter ideal, desse modo vai-se colocando um limiteao princípio de determinação em relação com a existência. Ologicismo parece ser uma espécie de “bunker” da metafísicatradicional, pelo fato de fornecer uma aparência de imagemverdadeira a posições dogmáticas. A operação consiste em con-siderar o que é meramente lógico como se fosse conhecimentoreal do objeto. (Perez, 1998, p. 60, grifo do autor).

    A oposição entre ordem lógica e ordem real é tratada nas GrandezasNegativas , uma vez que a oposição lógica é uma contradição e a oposiçãoreal é algo dado sem contradição. Para Kant, a ordem real foi esquecida pelosmetafísicos, o que levou os mesmos a diversos erros e provas duvidosas.

    Por denição, a oposição lógica é quando em um mesmo sujeito se armae se nega algo ao mesmo tempo, o que gera contradição, se reduz a nada; aoposição real é a possibilidade de armar algo de um sujeito por meio de doispredicados que se opõem, mas não são contrários e podem suprimir um aooutro sem contradição e tem-se como consequência algo.

    O tratamento dado nesse ensaio à operação lógica e à operação real,permitiu Kant tratar da existência também no Único argumento possível  emrelação ao pensamento lógico e a verdade existente, ou seja, não se podeprovar a existência por inferências, uma vez que ela é “posição absoluta”.

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    Marcio Tadeu Girotti

    14 Metafísica: Fundamentação e Crítica

    Como pode-se observar, a existência não é um atributo e nem mesmo umcomplemento daquilo que existe efetivamente, ela não é um acréscimo. Para

    Kant a existência não é aquilo que falta a uma coisa, o que o leva a armarque há uma diferença entre o pensável e o realmente existente, visto queda reunião de certos atributos designados a um sujeito não prova que elerealmente existe – o mesmo vale para a existência de Deus.

    Pode-se observar que no ano de 1763, Kant engendra uma investigação àprocura por uma metafísica que possa se fundamentar como ciência, com acrítica aos racionalistas presente nessas obras. Seguindo esse raciocínio, Kantescreve em 1766 os Sonhos de um visionário , uma obra que supostamentepossui um conteúdo de cunho crítico, à medida que vai de encontro aos

    metafísicos intitulados como dogmáticos, e cética, quando duvida dosdogmas da razão e compara as teses metafísicas a sonhos de fantasistas.A argumentação desenvolvida no escrito aponta um elemento de cunho

    crítico que será utilizado na Crítica da razão pura   (KrV), a saber: conceitospossíveis e impossíveis estão relacionados à experiência uma vez que umconceito que possui uma referência sensível é possível, ao passo que umconceito somente abstrato sem referência empírica é impossível. Com efeito,nas palavras de Franco Lombardi, pode-se aproximar os Sonhos de um visionário  com a Crítica  e, consequentemente, com o Único argumento possível .

    [...] In essi [Sonhos de um visionário] Kant ci dirá anche che forsequalcuno potrà in seguito presentare in riguardo alla metafisicadiverse opinioni, ma non potrà presentare vere e proprie con-oscenze. Sono, questi, accenti che già preludono alla Critica,e, se essi si ritrovano per uno lato nei Sogni, si possono giàsentire o presentire nello stessos critto in cui Kant sembra vogilapresentar el’argomento per una dimostrazione dell’esistenza diDio. (Lombardi, 1946, p. 201, grifo do autor).

    Segundo arma Lombardi, no Único argumento possível   encontram-seargumentos que provam a existência de Deus, os quais são de certo mododirigidos às provas já existentes sobre o assunto. Nesse sentido, Kant arma quesomente é necessário se convencer da existência de Deus sem a necessidade dedemonstrá-la, porém, a demonstração é essencial aos argumentos posterioresdirigidos aos dogmáticos da razão, o que aproxima a obra de 1763 aos Sonhosde um visionário , visto que nesta obra a metafísica é posta em questão e nãose difere muito da argumentação do Único argumento possível . Pois, aqui,fala-se de Deus e sua existência; lá, fala-se da existência do espírito e dasprovas a priori  e constatadas por um visionário que transporta os invisíveis

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    para o campo sensível e os abarca no suprassensível por meio do espaço etempo – formas da sensação.

    Portanto, pode-se dizer que existe uma possibilidade de aproximação entreo Único argumento possível  e as Grandezas Negativas , pois, considerando aprimeira no que diz respeito ao conceito de simples possível e a segunda noque concerne à oposição real em detrimento da oposição lógica, é possíveldizer aquilo que Kant pretende: armar que algo é possível não quer dizerque ele não existe e armar que algo existe também não demonstra que estenunca foi um simples possível. Em outras palavras, a oposição lógica tidacomo contradição aplicada ao simples possível não permite a sua existência,mas a oposição real com sua divisão em atual e potencial permite armar que

    algo, respectivamente, existe ou está em potência, pode ou não existir.Com efeito, o Único argumento possível abre, de certo modo, as portas

    para a argumentação das Grandezas Negativas, pois, a existência comoposição absoluta se refere à oposição real, uma vez que essa se desenrola nocampo empírico (causalidade). Ao mesmo tempo, a oposição lógica justica aimpossibilidade do princípio de contradição determinar a existência, pois, talprincípio não está articulado com o campo sensível permanecendo no campológico, ou seja, inferências que não estão relacionadas ao sensível não podemprovar a existência de nenhum objeto (conceito).

    Do mesmo modo, as duas obras desembocam nos Sonhos de um visionário, já que é nesta obra que é possível observar a distinção entre um mundo visívele um mundo invisível, além da articulação entre o conceitual e o empírico, já que todo conceito deve possuir uma correspondência sensível para obtervalidade objetiva. Ou seja, o conceito de algo existente se encontra noespaço e no tempo que são formas puras da sensibilidade que permitem oconhecimento do sensível, bem como dos conceitos puros do entendimento.

    Desse modo, observa-se que as obras da década de 1760 estão estritamenteinterligadas, e se olharmos mais de perto, a obra Sonhos de um visionárioanteciparia, em alguns aspectos, a argumentação da Dissertação de 1770  e

    também da Crítica . Portanto, torna-se visível que os escritos pré-críticos sãorelevantes para a compreensão do criticismo, além disso, as obras da décadade sessenta caracterizam, em diversos aspectos, as argumentações posterioresque serão encontradas nas obras críticas de Kant.

    Corroborando a argumentação acima, o desfecho das Grandezas Negativasparece conduzir ao início dos Sonhos de um visionário , visto que em ambosKant se dirige aos racionalistas e seu pedantismo em saber tudo de tudo etudo explicar. Na primeira, Kant arma: “Nada sabe, nada compreende, mas

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    Marcio Tadeu Girotti

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    fala de tudo e tira partido do que fala” 1 (NG, AA 02: 200). Pode-se perceberque esta armação segue em direção aos racionalistas, como Wolff, levando

    Kant a chamá-los, nos Sonhos de um visionário , para a discussão acerca doconceito de “espírito”, conceito por muitos utilizado e por quase nenhumexplicado.

    De um modo semelhante, Kant parece utilizar o mesmo argumento nonal das Grandezas Negativas  e no início dos Sonhos de um visionário :

    O  palavrório metódico das universidades é muitas vezes tão-só um acordo em desviar de uma questão de difícil soluçãoatravés de palavras ambíguas, porque dificilmente se ouve nasacademias o cômodo e o mais das vezes razoável “eu não sei”2.

    (TG, AA 02: 319, grifo nosso).

    Conforme Jaume Pons, a atitude de Kant nesse escrito culmina nas obrascríticas, pois há a mistura da metafísica com as fantasias de Swedenborg 3  (o

    1 Er weiß nichts, er versteht nichts, aber erredet von allem, und was er redet, darauf pocht er.

    2 Das methodische Geschwätz der hohen Schulen ist oftmals nur ein Einverständniß, durch veränder liche Wor-tbedeutungen einer schwer zu lösenden Frage auszuweichen, weil das bequeme und mehr entheilsvernünftige:Ich weiß nicht, auf Akademien nicht leichtlich gehört wird.

