Cadernos HumanizaSUS Vol.5

550

description

Último volume dos Cadernos, sobre a temática da saúde mental.

Transcript of Cadernos HumanizaSUS Vol.5

  • MINISTRIO DA SADESecretaria de Ateno Sade

    Departamento de Aes Programticas Estratgicas

    Volume 5

    Sade Mental

    Braslia DF2015

  • 2015 Ministrio da Sade.

    Esta obra disponibilizada nos termos da Licena Creative Commons Atribuio No Comercial Compartilhamento pela mesma licena 4.0 Internacional. permitida a reproduo parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte.

    A coleo institucional do Ministrio da Sade pode ser acessada, na ntegra, na Biblioteca Virtual em Sade do Ministrio da Sade: .

    Tiragem: 1 edio 2015 1.000 exemplares

    Elaborao, distribuio e informaes:

    MINISTRIO DA SADE Secretaria de Ateno Sade Departamento de Aes Programticas Estratgicas SAF SUL,Trecho 2, bloco F, 1 andar, sala 102Ed. Premium, Torre II CEP: 70070-600 Braslia/DFTel.: (61) 3315-9130Site: www.saude.gov.br/humanizasus www.redehumanizasus.netE-mail: [email protected]

    Coordenao:Liliana da EscssiaSimone Mainieri Paulon

    Organizao:Liliana da EscssiaSimone Mainieri Paulon

    Reviso:Liliana da EscssiaMariella Silva de Oliveira Renata Adjuto de MeloSimone Mainieri Paulon

    Projeto grfico e capa:Antnio Srgio de Freitas Ferreira

    Editora responsvel:MINISTRIO DA SADESecretaria-ExecutivaSubsecretaria de Assuntos AdministrativosCoordenao-Geral de Documentao e InformaoCoordenao de Gesto EditorialSIA, Trecho 4, lotes 540/610CEP: 71200-040 Braslia/DFTels.: (61) 3315-7790 / 3315-7794Fax: (61) 3233-9558Site: http://editora.saude.gov.brE-mail: [email protected]

    Equipe editorial:Normalizao: Francisca Martins PereiraReviso: Khamila Silva e Tatiane SouzaDiagramao: Renato Carvalho

    Impresso no Brasil / Printed in Brazil

    Ficha Catalogrfica

    Brasil. Ministrio da Sade. Secretaria de Ateno Sade. Departamento de Aes Programticas Estratgicas. Sade Mental / Ministrio da Sade, Secretaria de Ateno Sade, Departamento de Aes Programticas Estratgicas. Braslia : Ministrio da Sade, 2015.

    548 p. : il. (Caderno HumanizaSUS ; v. 5)

    ISBN 978-85-334-2223-0

    1. Sade Mental. 2. Sistema nico de Sade. 3.Sade Pblica. I. Ttulo. II. Srie.

    CDU 613.86

    Catalogao na fonte Coordenao-Geral de Documentao e Informao Editora MS OS 2015/0007

    Ttulos para indexao:Em ingls: Mental HealthEm espanhol: Salud Mental

  • Sumrio

    Apresentao ..............................................................................................................................................................7

    Parte 1 Artigos .......................................................................................................................................................11

    Entre o Crcere e a Liberdade: Apostas na Produo Cotidiana de Modos Diferentes de Cuidar / Silvio Yasui .......................................................................................................................................................................13

    A Psiquiatrizao da Vida: Arranjos da Loucura, Hoje / Tania Mara Galli Fonseca e Regina Longaray Jaeger .............................................................................................................................................................23

    Processos de Desinstitucionalizao em Caps ad como Estratgia de Humanizao da Ateno e Gesto da Sade/ Ariane Brum de Carvalho Bulhes, Michele de Freitas Faria de Vasconcelos, Liliana da Escssia .........................................................................................................................................................41

    As Reflexes Terico-Metodolgicas sobre Sade Mental e Humanizao na Ateno Primria no Municpio de Serra/ES / Fbio Hebert da Silva, Janaina Madeira Brito ......................................................65

    Travesias de Humanizao na Sade Mental: Tecendo Redes, Formando Apoiadores / Vania Roseli Correa de Mello e Simone Mainieri Paulon ..................................85

    O Corpo como Fio Condutor para Ampliao da Clnica / Dagoberto Oliveira Machado, Michele de Freitas Faria Vasconcelos e Aldo Rezende de Melo ......................................................................................107

    Apoio Matricial: Cartografando seus Efeitos na Rede de Cuidados e no Processo de Desinstitucionalizao da Loucura / Meyrielle Belotti e Maria Cristina Campello Lavrador ................129

    Efeitos Transversais da Superviso Clnico-Institucional na Rede de Ateno Psicossocial / Joana Anglica Macedo Oliveira e Eduardo Passos .......................................................................................................147

    Para Alm e Aqum de Anjos, Loucos ou Demnios: Caps e Pentecostalismo em Anlise/ Luana Silveira da Silveira e Mnica de Oliveira Nunes ..................................................................................................163

    O Trabalho dos Agentes Comunitrios de Sade no Cuidado com Pessoas que Usam Drogas: Um Dialgo com a PNH / Rosane Azevedo Neves da Silva, Gustavo Zambenetti e Carlos Augusto Piccinini .............................................................................................................................................................................183

    Humanizao e Reforma Psiquitrica: A Radicalidade de tica em Defesa da Vida / Ana Rita Trajano e Rosemeire Silva ..........................................................................................................................................197

    Reduzindo Danos e Ampliando a Clnica: Desafios para a Garantia do Acesso Universal e os Confrontos cm a Internao Compulsria / Tadeu de Paula Souza e Srgio Carvalho .........................215

    Acesso e Compartilhamento da Experincia na Gesto Autnoma da Medicao O Manejo Cogestivo / Jorge J. Melo, Paula B. Schaeppi, Guilherme Soares, Eduardo Passos ...................................233

  • Parte 2 Relatos de Pesquisas .........................................................................................................................249

    Reportagem 1 Pesquisas em Sade Mental no Brasil / Mariella Oliveira ...........................251

    A Experincia de Produo de Saber no Encontro entre Pesquisadores e Usurios de Servios Pblicos de Sade Mental: A Construo do Guia GAM Brasileiro / Adair Alves Flores, Adriana Hashem Muhammad, Adriana Porto da Conceio, Amauri Nogueira, Analice de Lima Palombini, Ceclia de Castro e Marques, Eduardo Passos, Elisabeth Sabino dos Santos, Fernando Medeiros, Girliane Silva de Sousa, Jorge Melo, Jlio Csar dos Santos Andrade, Larry Fernando Didrich, Laura Lamas Martins Gonalves, Luciana Togni de Lima e Silva Surjus, Luciano Marques Lira, Maria Anglica Zamora Xavier, Maria Regina do Nascimento, Marlia Silveira, Nilson Souza do Nascimento, Paulo Ricardo Ost, Renato Flix Oliveira, Roberto do Nascimento, Rodrigo Fernando Presotto, Sandra Maria Schmitz Hoff, Rosana Onocko Campos, Thas Mikie de Carvalho Otanari ...................................257

    O Tempo, o Invisvel e o Julgamento: Notas sobre Acolhimento Crise em Sade Mental em Emergncias de Hospitais Gerais / Simone Mainieri Paulon, Alice Grasiela Cardoso Rezende Chaves, Andr Luis Leite de Figueiredo Sales , Carolina Eidelwein, Cssio Streb Nogueira Dbora Leal, Diego Drescher, Eduardo Eggres, Liana Cristina Della Vecchia Pereira, Mrio Francis Petry, Renata Flores Trepte .............................. 277

    Desafios da Rede de Ateno Psicossocial: Problematizao de uma Experincia Acerca da Implantao de Novos Dispositivos de lcool e Outras Drogas na Rede de Sade Mental da Cidade de Vitria/ES / Anselmo Clemente, Maria Cristina Campello Lavrador, Andrea Romanholi 299

    O Atendimento da Crise nos Diversos Componentes da Rede de Ateno Psicossocial em Natal/RN / Magda Dimenstein, Ana Karenina Arraes Amorim, Jader Leite, Kamila Siqueira, Viktor Gruska, Clarisse Vieira, Ceclia Brito, Ianny Medeiros, Maria Clara Bezerril ..................................317

    Deficincia Intelectual e Sade Mental: Quando a Fronteira Vira Territrio / Luciana Togni de Lima, Silva Surjus, Rosana Teresa Onocko Campos ........................................................347

    Parte 3 Experincias em Debate .................................................................................................................361

    Reportagem 2 Mobilizao e Luta pelos Direitos dos Usurios / Mariella Oliveira ......363

    A Arte (En)Cena: Humanizao & Loucura / Csar Gustavo Moraes Ramos, Irenides Teixeira, Jonatha Rospide Nunes, Mardnio Parente de Menezes, Victor Meneses de Melo ..................................371

    Poltica Nacional de Humanizao e a Articulao da Rede de Sade Mental: A Experincia do Municpio de Fernandpolis/SP / Aline Baccarim N. Quintas, Amanda Soares Careno, Pedro Ivo Freitas de Carvalho Yahn, Stella Maris Chebli .....................................................................................................383

    Formao-Interveno como Dispositivo de Apoio Rede de Ateno Psicossocial na Regio Metropolitana de Porto Alegre / Carolina Eidelwein ........................................................................................401

  • A Experincia da Rede de Ateno Psicossocial de Aracaju: Rede e Colertivos como Produtores de Sude e de Vida / Simone Maria de Almeida Barbosa, Karina Ferreira Cunha, Ana Paula Gomes Candido, Tasa Belm do Esprito Santo Andrade .............................................................................................419

    Sade Mental e Povos Indgenas: Experincia de Construo Coletiva no Contexto do Projeto Xingu / Sofia Mendona ..............................................................................................................................................441

    Aproximaes da Psicologia Sade dos Povos Indgenas / Lumena Celi Teixeira ................................461

    Convivncia em Destaque: Experimentaes das Diretrizes Clnica Ampliada e Cogesto em um Caps Infantil / Bianca Mara Maruco Lins Leal; Mirian Ribeiro Conceio; Juliana Arajo Silva, Patrcia Rodrigues Rocha ...........................................................................................................................................471

    O Apoio Institucional na Implementao da Poltica de Sade Mental: Experincia da Bahia / Aline Costa, Rosimeira Delgado e Luana da Silveira Silveira .........................................................................487

    Humores Insensatos: Teatro do Oprimido e Perspectivas de um Criativo Fazer Coletivo / Dbora Moiss Duarte, Rosemeire Almeida .........................................................................................................................503

    Radiofuso: Dispositivo Intersetorial na Produo de Sade / Ariane Marinho Santana, Carlos Alberto Severo Garcia Jnior, Mrio Francis Petry Londero, Milene Calderaro Martins, Michele dos Santos Ramos Lewis, Renato Luiz Rieger da Nova ............................................................................................511

    Bloco 1 Pauta aberta o processo de transformao do cuidado na sade mental ...........................515

    Bloco 2 Papo filosfico um encontro real com a radiodifuso .................................................................521

    Bloco 3 Palavras de vida propagar eletromagneticamente as ondas sonoras da loucura ...........525

    Reportagem 3 No Interior da Rede / Mariella Oliveira ................................................................533

    Reportagem 4 Matriciamento em Sade Mental e Cogesto Fazem a Diferena em Campinas / Mariella Oliveira ..................................................541

  • Cadernos HumanizaSUS

    7

    Apresentao

    Cadernos HumanizaSUS

  • Cadernos HumanizaSUS

    8

    Humanizao e sade mental Cuidado humanizado cuidado em liberdade

    Este quinto volume dos cadernos temticos da Poltica Nacional de Humanizao (PNH) dedica-se sistematizao das experincias e dos debates que a Reforma Psiquitrica (RP), em curso no Pas, vem produzindo. Para todos que vm acompanhando o crescimento, vivendo os tropeos e empreendendo seus esforos pela consolidao do SUS em nosso pas, essa produo se reveste de especial significado.

