Caderno de Hermenêutica Jurídica _Cleber

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  • P896c PRADO, Clber Freitas do

    Caderno de Hermenutica Jurdica Dom Alberto / Clber Freitas do Prado. Santa Cruz do Sul: Faculdade Dom Alberto, 2010.

    Inclui bibliografia.

    1. Direito Teoria 2. Hermenutica Jurdica Teoria I. PRADO, Clber Freitas do II. Faculdade Dom Alberto III. Coordenao de Direito IV. Ttulo

    CDU 340.12(072)

    Catalogao na publicao: Roberto Carlos Cardoso Bibliotecrio CRB10 010/10

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  • APRESENTAO

    O Curso de Direito da Faculdade Dom Alberto teve sua semente lanada no ano de 2002. Iniciamos nossa caminhada acadmica em 2006, aps a construo de um projeto sustentado nos valores da qualidade, seriedade e acessibilidade. E so estes valores, que prezam pelo acesso livre a todos os cidados, tratam com seriedade todos processos, atividades e aes que envolvem o servio educacional e viabilizam a qualidade acadmica e pedaggica que geram efetivo aprendizado que permitem consolidar um projeto de curso de Direito.

    Cinco anos se passaram e um ciclo se encerra. A fase de crescimento, de amadurecimento e de consolidao alcana seu pice com a formatura de nossa primeira turma, com a concluso do primeiro movimento completo do projeto pedaggico.

    Entendemos ser este o momento de no apenas celebrar, mas de devolver, sob a forma de publicao, o produto do trabalho intelectual, pedaggico e instrutivo desenvolvido por nossos professores durante este perodo. Este material servir de guia e de apoio para o estudo atento e srio, para a organizao da pesquisa e para o contato inicial de qualidade com as disciplinas que estruturam o curso de Direito.

    Felicitamos a todos os nossos professores que com competncia nos brindam com os Cadernos Dom Alberto, veculo de publicao oficial da produo didtico-pedaggica do corpo docente da Faculdade Dom Alberto.

    Lucas Aurlio Jost Assis Diretor Geral

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  • PREFCIO

    Toda ao humana est condicionada a uma estrutura prpria, a uma natureza especfica que a descreve, a explica e ao mesmo tempo a constitui. Mais ainda, toda ao humana aquela praticada por um indivduo, no limite de sua identidade e, preponderantemente, no exerccio de sua conscincia. Outra caracterstica da ao humana sua estrutura formal permanente. Existe um agente titular da ao (aquele que inicia, que executa a ao), um caminho (a ao propriamente dita), um resultado (a finalidade da ao praticada) e um destinatrio (aquele que recebe os efeitos da ao praticada). Existem aes humanas que, ao serem executadas, geram um resultado e este resultado observado exclusivamente na esfera do prprio indivduo que agiu. Ou seja, nas aes internas, titular e destinatrio da ao so a mesma pessoa. O conhecimento, por excelncia, uma ao interna. Como bem descreve Olavo de Carvalho, somente a conscincia individual do agente d testemunho dos atos sem testemunha, e no h ato mais desprovido de testemunha externa que o ato de conhecer. Por outro lado, existem aes humanas que, uma vez executadas, atingem potencialmente a esfera de outrem, isto , os resultados sero observados em pessoas distintas daquele que agiu. Titular e destinatrio da ao so distintos.

    Qualquer ao, desde o ato de estudar, de conhecer, de sentir medo ou alegria, temor ou abandono, satisfao ou decepo, at os atos de trabalhar, comprar, vender, rezar ou votar so sempre aes humanas e com tal esto sujeitas estrutura acima identificada. No acidental que a linguagem humana, e toda a sua gramtica, destinem aos verbos a funo de indicar a ao. Sempre que existir uma ao, teremos como identificar seu titular, sua natureza, seus fins e seus destinatrios.

    Consciente disto, o mdico e psiclogo Viktor E. Frankl, que no curso de uma carreira brilhante (trocava correspondncias com o Dr. Freud desde os seus dezessete anos e deste recebia elogios em diversas publicaes) desenvolvia tcnicas de compreenso da ao humana e, consequentemente, mecanismos e instrumentos de diagnstico e cura para os eventuais problemas detectados, destacou-se como um dos principais estudiosos da sanidade humana, do equilbrio fsico-mental e da medicina como cincia do homem em sua dimenso integral, no apenas fsico-corporal. Com o advento da Segunda Grande Guerra, Viktor Frankl e toda a sua famlia foram capturados e aprisionados em campos de concentrao do regime nacional-socialista de Hitler. Durante anos sofreu todos os flagelos que eram ininterruptamente aplicados em campos de concentrao espalhados por todo territrio ocupado. Foi neste ambiente, sob estas circunstncias, em que a vida sente sua fragilidade extrema e enxerga seus limites com uma claridade nica,

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  • que Frankl consegue, ao olhar seu semelhante, identificar aquilo que nos faz diferentes, que nos faz livres.

    Durante todo o perodo de confinamento em campos de concentrao (inclusive Auschwitz) Frankl observou que os indivduos confinados respondiam aos castigos, s privaes, de forma distinta. Alguns, perante a menor restrio, desmoronavam interiormente, perdiam o controle, sucumbiam frente dura realidade e no conseguiam suportar a dificuldade da vida. Outros, porm, experimentando a mesma realidade externa dos castigos e das privaes, reagiam de forma absolutamente contrria. Mantinham-se ntegros em sua estrutura interna, entregavam-se como que em sacrifcio, esperavam e precisavam viver, resistiam e mantinham a vida.

    Observando isto, Frankl percebe que a diferena entre o primeiro tipo de indivduo, aquele que no suporta a dureza de seu ambiente, e o segundo tipo, que se mantm interiormente forte, que supera a dureza do ambiente, est no fato de que os primeiros j no tm razo para viver, nada os toca, desistiram. Ou segundos, por sua vez, trazem consigo uma vontade de viver que os mantm acima do sofrimento, trazem consigo um sentido para sua vida. Ao atribuir um sentido para sua vida, o indivduo supera-se a si mesmo, transcende sua prpria existncia, conquista sua autonomia, torna-se livre.