    3

     O sobrenome Swedenborg é de origem sueca. Na Suécia era comum mudar o sobrenome das famílias de acordocom a região onde elas residiam ou mesmo quando a família recebia um título de nobreza concedido pelo rei.No caso da família Swedenborg, nota-se o seguinte: a palavra ‘Sweden’ era o nome do domicílio da família: aSuécia; o suxo ‘borg’ é oriundo de um título de nobreza concedido à família de Swedberg; assim, o sobrenomeda família passou a ser: Swedenborg (nos Sonhos de um visionário , na versão original em alemão e na traduçãobrasileira, encontra-se o nome Schwedenberg e não Swedenborg; porém, em outras traduções ou mesmo emobras de intérpretes da losoa kantiana, vê-se Swedenborg). Pode-se dizer que Emanuel Swedenborg passou daciência natural à teologia quando já passava da meia idade e tal teologia pode ser explicada pela origem heredi -tária, uma vez que seu pai era um bispo luterano, Jesper Swedberg, que acreditava na presença de anjos entre oshomens, anjos como “espíritos ministrados”, os quais cabiam a tarefa de anunciar aos homens aqueles que serãoos “legatários da salvação”. Jesper armava viver e conversar com seu “anjo da guarda”, acreditando na possede dons espirituais e poder hipnótico de cura. Com isso, não é difícil aludir à inuência do pai sobre EmanuelSwedenborg, o qual armava possuir um relacionamento íntimo com o mundo espiritual. Emanuel Swedenborgnasceu em Estocolmo (29 de jan. de 1688), realizando diversas viagens pelo mundo adquirindo conhecimentos

    diversos, o que justica seus projetos: projeto de um navio que podia mergulhar com a tripulação ao fundodo mar e atacar o navio inimigo; sistema de comportas para suspender navios cargueiros; sistema de moinhosmovido pela ação do fogo sobre a água; metralhadora pneumática que podia dar de sessenta a setenta tirossem recarga; máquina voadora. Mas, entre todas as invenções, o principal invento foi a descoberta do métodopara determinar a longitude da Terra com base na lua. Tal método não foi bem acolhido pelos sábios da época.Teve como prossões: assessor titular do Conselho de Mineração, engenheiro, teólogo-espiritual (após receber amissão divina de explicar aos homens o verdadeiro sentido das palavras da Escritura), lósofo, físico, “médico”(por conta de suas pesquisas de anatomia), matemático, astrônomo, por m, visionário. Muitos de seus projetose obras, não obtiveram êxito, mas hoje há Institutos (principalmente na Inglaterra, mas também no Brasil – “ANova Jerusalém”) que se dedicam a estudar a vida e obra de Swedenborg. Sobre o assunto ver: TROBRIDGE, G.L. Swedenborg, vida e ensinamentos . Rio de Janeiro: Sociedade Religiosa A Nova Jerusalém, 1998. Ver também:www.swedenborg.com (Sociedade Swedenborg).

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    O possível m da metafísica: Kant e os devaneios da razão

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    visionário) demonstrando pouco a pouco os limites da razão promovendoa crítica ao idealismo (1982, p. 42). Nesse sentido, Kant postula que todo o

    conhecimento deve possuir validade na experiência, ou melhor, todo conceitodeve possuir uma correspondência sensível, justicando assim o trabalhodaqueles que falam do conceito de espírito (ser imaterial) e provam suaexistência por meio de inferências lógicas sem medo de refutação; pois, toda aexplicação é dada racionalmente sem fundamento algum, e com a credulidadedada aos visionários, ca fácil acreditar na existência de um ser imaterial.

    Ao tratar do conceito de espírito, Kant se refere à necessidade da existênciade um mundo dos espíritos, o que ca evidente à medida que os racionalistas,como: Descartes, Leibniz e Wolff utilizam a alma humana para congurar a

    relação entre o mundo material com o mundo imaterial, promovendo assimuma visão una da mesma coisa. Ou seja, o homem abarca o mundo visível e oinvisível, pois atribui a innidade a Deus que supostamente reside no mundoimaterial (dos espíritos), ao mesmo tempo em que abarca o mundo real. Mas,o problema reside no modo através do qual os ‘indivíduos’ podem abarcar oinvisível, isto é, aquilo que ultrapassa o campo da experiência e também ospróprios limites do conhecimento humano.

    Com efeito, a experiência parece ser o único meio que concebe validadeobjetiva a todo o conceito engendrado e a todo o objeto possível de serconhecido. Assim, Kant estabelece que a base para o conhecimento seguro é

    a experiência, pois, é somente nesse campo que o homem conhece, visto queé ali que ele possui a sensação dos objetos colocados no espaço. Por m, aargumentação dos Sonhos de um visionário  caminha em direção aos limitesdo conhecimento humano, uma vez que os visionários utilizam as formas dasensibilidade espaço-temporal para abarcar seres imateriais, ao passo que osracionalistas utilizam os mesmos critérios e conrmam a existência de seresque transcendem o mundo material. Nesse sentido, os lósofos racionalistassão comparados por Kant aos visionários, uma vez que estes seriam os únicosque poderiam salvar a metafísica de sua decadência, uma vez que eles podemprovar a existência do mundo imaterial além da própria possibilidade de vertais seres no espaço e no tempo, ou seja, na sensibilidade.

    Segundo Daniel O. Perez (2000), em seu artigo A predicação do ser ..., Kantteria apontado na década de 1760 alguns temas que renderam frutos para alosoa crítica (no início da década de 1770), entre eles destacam-se: o usode regras lógicas que possuem sua validade na formação de proposições, masque não se coadunam com a existência real dos sensíveis (Único argumentopossível ); o uso dos princípios da experiência para abarcar objetos nãosensíveis, não concedendo fundamento objetivo a estes (Sonhos de um

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    visionário ); e a mistura das relações lógicas abstratas com os existentes,impedindo sua vinculação de modo adequado (Dissertação de 1770 – usoreal e uso lógico do entendimento).

    Desse modo, é possível armar que as obras tratadas até o momentoconstituem, de certo modo, uma ligação temática dentro do percursolosóco de Kant, promovendo a possibilidade de interpretar a década desessenta como um período de caráter crítico dentro da losoa pré-crítica.Além disso, proporcionam uma leitura dos Sonhos de um visionário  como umpossível escrito que fecha o período da juventude kantiana e abre as portaspara o criticismo congurado inicialmente com a Dissertação de 1770 .

    Abaixo cito uma passagem das Grandezas Negativas   que corrobora o

    trecho citado acima com referência ao palavrório metódico , que Kant atribuiàqueles que dizem tudo saber e nem ao menos provam o que falam.

    É sobretudo digno de nota o fato de que, quanto mais sonda-mos nossos juízos mais comuns e confiantes, mais descobri-mos ilusões desta espécie, pois contentamo-nos com palavras,sem compreender o que quer que seja das coisas4. (NG, AA 02:192).

    Diante disso, no Único argumento possível , Kant argumenta logo noPrefácio que para atingir o objetivo acerca da prova da existência de Deuse, com isso, esclarecer outros pontos, por exemplo, a própria existência dosseres, ele diz:

    Mas, para chegar a este fim, é preciso aventurar-se sobre oabismo sem fundo da metafísica. Um oceano tenebroso semmargens e sem faróis, onde deve-se proceder como o marinhei-ro sobre um mar desconhecido, que, logo que entra em terrafirme, examina seu trajeto e investiga se as correntes marítimas,sem que ele se desse conta, modificaram o seu curso, a despeitode todo o cuidado que sempre ofereceu a arte de navegar 5.

    (BDG, AA 02: 65-66, tradução nossa). 

    4 Es ist überaus merkwürdig: daß, je mehr man seine gemeinste und zuversichtlichste Urtheile durchforscht, destomehr man solche Blendwerke entdeckt, da wir mit Worten zufrieden sind, ohne etwas von den Sachen zu verstehen.

    5 Zu diesem Zwecke aber zu gelangen muß //II66// man sich auf den boden losen Abgrund der Metaphysik wagen.Ein nsterer Ocean ohne Ufer und ohne Leuchtthürme, wo man es wie der Seefahrer auf einem unbeschifftenMeere anfangen muß, welcher, so bald er irgendwo Land betritt, seine Fahrt prüft und untersucht, ob nicht etwaunbemerkte Seeströmes einen Lauf verwirrt haben, aller Behutsamkeit ungeachtet, die die Kunst zu schiffen nurimmer gebieten mag.