    Alcanamos o primeiro quarto de sculo da mais complexa, ousada e desafiadora poltica de sade que o Brasil j construiu, talvez com uma nica certeza: a de que, se ainda no garantimos um SUS resolutivo, equnime e humanizado, temos sim, um longo e robusto percurso de construo de um sistema pblico de sade que j no comporta silenciosamente formas de cuidar excludentes, nem saberes e poderes absolutizantes, como os que marcaram a vida de milhares de pessoas nos mais de 200 anos de histria dos manicmios.

    A melhoria no acesso e na qualidade na ateno em sade mental em uma Rede de Ateno Psicossocial encontra-se, certamente, entre os maiores desafios que este sistema ainda tem por enfrentar na perspectiva de cumprir sua finalidade de garantir servios de sade com qualidade, atendimento integral, inclusivo a todo cidado brasileiro. Se este debate pode ser colocado nesses termos e tomar espao nos servios, eventos cientficos, publicaes como esta que marca os 10 anos de percurso da Poltica Nacional de Humanizao porque temos na convergncia dos processos da Reforma Sanitria e da Reforma Psiquitrica posies ticas, estticas e polticas muito caras ao projeto de uma sociedade mais justa, cujos resultados, ainda que lentos, comeam a ser percebidos. Mais que dois processos coletivos paralelos em um campo temtico aproximado, as Reformas Sanitria e Psiquitrica so mutuamente potencializadoras e eticamente equivalentes, quando entendidas em suas radicalidades utpicas, sustentadas at hoje, em grande parte, mesmo passados mais de 20 anos de suas institucionalizaes. Ao afirmar, no artigo que abre esta coletnea, que PNH e sade mental so apostas que se constroem nas bordas e [fissuras de um] cotidiano conservador, Slvio Yasui refora tal compreenso e aponta a perspectiva poltico-metodolgica que vai marcar os escritos que o seguem.

    Significa dizer correndo o risco de estarmos enunciando o bvio que a luta por um atendimento em sade resolutivo, integral e humanizado para a populao que padece de sofrimento psquico passa pelo reconhecimento desses sujeitos como cidados que gozam do direito de buscar ajuda quando avaliarem necessrio, de dispor de uma rede de ateno com diferentes servios a serem acessados em diferentes circunstncias de suas vidas. Enfim,

  • Cadernos HumanizaSUS

    9

    que no tenham seus destinos selados por um diagnstico que os atrele indelevelmente a um modo de tratar pautado no isolamento manicomial e no cuidado tutelar.

    Em outras palavras, estamos dizendo e, com isso, reafirmando a tautologia anunciada no subttulo destes cadernos que s faz sentido falarmos em humanizao do cuidado em sade mental se estivermos tratando de sujeitos livres, pelo menos na forma como a Poltica Nacional de Humanizao compreende e define a humanizao como efeito concreto de relaes entre sujeitos e coletivos, cujos encontros, diferenas, paixes e desavenas os tornam mais potentes, mais sensveis s necessidades uns dos outros e mais dispostos a novos encontros.

    Os escritos que compem este caderno temtico apontam nessa direo. So reflexes retiradas do campo da sade mental que, em seu conjunto, defendem na radicalidade o cuidado com a vida. Mas a vida que no se apresenta de uma s forma, nem cabe em uma s pessoa, a vida entendida em sua multiplicidade trgica, entre dores e delcias, altos e baixos e que pede acolhida nas mais diversas circunstncias, nem sempre harmnicas, nem sempre como nossos servios e normas institucionais gostariam que ela se apresentasse. Os textos que fazem esses debates foram agrupados em 4 diferentes sesses: so 13 artigos, 5 relatos de pesquisas, 10 experincias em debate e 4 reportagens. No conjunto, a par da diversidade regional, pluralidade de lcus institucionais e mesmo perspectivas tericas entre os autores, uma mesma diretriz: a afirmao de que humanizao, no campo da sade mental, significa fazer avanar princpios e estratgias da Reforma Psiquitrica brasileira. Isso no os impede de reconhecer os impasses que o SUS tem a superar, ou a distncia que pode existir entre o tipo de ateno preconizado pela poltica nacional de sade mental e o efetivamente encontrado pelos usurios nos servios de sade. Ao contrrio, justamente no reconhecimento da magnitude desses desafios que se busca subsdios, no mbito da sade coletiva, para qualificar o cuidado em sade mental.

    Mas tambm pelo comprometimento com a busca de solues e alternativas que entendemos pertinente pensar em que sentido os aportes da PNH oferecem contribuies s atuais especificidades do campo da sade mental. Os autores aqui reunidos se dispuseram a compartilhar os dilemas, as anlises e as experimentaes que o complexo campo de cruzamento das vrias polticas pblicas vem produzindo.

    Ainda que tenhamos muito a aprender sobre o que nos humaniza, os textos deste volume nos revelam o quanto j temos para contar acerca de outras formas de lidar com esta experincia demasiada humana que a loucura.

  • Cadernos HumanizaSUS

    Parte 1 Artigos

  • Cadernos HumanizaSUS

    Art

    igo

    Entre o crcere e a liberdade:

    Apostas na Produo Cotidiana de Modos Diferentes

    de Cuidar1

    Silvio Yasui2

  • Cadernos HumanizaSUS

    14

    Resumo

    O texto apresenta algumas reflexes sobre o desafio da Reforma Psiquitrica (RP) e da Poltica Nacional de Humanizao (PNH) em mudar os modos de cuidar e de produzir sade no cotidiano dos servios. Partindo de observaes e de inquietaes sobre o atual cenrio de ambas polticas, marcado por uma tendncia conservadora como, por exemplo, pelas aes para o recolhimento e a internao compulsria que autoridades municipais e estaduais esto implementando, o autor busca explicitar que o cuidado tem a liberdade como princpio e exigncia tica e que tais medidas afrontam este princpio representando um preocupante retrocesso na poltica pblica de sade mental. Destaca, ao final, que ambas as polticas (PNH e Sade Mental) so apostas que se constroem nas bordas e nas fissuras deste mesmo cotidiano conservador, o que representa um imenso desafio.

    Desconfiai do mais trivial, na aparncia singelo.

    E examinai, sobretudo, o que parece habitual.

    Suplicamos expressamente:

    no aceiteis o que de hbito como coisa natural,

    pois em tempo de desordem sangrenta,

    de confuso organizada,

    de arbitrariedade consciente,

    de humanidade desumanizada,

    nada deve parecer natural,

    nada deve parecer impossvel de mudar.

    (BRECHT, 2003, p. )

    1 Este artigo comps o nmero temtico sobre Reforma Psiquitrica e Poltica Nacional de Humanizao da Revista Plis e Psique, Porto Alegre, v. 2 n. 3, 2012. Disponvel em: .

    2 Psiclogo, professor da graduao e da ps-graduao em Psicologia da Unesp Assis, SP. Doutor em Sade Pblica pela ESNP/Fiocruz. Contato: .

  • Cadernos HumanizaSUS

    15

    3 Embora a frase apresente um erro, est escrita como ouvi tantas vezes.

    A epgrafe citada anteriormente do dramaturgo Bertolt Brecht serve de mote e de inspirao para o presente texto que busca refletir sobre o desafio da Reforma Psiquitrica (RP) e da Poltica Nacional de Humanizao (PNH) em mudar os modos de cuidar e produzir sade no cotidiano dos servios.

    Tomo como material, observaes e inquietaes sobre o atual cenrio de ambas polticas e de alguns eventos que frequentam as pginas de jornal e a mdia de maneira geral, como por exemplo, a denncia sobre a precria condio de cuidado em um hospital psiquitrico na regio de Sorocaba e as aes para o recolhimento e a internao compulsria que autoridades municipais esto implementando.

    Inicialmente, apresento quatro cenas em diferentes momentos histricos, extradas da minha experincia pessoal:

    Cena 1 O ano 1976. Deso do nibus na rodovia Presidente Dutra e o motorista me aponta para uma estrada de cho batido. Sigo por ela por uns 3 quilmetros at chegar a uma imensa construo. Na porta a placa: Hospital Psiquitrico. Sou recebido pela psicloga que pergunta qual ano que estudo. Segundo, respondo com certo constrangimento. Com um olhar desanimado, ela pede a um auxiliar de Enfermagem que me mostre o hospital. Caminho pelos corredores sentindo nuseas causadas pelo forte cheiro de urina, de fezes e de desinfetante barato. Chego ao ptio. Dezenas de pacientes deitados no cho, muitos seminus. Suas roupas esto quase todas rasgadas, sujas. Tenho a impresso de que so vrios mendigos. Ao me verem, aproximam-se, pedem cigarro, dinheiro. Pedem, pedem. Uma solicitao, repetida por muitos chama a minha ateno: Me tira daqui!3

    Cena 2 Sigo por uma longa estrada at chegar ao municpio de Franco da Rocha e logo chego entrada do hospital. Entro e vislumbro os belos jardins do Juquery. Estamos no ano de 1983 e minha primeira semana de trabalho. Sou recebido pelo diretor clnico que me informa: serei o nico psiclogo disponvel para a assistncia (outro estava em um cargo administrativo). Sou eu para mais de 4 mil internos. Vou conhecer algumas enfermarias. Chego ao ptio e vejo a mesma cena. Dezenas de pessoas deitadas no cho. Ao me verem, vrias vm em minha direo, pedindo cigarro, dinheiro. Pedem, pedem. Em muitos o mesmo pedido/splica: Me tira daqui!

    Desta vez no era um estagirio voluntrio. Engajo-me em um ousado projeto que visava mudar aquela instituio e transformar a vida daqueles pacientes. Realizaram-se contrataes, novas internaes foram proibidas, reformas foram realizadas. Participei mais diretamente no Projeto dos Lares Abrigados, uma proposta para mudar as unidades e dar conta da populao de pacientes moradores, ofertando um lugar e um cotidiano diferente do hospcio. No cenrio mais amplo, vrios outros hospitais psiquitricos iniciaram tambm

  • Cadernos HumanizaSUS

    16

    4 Conselho Nacional de Justia, Ministrio Pblico Estadual de So Paulo, Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, Coordenao Nacional de Sade Mental Ministrio da Sade, Poltica Nacional de Humanizao Ministrio da Sade, Secretaria Estadual de Sade de So Paulo, Secretaria Municipal de Sade de Sorocaba, Conselho de Secretarias de Sade do Estado de So Paulo (Cosems), Conselho Estadual de Sade, Departamento de Sade Coletiva Universidade Estadual de Campinas, Complexo Hospitalar Ouro Verde Secretaria Municipal de Sade de Campinas/SP, Centro de Educao dos Trabalhadores da Sade (Cetes SMS Campinas), Universidade Federal de So Paulo campus Baixada Santista, Universidade Federal de So Carlos campus Sorocaba, Laboratrio de Sade Mental Coletiva Faculdade de Sade Pblica Universidade de So Paulo, Faculdade de Americana Departamento de Psicologia, Escola de Enfermagem Universidade de So Paulo.

    importantes processos de mudana e ampliou-se o nmero de servios ambulatoriais. Eram os primeiros movimentos da Reforma Psiquitrica em So Paulo.