    Ao sair do campo de concentrao, com o fim do regime nacional-socialista, Frankl, imediatamente e sob a forma de reconstruo narrativa de sua experincia, publica um livreto com o ttulo Em busca de sentido: um psiclogo no campo de concentrao, descrevendo sua vida e a de seus companheiros, identificando uma constante que permitiu que no apenas ele, mas muitos outros, suportassem o terror dos campos de concentrao sem sucumbir ou desistir, todos eles tinham um sentido para a vida.

    Neste mesmo momento, Frankl apresenta os fundamentos daquilo que viria a se tornar a terceira escola de Viena, a Anlise Existencial, a psicologia clnica de maior xito at hoje aplicada. Nenhum mtodo ou teoria foi capaz de conseguir o nmero de resultados positivos atingidos pela psicologia de Frankl, pela anlise que apresenta ao indivduo a estrutura prpria de sua ao e que consegue com isto explicitar a necessidade constitutiva do sentido (da finalidade) para toda e qualquer ao humana.

    Sentido de vida aquilo que somente o indivduo pode fazer e ningum mais. Aquilo que se no for feito pelo indivduo no ser feito sob hiptese alguma. Aquilo que somente a conscincia de cada indivduo conhece. Aquilo que a realidade de cada um apresenta e exige uma tomada de deciso.

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  • No existe nenhuma educao se no for para ensinar a superar-se a si mesmo, a transcender-se, a descobrir o sentido da vida. Tudo o mais morno, sem luz, , literalmente, desumano.

    Educar , pois, descobrir o sentido, viv-lo, aceit-lo, execut-lo. Educar no treinar habilidades, no condicionar comportamentos, no alcanar tcnicas, no impor uma profisso. Educar ensinar a viver, a no desistir, a descobrir o sentido e, descobrindo-o, realiz-lo. Numa palavra, educar ensinar a ser livre.

    O Direito um dos caminhos que o ser humano desenvolve para garantir esta liberdade. Que os Cadernos Dom Alberto sejam veculos de expresso desta prtica diria do corpo docente, que fazem da vida um exemplo e do exemplo sua maior lio.

    Felicitaes so devidas a Faculdade Dom Alberto, pelo apoio na publicao e pela adoo desta metodologia sria e de qualidade. Cumprimentos festivos aos professores, autores deste belo trabalho. Homenagens aos leitores, estudantes desta arte da Justia, o Direito.

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    Luiz Vergilio Dalla-Rosa Coordenador Titular do Curso de Direito

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  • Sumrio

    Apresentao.....................................................................................................3

    Prefcio..............................................................................................................4

    Plano de Ensino..............................................................................................8888888888888

    Aula 1 Fontes do Direito.............................................................................................. 11

    Aula 2 Interpretao como Atividade Complexa..........................................................

    Aula 3 Interpretao e Compreenso do Direito..........................................................36

    Aula 4 Hermenutica e aplicao do Direito atravs da Histria.................................54

    Aula 5 Espcies de Interpretao................................................................................ 55

    Aula 6 Formas de Interpretao...................................................................................62

    ...8

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  • Misso: "Oferecer oportunidades de educao, contribuindo para a formao de profissionais conscientes e competentes, comprometidos com o comportamento tico e visando ao desenvolvimento regional.

    Centro de Ensino Superior Dom Alberto

    Plano de Ensino

    Identificao Curso: Direito Disciplina: Hermenutica Jurdica Carga Horria (horas): 30 Crditos: 2 Semestre: 9

    Ementa

    Fontes do direito: material e formal. Principais escolas hermenuticas - Especificidades e conceito da hermenutica jurdica - Os modos de produo do direito - Hermenutica e construo do direito - Hermenutica jurdica e jurisprudncia - Lgica jurdica e hermenutica- Interpretao do Direito - Integrao do Direito - Antinomias jurdicas - Aplicao do Direito. Direito intertemporal: direito substantivo e direito adjetivo. Teorias objetivas e teorias subjetivas. Direito adquirido, ato jurdico perfeito e coisa julgada.

    Objetivos Geral: Desenvolver a capacidade de reflexo, raciocnio e compreenso do Direito e sua aplicao realidade dos casos concretos.

    Especficos: Expor os modos de produo do direito e sua construo a partir da interpretao. Contribuir para o estudo de casos a partir da compreenso e anlise da jurisprudncia.

    Inter-relao da Disciplina

    Horizontal: Cincia Poltica, Antropologia Aplicada, Filosofia e Sociologia Aplicada.

    Vertical: Teoria da Constituio, Direito Constitucional I e II, Processo Constitucional.

    Competncias Gerais - utilizao de raciocnio jurdico, de argumentao, de persuaso e de reflexo crtica; - julgamento e tomada de decises.

    Competncias Especficas - utilizao de raciocnio jurdico, de argumentao, de persuaso e de reflexo crtica; - julgamento e tomada de decises

    Habilidades Gerais - Primar pelo raciocnio jurdico, argumentativo, atravs de instrumentos de persuaso e de reflexo crtica; - Julgar e tomar decises de forma adequada.

    Habilidades Especficas - utilizar raciocnio jurdico, argumentao, persuaso e reflexo crtica; - julgar e tomar decises de forma adequada a cada caso submetido interpretao.

    Contedo Programtico

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  • Misso: "Oferecer oportunidades de educao, contribuindo para a formao de profissionais conscientes e competentes, comprometidos com o comportamento tico e visando ao desenvolvimento regional.

    Estratgias de Ensino e Aprendizagem (metodologias de sala de aula) Aulas expositivas dialgico-dialticas. Trabalhos individuais e em grupo e preparao de seminrios. Leituras e fichamentos dirigidos. Elaborao de dissertaes, resenhas e notas de sntese. Utilizao de recurso udio-Visual.

    Avaliao do Processo de Ensino e Aprendizagem A avaliao do processo de ensino e aprendizagem deve ser realizada de forma contnua, cumulativa e sistemtica com o objetivo de diagnosticar a situao da aprendizagem de cada aluno, em relao programao curricular. Funes bsicas: informar sobre o domnio da aprendizagem, indicar os efeitos da metodologia utilizada, revelar conseqncias da atuao docente, informar sobre a adequabilidade de currculos e programas, realizar feedback dos objetivos e planejamentos elaborados, etc.