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    Nessa passagem, Kant utiliza-se de metáforas marinhas para apresentara metafísica. Assim, compreende-se que a metafísica é ainda um terreno

    vasto e inexplorado, como um oceano imenso sem que seja possível enxergarseus limites (margens). Nesse sentido, aquele que se encontra no campo dametafísica deve estabelecer claramente os conceitos e as provas, procurandorever sempre o caminho percorrido, buscando uma base rme que possibilitea construção das teses; em outras palavras, a metafísica que busca seestabelecer como ciência deve, em algum momento, ter algo in concreto ,exposto no sensível, comprovado na experiência.

    É possível perceber, pela citação acima, que no Único argumento possível,Kant já articulava a possibilidade de pressupor limites à razão e é assim queele chega aos Sonhos de um visionário , armando que a razão não podetranspor os limites do sensível para atingir o mundo do suprassensível, masé natural que de lá ela peça informações. Assim, pode-se aproximar essecontexto com a passagem da Dialética Transcendental da Crítica da razãopura , ponto em que Kant ressalta a curiosidade do entendimento em buscarconhecer o outro mundo (não sensível) dotado de suas categorias que devemser aplicadas ao conhecimento do sensível (uso empírico do entendimento). Odesejo do entendimento em ampliar seus conhecimentos para além do campoda experiência, o coloca em contato com ‘fantasmagorias’ que culmina nailusão transcendental. Ao mesmo tempo, a razão na busca pela determinação

    das coisas em si mesmas também cai na ilusão, mas, segundo Kant, uma ilusãosadia, inevitável e natural (KrV, B 354).Na passagem abaixo, retirada da Crítica 6, a metáfora marinha está

    novamente presente e parece dizer a mesma coisa: a metafísica é um campovasto que deve possuir os seus limites.

     Agora não somente percorremos o domínio do entendimentopuro, examinando cuidadosamente cada parte dele, mas tam-bém o medimos e determinamos o lugar de cada coisa nele.Este domínio, porém, é uma ilha fechada pela natureza mesma

    dentro de limites imutáveis. É a terra da verdade (um nomesedutor), circundada por um vasto e tempestuoso oceano, queé a verdadeira sede da ilusão, onde o nevoeiro espesso e muitogelo, em ponto de liquefazer-se dão a falsa impressão de novasterras e, enquanto enganam com vãs esperanças o navegadorerrante a procura de novas descobertas, envolvem-no em aven-turas, das quais não poderá jamais desistir e tão pouco levá-

    6 Seção Terceira da Doutrina Transcendental da Capacidade de Julgar (ou Analítica dos Princípios).

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    las a termo. Entretanto, antes de arriscarmo-nos a esse marpara explorá-lo em toda a sua amplidão, e de assegurarmo-nos

    se se pode esperar encontrar aí alguma coisa, será útil lançarainda antes um olhar sobre o mapa da terra que precisamentequeremos deixar, para perguntar, primeiro, se não poderíamosporventura contentar-nos com o que ela contém, ou tambémse não teríamos que contentar-nos com isso e por necessidade,no caso em que em parte alguma fosse encontrado um terrenosobre o qual pudéssemos edificar; segundo, sob que título pos-suímos esta terra e podemos considerar-nos assegurados contratodas as pretensões hostis7. (KrV, B294-295).

    A passagem expressa que a metafísica precisa ser melhor fundamentadapara atingir o estatuto de ciência. Porém, vale ressaltar que a “Faculdadedo Entendimento” possui a curiosidade de atingir o outro mundo e por suafraqueza em distinguir o que pode ou não conhecer ultrapassa seus limites,fazendo com que caia por si mesma em ilusão e, aos poucos, retorne ao puroconhecimento do verdadeiro e real.

    Nos Sonhos de um visionário  há uma passagem que diz respeito à fraquezado entendimento, corroborando a possibilidade da articulação entre o Únicoargumento possível, Sonhos  e Crítica .

     A fraqueza do entendimento humano em ligação com sua curi-osidade faz com que se juntem inicialmente verdade e mentirasem distinção, mas pouco a pouco os conceitos são depurados,uma pequena parte permanece, o resto é jogado fora comolixo8. (TG, AA 02: 357).

    7 Wir haben jetzt das Land des reinen Verstandes nicht allein durch reiset und jeden Theil davon sorgfältig inAugenschein genommen, sondern es auch durchmessen und jedem Dinge auf demselben seine Stelle bestimmt.Dieses Land aber ist eine Insel und durch die Natur selbst in unveränderliche Grenzen eingeschlossen. Es ist dasLand der Wahrheit (ein reizen der Name), um geben von einem weiten und stürmischen Oceane, dem eigentlichenSitze des Scheins, wo manche Nebelbank und manches bald wegschmelzende Eis neue Länder lügt und, in dem

    es den auf Entdeckungen herumschwärmenden Seefahrer unaufhörlich mit leeren Hoffnungen täuscht, ihn inAbenteuer verechtet, von denen er niemals ablassen und sie doch auch niemals zu Ende bringen kann. Ehe wiruns aber auf dieses Meer wagen, um es nach allen Breiten zu durchsuchen und gewiß zu werden, ob etwas inihnen zu hoffen sei, so wir des nützlich sein, zuvor noch einen Blick auf die Karte des Landes zu werfen, das wireben verlassen wollen, und erstlich zu fragen, ob wir mit dem, was es in sich enthält, nicht allenfalls zufriedensein könnten, oder auch aus Noth zufrieden sein müssen, wenn es sonst überall keinen Boden giebt, auf demwir uns anbauen könnten; zweitens, unter welchem Titel wir denn selbst dieses Land besitzen und uns wider allefeindselige Ansprüche gesichert halten können.

    8 Die Schwäche des menschlichen Verstandes in Verbindung mit seiner Wißbegierde macht, daß man anfänglichWahrheit und Betrug ohne Unterschied aufrafft. Abernach und nach läutern sich die Begriffe, ein kleiner Theilbleibt, das übrige wird als Auskehricht weggeworfen.

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    Por m, considerando o período que comumente é dito como pré-críticoe tendo como marco da virada crítica o escrito Acerca da forma e dos

    princípios do mundo sensível e inteligível , buscou-se argumentar em favorda década de 1760 como um período antidogmático da losoa kantiana,com a abordagem dos escritos que possivelmente podem ser conguradoscomo escritos que conduziram Kant a engendrar sua losoa crítica e suaproposta de impor limites à razão a m de “salvar” a metafísica tradicionalque se encontrava em perfeito embaraço.

    Por m, é possível concluir essa investigação do seguinte modo: tantono Único argumento possível  como nas Grandezas Negativas e nos Sonhosde um visionário  o papel da experiência esteve presente, ou como base para

    a posição absoluta do existente (no espaço) ou como campo imprescindívelpara o conito real e também como conrmação da existência de conceitosracionais como espíritos, os quais os visionários buscavam abarcar com asmetáforas de espaço e tempo. Assim, pode-se notar a importância que eradada à experiência antes mesmo de Kant escrever a Dissertação de 1770  earmar que espaço e tempo são formas a priori da nossa intuição sensível eque há uma distinção entre mundo sensível e mundo inteligível. Tudo issopara enm desembocar na Crítica da razão   pura e concretizar, em algunsaspectos, seu pensamento que se desenrolava desde 1746 com seu primeiroescrito ainda de cunho cientíco que abriu o caminho para reexões que

    iriam alcançar o patamar metafísico que se inicia, supostamente, em 1755com a Nova Dilucidatio . Concluindo que os Sonhos de um visionáriopodem, de certo modo, ser caracterizados como o m do período pré-críticodemarcando com a Dissertação de 1770  uma passagem entre este período ea publicação da Crítica da razão pura .