    Cena 3 O ano 1997. Estou a caminho de um hospital psiquitrico privado para realizar uma avaliao. Fao parte de uma equipe de Secretaria de Estado da Sade que realizou vrias vistorias nos hospitais com o objetivo de classific-los e enquadr-los nas, na poca, novas normas oriundas a partir da Portaria n 224, de 29 de janeiro de 1992. So os primeiros movimentos que se fortalecero poucos anos depois com o Programa Nacional de Avaliao dos Servios Hospitalares (PNASH). Nova longa estrada at chegar ao hospital. Somos recebidos pela direo que se queixa dos baixos valores pagos pelo SUS. Ao entrarmos, percebo que a limpeza recente no oculta o que est impregnado nas paredes: o cheiro de fezes e urina. Novamente, no ptio, os pacientes esto com roupas novas demais para o momento. Ao nos verem, aproximam-se olhando, temeroso o diretor que nos acompanha. Mesmo como sua presena intimidatria, muitos no se acanham e pedem cigarro, dinheiro. Pedem, pedem. Alguns pedem/suplicam: Me tira daqui!

    Cena 4 O ano 2012. Meus alunos comentam Assistiu na TV aquela reportagem denncia sobre um hospital psiquitrico? Meses antes, na mesma regio, foi criado o Frum da Luta Antimanicomial de Sorocaba (Flamas) que denunciava o alto ndice de mortes nos hospitais psiquitricos. A reportagem exibia as mesmas cenas. Pacientes com roupas rasgadas ou seminus, deitados no ptio, forte cheiro de fezes e de urina. Foco em um paciente que pede: Me tira daqui!

    Uma ampla mobilizao de segmentos sociais para intervir no hospital um avano institucional relevante e no pode deixar de ser citado. Representantes de diversas instituies4 realizaram importante ao conjunta para a realizao de um censo com os seguintes objetivos: efetuar a identificao civil das pessoas internadas de forma a propiciar-lhes benefcios assistenciais e previdencirios; o levantamento dos principais dados psicossociais; e subsidiar a formulao de polticas pblicas de sade mental para a regio com vistas desinstitucionalizao das pessoas ali internadas.

    Contudo, a existncia de um hospital psiquitrico com as caractersticas asilares, como o denunciado, aps anos de Reforma Psiquitrica, deixa-nos com certo gosto amargo na boca. Entre a primeira e a ltima cena passaram-se 36 anos. A Reforma Psiquitrica transformou-se em uma ampla poltica pblica, ampliando a rede de servios e as aes da sade mental, reduzindo leitos psiquitricos, aumentando o investimento na rede extra-hospitalar. Ao assistir reportagem, inevitvel no sentir certo desassossego, quase desnimo, em constatar que, apesar de avanarmos em muitos aspectos, o manicmio ainda exibe a sua face mais cruel e violenta, nos encarando de modo desafiador.

  • Cadernos HumanizaSUS

    17

    Tal face tenebrosa ressurge, tambm, nas palavras e nas aes de prefeitos que investem pesado contra os dependentes qumicos, propondo internao compulsria como recurso de tratamento, sendo aplaudido por amplos setores conservadores da sociedade e, especialmente, pelos donos de comunidades teraputicas que certamente obtero lucros financeiros com estas medidas policialescas e higienistas. Ofertam o mesmo modo de tratar, mas seguem indiferentes dor, ao sofrimento, singularidade e complexidade das vidas que so retiradas das ruas e enclausuradas. Quantos pedidos de Me tira daqui! ainda so necessrios? Os processos de anestesiamento de nossa escuta, de produo de indiferena diante do outro, tm nos produzido a enganosa sensao de salvaguarda, de proteo do sofrimento (BRASIL, 2008, p. 12).

    O trecho acima citado da Cartilha da PNH sobre Acolhimento e Classificao de Risco e alerta para os efeitos danosos de uma crescente mercantilizao das relaes entre os sujeitos e da vida. Efeitos que se corporificam no cotidiano dos servios de sade e, de uma forma mais inquietante ainda, nos servios de sade mental. Anestesia, esquecimento ou indiferena a uma diretriz vital para mudar nosso modo de cuidar do sofrimento psquico: liberdade.

    Em um artigo, Niccio e Campos (2007) abordam a relevncia e a necessria afirmao da liberdade para a superao do modelo asilar. No incio do texto apresentam ttulos de documentos do Ministrio da Sade, que tratam da liberdade como tema: Sade mental: cuidar em liberdade e promover a cidadania (BRASIL, 2004). Liberdade o melhor cuidado (CONFERNCIA NACIONAL DE SADE MENTAL, 2001). Acrescentaria a esta lista mais dois itens: um caderno de textos organizado pelo Conselho Regional de Psicologia-06 intitulado Trancar no tratar; e a frase transformada em um cartaz e repetida muitas vezes pelos militantes da luta antimanicomial: Sade no se vende, loucura no se prende.

    No texto, os autores retomam a produo do psiquiatra italiano Franco Basaglia, especialmente suas reflexes sobre a experincia como diretor do Hospital Psiquitrico de Gorizia, onde, ao se deparar com a violncia do manicmio e a destruio das pessoas internadas, inicia um radical processo de crtica e de transformao da instituio. Seus escritos problematizaram a condio da pessoa internada e os significados do manicmio, questionando a Psiquiatria, seus instrumentos e sua finalidade como cincia. Basaglia destacava que a transformao da condio do paciente internado exigia a criao de propostas que tivessem por princpio a sua liberdade.

    Uma de suas mais famosas expresses, inspirada na fenomenologia de Husserl e como profunda crtica objetivao do homem pela Psiquiatria positiva, a de colocar a doena entre parnteses, o que se traduzia no cotidiano em um intenso trabalho de produzir aes plurais, responsabilizar-se pelo cuidado do paciente, identificar sua necessidade, escutar

  • Cadernos HumanizaSUS

    18

    seu sofrimento, iniciando a produo de uma diversa e complexa prtica teraputica pautada na compreenso da pessoa, na transformao de suas possibilidades concretas de vida, a partir da construo cotidiana do encontro e da intransigente afirmao da liberdade (NICCIO; CAMPOS, 2007, p. 146).

    Na perspectiva basagliana, liberdade no resultado e sim base da prtica teraputica.

    Ou seja, no possvel pensar o cuidado ao sofrimento psquico considerando-o apenas como um diagnstico resultante das disfunes de interaes neurobioqumicas, nem tampouco com prticas que restrinjam ou limitem o exerccio do ir e vir, que incidam sobre o j precrio poder de contratualidade que o sujeito tem sobre si e sobre as coisas do mundo. Muito menos com prticas que o submetam a um regime de controle e de vigilncia sobre todas as suas aes cotidianas. O resultado histrico deste modo de pensar a dor psquica bem conhecido: segregao, violncia institucional, isolamento, degradao humana.

    Niccio e Campos (2007) destacam que pensar o cuidado em liberdade provoca inovaes na prtica teraputica, inscreve novas profissionalidades e representa nova projetualidade nos processos de coproduzir com as pessoas com a experincia do sofrimento psquico projetos de vida nos territrios.

    Trata-se aqui de deslocar-se do Manicmio como o lugar zero de trocas sociais (ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001) e da doena como objeto simples, para o territrio, plano do cotidiano no qual o sofrimento psquico, tomado como objeto complexo, implica a vida em suas mltiplas dimenses e cuja perspectiva de cuidado, portanto, significa atuar na transformao da subjetividade e dos modos de viver.

    um ousado projeto de um cuidado que se constri a partir de criaes produzidas em encontros que coproduzem sujeitos e projetos de vida. Coproduo dos sujeitos s pode ser feita em liberdade regida pela tica da autonomia. um projeto tico-esttico-poltico:

    [...] tico no que se refere ao compromisso com o reconhecimento do outro, na atitude de acolh-lo em suas diferenas, suas dores, suas

    alegrias, seus modos de viver, sentir e estar na vida; esttico porque traz

    para as relaes e os encontros do dia-a-dia a inveno de estratgias

    que contribuem para a dignificao da vida e do viver e, assim, para a construo de nossa prpria humanidade; poltico porque implica o

    compromisso coletivo de envolver-se neste estar com, potencializando protagonismos e vida nos diferentes encontros (BRASIL, 2010, p. 6).

    A citao anterior refere-se diretriz do Acolhimento da Poltica Nacional de Humanizao, mas se aplica perfeitamente ao que argumentvamos sobre o projeto da Reforma

  • Cadernos HumanizaSUS

    19

    Psiquitrica. Isto evidencia como ambas as polticas compartilham dos mesmos princpios e posicionamentos tico-esttico e poltico. Falamos aqui da produo do cuidado ao sofrimento psquico, indissocivel da produo de sade. Falamos aqui da construo e da consolidao do SUS. Para a PNH, o SUS humanizado aquele que reconhece o outro como legtimo cidado de direitos, valorizando os diferentes sujeitos implicados no processo de produo da sade. Humanizao do SUS entendida como:

    [...] Fomento da autonomia e do protagonismo desses sujeitos e dos coletivos;

    Aumento do grau de co-responsabilidade na produo de sade e

    de sujeitos;

    Estabelecimento de vnculos solidrios e de participao coletiva no

    processo de gesto;

    Mapeamento e interao com as demandas sociais, coletivas e

    subjetivas de sade;

    Defesa de um SUS que reconhece a diversidade do povo brasileiro e a

    todos oferece a mesma ateno sade, sem distino de idade, raa/

    cor, origem, gnero e orientao sexual [...] (BRASIL, 2008, p. 18-19).

    Podemos afirmar que, tanto a PNH quanto a RP, buscam se impor como fora de resistncia ao atual projeto hegemnico de sociedade que menospreza a capacidade inventiva e a autnoma dos sujeitos. uma aposta na potncia que emerge no reposicionamento dos sujeitos, ou seja, no seu protagonismo, na potncia do coletivo, na importncia da construo de redes de cuidados compartilhados: uma aposta poltica (PASCHE; PASSOS, 2008)

    Aposta que encontra enormes resistncias e obstculos. Ao olharmos para a corrente conservadora que ainda domina amplos setores da sociedade e que se refletem nos modos de se fazer a gesto na sade, como as recentes aes para internao compulsria dos dependentes qumicos, temos a sensao de que estamos muito distantes de ver implantada os princpios que acima nomeamos. o que frequentemente escuto quando discuto essas questes com os trabalhadores da Sade. Via de regra, afirmam tratar-se de um bonito discurso e apenas isso. Parece que a dura realidade cotidiana imutvel e impermevel a qualquer tentativa de mudana. Frases como Usurio assim mesmo!, A gente nunca consegue nada, no somos gestores, O problema da sade que todo mundo funcionrio pblico, Paciente em crise precisa de hospital psiquitrico e outras tantas expressam as foras conservadoras presentes nos modos de pensar/agir que continuam a nos atravessar, seduzindo-nos a sermos acomodados.