    Para cada avaliao o professor determinar a(s) formas de avaliao podendo ser de duas formas:

    1 Avaliao um trabalho aplicado em sala de aula com peso 10,0 (dez); 2 Avaliao: Peso 8,0 (oito): Prova; Peso 2,0 (dois): Sistema de Provas Eletrnicas SPE (mdia

    ponderada das trs provas do SPE)

    Aplicado em Avaliao Somativa A aferio do rendimento escolar de cada disciplina feita atravs de notas inteiras de zero a dez, permitindo-se a frao de 5 dcimos. O aproveitamento escolar avaliado pelo acompanhamento contnuo do aluno e dos resultados por ele obtidos nas provas, trabalhos, exerccios escolares e outros, e caso necessrio, nas provas substitutivas. Dentre os trabalhos escolares de aplicao, h pelo menos uma avaliao escrita em cada disciplina no bimestre. O professor pode submeter os alunos a diversas formas de avaliaes, tais como: projetos, seminrios, pesquisas bibliogrficas e de campo, relatrios, cujos resultados podem culminar com atribuio de uma nota representativa de cada avaliao bimestral. Em qualquer disciplina, os alunos que obtiverem mdia semestral de aprovao igual ou superior a sete (7,0) e freqncia igual ou superior a setenta e cinco por cento (75%) so considerados aprovados. Aps cada semestre, e nos termos do calendrio escolar, o aluno poder requerer junto Secretaria-Geral, no prazo fixado e a ttulo de recuperao, a realizao de uma prova substitutiva, por disciplina, a fim de substituir uma das mdias mensais anteriores, ou a que no tenha sido avaliado, e no qual obtiverem como mdia final de aprovao igual ou superior a cinco (5,0).

    Sistema de Acompanhamento para a Recuperao da Aprendizagem Sero utilizados como Sistema de Acompanhamento e Nivelamento da turma os Plantes Tira-Dvidas que so realizados sempre antes de iniciar a disciplina, das 18h00min s 18h50min, na sala de aula.

    Recursos Necessrios Humanos

    Professor. Fsicos

    Laboratrios, visitas tcnicas, etc. Materiais

    Recursos Multimdia.

    Bibliografia Bsica

    REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 4 ed. So Paulo: Saraiva, 1986, 117 p. HBERLE, Peter. Hermenutica constitucional. Porto Alegre: Srgio A. Fabris, 1997. STRECK, Lenio Luiz. Hermenutica Jurdica em Crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado. BARROSO, Luis Roberto. Aplicao e Interpretao da Constituio. So Paulo: Saraiva. WARAT, Lus Alberto. Introduo geral ao direito. Vol I, II e III. Porto Alegre: SAFE.

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  • Misso: "Oferecer oportunidades de educao, contribuindo para a formao de profissionais conscientes e competentes, comprometidos com o comportamento tico e visando ao desenvolvimento regional.

    Complementar

    GADAMER, Hans Georg. Verdade e Mtodo, Vol I e II. Petrpolis: Vozes. PALMER, Richard. Hermenutica. Lisboa: Edies 70. DWORKIN, Ronal. Levando os direitos a srio. So Paulo: Martins Fontes. PORTANOVA, Rui. Motivaes ideolgicas da sentena. Porto Alegre: Livraria do Advogado. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenutica e aplicao do direito. Rio de Janeiro:Forense.

    Peridicos Jornais: Zero Hora, Folha de So Paulo, Gazeta do Sul, entre outros. Jornais eletrnicos: Clarn (Argentina); El Pas (Espanha); El Pas (Uruguai); Le Monde (Frana); Le Monde Diplomatique (Frana). Revistas: Consulex, Notadez, Magister.

    Sites para Consulta www.ihj.org.br www.cnj.org.br www.tj.rs.gov.br www.trf4.gov.br www.senado.gov.br www.stf.jus.br www.stj.gov.br www.oab-rs.org.br

    Outras Informaes Endereo eletrnico de acesso pgina do PHL para consulta ao acervo da biblioteca: http://192.168.1.201/cgi-bin/wxis.exe?IsisScript=phl.xis&cipar=phl8.cip&lang=por

    Cronograma de Atividades Aula Consolidao Avaliao Contedo Procedimentos Recursos

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    7 1

    8 1

    9 1

    Legenda Cdigo Descrio Cdigo Descrio Cdigo Descrio AE Aula expositiva QG Quadro verde e giz LB Laboratrio de informtica TG Trabalho em grupo RE Retroprojetor OS Projetor de slides TI Trabalho individual VI Videocassete AP Apostila SE Seminrio DS Data Show OU Outros PA Palestra FC Flipchart

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  • DISCIPLINA: HERMENUTICA JURDICA

    AULA 01

    1. FONTES DO DIREITO

    Investigar a origem do Direito consiste na necessidade de buscar, nas profundezas da vida social, a explicao para o surgimento de um sistema de regras. A

    fonte, portanto, de onde promana o direito, ganha, em importncia cientfica, na medida em que permite ao operador jurdico compreender os elementos forjadores do Direito em uma determinada sociedade, numa determinada poca.

    Assim, temos duas espcies de fontes do direito:

    FONTE MATERIAL: o Direito no um produto arbitrrio da vontade do legislador, mas uma criao que se lastreia no querer das demandas e necessidades sociais de preservao de determinados interesses, tidos como valiosos pelo meio coletivo. a sociedade, como centro de relaes de vida, como sede de acontecimentos que envolvem o homem, quem fornece ao legislador os elementos necessrios formao dos estatutos jurdicos. Como causa produtora do Direito, as fontes materiais so constitudas pelos fatos sociais, pelos problemas que emergem da sociedade e que so acondicionados pelos chamados fatores do Direito, como a Moral, a Economia, a Geografia;

    FONTE FORMAL: o direito positivo apresenta-se aos seus destinatrios por diversas formas de expresso, notadamente pela lei e pelo costume. Fontes formais so os meios de expresso do Direito, as formas pelas quais as normas jurdicas se exteriorizam, tornam-se conhecidas. Para que um processo jurdico constitua fonte formal necessrio que tenha o poder de criar o Direito. Criar o Direito significa introduzir, no ordenamento jurdico, novas normas jurdicas. As fontes formais equivalem, portanto, s normas que geram normas de cunho jurdico.