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    O possível m da metafísica: Kant e os devaneios da razão

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    Glauber Cesar Klein

    Mestre em losoa / Universidade Federal do Paraná

    [email protected]

    O Problema de Kant

    Para Ana, que me despertou da letargia

    “Quando consideramos os construtores de castelos no ar dos

    tantos mundos de pensamento, cada um dos quais habita

    tranqüilamente o seu com exclusão dos outros (...), teremos

    paciência com a contradição de suas visões, até que estes se-

    nhores tenham acabado de sonhar.”1

    Resumo Neste artigo nosso objetivo será estabelecer as condições para aformulação kantiana da distinção entre fenômeno e coisa-em-si; trata-se de

    defender que o idealismo transcendental de Kant, cujo fundamento é justamente

    a noção por nós explorada, é uma tentativa inaudita de solução sistemática de

    diversos problemas, em especial os que representavam aporias ou limitações do

    pensamento iluminista, ainda que a avaliação geral kantiana estenda-se a toda

    a tradição metafísica.

    Palavras-chave Coisa-em-si, idealismo transcendental, metafísica.

    1. A formulação do problema

    Kant apresenta o objetivo da Crítica da Razão Pura  como uma tentativa

    1 KANT, 2005,Sonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica, terceiro capítulo, II 342 (tradução deJoãosinho Beckenkamp), pp. 176-7.

      a  r   t   i  g  o

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    inaudita2 de dissolver as diculdades que a metafísica inevitavelmente   en-contra3. Inevitavelmente  porque a metafísica é, por denição, conhecimentoque ultrapassa os limites da nossa experiência, o que para Kant signica umapretensão de conhecer o que não se pode provar . Esta pretensão, contudo, é justicável, pois se funda na tentativa de completar o conhecimento empíri-co, assim como satisfazer necessidades que são, por natureza, suprassensíveis.

    Pode-se progredir indenidamente   no conhecimento por princípiosnecessários e reconhecidos na experiência sensível, por esse caminho, no en-tanto, nunca se encontrará respostas que esgotem as questões. Assim, segun-do Kant, procurou-se princípios que não estão fundados na experiência e quea ultrapassam; com eles, livra-se da incompletude  e relatividade . Contudo,

    esta tentativa de solução, não obstante sua aparente inevitabilidade, acaboupor levar a metafísica à pluralidade de sistemas e à falta de critérios para de-cidir entre eles, uma vez que se abandonou a experiência como fonte e comopedra de toque. Os metafísicos acreditaram então que critérios meramentelógicos poderiam ser uma pedra de toque satisfatória para suas investigaçõestranscendentes, uma vez que assim progrediu e se consolidou a lógica e amatemática4. Os resultados da aplicação do método lógico ou matemático àmetafísica, no entanto, foram desastrosos: pluralidade de sistemas, inecáciada mera lógica como critério de decidibilidade entre eles5, falta de unidade

    2  Tentativa que assim se apresenta apenas inicialmente, sendo ao m provada como plenamente satisfatória,KANT, 2001, XXII, nota [Doravante, citaremos esta obra com a sigla CRP, seguida de indicação da edição alemã ede sua respectiva paginação (A ou B)]: “Neste prefácio unicamente apresento, a título de hipótese, a mudança demétodo exposta na crítica e que é análoga a esta hipótese copernicana. Esta mudança será contudo estabelecidano corpo da obra (...) Será assim provada, já não hipoteticamente, mas apodicticamente”.

    3 CRP, A VII ss.

    4 Com correção, a tradição assim entendia, mas parte da argumentação kantiana consistirá justamente em defen-der que a geometria funda-se nas formas puras da intuição, não em simples conceitos.

    5 O que signica dizer que, nesse contexto, cada sistema metafísico é um mundo diferente, isolado, no qual seuautor vive tranquilamente. Assim, diz Kant, em Sonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica, os sistemas metafísicos não diferem dos sonhos, no que esses têm de particular, subjetivo, introvertido. Seus

    autores dormem. O despertar signica a consciência de um mundo comum, que não pode comportar, no entanto,as contradições que existem entre aqueles mundos particulares. Cf. KANT, 2005, pp. 176-7: “Aristóteles diz emalgum lugar: quando estamos acordados, temos um mundo em comum, mas quando sonhamos cada qual temseu próprio. Quer me parecer que deve ser possível inverter a última proposição e dizer: se de diversos homenscada qual tem seu próprio mundo, então é de supor que eles sonham. Nesta base, quando consideramos osconstrutores de castelos no ar dos tantos mundos de pensamento, cada um dos quais habita tranqüilamente oseu com exclusão dos outros (...), teremos paciência com a contradição de suas visões, até que estes senhorestenham acabado de sonhar. Pois, quando eles alguma vez, queira Deus, estiverem inteiramente acordados, isto é,abrirem os olhos em uma direção que não exclui a concordância com o entendimento de outro homem, nenhumdeles verá algo que não devesse, à luz de suas demonstrações, mostrar-se evidente e certo também a qualquerum dos outros, e os lósofos habitarão então um mundo comum, tal como os matemáticos já possuem há muitotempo, um acontecimento importante que já não pode demorar muito, na medida em que se possa conar em

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    metodológica6, constante desacordo quanto aos objetos próprios dessa ciên-cia e, ainda, ignorância da razão do próprio fracasso.

    Após uma tentativa malograda de pôr m às disputas seculares por meiode um caminho inteiramente novo, a de Locke7, dando assim a impressão deque todas as possibilidades de realizar a metafísica como ciência já haviamsido aventuradas, em vão, e a meio do sucesso das demais ciências8, nome-adamente a Lógica, a Matemática e a Física9, a credibilidade da metafísica casub judice , com três consequências principais, que são: 1. Apelo ao senso-comum10, o que para Kant signica uma confusão de gêneros, uma vez que obom senso é útil e encontra seu limite nos juízos que se aplicam unicamenteà experiência imediata, portanto, às questões particulares, enquanto que ametafísica é o gênero de conhecimento que necessita de juízos gerais, a partirde simples conceitos. A confusão, pois, está no uso de juízos empíricos emquestões que são metafísicas11, o que nunca poderá resultar bem. 2. Ceti-cismo12, consequência direta da pluralidade de sistemas e da falta de critériospara decidir entre eles. 3. Indiferença13 frente às pretensões da metafísica, que

    certo sinais e premonições que apareceram há algum tempo sobre o horizonte das ciências” (grifos no original).Desta passagem, que data de 1776, portanto cinco anos antes da primeira Crítica, podemos ver ainda que Kant jáconcebia a situação da metafísica como o “teatro das disputas inndáveis”, levando a antinomias, que só podemser dissolvidas por um “despertar”, similar ao que atravessou a matemática, que então estava sendo apontadopelos sinais no “horizonte das [demais] ciências”. A propósito, cf. CASSIRER, 1993, pp. 555ss, pp. 565ss.

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     Vale ressaltar que a metafísica dogmática possui método (análise) e critérios (lógicos, como princípio de não--contradição, etc.), porém, eles são insucientes. Sobre isso, Kant já parece estar convencido em 1763, no Ensaiopara introduzir a noção de grandezas negativas em losoa , Observação geral, II 202ss, cf. KANT, 2005, pp. 96-9;cf. também CASSIRER, 1993, op. cit., pp. 555-6: “El ensayo sobre las Magnitudes negativas terminaba trazandouna línea divisoria entre el reino de los conceptos y el reino del ser. El principio de contradicción no sirve paraexpresar ni resolver los problemas planteados por la existencia empírica. La losofía wolfana buscaba el criteriode la realidad en la ordenación y la trabazón de lo concreto, pero ahora se ve que estas características lógicasresultan insucientes, si a ellas no vienen a añadirse otros factores y criterios “materiais”.”

    7 CRP, A IX.

    8 CRP, B VIII. Cf. também Prol., A 5, p. 12,: “Parece quase ridículo que, enquanto todas as outras ciências progridemcontinuamente, ela ande constantemente às voltas no mesmo lugar, sem avançar um passo, ela que quer ser aprópria sabedoria e cujos oráculos todos os homens consultam. Também os seus adeptos se dispersaram muito enão se vê que aqueles que se sentem sucientemente fortes para brilhar noutras ciências queiram arriscar nestaa sua fama, onde toda a gente, que, aliás, é ignorante em todas as outras coisas, se atribui um juízo decisivoporque, neste campo, não existe na realidade uma medida e um peso seguros para distinguir a profundidade daloquacidade trivial.”