  • Cadernos HumanizaSUS

    20

    A rigidez dos processos de trabalho e a organizao dos servios de sade, modos de cuidar centrados na doena; trabalhadores destitudos da capacidade de decidir e usurios que s so escutados, impacientemente, em suas queixas: tudo isso contribuiu para uma naturalizao do cotidiano produtor de indiferena ao sofrimento do outro, uma mquina de reproduo de relaes de assujeitamento, heteronomias, subjetividades servis e tristes.

    Neste cenrio, instituir como poltica de sade a internao compulsria/crcere dos usurios de crack retroceder a medidas arcaicas e ineficazes. insistir no erro histrico que a Reforma Psiquitrica tanto investiu para mudar. voltar a ouvir a frase Me tira daqui!

    Mas afinal, qual a potncia das apostas da Reforma Psiquitrica e da PNH?

    Olho novamente para a experincia italiana e seus efeitos na Reforma Psiquitrica brasileira. Vejo o quanto a vida dos usurios dos servios de sade mental, l e c, transformou-se a partir do que foi inventado e criado como Poltica de Sade Mental. Da oferta exclusiva e compulsria de internao em um hospital psiquitrico, temos, no Brasil, uma ampla e diversificada oferta de servios e de aes que contemplam diferentes dimenses e necessidades: temos os Centros de Ateno Psicossocial (em suas vrias modalidades) como servios territoriais para acolher e cuidar do sofrimento psquico intenso; aos que habitaram por anos o manicmio temos os Servios Residenciais Teraputicos; para o trabalho os Projetos de Gerao de Trabalho e Renda; temos ainda projetos de arte e cultura e outras tantas criaes que por vrios lugares vo sendo experimentadas. Pessoas que provavelmente teriam como destino viverem encarceradas em Hospitais Psiquitricos, submetidas a um cotidiano mortfero, encontram outras possibilidades de cuidado que apostam em modos distintos de levar a vida.

    Olho tambm para as inmeras e exitosas experimentaes que a cada dia surgem no blog , evidenciando a fora e a potncia dos dispositivos da PNH, produzindo efeitos na vida das pessoas que frequentam os servios de sade e que so acolhidas, ouvidas em suas necessidades, cuidadas e se corresponsabilizando por seu cuidado.

    Essas so evidncias que demonstram que o cuidado produo de vida, criao de mundos. Temos um imenso desafio: reativar nos encontros nossa capacidade de cuidar e tomo novamente emprestado do texto sobre Acolhimento alguns princpios que devem nos nortear:

  • Cadernos HumanizaSUS

    21

    o coletivo como plano de produo da vida;

    o cotidiano como plano ao mesmo tempo de reproduo, de experimentao e inveno de modos de vida; e

    a indissociabilidade entre o modo de nos produzirmos como sujeitos e os modos de se estar nos verbos da vida (trabalhar, viver, amar, sentir,

    produzir sade...) (BRASIL, 2010, p. 8-9).

    Nossa aposta aponta para outro mundo possvel, que se constri nas bordas, nas fissuras, na contramar, nadando contra a corrente. Se o cotidiano reproduz sujeitamentos, heteronomias, subjetividades servis e tristes, preciso abrir brechas e fissuras neste cenrio densamente conservador, alheio e surdo aos pedidos de Me tira daqui!, que ainda ecoam. No cotidiano e no coletivo precisamos apostar na potncia da criao e da inveno que se d em liberdade e no bom encontro.

    Pois a vida no o que se passa apenas em cada um dos sujeitos, mas principalmente o que se passa entre os sujeitos, nos vnculos que constroem e que os constroem como potncia de afetar e ser afetado (BRASIL, 2010, p. 8).

    Nada natural, nada impossvel de ser mudado.

    Referncias

    BRASIL. Ministrio da Sade. Sade mental: cuidar em liberdadee promover a cidadania. Braslia, 2004. (Caderno Informativo do Congresso Brasileiro de CAPS).

    ______. Ministrio da Sade. Secretaria de Ateno Sade. Ncleo Tcnico da Poltica Nacional de Humanizao. Acolhimento nas prticas de produo de sade. 2. ed. 5. reimp. Braslia, 2010.

    ______. Ministrio da Sade. Secretaria de Ateno Sade. Ncleo Tcnico da Poltica Nacional de Humanizao. HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 4. ed. Braslia, 2008.

    CONFERNCIA NACIONAL DE SADE MENTAL, 3., 2001, Braslia. Anais... Braslia: Ministrio da Sade, 2001.

    CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA (So Paulo). Trancar no tratar: liberdade: o melhor remdio. 2. ed. So Paulo, 1997.

  • Cadernos HumanizaSUS

    22

    NICCIO, F.; CAMPOS, G. W. S. Afirmao e produo de liberdade: desafio para os centrosde ateno psicossocial. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de So Paulo, So Paulo, v.18, n. 3, p. 143-151, set./dez. 2007.

    PASCHE, D. F.; PASSOS, E. A importncia da humanizao a partir do Sistema nico de Sade. Revista de Sade Pblica de Santa Catarina, Florianpolis, v. 1, n. 1, p. 92-100, jan./jun. 2008.

    ROTELLI, F.; LEONARDIS, O.; MAURI, D. Desinstitucionalizao, uma outra via: a reforma psiquitrica Italiana no contexto da Europa Ocidental e dos pases avanados. In: NICCIO, F. (Org.). Desinstitucionalizao. 2. ed. So Paulo: Hucitec, 2001.

  • Art

    igo

    Cadernos HumanizaSUS

    Tania Mara Galli Fonseca2

    Regina Longaray Jaeger3

    A Psiquiatrizao da Vida: Arranjos da Loucura,

    Hoje1

  • Cadernos HumanizaSUS

    24

    Resumo

    A Poltica de Humanizao da Ateno e da Gesto (PNH) tem como objetivo a qualificao das prticas de gesto e de ateno em sade. O diferencial a que se prope a construo de plano transversalizando conceitos, funes, sensaes, saberes, poderes, conectando produo de sade ao campo da gesto. Plano que necessita ser permeado de novos sentidos para a sade/adoecimento mental. A Reforma Psiquitrica (RP) introduziu outros modos de tratar a doena mental, mas percebe-se, mesmo assim, a naturalizao e a perseverao dos diagnsticos e dos modos mais tradicionais de lidar com as condutas dspares. Nesse sentido, devendo-se reafirmar que a PNH no se encontra orientada pela busca de prescries, indaga-se: como o que se denomina sade mental tratada na rede HumanizaSUS? O presente artigo prope discutir a necessidade de uma formao que problematize os novos modos de gesto da vida, o controle normatizante das disparidades e os novos arranjos da loucura.

    Palavras-chave:

    Loucura. Doena mental. Poder psiquitrico.

    1 Este artigo comps o nmero temtico sobre Reforma Psiquitrica e Poltica Nacional de Humanizao da Revista Plis e Psique, Porto Alegre, v. 2 n. 3, 2012. Disponvel em: .

    2 Professora titular do Instituto de Psicologia da UFRGS, professora dos programas de ps- -graduao em Psicologia Social e Institucional e de Informtica Educativa/UFRGS. Contato: .

    3 Doutoranda do Programa de ps- -graduao em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Bolsista Capes. Contato: .

  • Cadernos HumanizaSUS

    25

    Apresentao

    A luta pela democratizao do Pas, no campo da sade, exprimiu-se em grande parte, pelo processo denominado Reforma Psiquitrica, contemporneo ao movimento sanitrio, iniciado na dcada de 1970. Estes movimentos visavam reformulao dos modelos de assistncia e de gesto, de defesa da sade coletiva, de equidade na oferta de servios e tiveram como aspecto importante a participao dos trabalhadores e dos usurios de sade nos processos de gesto e de tecnologias de cuidado. Esses movimentos sociais heterogneos conquistam direito nas instncias mximas de decises em sade, confere ao SUS uma singularidade histrica e internacional de controle social. Controle social, no sistema de sade brasileiro, quer dizer direito e dever da sociedade de participar do debate e da deciso sobre a formulao, execuo e avaliao da poltica nacional de sade (CECCIM, R.; FEUERWERKER, 2004, p. 43). Nesse sentido, a Reforma Psiquitrica referiu-se ruptura da centralidade do procedimento psiquitrico que separava e demarcava parte da populao considerada doente mental e, portanto, incapaz de compartilhar sua vida no social. Para superar este modelo de gesto da populao, a Reforma Psiquitrica, com estreita relao com o movimento sanitrio e concepo de um SUS, empreendeu um conjunto complexo de transformaes relacionadas concepo de sade e doena mental: movimento que passa a reivindicar transformaes das relaes entre cultura e loucura, at ento demarcadas pela normatizao (LOBOSQUE, 2009, p. 18).

    O protagonismo dos usurios e dos trabalhadores compromissados na afirmao de um novo jeito de fazer sade demarca a reorientao da nova ao poltica e institucional visando superao do modelo de ateno sade mental centrado no manicmio. Nesse sentido, a Poltica de Humanizao da Ateno e da Gesto (PNH) contribui, nesta nova configurao de foras instituintes, com o objetivo de qualificao das prticas de gesto e de ateno em sade. A humanizao prope-se a implementar condies de produo de novas atitudes por parte dos trabalhadores, dos gestores e dos usurios, de novas ticas no campo da gesto do trabalho e das prticas de sade. Isso implica prticas sociais ampliadoras dos vnculos de solidariedade e de corresponsabilidade, por meio da trplice incluso: nos espaos da gesto, do cuidado e da formao, de sujeitos e dos coletivos (PASCHE; PASSOS, 2010, p. 7). Desse modo, os princpios de PNH afirmam a inseparabilidade entre gesto e cuidado, a transversalidade das prticas ampliadoras da comunicao e dos processos de negociao permitindo a criao de zonas de comunalidade e projetos comuns (PASCHE; PASSOS, 2010, p. 7). A Poltica de Humanizao pode ser entendida como a construo de um plano de ao cujas prticas tecem redes transversalizando conceitos, funes, sensaes, saberes, poderes, conectando produo de sade ao campo da gesto. A PNH no busca prescrever um modo certo de se fazer por considerar tais atos relacionados a uma discursividade moral e normatizante.

  • Cadernos HumanizaSUS

    26

    Busca afirmar uma poltica ampliadora de responsabilidades, de singularidades e de gesto produtora de sade:

    A incluso tem o propsito de produzir novos sujeitos capazes de ampliar

    suas redes de comunicao, alterando as fronteiras dos saberes e dos

    territrios de poder; e de conectar suas prticas de produo de sade

    ao campo da gesto, pois aquelas derivam das condies institucionais

    que definem os modos de funcionamento da organizao, tarefa da gesto (PASCHE; PASSOS, 2010, p. 7).