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  • 2. INTERPRETAO COMO ATIVIDADE COMPLEXA

    Quando qualificamos como complexa a atividade interpretativa apenas salientamos, na mobilizao dessas mltiplas faculdades psquicas, o acoplamento dos estados interiores ao mundo externo pela via do principal instrumento dessa mediao: a LINGUAGEM.

    Heidegger nos ensinou como o mundo nos chega enquanto linguagem. Ensinou-nos tambm que no apenas falamos das coisas que vemos, mas que antes, vemos somente as coisas de que podemos falar.

    A linguagem, portanto, funda e constitui o mundo. Por isso mesmo, a interpretao no se reduz a uma atitude passiva. No somos o mero receptculo em estados interiores das impresses do mundo exterior. O mundo feito por ns quando nos apropriamos dele interpretativamente.

    Nessa mediao lingstica da compreenso, o mundo , por ns, transformado, constantemente desfeito e refeito. Mas nem todas as linguagens so

    iguais. Existem certas linguagens dotadas da capacidade de mobilizar grandes poderes sociais, como o caso do direito.

    Tais linguagens-poderes imprimem novas condies de possibilidade vivncia do e no mundo. Quem por ofcio manipula essas linguagens na sua vida cotidiana recebe ento uma responsabilidade adicional (juiz, por exemplo): a de fazer no s o seu prprio mundo, mas tambm o daqueles onde muitos outros podem viver. Esse mundo ou esses mundos precisa ser melhor porque precisa apresentar possibilidades de materializao ftica (passar a existir no mundo da vida).

    Desse modo, a comunho de acesso linguagem irmana o homem na universalidade de sua humanidade mundana. Segundo Eduardo Arruda e Marcus Gonalves: O direito precisa cuidar melhor da forma social dessa mundanidade para que a linguagem promova mais liberdade como expresso do homem em todas as suas potencialidades criativas. Liberdade ento significa: ser livre da misria que escraviza os homens pela animalidade de seus estmagos famintos. Falamos assim de uma

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  • socializao das calorias necessrias a uma socializao da linguagem. Longe da escravido da fome e da ignorncia, somos minimamente iguais para sermos cada qual mais livre ao nosso prprio modo. 1

    HERMENUTICA e tica so temas recorrentes a interpelar os operadores do direito na tarefa de construo de alternativas jurdicas para a democracia, enquanto vetor de materializao prtica dos anseios e dogmas humanitrios propugnados na Constituio Federal de 1988, isto , A CONSTITUIO FEDERAL NO PODE SER UMA MERA CARTA DE INTENES, DEVER SER ALVO DE MASSIVA CONCRETIZAO, POR MEIO DOS OPERADORES DO DIREITO, NO ACONTECER DO DIREITO NO MUNDO.

    3. INTERPRETAO E COMPREENSO DO DIREITO

    A interpretao do direito costumeiramente apresentada ou descrita como atividade de mera compreenso do significado das normas jurdicas.

    Ou o intrprete identifica o significado da norma, ou o determina numa espcie de tudo ou nada do significado expressivo da norma. Ainda que, sob essas duas variantes ato de conhecimento ou o ato de vontade - , permanece a ideia fundamental de que interpretar identificar ou determinar (= compreender) a significao de algo. No caso, compreender o significado da norma jurdica.

    Da a afirmao de que somente seria necessrio interpretarmos normas quando o sentido delas no fosse claro. Quando isso no ocorresse, tornando-se fluente a compreenso do pensamento do legislador o que, contudo, em regra no se daria, dadas a ambigidade e a impreciso das palavras e expresses jurdicas -, seria desnecessria a interpretao, procedendo-se ao ato mecnico de subsuno do fato norma, por meio de uma simplicidade causal explicativa de acomodao e no de proclamao do direito (o juiz diz o direito, no o cria e nem o acomoda).

    1 ARRUDA JR., Edmundo Lima de; GONALVES, Marcus Fabiano. Fundamentao tica e

    Hermenutica alternativas para o direito. Florianpolis, 2002, p. 327.

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    Essa concepo que nele pe vigorosa nfase e privilegia o pensamento do legislador passou por um processo de transformao ainda no completamente apreendido pelos que se dedicam ao estudo do direito e pelos que o operam.

    A interpretao do direito constitutiva, e no simplesmente declaratria. Vale dizer: no se limita a uma mera compreenso dos textos e dos fatos; vai bem alm disso.

    Como, e, enquanto interpretao/aplicao, ela parte da compreenso dos textos normativos e dos fatos, passa pela produo das normas que devem ser ponderadas para a soluo do caso e finda com a escolha de uma determinada soluo para ele, consignada na norma de deciso.

    Por isso, importante distinguirmos as normas jurdicas produzidas pelo intrprete, a partir dos textos e dos fatos, da norma de deciso do caso, expressa na sentena judicial.

    As questes que se levantam nesse momento podem ser assim definidas:

    1. Como se interpreta? 2. Como se aplica?

    3. possvel alcanar condies interpretativas capazes de garantir uma resposta correta?

    Por outro lado, tais questes devem ser pensadas luz do Estado Democrtico de Direito, isto , mediante uma concepo que promova uma concretizao de direitos, colocando em oposio os (diversos tipos de) positivistas 2 e os neoconstitucionalistas.

    Esse fenmeno advm do fato de que o novo paradigma de direito institudo pelo Estado Democrtico de Direito proporciona a superao do direito enquanto

    2 No Brasil, a dogmtica jurdica refm do positivismo exegtico-normativista, produto de uma reunio

    de vrios elementos e modelos jusfilosficos de essncia positivista, como as teorias voluntaristas, intencionalistas, axiolgicas e semnticas, para citar algumas, as quais guardam um trao em comum: o apego ao esquema SUJEITO-OBJETO.

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    sistema de regras, a partir dos princpios que resgatam o mundo prtico at ento negado pelo positivismo.