    9 CRP, B VIII – XVIII.

    10 Prol. p. 16, A 11, 12.

    11 Prol., p. 17, A 13, 14. Cf. também BONACCINI, 2003, p. 190, nota 9.

    12 Prol., p. 144, A 164: “O cepticismo, na sua origem primeira, brota da metafísica e da sua dialéctica indisciplinada.”

    13 CRP, A X. Vale notar que este indiferentismo é uma consequência, para Kant, do espírito iluminista, que a tudo

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    não consegue repetir os resultados das outras ciências 14, a despeito de suaantiguidade e de suas repetidas tentativas.

    A conjunção destes três fatores forma o contexto da metafísica tal comoKant o encontrou. São peças de um quebra-cabeça que nunca se encaixam.E Kant não será outro a tentar uma nova organização com a esperança denalmente encontrar a que complete perfeitamente a posição destas peças.Ao contrário, ele está convencido de que é preciso jogar com outro tabuleiro.Para isso, no entanto, ele precisa antes provar o porquê da necessidade demudar o jogo e suas peças. Em outras palavras, mais corretas, ele precisamostrar porque a metafísica, até então, descambava para as consequênciasfunestas que explicitamos, ou ainda, por que o fracasso da metafísica em sua

    pretensão de cienticidade não é um resultado contingente, mas antes umaconsequência necessária de princípios ou pressupostos falsos de que partiramos dogmáticos.

    Embora seja habitual julgar que a necessidade dos fracassos da metafísicadevia-se à falta de um método (adequado) e de critérios universais, que per-mitiriam estabelecer os limites do objeto e das investigações desta ciência(juízo que se vale de uma analogia com as ciências bem-sucedidas e que decerta forma faz parte da colocação do problema  por parte de Kant), pensa-mos 15que esta é uma caracterização negativa, revelando antes as consequên-cias do que a causa. O ponto é que para elaborar um método adequado e

    estabelecer critérios seguros e universais, sem recorrer no erro das tentativaspré-críticas, é necessário saber por que o método e os critérios anterioreseram falhos, enm, saber quais os pressupostos e princípios do modo anteriorde fazer metafísica.

    Em carta a Garve, datada de 21 de novembro de 1798, Kant indica que suainvestigação crítica começou e foi motivada pelas antinomias:

     A antinomia da razão pura – ‘o mundo tem um começo; ele

    submete ao tribunal da razão: “Porém, esta indiferença, que se produz no meio do orescimento de todas as ciên-cias e ataca precisamente aquela, a cujos conhecimentos, se pudéssemos adquiri-los, renunciaríamos com menosfacilidade do que a qualquer outro, é um fenômeno digno de atenção e de reexão. Evidentemente que não éefeito de leviandade, mas do juízo amadurecido da época, que já não se deixa seduzir por um saber aparente...”(grifo do original). E que, diferentemente das outras duas consequências indicadas, aponta para um novo começo(CRP, A X): “Agora, depois de serem tentados todos os caminhos (ao que se vê) em vão, reina o enfado e um in -diferentismo, que engendram o caos e a noite nas ciências, mas também, ao mesmo tempo, são origem, ou pelomenos prelúdio, de uma próxima transformação e de uma renovação dessas ciências, que um zelo mal entendidotornara obscuras, confusas e inúteis”.

    14 Com exatidão, da Lógica, da Matemática e da Física.

    15 Pensamos com BONACCINI, 2003, pp. 169-70.

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    não tem nenhum começo’, e assim por diante, até à quarta: ‘háliberdade no homem’ contra ‘não há nenhuma liberdade, só a

    necessidade da natureza’ – é o que primeiro me acordou demeu sono dogmático e me dirigiu à Crítica da razão pura, pararesolver o escândalo da ostensiva contradição da razão consigomesma.16

    Outras passagens17 parecem abonar esta interpretação18, qual seja, de que odiagnóstico kantiano acerca da razão do fracasso metafísico está fundado naanálise das antinomias. A metafísica redunda em antinomias, isto porque tentaresponder, com o uso da razão pura, a questões que ultrapassam os limites daexperiência possível. Como já vimos, isto ocorre porque a metafísica é justamente

    a ciência que deve tratar das questões que ultrapassam os objetos sensíveis:

    ...os meus princípios que fazem das representações dos sentidosfenómenos, em vez de transformarem a verdade da experiênciaem simples aparência, são antes o único meio de evitar a ilusãotranscendental mediante a qual a metafísica, desde sempre,se iludiu e foi induzida aos esforços infantis de agarrar bolasde sabão, porque se tomavam os fenómenos, que são simples

    16 KANT, 1910, XII, 257-258. Grifos nossos. Também citada, com algumas diferenças, por LEBRUN, 1993, p. 95:“Meu ponto de partida não foi a investigação da existência de Deus, da imortalidade, etc., mas a Antinomia darazão pura... foi ela que me despertou pela primeira vez do sono dogmático e me levou à crítica da própria razão,para fazer cessar o escândalo de uma aparente contradição da razão consigo mesma”. É pertinente, ainda, notar aexplicação de Rubens Rodrigues TORRES FILHO, 2004, p. 37, sobre a expressão “sono dogmático” – por ocasião daanálise de outra passagem de Kant, mais célebre, na qual o despertar crítico é consagrado à “advertência de DavidHume” sobre a justicação do princípio de causalidade, na qual “sono” (Schlummer ) quer dizer mais propriamente“sono pesado, letargia, ou, mesmo, modorra”.

    17 CRP, A XII-XIII: “Assim, enveredei por este caminho, o único que me restava seguir e sinto- me lisonjeado porter conseguido eliminar todos os erros que até agora tinham dividido a razão consigo mesma, no seu uso forada experiência. Não evitei as suas questões, desculpando-me com a impotência da razão humana; pelo con -trário, especiquei-as completamente, segundo princípios e, depois de ter descoberto o ponto preciso do mal --entendido da razão consigo mesma, resolvi-as com a sua inteira satisfação”. B 22-23: “Como, porém, até agoratodas as tentativas para dar resposta a essas interrogações naturais, como seja, por exemplo, se o mundo tem umcomeço ou existe desde a eternidade, etc., sempre depararam com contradições inevitáveis, não podemos dar-nos

    por satisfeitos com a simples disposição natural da razão pura para a metafísica, isto é, com a faculdade pura darazão, da qual, aliás, sempre nasce uma metafísica (seja ela qual for); pelo contrário, tem que ser possível, no quese lhe refere, atingir uma certeza: a do conhecimento ou ignorância dos objetos, isto é, uma decisão quanto aosobjetos das suas interrogações ou quanto à capacidade ou incapacidade da razão para formular juízos que se lhesreportem; consequentemente, para estender com conança a nossa razão pura ou para lhe pôr limites segurose determinados. Esta última questão, que decorre do problema geral acima apresentado, poderia justamenteformular-se assim: como é possível a metafísica enquanto ciência? B 434, A 408; cf. também A 413-24 (sic), B451-2. Ver ainda GUYER, 1987, pp. 385ss.

    18 Que foi defendida, ou pelo menos enunciada, pela primeira vez por ERDMANN, B. Die Entwicklungsperiodenvon Kants theoretischer Philosophie.  In: Reexionen Kants zur kritischen Philosophie (1882-1884), Stuttgart:Frommann-Holzboog, 1992, p. xxviii; apud FIGUEIREDO, V. Apresentação, in: KANT, 2005, pp. 15-6.