    Para a PNH, diretrizes ticas e polticas do cuidado e da gesto concretizam-se no acolhimento, na clnica ampliada, na democracia das relaes, na valorizao do trabalhador, na garantia dos direitos dos usurios e no fomento de redes. Mas para quem so orientados estes cuidados? Quais so os usurios a quem direcionamos os cuidados de ateno e de gesto humanizada? Quais so as condies e as circunstncias que determinam ao usurio os lugares que passa a ocupar nas diferentes redes que constituem a ateno sade? Como as polticas pblicas acompanham as necessidades da populao?

    O movimento da Reforma Psiquitrica, ao romper com a centralidade do manicmio, props-se a produzir novos conceitos, novas funes e novas percepes da loucura. Trata-se de rupturas que fazem parte da formao e da concepo do SUS medida que prope um conjunto de transformaes relacionadas aos modos de cuidar da sade humana. Apesar das intenes reformistas, que propunham a superao das internaes, de sua substituio por meio de servios de assistncia, das transformaes de nossos modos de cuidar da sade, percebe-se uma naturalizao dos diagnsticos e da persistncia dos modos mais tradicionais como temos nos referido a esta caracterstica humana, denominada Transtorno Mental. A loucura, o dspar, tende a ser incorporado na vida comum, na verso de doena mental psiquitrica. Subjetivados como doentes mentais a partir de condies pr-determinadas pelas classificaes psiquitricas, os indivduos submetem-se ou so submetidos a viver dependentes de instituies de cuidados.

    Por esta via, assistimos, no contemporneo, a uma progresso epidmica de doenas psiquitricas que no podemos ignorar. Segundo a Organizao Mundial da Sade, estima-se que os transtornos depressivos unipolares esto em terceiro lugar na classificao da carga global de adoecimentos. Alm do que, governos esto especialmente preocupados com as perdas econmicas relacionadas a estas doenas (DEPRESSION..., 2012, p. 1203). No Brasil, o nmero de acidentes de trabalho apresentou uma reduo de ocorrncias, enquanto os transtornos mentais e comportamentais passaram a ocupar o terceiro lugar em quantidade de concesses de auxlio-doena. Entre os transtornos mentais e comportamentais que mais afastaram os trabalhadores em 2011 foram Episdios

  • Cadernos HumanizaSUS

    27

    Depressivos, Outros Transtornos Ansiosos e Reaes ao Estresse Grave e Transtornos de Adaptao (MPS, 2012).

    Como ento a PNH vem tratando das configuraes relacionadas loucura? A Poltica Nacional de Humanizao tem o grande desafio de construo de um SUS orientado para o protagonismo, a autonomia e a corresponsabilidade de todos os atores envolvidos. Formao que envolve a construo de novas prticas de sade e que seja capaz de acionar novos modos de ser, de sentir, de agir, intervindo nos modos de gesto de sade, capazes de produzir novos sujeitos, ou seja, corresponsveis e partcipes na afirmao das polticas do SUS. Como acolhemos os dspares em instituies de sade? Como acolher usurios e trabalhadores em situaes de sofrimento mental, fsico, moral, sem naturalmente selecion-los, classific-los e generaliz-los a determinadas categorias de doenas?

    Seremos capazes de propor novas prticas polticas quando estamos imersos em um mundo onde instrumentos panpticos generalizados arregimentam cada vez mais novas materialidades, onde a vigilncia absolutamente faz parte desta trama mais comum de nossas vidas?

    Quais so as escolhas que determinam as necessidades de cuidados destinados populao? Quais so os critrios avaliativos sobre os corpos que determinam as orientaes dos mecanismos institucionais de atendimento? Quais as condies de entrada e de sada do usurio na rede de ateno sade?

    Propomos examinar possibilidades de viver sem assujeitar o pensamento a comparativos relacionados ao jeito bom de ser; fazer um esforo para romper com nossos binarismos e nossos critrios de corte; viver a vida a partir da diferena, dos processos transversais que constituem os arranjos heterogneos que compem nossas existncias.

    So inequvocos os avanos da Reforma Psiquitrica, da ampliao e da complexificao dos cuidados relativos aos usurios, da reorganizao institucional dos atendimentos com o objetivo da incluso protagonista dos diferentes segmentos sociais envolvidos na sade. Conquistas polticas, ainda em francas disputas com regimes concentrados em modelos biomdicos, perseveraram. Em nome da preveno, dos riscos, dos estados potenciais de adoecimento, do crescente aumento de distrbios mentais somos tentados a reforar polticas relacionadas s classificaes diagnsticas, relacionando condutas a estados de anormalidades que no podem ser corrigidas. Propomos pensar sobre o processo e a ampliao de saberes, de poderes na ateno sade e s medidas escolhidas pelo Estado para melhorar a vida das pessoas. Abrir linhas que transversalizam o campo unitrio do discurso psiquitrico por meio da arqueologia foucaultiana como uma prtica para romper com as dicotomias ainda to demarcadas em nossas prticas. Em suma, acontecimentalizar a evidncia de nossas prticas e dos saberes constitudos pelo arquivo da loucura.

  • Cadernos HumanizaSUS

    28

    Chamarei arquivo no a totalidade de textos que foram conservados

    por uma civilizao, nem o conjunto dos traos que puderam ser salvos

    de seu desastre, mas o jogo das regras que, numa cultura, determinam

    o aparecimento e o desaparecimento dos enunciados, sua permanncia

    e seu apagamento, sua existncia paradoxal de acontecimentos e de

    coisas. Analisar os fatos de discurso nos elementos gerais do arquivo

    consider-los no absolutamente como documentos (de uma

    significao escondida ou de uma regra de construo), mas como monumentos; -fora de qualquer metfora geolgica, sem nenhum

    assinalamento de origem, sem o menor gesto na direo do comeo de

    uma arch-fazer o que poderamos chamar, conforme os direitos ldicos da etimologia, alguma coisa como uma arqueologia (FOUCAULT,

    2004, p. 95).

    O arquivo da loucura, o jogo de regras que seleciona, dentro da massa de discursos efetivamente falados sobre a loucura, os que permanecem com suas regras, prticas de funcionamento; o que pode ser dito, conservado e reativado na memria. preciso fazer a acontecimentalizao dos saberes, constitudos por esta arqueologia, ou melhor, por uma genealogia ou uma cartografia:

    Que preciso entender por acontecimentalizao? Uma ruptura da evidncia, primeiramente. A, onde se estaria bastante tentado a se

    referir a uma constante histrica ou a um trao antropolgico imediato

    ou ainda a uma evidncia se impondo do mesmo jeito a todos, trata-

    se de fazer surgir uma singularidade. [...] Analisar os acontecimentos que a histria desacontecimentalizou em mecanismos econmicos, antropomrficos (FOUCAULT, 1994, p. 23-25).

    A questo que Foucault coloca analisar os acontecimentos com a tarefa de discerni-los, dentro dos agenciamentos, achar de novo as conexes, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de fora, as estratgias... (FOUCAULT, 1994, p. 23). Recusar, portanto, as anlises que se referem a um campo simblico, da lngua e dos signos:

    A historicidade que nos leva e nos determina belicosa; ela no

    linguageira. Relao de poder, no de sentido. A histria no tem

    sentido [...] ao contrrio, ela deve poder ser analisada at dentro de seu menor detalhe: mas segundo a inteligibilidade das lutas, das estratgias

    e das tticas (FOUCAULT, 1994 p. 145).

  • Cadernos HumanizaSUS

    29

    Remarcados caminhos

    A partir de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Flix Guattari, traamos novos planos de imanncia, de referncia e de composio para analisar os campos de saberes da sade, que nos convidam a novas apreenses do mundo. Enfatizamos estes autores apenas por medidas de precauo. So autores que concebem arranjos coletivos e maqunicos que rompem com formaes discursivas subjetivantes, organizadas em torno do conceito de sujeito (humano, falante, trabalhador, consumidor). E, cada vez que pensamos que os alcanamos, eles escapam. Repetio da diferena, sempre h algo novo nestes encontros. Jogo tenso e ldico dos saberes sempre recomeados. Jogos inconformes com o que a se apresenta. Jogos de saber que induzem ao comentrio, ao abandono de ferramentas conceituais por cansao e/ou enfado. Insistiremos mais um pouco, quando ainda resta flego ou mesmo por teimosia. Mas tambm por sentir que ainda oferecem matrias e acontecimentos inesgotveis.

    Foucault nos fornece elementos importantes que permitem questionar o modo como o sofrimento mental, fsico, social, econmico vem ganhando cada vez mais o estatuto de doena mental e se afirma gradativamente em novos arranjos em nossa existncia mais comum. E com isso, o poder psiquitrico vai adquirindo cada vez mais novos poderes em funo da proteo, da vigilncia e da segurana estatais contra os desvios sociais.

    O processo de produo do devir humano foi atravessado pela psiquiatrizao que se d concomitante formao dos estados modernos, ao processo de urbanizao, ao processo de trabalho remunerado, ao processo de asilamento dos considerados incapazes. Psiquiatrizando-se, o devir humano do animal prende-se a equipamentos, matrias que do corpo a uma produo conceitual-filosfica, funcional-cientfica e perceptiva/afetiva-artstica (DELEUZE; GUATTARI, 1992, ). Assim, criam-se conceitos filosficos, inventam-se personagens conceituais pr-filosficos e traam-se um plano de imanncia pr-filosfico (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 76). Do mesmo esforo, surgem funes cientficas, observadores parciais e um plano de referncia, bem como, eclodem perceptos e afetos, situaes estticas e um plano de composio. E assim, justificam-se os agenciamentos que constituem doenas.

    Na modernidade, o homem da razo delega ao mdico a relao com a universalidade abstrata da doena do louco. E este, por sua vez, comunicar-se- com o mdico por meio da intermediao de uma razo abstrata, que ordem, coao fsica e moral, presso annima do grupo, exigncia de conformidade (FOUCAULT, 1999, p. 141). A linguagem da psiquiatria, que o monlogo da razo sobre a loucura, s pode estabelecer-se sobre um tal silncio (FOUCAULT, 1999, p. 141). Silenciamento que vem antes da constituio da loucura como doena mental. Vem do gesto primitivo de recusa da experincia-limite que

  • Cadernos HumanizaSUS

    30

    cria a possibilidade de histria. A histria impe o silenciamento de certos acontecimentos. a que possvel a separao, muito antes, portanto, da prpria psiquiatrizao da loucura: a percepo que o homem ocidental tem de seu tempo e de seu espao que deixa aparecer uma estrutura de recusa, a partir da qual denunciamos uma fala como no sendo linguagem, um gesto como no sendo obra, uma figura como no tendo direito a tomar lugar na histria (FOUCAULT, 1999, p. 144). A condio da histria a partir do sculo XVIII exige a existncia da loucura, do no sentido ou da reciprocidade loucura e no loucura.