    Assim, possvel dizer que esse mundo prtico seqestrado metafisicamente pelo positivismo est centrado, no teatro do sujeito autocentrado e desdobrado sobre as palavras possveis, coerentes, sensivelmente concebveis, que proporciona um exorcismo, um seqestro da realidade, mantendo-a distanciada nada querendo saber dela.

    ISTO PORQUE O POSITIVISMO NO DESEJA O MUNDO, SENO UMA VERSO DO MUNDO; NO ASPIRA AO FATO, AO ASSUNTO, SENO AO ESQUEMA CONCEITUAL DE DECISIONALIDADE RACIONAL, DESTINADO A RECONHECER SE ALGO PODE SER DEFINIDO COMO UM FATO E RESULTAR CONCEBVEL COMO FATO. 3

    No Brasil, o novo texto constitucional representa uma ruptura do modelo de direito e de Estado, a partir de uma perspectiva claramente dirigente e

    compromissria. No havia espao para o mundo prtico no modelo de direito anterior; no havia espao para a discusso de conflitos sociais. Isto no era assunto para o Direito, nem para a Constituio.

    Em suma, conforme Lnio Streck:

    Se o modelo de direito sustentado por regras est superado, o discurso exegtico-positivista, ainda dominante no plano da dogmtica jurdica, representa um retrocesso, porque, de um lado, continua a sustentar discursos objetivistas, identificando texto e sentido do texto (norma), e, de outro, busca nas teorias subjetivistas uma axiologia que submete o texto subjetividade assujeitadora do intrprete, transformando o processo interpretativo em uma subsuno dualstica do fato norma, como se fato e direito fossem coisas cindveis e que os textos fossem meros enunciados lingusticos. 4

    3 HAAR, Michel. Heidegger e a essncia do homem. Lisboa: Piaget, sd, p. 115 e ss.

    4 STRECK, Lnio Luiz. Da Interpretao de Textos Concretizao de Direitos: a incindibilidade entre

    interpretar e aplicar a partir da diferena ontolgica entre texto e norma. Constituio, sistemas sociais e hermenutica: programa de ps-graduao em Direito da Unisinos: mestrado e doutorado / orgs. Andr

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    4. HERMENUTICA E APLICAO DO DIREITO ATRAVS DA HISTRIA

    Assim, os mtodos de interpretao, acima mencionados, se consolidaram lentamente atravs da histria, como forma de proporcionar uma segurana ao intrprete, criando-se mecanismos matemticos de interpretao, atrelados ao esquema sujeito-objeto, deixando de avaliar a faticidade e a historicidade pr-compreensiva. Abaixo, segue rpida sntese da matria.

    Escolas hermenuticas: antecedentes

    certo que os romanos no chegaram a construir um corpo sistemtico de regras de hermenutica jurdica. Apenas se empenharam em formular preceitos para casos determinados (casos prontos), sem se preocuparem com a apresentao de princpios gerais. Imperava a obsesso pelas formalidades, pelo rito solene, de importncia capital.

    O poder da palavra, revelado nas relaes da vida pblica e privada, haveria, portanto, de penetrar no direito e refletir sensivelmente em sua interpretao. Segundo Ihering, todavia, o exagerado apego palavra e formalstica mais se verificava na interpretao dos atos jurdicos do que, propriamente, na interpretao das leis. Da a afirmao de Carlos Maximiliano, baseada em estudos do referido jurista alemo, de que "j os primitivos jurisconsultos romanos praticavam habilmente a hermenutica evolutiva" (ob. cit., p. 72).

    Os glosadores da Idade Mdia, em sua faina incessante, buscavam no texto romano as regras de exegese, a que aditavam outras, de direito cannico e consuetudinrio. Mas no chegaram a elaborar uma autntica doutrina interpretativa.

    Estava reservada aos juristas da Idade Moderna, tendo em vista mesmo o farto material casustico fornecido pelos glosadores, a confeco dos primeiros arcabouos tericos de hermenutica.

    Consoante depoimento de Joaquim Incio Ramalho (Lies de hermenutica jurdica, 2a ed. So Paulo: Tipografia Americana, 1872, p. 4), j se divisava na obra de Hugo Grotius, De jure belli ac pacis, captulo 16, uma preocupao em reduzir a um sistema especial a hermenutica jurdica. Seguiram-no Puffendorf, Thomasius e Eckardus.

    2. 2. Idade Contempornea. Surgimento das escolas.

    Foi a Revoluo Francesa, marco indelvel da Histria, que permitiu o crescimento de uma verdadeira escola de hermenutica, denominada Clssica, Tradicional ou Dogmtica. Contra o arbtrio judicial, regra comum at ao

    Copetti, Lnio Luiz Streck, Leonel Severo Rocha ... [et al]. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed.; So Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 153.

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    Absolutismo, se insurgiram os seus adeptos, proclamando uma total subservincia ao texto da lei, expresso nica do direito (Montesquieu, Laurent, Pescatore).

    Se a lei clara, improcede qualquer tentativa de interpretao: in claris cessat interpretatio.

    Sendo a lei incerta, ambgua ou obscura, mister perquirir a vontade, o pensamento do legislador, com o auxlio do elemento lgico.

    Eis a o seu erro, pois "da vontade primitiva, aparentemente criadora da norma se deduziria, quando muito, o sentido desta, e no o respectivo alcance, jamais preestabelecido, e difcil de prever" (Carlos Maximiliano, ob. cit., p. 72). Aferrando-se ao pensamento do legislador e rigidez das palavras, desconhecia a natural evoluo dos fatos sociais, base do direito, que lhes segue os passos.

    Da a importncia da Escola Histrica, fundada por Savigny, que negava a anttese letra/lgica. Em face de seus escopos, a interpretao haveria de ser uma s, desdobrando-se, isto sim, em mtodos, entre os quais se incluiria o mtodo histrico.

    A interpretao, para Savigny, consistia na reconstruo do pensamento do legislador, expresso da conscincia comum do povo. Impunha-se, ento, o conhecimento dos costumes e dos fatos sociais ligados ao contedo da lei, j que o direito, produto da vontade nacional, no se poderia considerar originrio da razo humana. Foi este, alis, o grande mrito da Escola Histrica: o de haver afastado a concepo essencialmente racional da origem do direito.