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    representações, por coisas em si mesmas; daí se seguiram to-das aquelas ocorrências curiosas da antinomia da razão, que

    mencionarei mais adiante, e que se encontra suprimida por estasimples observação, a saber, que o fenómeno, enquanto forutilizado na experiência, suscita a verdade, mas logo que ul-trapassa os limites da mesma e se torna transcendente produzapenas a aparência.19

    Como a experiência não pode fornecer os objetos desta ciência, a metafísi-ca conta exclusivamente com o uso a priori  de conceitos puros para respond-er às questões que a razão mesma se coloca, método que, como já foi apon-tado, seguia o juízo da época acerca da matemática. Assim, o insucesso – os

    resultados antinômicos – da metafísica equivale, para Kant, à legitimidade oucoerência da própria razão. Como a metafísica, com seu uso exclusivamentede conceitos a priori, acaba por redundar em antinomias, parece plausívelinvestigar se não é a própria razão a causa do insucesso20, se não é ela mesmaque leva, inevitavelmente , às contradições e aos resultados aporéticos:

    Porque será então que ainda aqui não se encontrou o caminhoseguro da ciência [metafísica]? Acaso será ele impossível? Deonde provém que a natureza pôs na nossa razão o impulsoincansável de procurar esse caminho como um dos seus mais

    importantes desígnios? Mais ainda: quão poucos motivos ter-emos para confiar na nossa razão se, num dos pontos maisimportantes do nosso desejo de saber, não só nos abandonacomo nos ludibria com miragens, acabando por nos enganar!Ou talvez até hoje nos tenhamos apenas enganado no camin-ho; de que indícios nos poderemos servir para esperar, em no-vas investigações, sermos melhor sucedidos do que os outrosque nos precederam?21

    Assim, o problema que Kant tem de enfrentar é o de resolver as antino-mias, mostrar que a metafísica – conhecimento puro da razão – é possível

    como ciência, o que equivale a mostrar por que a metafísica dogmática caiem aporias e quais os princípios que a nova metafísica precisa adotar. Se esteempreendimento for bem sucedido, Kant garante ao mesmo tempo a validez

    19 Prol. A 69 (trad. port. p. 63).

    20 CRP, B XV.

    21 Idem.

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    e consistência da própria razão pura.

    2. A solução do problema

    Mas como Kant pode criticar, para rechaçar ou validar, a possibilidade deum conhecimento racional puro senão pelo uso do mesmo? Não haveria aquium círculo, que já de início inviabilizaria a solução do problema levantadopor Kant? Se a razão pura é confusa e contraditória, seu autoexame tambémnão o será?22 O ponto de partida da investigação de Kant, entretanto, é outro.Trata-se antes de analisar a possibilidade de um conhecimento a priori  dos

    objetos da experiência do que a possibilidade do conhecimento dos objetossuprassensíveis23. Assim, o primeiro passo da investigação é, justamente, umaanálise do modo de proceder dos conhecimentos que já encontraram a viasegura da ciência. Kant quer saber, em um primeiro ponto, se os elementosda razão pura em geral operam e são a fonte do conhecimento necessário euniversal a que chegam a lógica, a matemática e a física, portanto, do con-hecimento cuja validade não está posta em dúvida.

    Mas o deslocamento da investigação dos objetos metafísicos para umaanálise das ciências não serve apenas como uma estratégia para escapar docírculo supramencionado, ela é antes uma exigência da própria problemática

    que Kant enfrenta, uma vez que os dogmáticos buscavam alcançar o con-hecimento seguro na metafísica a partir do exemplo destas ciências. SegundoKant24, a matemática representava a ciência-modelo para as pretensões dos

    22 Diculdade já apontada de maneira similar por Kant na Investigação sobre a evidência dos primeiros princí -pios da teologia natural e da moral , KANT, 2005, pp. 103-4: “Que modo de proceder, porém, deverá possuir estepróprio tratado, em que se deve mostrar à metafísica seu verdadeiro grau de certeza, juntamente com a via pelaqual aí se chega? Se esta exposição fosse, uma vez mais, metafísica, então seu juízo seria justamente tão inseguroquanto tem sido até agora essa ciência, que espera adquirir alguma constância e solidez graças a esta exposição,e tudo se poria a perder. Conarei, por isso, a todo o conteúdo de meu tratado proposições empíricas seguras econsequências imediatas extraídas a partir delas. Não me arei nas doutrinas dos lósofos, cuja insegurança dáensejo justamente à presente tarefa, nem nas denições, que enganam com tanta frequência” (grifos nossos).

    23 Cf. Prol., p. 177, A 207, nota: “O idealismo propriamente dito teve sempre uma intenção mística e não pode teroutra; o meu idealismo, porém, visa simplesmente compreender a possibilidade do nosso conhecimento a prioridos objectos da experiência, problema que até agora não foi resolvido, nem sequer levantado” (grifos nossos).

    24 CRP A 712, B 741: “A matemática fornece o exemplo mais brilhante de uma razão pura que se estende com êxitopor si mesma, sem o auxílio da experiência”.

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    metafísicos dogmáticos25. Estes26 entendiam que a matemática constituía-setão-somente de proposições a priori  analíticas (o que para eles era o mesmo),

    progredindo então pela simples análise, tendo o princípio de contradiçãocomo pedra de toque. O método bem-sucedido da matemática, então inter-pretado como absolutamente analítico, fez com que os metafísicos acreditas-sem que o mesmo era possível na sua pretensão de conhecimento de obje-tos que ultrapassam totalmente a nossa experiência. Poderíamos conhecer aorigem do mundo, a simplicidade da alma, a existência de Deus, etc., a partirexclusivamente da análise de conceitos a priori . O resultado, no entanto, con-tinuou a ser antinômico. E, segundo Kant, não poderia deixar de ser, pois,de um lado, (1) essa concepção da natureza do conhecimento matemático éerrada, por outro, (2) o uso que dela faziam os dogmáticos estava fundadonuma falsa pressuposição.

    Uma vez bem estabelecidos estes pares, voltemos aos dois pontos que, julgamos, são os essenciais para entender a importância nuclear, para o em-preendimento kantiano, da análise da matemática. O primeiro deles é a argu-mentação de Kant para mostrar que os dogmáticos estavam errados ao julgarque o conhecimento matemático é puramente analítico. De fato, diz Kant,as inferências matemáticas procedem segundo o princípio de contradição,mas disso não se segue que os axiomas sejam conhecidos por análise, pelocontrário, são juízos sintéticos a priori . Temos que, na aritmética, o conceito

    de doze não está contido o conceito da soma do 5 e do 7, e nem o contrárioé possível. A proposição “5 + 7 = 12” só pode ser inferida a partir da presençadas unidades 5 e 7 na intuição . Com os princípios da geometria pura ocorre omesmo: do conceito de linha reta  não posso extrair nada mais que qualidade,mas não quantidade; a proposição que diz ser a linha reta a menor distânciaentre dois pontos requer uma intuição do espaço, e é, portanto, sintética 27.Dito ainda de outro modo, Kant argumenta aqui que os dogmáticos igno-raram o fato de que uma análise nada mais pode fazer senão decompor, des-

    25 CRP, A 4, B 8: “Pois que uma parte desses conhecimentos, [como sejam os de] a matemática, há muito que é dodomínio da certeza, dando assim favorável esperança para os outros, embora estes últimos possam ser de nature-za completamente diferente”. Cf. também CRP A 712ss, B 740ss. No Ensaio para introduzir a noção de grandezasnegativas em losoa, II 167, cf. KANT, 2005, p. 53, Kant distingue dois empregos losócos da matemática, quaissejam, imitação de seu método e aplicação de suas proposições aos objetos da losoa. Em relação a este, Kantdefendia ser de uso vantajoso; em relação ao primeiro, no entanto, seu juízo já era negativo.

    26 O caso exemplar e fundamental parece ser Leibniz, que defendia que a matemática tem seu fundamento ex-clusivamente em denições e no princípio de contradição, portanto, que ela é absolutamente analítica (cf. Novoensaio sobre o entendimento humano, livro IV, cap. VII), apud HÖFFE, 2005, pp. 53-4.

    27 CRP A 10ss, B 14ss; Prol., A 26ss, pp. 26ss.

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    membrar, o conceito28, que, contudo, pressupõe algo a que se refere, o qual sópode nos ser dado através de uma intuição . A impossibilidade desta concep-

    ção para os pensadores pré-críticos, entretanto, acontecia porque para elesa tese de que os axiomas da matemática são fundados na intuição implicavaque ela seria, então, a posteriori , o que vale dizer, sem necessidade e univer-sidade restritas (sendo que estas qualidades serviam de ponto de partida paraas suas pretensões). No entanto, a losoa transcendental de Kant assegura ocaráter necessário e universal da matemática, pois os conceitos fundamentaisdesta são dados na intuição pura .