    At pouco tempo, o poder psiquitrico parecia ter um domnio prprio, territrio pronto onde era permitido dizer quem era louco e no louco. O campo da sade mental vai desterritorializar este domnio e reterritorializ-lo, de modo ampliado, a novos domnios da preveno, da promoo, da reportao doena mental em nome de uma sade mental. Os procedimentos psiquitricos passam a fazer parte de vrios domnios do conhecimento: da educao, da justia, do trabalho... Parece-me que esta difuso do poder psiquitrico realizou-se a partir da infncia, isto , a partir da psiquiatrizao da infncia (FOUCAULT, 2006, p. 255). At meados do sculo XIX, o desenvolvimento mental infantil era selecionado dentro de uma elaborao terica que sustentava a possibilidade de correo: idiotias e atrasos mentais eram passveis de serem curados. Ao longo do sculo XIX, do lado dos pares hospital-escola, instituio sanitria (instituio pedaggica, modelo de sade) sistema de aprendizagem que se deve buscar o princpio de difuso desse poder psiquitrico (FOUCAULT, 2006, p. 255-256). A Psiquiatria rompe com seus limites relacionados doena mental, ao tratamento e cura, buscando, no desenvolvimento infantil, amostras e evidncias de que h um estado anormal que deve ser devidamente demarcado. A incorporao da criana pelo poder psiquitrico no passou pela criana louca ou pela loucura da infncia. A psiquiatrizao da infncia foi encarnada pela criana que no acompanha o desenvolvimento normatizado, aquela que, ao no acompanhar as tarefas da escola, logo ser chamada atrasada. De modo que, a generalizao do poder psiquitrico vai se fazer a partir de dois processos. O primeiro, por intermdio da elaborao terica do que idiotia, noo distinta da doena mental. Sero determinadas as condies que vo indicar atraso e/ou ausncia do desenvolvimento, a lentido e o bloqueio. Estas noes tericas estabelecem um padro temporal do desenvolvimento humano, onde esto repartidas as organizaes neurolgicas e psicolgicas, funes, comportamentos e aquisies. Ao adulto caber a norma como ponto terminal e ideal do desenvolvimento e, criana, caber a norma de velocidade do desenvolvimento. Processo comum a todos humanos, balizado por um ponto timo de chegada: o desenvolvimento portanto uma espcie de norma em relao qual nos situamos, muito mais do que uma virtualidade que possuiramos em ns (FOUCAULT, 2006, p. 263). De modo que o processo de expanso da Psiquiatria vai acontecer por meio da incorporao de variaes de uma temporalidade de desenvolvimento normativo, no definidas ainda, como doenas mentais.

  • Cadernos HumanizaSUS

    31

    Por outra via, o fenmeno das prticas de anexao institucional da anomalia aos espaos da Psiquiatria ocorre a partir da necessidade do modelo capitalista de trabalho. A assimilao institucional idiota e louco se faz a partir da necessidade de liberar os pais para o trabalho (FOUCAULT, 2006, p. 271). A internao destas crianas-obstculos ser plenamente justificada. O conceito de alienao mental rompe com as diferentes categorias, amplia as necessidades de internar tudo o que fosse considerado dspar ao desenvolvimento normal. esta criana no louca que, no incio do sculo XIX, passa a ser objeto de cuidados: a criana atrasada no uma criana doente, mas uma criana anormal. Sobre esta criana confiscada ser exercido o mais puro poder psiquitrico. E que que faz o tratamento psiquitrico dos idiotas, seno, precisamente, repetir sob forma multiplicada e disciplinar o contedo da educao? (FOUCAULT, 2006, p. 276). deste entrelaamento de novas ramificaes que a Psiquiatria vai se disseminar pelos regimes disciplinares, detectando defasagens nos mais diferentes campos: escolar, militar, familiar, laboral. Por reportao ao poder disciplinar que determina um modo certo de ser, em qualquer rea da vida, qualquer desvio ser considerado anomalia para a Psiquiatria. Por esta via, generalizaes disseminam o poder psiquitrico, ampliando o espectro do doente mental para todo e qualquer comportamento considerado anormal. Esta expanso do poder psiquitrico acoplado ao poder da educao alia-se, contemporaneamente, ao mercado de trabalho. Refere-se a um territrio fortemente demarcado por esquadrinhamentos disciplinares dos comportamentos, que criam novas realidades de adoecimento fundados nestes poderes.

    A Psiquiatria ter um novo alcance, alarga seus espaos de atribuies e funes. Todos os comportamentos adultos passam a ser comparados com o estatuto fixo do desenvolvimento normal da infncia. No se trata apenas de confiscar a criana com desenvolvimento incomum. Trata-se de passar a psiquiatrizar as condutas, de crianas e adultos, que podem ser comparadas s condutas infantis. Refora o carter de fixidez a partir de um balizamento do que considerado normal e esperado. Este princpio produtor e regulador das condutas no mais uma doena, mas um certo estado que vai ser caracterizado como estado de desequilbrio, isto , um estado no qual os elementos vm funcionar num modo que, sem ser patolgico, sem ser portador de morbidez, nem por isso um modo normal (FOUCAULT, 2001, p. 391). A amplitude do espectro da loucura referenda um funcionamento social esperado. Eis, portanto, uma das funes do poder psiquitrico: controle social. O processo de transformao da Psiquiatria em tecnologia de defesa, de proteo e de ordem social d-se por meio da generalizao do processo psiquitrico e alargamento de seu campo de incidncia a partir do processo de psiquiatrizao da infncia.

    Da mesma forma, ao utilizarmos palavras como controle social, sofrimento psquico, humanizao dos tratamentos, incapacidade laboral, sade mental, desestigmatizao da doena de forma generalizada, corremos o risco de nos inscrevermos cada vez mais no

  • Cadernos HumanizaSUS

    32

    maquinismo da ordem estatal dos poderes intercalados de soberania, de normalizao disciplinar e segurana e de controle. Por intermdio de uma rede de cuidados estatais, somos capazes de alcanar os mais ntimos espaos para dominar, controlar e decidir questes sobre a vida das pessoas.

    Se, em um primeiro momento, a Psiquiatria preocupou-se em assegurar seu saber sobre parte da populao demarcada como doente mental, incapaz de convvio social, a partir da metade do sculo XIX, passa a circunscrever todas as condutas consideradas desviantes. Morel, ao introduzir a noo de estado nos anos 1860-1970, amplia o campo das anormalidades do qual pode advir qualquer doena, a qualquer momento. Refere-se a no sade mas que pode, ao mesmo tempo, acolher em seu campo qualquer conduta a partir do momento em que ela fisiolgica, psicolgica, sociolgica, moral e at juridicamente desviante (FOUCAULT, 2001, p. 398). Mais um elemento integra-se s razes das anormalidades da populao. O indivduo portador de um estado de disfuncionamento carrega consigo uma carga biolgica. As demarcaes estendem-se pelos corpos familiares. Sempre haver algum estado de anormalidade que justifique ou predisponha ao estado de adoecimento, as degeneraes. Mantm-se a Medicina do patolgico e da doena e inclui-se a medicalizao do anormal, do incurvel e do perigoso. A partir da medicalizao ou da gesto das condutas anormais generalizadas, a Psiquiatria formula a teoria da degenerao: o degenerado a pea terica maior da medicalizao do anormal. quando o portador de qualquer desvio ser reportado a um estado de degenerao: v-se que ela (psiquiatria) passa a ter uma possibilidade de ingerncia indefinida nos comportamentos humanos (FOUCAULT, 2001, p. 401).

    Ao se dar o direito de desconsiderar a doena e de relacionar o estado de anormalidade a uma degenerao, a Psiquiatria no mais se atribui a exigncia de curar. Efetua simplesmente a funo de proteo e de ordem contra os degenerados: ela se torna a cincia da proteo cientfica da sociedade, ela se torna a cincia da proteo biolgica da espcie (FOUCAULT, 2001, p. 402). Em nome da defesa e da garantia de proteo da sociedade, ela pretende ser a instncia geral de defesa da sociedade contra os perigos que minam do interior (FOUCAULT, 2001, p. 403). Todo um maquinismo refora a tautologia psiquitrica estendida Psicologia, ao Servio Social, ao servio educacional: circunscrever comportamentos anormais, fixar em classificaes, gerenciar para que sejam controlados. Em nome da proteo, toda e qualquer referncia de anormalidade ser circunscrita ao mbito da medicalizao. A Psiquiatria (a educao, o trabalho, o lazer...) assume a funo de defesa da sociedade contra seus perigos.

  • Cadernos HumanizaSUS

    33

    O gesto incessantemente repetido

    Desordens neurolgicas, desordens econmicas, desordens sociais. A vida produz sofrimentos que, a qualquer sinal, tendem a receber alguma categoria. E deste ponto que a Psiquiatria, a Psicologia, o Servio Social amplificam seu poder na gesto de nossas vidas. A populao psiquitrica, com a Reforma Psiquitrica no perdeu este nome. Cada vez mais descobrem-se novos doentes nas fbricas, nas escolas, nos hospitais gerais. Incessantemente recolhemos estas demandas, exercemos nossa razo cientfica, estabelecemos as devidas marcas institucionalizantes que potencializam novas produes maqunicas. Quando pensvamos em diminuir os loucos do hospcio, constituamos, por meio dos procedimentos desterritorializados da cincia psiquitrica e da psicolgica, novos objetos doentes. A indstria, o Estado, a comunicao, a arte entram neste festim. Para reabilitar, curar, integrar a loucura tornou-se um grande negcio. Novos procedimentos, novos espaos, novas linguagens constatam a diviso j estabelecida. Resta algo indiferenciado? Neste texto, buscamos nos aproximar desta maquinaria expressiva, analisando alguns de seus arranjos, seus movimentos territorializantes e desterritorializantes. Procuraremos abrir as palavras-atos e os corpos que constituem esses arranjos.

    A condio da Psiquiatria da patologizao permanente. Procedimento psiquitrico que sai dos territrios bem demarcados dos manicmios e alonga-se por meio de mecanismos heterogneos, cada vez mais fortes, mais ampliados, mais estendidos, intervindo na vida mais comum. Em nome da segurana e da proteo social, a Psiquiatria toma para si, o poder sobre a vida, determinando o direito soberano de vida e de morte: se no se tratar, se no seguir a prescrio exata, se no tomar a medicao... morrer...

    Mas qual a experincia da loucura na atualidade? De quais matrias e acontecimentos constituda? A loucura, na sua verso doena mental, desamarra-se das camisas de fora dos hospitais psiquitricos para novos dispositivos teraputicos. Procedimentos manicomiais de tratamento e de cura ampliam-se em inmeros servios pblicos. No ambiente privado, reservam-se o direito ao sigilo silencioso. No ambiente pblico, restam os direitos sociais adquiridos. Este conhecimento racional que denominamos doena mental, este acidente patolgico, ao qual foi reduzida a loucura, est ligado ao gesto de deciso, que destaca do rudo de fundo e de sua monotonia contnua uma linguagem significativa, que se transmite e conclui no tempo: em suma, ela est ligada possibilidade da histria (FOUCAULT, 1999, p. 145).

    Na experincia da loucura, da segregao e da excluso (e incluso em outro lugar) (FOUCAULT, 1999, p. 149), dentro das normas de sensibilidade que a isolam e capturam, as dores e as palavras do louco no existem seno pelo gesto de diviso que as denuncia e as domina. somente no ato de separao e a partir dele que se pode pens-las como

  • Cadernos HumanizaSUS

    34

    4 Ils ne mouraient pas tous mais tous taient frapps Nem todos morriam, mas todos eram afetados, Filme dirigido por Marc-Antoine Roudil. 2010. Disponvel em: . Acesso em:Indicar uma provvel data de acesso ao site.

    poeira ainda no separada (FOUCAULT, 1999, p. 146). Ato de deciso, que liga e separa razo e loucura, o que faz oposio entre o sentido e o insensato. Trata-se de um discurso indireto livre, murmrio annimo, glossolalia que expressa os acontecimentos que se encarnam em um agenciamento maqunico, em que o ato da palavra pode expressar as dicotomias razo-loucura.