    Com isso, Jos Kohler, Coviello, dentre outros, introduziram o elemento sociolgico. Ntida a separao da lei, depois de publicada, do pensamento de seus artfices. As mutaes e o progresso social, em suas manifestaes infindas, no seriam antevistas pelo legislador. A lei, por seu turno, resiste ao tempo. Cumpre ao intrprete a tarefa de fazer com que atinja o seu verdadeiro escopo, que eminentemente social.

    Quer no final do sculo XIX, quer nos primrdios do sculo XX, as teorias proliferavam, ao sopro das novas ideias, sem dvida revolucionrias.

    Para Gny, por exemplo, a livre investigao cientfica passou a ser considerada como fonte do direito, ao lado da lei e do costume. Para ele, inexistindo norma escrita ou consuetudinria lcito ao juiz criar o direito.

    O prprio Cdigo Civil suo, por influncia de outro jusfilsofo, Huber, ofereceu guarida ao preceito. Permitiu ao magistrado, na falta do direito escrito ou consuetudinrio, sob inspirao da doutrina e jurisprudncia consagradas, decidir segundo a regra que ele prprio estabeleceria se fora legislador.

    Nessa linha, Kantorowicz, na Alemanha, chegava ao extremo. Compete ao juiz, de acordo com sua habilidade e conscincia, procurar e aplicar o direito justo, superior prpria lei, especialmente se persistirem dvidas a respeito de seu contedo.

  • 18

    O exagero manifesto. O arbtrio dos juzes, em termos to dilatados, acarreta a mais completa insegurana jurdica e social; fere, alis, o princpio da independncia e harmonia dos poderes, apangio das liberdades fundamentais, dogma insubstituvel das constituies.

    O afastamento da lei s permitido em hipteses excepcionais: somente quando sua aplicao, no caso concreto, no atender aos fins sociais a que se destina, tornando-se, portanto, injusta. a concluso do Supremo Tribunal Federal em nosso pas, que sempre repeliu, via de regra, a deciso contra legem. O que o juiz no poder fazer, ensina Alpio Silveira, " considerar uma lei como injusta em geral, em face do bem comum, da maneira por que ele o entende, e negar-lhe sempre aplicao" (O Supremo Tribunal e a deciso contra a lei, Revista Jurdica,v. 54. Porto Alegre: Sulina, 1961, p. 26).

    Hoje, todavia, com a percepo dos males do prprio Direito Penal como soluo dos problemas sociais, fica mais fcil conciliar injustia com inconstitucionalidade e, em conseqncia, aproximar o direito penal (em matria de punio) s teses do direito justo.

    Assim, a filosofia positivista influiu tambm na formao de uma teoria interpretativa. Vander Eicken, discpulo das idias de Augusto Comte, chegou a afirmar que interpretao se aplica a lei dos trs estados donde haver sido, no passar do tempo, literal (fase teolgica); lgica (fase abstrata); e positiva (fase cientfica).

    A corrente positivista, partindo do pressuposto de que o direito se constitui, fundamentalmente, em uma cincia prtica, teleolgica, que visa felicidade social, faz do fim da lei o objeto primordial da interpretao.

    Mesmo revelia da concepo filosfico-jurdica de seus primeiros defensores, a doutrina ganhou numerosos adeptos e conserva, ainda hoje, ao lado da doutrina sociolgica, a mais pujante vitalidade.

    No Brasil, alis, os autores modernos no escondem sua preferncia pelos dois ltimos processos, que nem um pouco se contradizem, mas se combinam, se completam, e at se confundem.

    A propsito, para Inocncio Borges da Rosa "a interpretao evolutivo-sociolgica teleolgica, porque se preocupa com a finalidade da lei, que outra coisa no pode ser seno a finalidade do direito, que promover o bem comum e, dentro deste, o bem individual" (Dificuldades na prtica do direito. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1939, p. 254).

    A adoo de ambos os processos se tornou inclusive obrigatria. que o juiz, segundo estatui o art. 5 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil, atender na aplicao da lei aos fins sociais a que ela se destina e s exigncias do bem comum. Com a mesma dose de razo assim tambm proceder ao examinar e aplicar as normas relativas aos demais ramos do direito.

  • 19

    Mais recentemente, com a Constituio Federal de 1988, redescobriu-se a fonte maior de todos os direitos: a liberdade, a igualdade e a dignidade do homem.

    Assim, s poderia haver direito penal que se limitasse, em carter subsidirio, proteo exclusiva de bens jurdicos; efetiva leso ou perigo concreto de leso; a uma tipicidade ao mesmo tempo formal (centrada na lei escrita) e material, a exigir, em termos mais estritos (contedo ideolgico), a produo de resultado desvalioso e intolervel, objetivamente imputvel ao risco proibido inerente conduta.

    Tudo isso no surgiu abruptamente. fruto, justamente, do esforo dogmtico de juristas nacionais e estrangeiros, preocupados com a reconstruo de um direito penal mnimo e garantista, vlido para todos os membros do grupo social. Veja-se, a respeito do tema, dentre outros: Luiz Flvio Gomes, Teoria constitucional do delito no limiar do 3 milnio, Boletim IBCCrimn 93, agosto de 2000, p. 3/4; tambm Direito penal, parte geral: introduo. So Paulo: RT, 2003, p. 27/166.

    Por sinal, os que conhecem o direito em sua concretude histrica (de qualquer pas ou regio; de carter penal ou extra-penal) sabem que o juiz, ainda que obrigado a aplicar a lei, na expresso de Cham Perelman, "dispe, no obstante, de um conjunto de tcnicas prprias do raciocnio jurdico que lhe permitem, o mais das vezes, adaptar as regras ao resultado buscado (grifos meus). A interveno do juiz possibilita introduzir no sistema jurdico consideraes relativas oportunidade, justia e ao interesse geral que parecem, numa perspectiva positivista, alheias ao direito" (tica e direito, [trad.]. So Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 426).