    Assim, para Kant, a matemática constrói  seus conceitos29, com o auxílioda imaginação, a partir da forma da intuição pura 30, a saber, do tempo. Portanto, há sempre uma pedra de toque para validar ou não estes conceitos, asaber, a forma da intuição, que, para Kant, é em nós sensível (leia-se passível).No conhecimento metafísico, todavia, opera-se apenas com meros conceitos,sem a possibilidade de apresentá-los em uma intuição correspondente, comoacontece na matemática, geometria ou física pura, isto porque seus objetosnão são, por denição, sensíveis31. Só seria possível apresentar um correlatointuitivo, isto é, real , aos conceitos racionais metafísicos em uma intuiçãonão sensível, o que vale dizer, numa intuição que nós não possuímos .

    Num segundo momento, o ganho da análise da matemática é o da desc-oberta do pressuposto que tornava os princípios dogmáticos responsáveis

    pelo fracasso da metafísica como ciência: Tais princípios pressupunham queseria possível avançar no conhecimento de objetos metafísicos a partir demeras denições e análise conceitual, o que vale dizer – parte-se do princí -pio de que é possível conhecer as coisas tais como elas são em si mesmas ,isto é, seria possível ter acesso à essência – o que o ser é em absoluto, emsi mesmo – dos objetos. Este princípio é o que torna possível as pretensões

    28 Prol., A 72, p. 65.

    29 CRP, A 713ss, B 741ss: “O conhecimento losóco é o conhecimento racional por conceitos, o conhecimentomatemático, por construção de conceitos. Porém, construir um conceito signica apresentar a priori a intuiçãoque lhe corresponde. Para a construção de um conceito exige-se, portanto, uma intuição não empírica que,consequentemente, como intuição é um objeto singular, mas como construção de um conceito (de uma repre-sentação geral), nem por isso deve deixar de exprimir qualquer coisa que valha universalmente na representação,para todas as intuições possíveis que pertencem ao mesmo conceito”.

    30 Similar é a análise da “ciência da natureza”. Em CRP B 17 – B 18, Kant cita exemplos de juízos sintéticos a priorida física, por exemplo, em todas as mudanças no mundo corpóreo a quantidade de matéria permanece imutável,sendo que no conceito de matéria não está contido o predicado de permanência. A propósito, ver também Prol.,A 73ss, pp. 66ss.

    31 Ainda a propósito das diferenças entre os juízos metafísicos e os da matemática e os da física, cf. CRP, A 736,B 764.

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    dogmáticas de conhecer objetos, os quais não temos acesso sensível, postoque são inteligíveis, por meio de meros conceitos e análise. Mas, como já

    salientamos, este pressuposto funda-se, para Kant, num juízo errado acercado modus operandi  da matemática, que, emprestado à metafísica, desembocaem antinomias e na falta de um critério de decidibilidade satisfatório32.

    A proposta de solução dada por Kant parte novamente da análise dasciências que, a seu ver, já encontraram “a via segura da ciência”33. Elas tam-bém passaram por períodos de “mero tateio”34, até que então, por meio deuma revolução súbita do modo de pensar 35, alcançaram nal e denitiva-mente a estabilidade e segurança que agora gozam. O juízo de Kant é o deque esses domínios bem-aventurados do saber humano só foram possíveisquando se compreendeu que

    a razão só entende aquilo que produz segundo os seus própriosplanos; que ela tem que tomar a dianteira com princípios, quedeterminam os seus juízos segundo leis constantes e deve for-çar a natureza a responder às suas interrogações em vez de sedeixar guiar por esta.36

     Com isso, entende-se que o nosso conhecimento não pode partir  ou reg-ular-se apenas com o que nos é dado, posto que assim não conheceríamosnada a priori  das coisas, portanto, nenhum conhecimento necessário e uni-

    versal seria possível. Ao contrário, as ciências atestam que antes é necessárioter um plano prévio, orientar-se  com princípios e critérios que determinem oque se quer descobrir.

    A metafísica deve abandonar o princípio que reza que as coisas-em-si-mesmas nos são dadas, de alguma forma, e então apenas a partir disso

    32 CRP, A 740, B 768; Prol. A 212-3, p. 181: “As outras ciências e os outros conhecimentos possuem, contudo, oseu padrão. A matemática tem o seu em si mesma, (...) Mas, para julgar a coisa que se chama metafísica, deveprimeiro encontrar-se o padrão (z uma tentativa para o determinar a ele e ao seu uso). Que há, pois, a fazer atéele ser encontrado, se, não obstante, importa avaliar escritos deste gênero? Se eles são de tipo dogmático, pode

    agir-se como se quiser: aqui ninguém se erigirá em mestre relativamente a outros, se se encontrar alguém quelhe pague na mesma medida. Se, porém, são de natureza crítica, visando não outros escritos, mas a própria razão,de maneira que o padrão de avaliação não pode já ser adoptado, mas deve primeiramente ser procurado, podem,neste caso, admitir-se objecções e censuras; a compatibilidade, porém, deve estar na base, porque a necessidade écomum e a carência de conhecimento necessário torna inadmissível a atitude decisiva de um juiz”.

    33 CRP, B VII.

    34 Idem, ibidem.

    35 Idem, B XII.

    36 Idem, B XIII.

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    regulamos nosso conhecimento delas. Antes, ela deve seguir o exemplo deCopérnico, que, segundo Kant, tentou ver se não teria mais sucesso em suas

    investigações ao postular que o expectador gira em torno dos objetos (ce-lestes), e não o contrário37. Ela deve, enm, tentar uma inversão completado ponto de partida . Isto quer dizer que deve abandonar o princípio de quenossa intuição regula-se pelos objetos que nos são dados. Com efeito, dizKant38, é um contrassenso imaginar que podemos conhecer algo a priori doobjeto (vale dizer, absolutamente a priori , portanto, o único modo de terdeles um conhecimento necessário e universal39), se dependemos que ele nosseja dado. Só podemos pretender conhecer algo a priori  de objetos se puder-mos ter acesso a algo deles antes que nos sejam dados40.

    Contudo, como já indicamos, essa possibilidade  era inconcebível para umpensador pré-kantiano, pois não haveria outro modo de ter acesso intuitivoaos objetos empíricos senão quando eles nos fossem dados. Ter um acessointuitivo, isto é, sensível, de objetos empíricos, signicava somente e exclu-sivamente que eles nos afetam empiricamente. Portanto, não se aguravade modo algum como seria possível saber intuitivamente algo a priori   doobjeto. A alternativa kantiana só é possível com a teoria transcendental daintuição, ou seja, com a concepção de que a intuição contém formas puras ,tempo e espaço. Na próxima seção do nosso texto, investigaremos qual é afundamentação que a Estética Transcendental  dá a essa teoria das formas

    puras da intuição.Mas não basta apenas pensar a possibilidade de ter acesso a priori a algo

    37 Idem, B XVII: “Trata-se aqui de uma semelhança com a primeira ideia de Copérnico; não podendo prosseguirna explicação dos movimentos celestes enquanto admitia que toda a multidão de estrelas se movia em tornodo espectador, tentou se não daria melhor resultado fazer antes girar o espectador e deixar os astros imóveis”.

    38 Idem, ibidem: “Ora, na metafísica, pode-se tentar o mesmo, no que diz respeito à intuição dos objetos. Se aintuição tivesse de se guiar pela natureza dos objetos, não vejo como deles se poderia conhecer algo a priori; se,pelo contrário, o objeto (enquanto objeto dos sentidos) se guiar pela natureza da nossa faculdade de intuição,posso perfeitamente representar essa possibilidade”.

    39 Idem, B 3: “Em primeiro lugar, se encontrarmos uma proposição que apenas se possa pensar como necessária,

    estamos em presença de um juízo a priori; se, além disso, essa proposição não for derivada de nenhuma outra, quepor seu turno tenha o valor de uma proposição necessária, então é absolutamente a priori. Em segundo lugar, aexperiência não concede nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa, apenas universalidadesuposta e comparativa (por indução), de tal modo que, em verdade, antes se deveria dizer: tanto quanto até agoranos foi dado vericar, não se encontram exceções a esta ou àquela regra. Portanto, se um juízo é pensado comrigorosa universalidade, quer dizer, de tal modo que, nenhuma exceção se admite como possível, não é derivadoda experiência, mas é absolutamente válido a priori” (grifos no original).