    Caberia ao trabalho a considerao de grande produtor de sofrimentos submetidos a categorias de adoecimento?

    Diz uma trabalhadora, ouvida pelo servio de atendimento de um hospital pblico na Frana:4

    [...] estou na linha de produo desde os 17 anos. Sinto-me como uma mquina. Cada vez mais rpida, ningum me acompanha. Onde havia

    3 agora h 1.Quanto mais rpido, mais reduzem o pessoal. Temos que ser competentes, se no conseguimos acompanhar perguntam: voc

    no mais competente? Ficamos completamente humilhados.

    A funo de sua fala para o terapeuta mostrar o que resta, a dor, a queixa, o sofrimento. Parte do agenciamento da empresa e do mundo, ele pouco ou nada pode fazer. A pea trabalhador recebe uma escuta acurada, sensvel, expondo sua funo produtora reduzida e silenciada em uma organizao. No atendimento consegue falar de sua experincia de enlouquecer a partir de mecanismos outros, arranjos heterogneos que no so remetidos imediatamente ao mental.

    Maquinismo eficiente, ativado por discursos de competitividade, pode produzir efetivamente mltiplos acontecimentos desconsiderados, invisibilizados, que no ganham relevncia. Maquinismo que produz renda, conhecimento, trabalhadores-resistentes, trabalhadores-doentes...

    Fazemos parte de uma grande mquina capitalista movida por atos que separam comportamentos adequados e no adequados ao capital. Financiamentos estatais ampliam empreendimentos, produzem mais dinheiro, competitividades e cada vez mais doentes.

    Desconstituindo discursos, amplificando sutis acontecimentos

    Apesar de contribuies acadmicas vastssimas, por que contribumos com to pouco nos modos como lidamos com a diferena, permanecendo, por exemplo, no campo jurdico dos direitos em relao sade mental? Como bons guardies estatais, insistimos em garantir direitos s necessidades da populao. E quem precisa de qu? O Estado entra para conceder aquilo que falta. Falta sustentada por aquilo que considerado a partir do desvio,

  • Cadernos HumanizaSUS

    35

    das incapacidades biolgicas diversas, dos efeitos do meio e sobretudo o que a biopoltica vai extrair seu saber e definir o campo de interveno de seu poder (FOUCAULT, 2010, p. 206). Mas o que que falta para potencializar de modo alegre nossas vidas?

    Estranhezas e incertezas do mundo, meros acontecimentos, enclausurados pelas verdades aportadas nas fronteiras entre a razo e a desrazo. Destacamos, depuramos, hierarquizamos, ordenamos modos de ser, de pensar e de sentir em nome de verdades. Criamos espaos reais, efetivos, desenhados na prpria instituio da sociedade, espcies de utopias realizadas. So entrecruzamentos de linhas mesmo incompatveis, abertas, fechadas, substituveis. Trata-se de heterotopias que, nos termos de Foucault, correspondem criao de lugares cujas finalidades especficas a normalizao da sociedade. So espaos singulares, reais, localizveis que se encontram dentro de certos espaos sociais, cujas funes podem se opor ao prprio funcionamento social. Admitidos dentro de sua base social, prpria de todos os grupos sociais e de todas as culturas criadas para alm dos prprios recortes criados pela sociedade. Lugares outros, espcie de contestao, simultaneamente mtica e real, do espao em que ns vivemos (FOUCAULT, 1994, p. 755-756). Constitumos espaos estatais comuns reservados para os cuidados sade e, por sua vez, construmos espaos outros reservados para o exerccio do cuidado em sade mental de uma determinada populao diferenciada. A constituio de um espao especfico para atendimento de sade mental pode, neste sentido, ser entendido como Heterotopias de desvio: so aquelas nas quais os indivduos, cujos comportamentos so desviantes em relao norma ou mdia necessrias, so colocados (FOUCAULT, 1994, p. 757). No so espaos comuns de cuidados com a sade, so espaos especficos, reais, efetivos desenhados para uma populao necessitada de cuidados em sade mental. Se antes dos movimentos reformistas o atendimento era reservado aos desviantes irrecuperveis das heterotopias do desvio, como os hospitais psiquitricos, agora toda a populao pode ter suas necessidades atendidas por intermdio das novas instituies de sade mental. Qualquer desvio da norma comportamental pode ser considerado caso de sade mental que deve ser acolhido pela heterotopia do desvio. Apoiada em uma base institucional, diz Foucault, toda uma espessura de prticas constrangida ao poder centralizador, ligadas instituio e ao funcionamento de um discurso cientfico organizado no interior de uma sociedade como a nossa (FOUCAULT, 2005, p. 171).

    Em nome das verdades, a produo discursiva exorciza poderes e perigos dos acontecimentos, mas encarnam-se outros acontecimentos.

    Estamos reduzindo nossas trajetrias desterritorializantes s heterotopias disciplinadoras e controladoras ao ampliado do discurso psiquitrico? Na tentativa de sada dos procedimentos de desmanicomializao, destacamos duas trajetrias desterritorializantes dos procedimentos psiquitricos abertas pelas instituies estatais. A desterritorializao

  • Cadernos HumanizaSUS

    36

    dos velhos procedimentos de ateno dos espaos confinados e a reterritorializao destes antigos procedimentos em heterotopias especializadas do desvio, ainda destinadas cura e reabilitao. E a desterritorializao dos procedimentos psiquitricos e a sua renovao, a busca da construo de relaes com a sade, com o singular, com a diferena. Estamos conseguindo construir novas relaes com a sade, romper com as heterotopias do desvio estigmatizante?

    Ampliamos os servios de atendimento sade mental, buscamos articular polticas pblicas em uma rede, realizamos uma clnica ampliada, lutamos por uma gesto do SUS humanizada, integrada e solidria. Ao tentar retirar da loucura o estigma da doena mental, dos modelos biomdicos, sintomatolgicos e eminentemente teraputicos, ao propor uma ampliao integral de cuidados para o indivduo em sua totalidade, busca-se romper com o territrio fechado da doena mental. Todavia, utilizando conceitos como sade mental, sofrimento mental, corremos o risco de generalizaes e amplificaes do prprio espectro da anormalidade, do que no vai bem, do que precisa necessariamente do cuidado do Estado. Ampliamos o objeto de sade mental para todos. Se a passagem pelos servios de sade mental demarcavam determinados usurios considerados doentes mentais, agora a demarcao se amplia. O padro torna-se mais avaliativo. Toda e qualquer conduta de forma geral pode passar a ser visibilizada e sentida como anormalidade. Dores de cabea, dores musculares, passam a ser englobadas em uma ampla categoria de sofrimento mental. Todos somos suscetveis de sermos marcados em qualquer esfera da vida, por meio do gesto que avalia, classifica e separa segundo o padro social esperado.

    A Psiquiatria alongada no social passa a ser incorporada por intermdio de arranjos heterogneos e multifacetados. O usurio que passa a fazer parte de uma rede humanizada de sade, ao exercer seus direitos de cidadania, recebe a dupla inscrio, conforme nos indica Agambem. De um lado, os direitos de acesso sade finalmente adquiridos a partir de lutas e de rupturas com os poderes estatais, de outro prepararam, uma tcita, porm crescente inscrio de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim uma nova e mais temvel instncia ao poder soberano do qual desejaria libertar-se (AGAMBEN, 2010, p. 127).

    Em defesa da populao, fazemos determinadas escolhas em detrimento de outras, e isto est relacionado a uma ideia de riscos que os movimentos de humanizao e de desestigmao podem incorrer ao tratarem da sade mental. Se o movimento da Reforma Psiquitrica rompeu o processo de totalizao dos espaos asilares, esta sada possibilitou a agregao de novos arranjos da loucura, mais humanizada, menos estigmatizada. Em prol de um atendimento necessrio, construmos totalidades, um lugar melhor, ampliamos espaos para atendimento da loucura. Apesar de nossas intenes de promover sade e autonomia, tais usurios muitas vezes permanecem convencidos de que nenhum outro lugar ser melhor que o servio substitutivo. Destitui-se e destitudo dos lugares sociais

  • Cadernos HumanizaSUS

    37

    por suas diferenas, classificadas em anormalidades. Desvios normatizados em classificaes psiquitricas conduzem aos servios especializados. E a vida mostra-se cada vez mais constrangida na gesto estratgica do controle e da organizao estatal.

    Engatados a modos de viver dicotomizantes, os movimentos de desterritorializao so continuamente reterritorializados em novas encampaes de adoecimento diante dos atos mais simples de sobrevivncia e convivncia (SANTOS, 2010, p. 1). O Estado de natureza de uma populao desestabilizada pela ansiedade de classes populares em relao ao futuro, que Santos (2010) relacionava a uma populao do final do sculo passado, hoje, vemos que neste domnio, a situao amplia-se para outras populaes. Movimentos desterritorializantes no significam por si, emancipao, inovao, novas potncias de viver. Ficarmos atentos aos movimentos da vida. inerente vida. Mas isto produz o qu? A questo : quais linhas, trajetos e devires emancipatrios neste emaranhado de foras que constituem os grupos humanos organizacionais so capazes de alterar este estado de coisas? H um risco de promover a democracia at no ser necessrio nem conveniente sacrific-la para promover o capitalismo, e com isto, promover uma forma de fascismo pluralista, que no um regime poltico, trata-se de um regime social e civilizacional (SANTOS, 2010, p. 1).

    A questo que eu ponho no dos cdigos, mas a dos eventos: a lei de existncia dos enunciados, o que os tornou possveis-eles e nenhum outro no lugar deles; as condies de emergncia singular deles; a correlao deles com outros eventos... (FOUCAULT, 1994d, p. 681). Pela genealogia, pode-se expor a viabilidade da unificao dos discursos em grandes unidades, tais como a Psiquiatria, a Psicologia. E assim, fazer aparecer seu regime de verdades, que inclui seleo e convencimento para homogeneizar concepes. Entre outras consequncias, pode-se consolidar o fascismo da insegurana:

    a manipulao discricionria da insegurana de pessoas e grupos sociais

    vulnerabilizados por precariedade de trabalho, doenas ou outros

    problemas, produzindo-lhes elevada ansiedade quanto ao presente

    e ao futuro, de modo a baixar o horizonte de expectativas e criar a

    disponibilidade para suportar grandes encargos, com reduo mnima

    de riscos e da insegurana (SANTOS, 2010, p. 2).

    E, com isto, a possibilidade de, sob a forma de acolhimento, aproveitar-se da intimidade das pessoas, sua ansiedade quanto ao presente e ao futuro e sua vulnerabilidade social, to naturalizada e ininterruptamente recolocada e disfarada dentro do estado anormal, hereditrio, incurvel e subjetivo. E para isto, consolidar o fascismo da insegurana (SANTOS, 2010, p. 2).