  • 20

    HERMENUTICA JURDICA - AULA 02

    5. ESPCIES DE INTERPRETAO

    Didaticamente, a interpretao da lei tem merecido classificaes para melhor aplicao de seus mtodos e processos. Assim, por exemplo, reportando-se Tito Fulgncio, em classificaes cujas espcies so abordadas, de uma outra forma, por outros autores (Carlos Maximiliano, Serpa Lopes, dentre vrios), o Prof. Caio Mario da Silva Pereira divide-as em dois grupos, em funo da origem e dos elementos. Quanto ao primeiro critrio, diz-se autntica, judicial ou doutrinria. Em razo do segundo, gramatical, lgica e sistemtica.

    Saliente-se, entretanto, que a atividade interpretativa, em sua substncia, una. Para Ferrara, a quem assim se apresenta, complexa, de natureza lgica, prtica, implica na induo das circunstncias da vontade legislativa. Os diversos meios somam-se a este fim para obter o sentido legislativo, em ordem a que venha o intrprete a descobrir o real contedo da norma, reconstruindo o pensamento legislativo, descendo da superfcie verbal, expresso to ao gosto do Min. Orosimbo Nonato, a seu conceito ntimo e o desenvolva em todas as possveis direes.

    Essa ltima afirmao evidencia a celeuma em torno do entendimento positivista, de que o julgador dispe da mxima liberdade para decidir-se em todas as possveis direes que a lei lhe outorga.

    Tal postulado, no entanto, traz consigo, a figura do super-juiz, pautado pelo egocentrismo subjetivista (solipsista) da resposta nica em direito, conformador de uma interpretao judicial precria e desvalida de um contedo constitucional mnimo, caracterizado pela utilizao mecnica e reiterada de procedimentos de subsuno da lei ao fato, onde o julgador imagina decidir, num primeiro momento; aplicar, num segundo; e, s depois, fundamentar a deciso tomada (com os dispositivos da lei ordinria, por exemplo).

  • 21

    Essa visualizao do ato de julgar equivocada, pois admite como possvel o fracionamento da interpretao do fato pelo julgador, admitindo cindir o que incindvel.

    Isto , no instante em que o julgador toma conhecimento do fato (que se d inteiramente pelo contato com as provas constantes nos autos do processo, bem como com a verso das teses de acusao e defesa), sua compreenso j est formada - alimentada em muito, pela sua pr-compreenso de mundo vivido; e o direito j est aplicado tambm, eis que, o compreender consiste no aplicar. Por isso, impossvel fatiar a interpretao/compreenso/aplicao, situando-as em diferentes momentos, como se fosse um processo dotado de fases. Ou ainda, como se a mente do julgador fosse multifacetada, dotada de sucessivos compartimentos de assimilao do fato pela lei.

    Segundo Lnio Streck, saltamos, com o paradigma democrtico (superamos a metodologia epistemolgica pela ontololgica) do fundamentar para o compreender, evitando-se, com isso, o confisco do mundo prtico de uma situao submetida ao Poder Judicirio. 1

    Trata-se, para o referido autor, (...) de superar a problemtica dos mtodos, considerados pelo pensamento exegtico-positivista como postos seguros para a atribuio dos sentidos. Compreender no produto de um procedimento (mtodo) e no um modo de conhecer. Compreender , sim, um modo-de-ser, porque a epistemologia substituda pela ontologia da compreenso. Isto significa romper com as diversas concepes que se formaram sombra da hermenutica tradicional, de cunho objetivista-reprodutivo, cuja preocupao de carter epistemolgico-metodolgico-procedimental, cindindo conhecimento e ao, buscando garantir uma objetividade dos resultados da interpretao. 2

    Apesar dessa revoluo produzida pelo giro ontolgico, (...) possvel detectar nitidamente a sua no-recepo pela hermenutica jurdica praticada nas escolas de direito e nos tribunais, onde ainda predomina o mtodo, mesmo que

    1 Ob. Cit., p. 151.

    2 Idem, ibid.

  • 22

    geneticamente modificado pelas teorias discursivas. A existncia de tantos mtodos e procedimentos interpretativos postos disposio dos juristas faz com que ocorra a objetificao da interpretao, porque possibilitam ao intrprete sentir-se desonerado de maiores responsabilidades na atribuio de sentido, colocando no fetichismo da lei e no legislador a responsabilidade das anomalias do direito.

    Esfumaa-se, pois, a tica no discurso jurdico. Afinal, como bem alerta Gadamer, o que constitui a essncia da metodologia que seus enunciados sejam uma espcie de tesouraria de verdades garantidas pelo mtodo. 3

    Para os positivistas o afastamento do mundo prtico condio para a construo de uma verdade consensual, sublimada numa razo meramente

    formal-instrumental, onde os elementos contextuais que cercam o caso, e influenciam as partes de uma relao processual so empurrados para debaixo do

    tapete, importando apenas o suporte legislativo que melhor se encaixa no mago da lide processual (e assim mais um caso resolvido sem relevar o mundo prtico da vida, das pessoas, dos bairros, do cotidiano de cada um e das dificuldades pelas quais todos passam todos os dias, para sobreviver num mundo que prtico, mas de existncia desconhecida para os julgadores e intrpretes brasileiros, encastelados nas torres dos fruns, tribunais e rgos ministeriais).

    INTERPRETAO CLSSICA. PROCESSOS, MTODOS E ESPCIES DE INTERPRETAO ELENCADOS PELA DOUTRINA:

    Como visto, em face de critrios tradicionais, levando-se em conta a origem, tem-se, inicialmente, a interpretao autntica, tambm denominada pblica (Cunha Gonalves), quando, por via de outra lei, ou pelo costume, se for o caso, determina-se o sentido da norma, cujo texto padece de ambigidades ou falta de clareza.

    , no mais freqente, a interpretao da lei pela prpria lei, que, por seu contedo de lei pretrita, que esclarece, no vigora apenas para o futuro, mesmo quando completa lacuna da lei anterior.

    Tem como caracterstica, pois, a eficcia retroativa, remontando seu surgimento a perodo em que ao legislador competia a interpretao da lei. Deve ser da mesma hierarquia da norma interpretada e tambm submete-se inteligncia de suas disposies.

    3 Ob. Cit., p. 152.

  • 23

    1. Interpretao judicial executada no limiar jurisdicional, executada pelo juiz, utilizando-se da legislao. No funo judicial especfica, porm resultado, por conseqncia, da fixao do contedo do preceito invocado. No assume a interpretao sentido normativo.