    40  Idem, B XVI: “Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas da metafísica,admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com oque desejamos, a saber, a possibilidade de um conhecimento a priori desses objetos, que estabeleça algo sobreeles antes de nos serem dados”.

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    dos objetos sensíveis, no caso, de suas formas, pois o conhecimento cientí-co depende não apenas desse acesso, é necessário também que se chegue a

    conceitos, regras e leis aos quais eles estão, necessária e universalmente, sub-metidos. Ora, se estes conceitos e regras dependem do que conhecemos dosobjetos, portanto, de que eles nos sejam dados, novamente torna-se impos-sível ter conhecimento absolutamente a priori  deles. Assim, faz-se necessárioque também os conceitos e princípios sejam algo que o investigador já tem deantemão à sua pesquisa dos objetos empíricos41, que são a condição de pos-sibilidade desta forma de conhecimento. Portanto, Kant precisa igualmentede uma teoria da fonte a priori dos conceitos e princípios, o que ele apresentana Analítica Transcendental .

    Uma vez que estes dois passos estejam fundamentados, Kant leva a caboa revolução copernicana em losoa , o que quer dizer: só conhecemos dascoisas aquilo que nós mesmos lhes atribuímos: formas puras da intuição eregras universais e necessárias, posto que fundadas em categorias a priori.Essa tese tem, por sua vez, o seguinte princípio: só conhecemos fenômenos,nunca as coisas como elas são em si mesmas, isto é, independentes das con-dições transcendentais. Desta forma, o sucesso do projeto kantiano dependeda solução satisfatória do problema do conhecimento a priori 42, ou seja, quea distinção entre fenômenos e coisas-em-si-mesmas dissolva as contradições(que então se mostrarão aparentes, pois só existem como consequência de um

    falso princípio, o de que é possível o conhecimento das coisas-em-si-mesmas)da razão pura43.Bem entendida, a tese do idealismo transcendental quer provar que não

    41 Idem, B XVIII.

    42 As objeções de Jacobi a Kant procuram tocar nesta ferida: a distinção transcendental entre fenômeno e coisa--em-si não resolve o problema do conhecimento, o que se evidencia, para Jacobi, no resultado aporético destadistinção, assim como em duas consequências funestas, o ceticismo (nossa ignorância das coisas como são em si)e o solipsismo (só temos acesso a meras representações).

    43 Idem, B XIX-XX: “Porém, a verdade do resultado que obtemos nesta primeira apreciação do nosso conhecimen-

    to racional a priori é-nos dada pela contraprova da experimentação, pelo fato desse conhecimento apenas sereferir a fenômenos e não às coisas em si que, embora em si mesmas reais, se mantêm para nós incognoscíveis.Com efeito, o que nos leva necessariamente a transpor os limites da experiência e de todos os fenômenos é oincondicionado, que a razão exige necessariamente e com plena legitimidade nas coisas em si, para tudo o queé condicionado, a m de acabar, assim, a série das condições. Ora, admitindo que o nosso conhecimento porexperiência se guia pelos objetos, como coisas em si, descobre-se que o incondicionado não pode ser pensadosem contradição; pelo contrário, desaparece a contradição se admitirmos que a nossa representação das coisas,tais como nos são dadas, não se regula por estas, consideradas como coisas em si, mas que são esses objetos,como fenômenos, que se regulam pelo nosso modo de representação, tendo consequentemente que buscar-seo incondicionado não nas coisas, na medida em que as conhecemos (em que nos são dadas), mas na medida emque as não conhecemos, enquanto coisas em si; isto é uma prova de que tem fundamento o que inicialmenteadmitimos à guisa de ensaio”.

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    é possível um conhecimento  que ultrapasse os limites da nossa  experiênciapossível, isto é, um uso de conceitos que extrapola as possibilidades de refer-ência a representações sensíveis, portanto, a objetos que podem ser apresen-tados a nossa sensibilidade. Contudo, os conceitos de nosso entendimento eas formas de nossa sensibilidade nada mais são que a parte formal do con-hecimento, sendo necessário que a sua parte material nos seja, de algumaforma, dada . Assim, a armação de que conhecemos fenômenos implica quepensemos as coisas em si mesmas, sem as quais não haveria a parte materialdaqueles. Nas palavras de Kant, temos que pensar  as coisas-em-si-mesmascomo fundamento  dos fenômenos, caso contrário “seríamos levados à prop-osição absurda de que haveria fenômeno (aparência), sem haver algo que

    aparecesse”44

    .Consequentemente, a distinção transcendental entre as coisas tal comoelas nos aparece (sob as formas  de nossas condições intelectuais e sensíveis)e tal como elas são em-si-mesmas (abstração feita das condições formais)implica a distinção entre conhecer  e pensar  os objetos. O conhecimento de-pende da referência possível  dos conceitos à experiência, isto é, à pedra detoque que garante a existência dos objetos aos quais os conceitos de referem.O pensamento, no entanto, não tem de se comprometer com a realidadesensível  dos seus objetos, isto é, a que pode ser comprovada, mas apenas coma sua possibilidade . Uma vez que a experiência sensível é a única pedra de

    toque a que temos acesso para vericação da existência de objetos , à faltadela não é possível armar ou negar  a existência dos objetos a que fazemreferência os conceitos que são meramente pensados.

    A referência a um âmbito inteligível, no entanto, é necessária, pois, semela, teríamos de admitir ou bem que o conhecimento é impossível, tendo-nos de haver apenas com meras representações subjetivas, o que equivaleao solipsismo, ou bem que conhecemos as coisas tais como elas são, o que,como vimos, leva o pensamento a antinomias insolúveis. O argumento deKant, ao contrário, é o de que temos efetivamente conhecimento objetivo dascoisas, isto é, um conhecimento necessário e universal, mas apenas das coisas

    como aparecerem para nós, isto é, sob as condições formais necessárias. As-sim, para Kant, é possível o conhecimento objetivo se consideramos que eleestá fundado na relação  do conteúdo material do conhecido com a formaa priori – universal e necessária – do conhecedor. Conceber, contudo, que oconhecimento se dá na relação  do que é dado com o que é ordenador implicanecessariamente em conceber algo que pode ser dado, isto é, à parte de sua

    44 Idem, B XXVI-XXVII.

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    Glauber Cesar Klein

    38 Metafísica: Fundamentação e Crítica

    relação efetiva com nós. Desta forma, não obstante a impossibilidade de con-hecermos as coisas fora das suas relações  com nós, pensá-las em si mesmas– incondicionadas – é uma exigência da própria distinção transcendental.

    Retomando brevemente o que foi dito neste capítulo, temos que (1) asituação factual da metafísica, tal como Kant a entendeu, era de uma lutainterminável entre sistemas, (2) esta diversidade e a falta de um critério paradecidir entre as teorias acabavam por levar ao ceticismo, à indiferença e aoapelo ao senso-comum, enm, ao fracasso das pretensões de cienticidadeem metafísica, (3) este resultado factual não se devia a erros ou imperfeiçõesinternas, mas ao fato das diversas teorias partirem de um princípio comuminjusticado, (4) o πρωτον ψευδος dos dogmáticos constituía-se no pres-

    suposto de que é possível conhecer as coisas tal como elas são em si mesmas,(5) esse pressuposto incluía uma compreensão errônea do sucesso das demaisciências, em especial da matemática, cujos critérios e método eram assimiladosà investigação metafísica, (6) a aposta de solução por parte de Kant começacom uma nova compreensão do sucesso das demais ciências, em especial,da matemática; ela concebe que os princípios matemáticos são sintéticos,mas a priori, o que implica por sua vez uma nova teoria acerca da intuição edo entendimento, (7) esta análise do modus operandi  da matemática levouKant a conceber que só podemos conhecer, de modo universal e necessário,das coisas aquilo que nós mesmo nelas colocamos, o que signica dizer que

    só conhecemos os fenômenos – condicionamento das coisas em relação àsformas e conceitos presentes a priori