  • Cadernos HumanizaSUS

    38

    Estamos dispostos a abrir mo das dicotomias entre sade e doena? Estamos dispostos a abrir a Psicologia para as Polticas do viver? (CONDE, 2012). Tentar rupturas das dicotomias que constituem razo e desrazo e todo o maquinismo produzido e produtor de novas realidades a respeito do estranho, da diferena? E mais, suportamos questionar nossos especialismos e trazer a Psicologia para abertura de novos mundos, desconectar discursos sobrecodificantes, atos e significaes redutores da vida institucionalizao psiquitrica?

    Referncias

    AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

    BRASIL. Ministrio da Previdncia Social. Cai nmero de acidentes de trabalho e aumenta afastamentos por transtornos mentais e sade. Braslia. Previdncia em questo, Braslia, n. 59, 16-29 fev. 2012. Disponvel em: . Acesso em: 22 out. 2012.

    ______. Ministrio da Sade. Secretaria de Ateno a Sade. Coordenao Geral de

    Sade Mental. Reforma psiquitrica e poltica de sade mental no Brasil. Braslia, 2005.

    CECCIM, R.; FEUERWERKER. O quadriltero da formao para a rea da sade:

    ensino, gesto, ateno e controle social. Physis: Revista de Sade Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 41- 65, 2004.

    CONDE, H. Temas em debate: tica, sujeito de direitos e instituies. Porto Alegre: UFRGS, 2012. Mesa-redonda Programa de Ps-graduo em Psicologia Social e

    Institucional UFRGS, em 24 agosto de 2012.

    DELEUZE, G; GUATTARI, F. O que filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 43, 1992.

    DEPRESSION and the global economic crisis: is there hope? The Lancet, London, v. 380, n. 6, p. 1203, Oct., 2012.

    FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. So Paulo: Forense Universitria, 2004.

  • Cadernos HumanizaSUS

    39

    ______. Aula de 16 de janeiro de 1974. In: ______. O poder psiquitrico: Collge de France, 1973-1974. So Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 255-284.

    ______. Aula de 17 de maro de 1976. In: ______. Em defesa da sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 2010.

    ______. Aula de 19 de maro de 1975. In: ______. Os anormais. So Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 371-409.

    ______. Des espaces outres: 1967. In: FOUCAULT, M. Dits et crits: 1954-1988. Paris: Gallimard, 1994a.

    ______. Entrtien avec Michel Foucault. In: ______. Dits et crits: 1954-1988. Paris: Gallimard, 1994b. v. 3. p. 140-160.

    ______. Microfsica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2005.

    ______. La pense du dehors: 1966. In: ______. Dits et crits: 1954-1988. Paris: Gallimard, 1994c. v. l.

    ______. Prefcio: 1961. In: FOUCAULT, M. Ditos e escritos: problematizao do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanlise. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1999. p. 140-148.

    ______. Of other spaces, heterotopias. Disponvel em: . Acesso em: 10 jul. 2012.

    ______. Rponse une question: 1968. In: ______. Dits et crits: 1954-1988. Paris: Gallimard, 1994d. v. l.

    ______. Sur les faons dcrire lhistoire: 1967. In: ______. Dits et crits: 1954-1988. Paris: Gallimard, 1994e. v. l.

    ______. Table ronde du 20 mai 1978. In: ______. Dits et crits: 1954-1988. Paris: Gallimard, 1994f. v. 4.

  • Cadernos HumanizaSUS

    40

    LOBOSQUE, M. (Org.). Universidade e reforma psiquitrica: interrogando a distncia. Belo Horizonte: ESP-MG, 2009. (Caderno de Sade Mental, v. 2).

    PASCHE, D.; PASSOS, E. Cadernos temticos PNH: formao em humanizao. Braslia, 2010. v. 1. Disponvel em: . Acesso em: 14 dez. 2012.

    SANTOS, B. Os fascismos sociais: 2010. Disponvel em: . Acesso em: 15 dez. 2012.

  • Art

    igo

    Cadernos HumanizaSUS

    Ariane Brum de Carvalho Bulhes1

    Michele de Freitas Faria de Vasconcelos2

    Liliana da Escssia3

    Processos de Desinstitucionalizao

    em Caps ad como Estratgia de

    Humanizao da Ateno e

    Gesto da Sade

  • Cadernos HumanizaSUS

    42

    1 Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Contato: [email protected].

    Resumo

    Com foco na esfera micropoltica e em experincias de trabalho e de pesquisa, o texto prope-se a pinar fios de processos de desinstitucionalizao em Caps ad. Foram analisadas situaes do cotidiano de um Caps ad de Aracaju/SE experimentadas desde um lugar de gesto desse servio articulando-as com condies sociais, histricas e polticas de formulao, de implantao e de implementao da Poltica de Ateno Integral a Usurios de lcool e Outras Drogas e da Reforma Psiquitrica. Buscou-se produzir uma narrativa como modo de ensaiar deslocamentos de fazeres e dizeres institudos, apontando para a possibilidade de construo de um espao coletivo de gesto de processos de trabalho. Nesse espao, desinstitucionalizar articula-se com humanizar: por meio de tais processos, almeja-se produzir mudanas nos mbitos epistemolgico, terico e de ao cotidiana, mais especificamente, na cultura institucional e nos modos de produzir sade e subjetividade em servios de sade mental.

    Palavras-chave:

    lcool e outras drogas. Desinstitucionalizao. Humanizao. Poltica pblica de sade.

    2 Doutora em Educao pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Contato: .

    3 Doutora em Psicologia, professora associada III do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Contato: .

  • Cadernos HumanizaSUS

    43

    A epidemia de crack: produo de urgncia no cuidado em ad

    Ultimamente, compondo com o cenrio miditico em torno da dita epidemia de crack, o tema da ateno a usurios(as) de lcool e outras drogas (ad) tem sido amplamente abordado, o que tem gerado um campo de tenso no interior da prpria rede de sade mental, e tambm em outras redes, pois existem questes que extravasam os limites de uma s rede ou setor. Entendido como epidemia ou seja, como uma doena o crack , por um lado, considerado um problema para especialistas de sade, os quais tm a funo de encontrar e resolver o problema; por outro, atribui-se ao Estado a funo de exercer controle sobre a considerada desgovernada disseminao, produzindo o entendimento de corpos que, submetidos ao vcio, so incapazes de responderem por si.

    Em 2010, o crack ganha uma enorme ateno, sendo tema de campanhas das eleies presidenciais. Emerge a como a droga que vem causando uma epidemia nas cidades brasileiras, destruindo vidas e destroando famlias, justificando, com isso, a urgncia em combat-la. Nesse mesmo ano, ocorre o lanamento do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, garantindo oficialmente o olhar das polticas pblicas para a problemtica ad. O plano de enfrentamento ao crack surge com um investimento do governo federal de 410 milhes para a sade, na preveno ao uso de drogas, na assistncia e na represso ao trfico.4

    A garantia de uma poltica pblica oficializada pelo governo federal com investimentos dessa monta gera cada vez mais mobilizaes da mdia em cobrar efetividade das aes, da populao em geral, e esta, por sua vez, tende a cobrar aes mais repressivas. Nesse cenrio, profissionais de sade, subjetivados pela ideia biomdica de cura pela extirpao da doena (nesse caso, a droga), tendem a descrever sentimentos de impotncia face ao desenvolvimento resolutivo de cuidado em ad. Usurios(as) de ad, por sua vez, bombardeados(as) e sujeitados(as) pelas ideias de vitimizao e de culpabilizao, clamam por ajuda travestida em internaes, em cuidado asilar que os alije (os doentes) do convvio em sociedade (ali onde a droga circula), evitando o perigo de contaminao social da populao da qualidade de vida (esta mesma que tende a se drogar para suportar as presses do dia a dia).

    Nesse processo de investimentos e construo de uma Poltica sobre Drogas no Brasil, em especial, de uma poltica de ateno em sade (mental) a usurios(as) de ad e, com ela, a implantao de servios substitutivos como os Caps ad em articulao com Programas de Reduo de Danos (PRD) (BRASIL, 2003; 2004), parece, ento, importante perguntar: como operar um cuidado antimanicomial em ad? Quais as especificidades polticas-clnicas-institucionais envolvidas nessa operao? Que prticas precisam ser fortalecidas para no

    4 Informaes retiradas do site Enfrentando o crack, mantido pelo governo federal. Disponvel em: . Acesso em: colocar data do acesso.

  • Cadernos HumanizaSUS

    44

    perdermos as conquistas do cuidado produzido com as estratgias desinstitucionalizantes e, ao mesmo tempo, ampliar a resolutividade de tal cuidado?

    Da desnaturalizao do objeto sade (mental) para o rastreio de prticas de sade: por uma gesto coletiva dos processos de trabalho em ad

    Paul Veyne (2008), seguindo a intuio metodolgica foucaultiana sobre a raridade dos fatos humanos, vai afirmar que os objetos no so seno correlatos de prticas sociais, os objetos so forjados por prticas muito bem datadas. Ou seja, os objetos so produes scio-histricas, no tendo uma existncia em si e por si, uma essncia ou uma natureza. Com Veyne e Foucault, afirmamos o sentido de negao dos objetos naturais e uma dada natureza do objeto sade (mental) em particular. Mudam-se as prticas, muda-se a fisionomia, o rosto do objeto sade, as formas de entend-la e experiment-la, ou seja, no h a sade (mental) ao longo dos tempos, brotando do mesmo lugar, possuindo uma origem primeira, evoluindo ou se modificando. H, sim, descontinuidades, mltiplas objetivaes do objeto sade.

    Com a ideia de raridade, a pista dada a de desnaturalizao do objeto sade: desviar-se da sade como objeto natural, para distinguir uma forma rara, muito bem datada, objetivada por determinadas prticas sociais, da falarmos em prticas de produo de sade. Se no h o objeto natural sade, se s existem prticas, inclusive prticas discursivas, por meio das quais esse objeto ganha corpo, podemos problematizar e interferir no que parece bvio no campo da sade mental e, nele, das prticas de gesto e ateno em ad. De acordo com Passos (2006, p. 136), no h como pensar em prticas de sade sem considerar que essas prticas acontecem [...] entre pessoas que se encontram, que sentem, que tm interesses, desejos, que tm medos, que tm uma histria, que esto inseridas em um dado momento histrico.

    Inserindo-se em um cenrio democrtico mais amplo no qual se exige participao de todos(as) e de cada um(a) na economia social (PASSETTI, 2003), o contexto contemporneo da sade pblica de suas polticas e programas tem exigido de seus operadores esforos na direo de maior participao e inventividade no trabalho, alm de uma maior articulao entre os saberes e os fazeres produzidos em torno dos processos de sade-doena e gesto do cuidado e, por conseguinte, uma atuao interdisciplinar que se abra para a participao de saberes e de fazeres no disciplinares e no especialistas de usurios(as) e sua famlia. Se o que se busca com certo modelo de sade (mental) superar uma viso tecnocrtica, biologicista, individualista, curativista e hospitalocntrica contra a qual se colocou o movimento de Reforma Sanitria e o de Luta Antimanicomial , parece ser preciso problematizar tambm, no panorama da Reforma Psiquitrica brasileira, a articulao entre produo de sade e necessidade de participao. Parece ser preciso cuidado e

  • Cadernos HumanizaSUS

    45

    6 De acordo com Passos e Barros (2009, p. 150), a posio narrativa sempre poltica: Toda produo de conhecimento, prec