    Destarte, smulas, prejulgados e uniformizaes de jurisprudncia no contm norma jurdica, apenas cristalizam a jurisprudncia da Corte. A Smula do Supremo Tribunal Federal, em sua real acepo, no passa de mero instrumento de trabalho que simplifica o julgamento, dispensando a repetio de seus fundamentos (Ag 121-969-6 -AgRg-RJ, Rel. o Ministro Moreira Alves, in "DJU", de 5.2.88, p. 1.839)".

    Faz-se mister para que a interpretao se tenha por judicial que figure na parte conclusiva da sentena, que faz coisa julgada. Nos Motivos, alm de lhe faltar cunho de generalidade, no desponta perante terceiros nem para outros rgos judicantes.

    2. Doutrinria a interpretao que emana da obra do jurista, em trabalha de cunho terico, cuja autoridade depende da de seu autor e de seu esforo em face da lei in abstracto, sem influncia dialtica ou interesse mediato.

    3. No tocante aos elementos da interpretao, diz-se gramatical ou literal quando se prende anlise filolgica do texto, sua linguagem; ao significado dos termos, que pode ser outro, tcnico, distinto do comum. Assim, os de posse, boa f, legado, caso fortuito e muitos outros.

    4. A interpretao lgica ou racional pesquisa o esprito da disposio, utiliza-se de fatores racionais, da gnese histrica, da conexo com outra norma e com o inteiro sistema.

    Para lev-la a cabo, impe-se atentar para as relaes de vida para que foi criada a norma, que visa satisfazer a exigncias econmicas e sociais que surgem da relao social.

    O fim, porm, no fornece, por si s, o real contedo da norma, porque pode ser alcanado por vrias vias e pode ter havido equvoco do legislador quanto aos meios.

    O fim, no elegante dizer de Ferrara, o raio de luz que clareia o caminho do intrprete.

    Da ratio legis distingue-se a occasio legis. conjunto de circunstncias histricas que cerca a criao da Lei, como, por exemplo. a situao de revolta e perturbao interna que precedem a edio de diplomas restritivos a liberdades pessoais.

    A ratio legis pode mudar com o tempo, conferindo atualidade norma, sendo a base da interpretao evolutiva.

    5. Na interpretao sistemtica, o trabalho de comparao do intrprete vai mais longe, buscando a fixao de princpios norteadores do sistema, para, de seu confronto com a norma, dela extrair o significado que com eles tenha compatibilidade.

  • 24

    Isto porque o Direito no um aglomerado de preceitos a esmo, mas um conjunto, orgnico e harmnico de regras que guardam correlao entre si, e se reportam a princpios inspiradores mais elevados.

    6. Os autores se referem ainda interpretao histrica que no se revela, todavia, desta espcie no se pode dizer que um mtodo de interpretao. Cuida-se de recurso auxiliar no trabalho do intrprete. Diz respeito ainda aos trabalhos preparatrios da Lei, que no assumem atualmente o valor de que antes desfrutavam, na medida em que a mens legis no se identifica com a mens legislaroris. Difcil, hoje, de aferir-se diante da heterogeneidade na composio dos rgos legislativos. Constitui, mais, matria interna corporis deles. Comparam-se s tratativas nos contratos.

    INTERPRETAO MODERNA: PROCESSOS, MTODOS E ESPCIES DE INTERPRETAO ELENCADOS PELA DOUTRINA:

    7. A orientao clssica se fazia obediente Lei.

    Assim, referem os autores, ocorreu no Direito Romano, em fase inicial, pelo apego forma. Somente mais tarde, quando o jurista alcanou a abstrao de conceitos e o cuidado de regras de hermenutica, mediante a adoo da forma procedimental de compartimentalizar o entendimento judicial.

    De igual modo, sucedeu na Idade Mdia, com a escola de glosadores, ps-glosadores, tecendo comentrios mais profundos ao lado das disposies de lei; e, mais tarde, com a liberao da forma pela escola culta de Cujcio.

    Repetiu-se o fenmeno da exegese, presa ao texto, com os comentadores do Cdigo Napoleo.

    Da a reao que se seguiu com a ESCOLA DE DIREITO LIVRE, propondo novos mtodos de interpretao, permitindo-se, em alguns pases, ao Juiz corrigir e completar a Lei, guiado por orientaes subjetivas, com a valorao de interesses pelos prprios sentimentos, criando no lugar e ao lado do Direito positivo, a sua lei.

    No era a Lei que, unicamente, produzia o Direito, mas, a seu lado, a jurisprudncia, os costumes, a equidade, os fatores sociolgicos orientados na concepo do julgador.

    Foram seus corifeus, com matizes prprios de opinies, Franois Gny, Bulow, Khler, Kantorowicz, Schlossmann, Erlich, Stammler, que preconizava o Direito Justo, Mayer.

    No havia acordo, porm, entre os defensores desta corrente: para uns, s pode o juiz criar o Direito no silncio da Lei; para outros, o juiz deveria proceder (dedutiva) interpretao lgica; e, para ainda outros, em qualquer caso.

  • 25

    Contra a Escola Livre ergueram-se estudiosos vrios, apontando-lhe o grave defeito de comprometer a segurana jurdica, gerando perigoso estado de anarquia.

    Dentre os opositores. destaquem-se Unger, Dernburg, Hellwing, Polacco, Coviello, Degni, Pacchioni, Brugi.

    Os Tribunais deviam obedincia Lei e jurisprudncia, no poderiam, portanto, mudar ao sabor das tendncias do dia, das classes e dos partidos polticos.

    Os partidrios da Escola Livre, todavia, centravam suas crticas na excessiva abstrao do mtodo tradicional que ficava agrilhoado aos conceitos lgicos e formais, afastando-se da realidade de vida, da natureza das relaes em jogo, e, enfim do Direito.

    Em seu modo de ver, no h vontade na Lei, sendo esta atribuda pelo homem atravs da interpretao, haja vista as constantes mutaes da jurisprudncia.

    Por evidente que esta concepo no poderia prevalecer quando no fosse pela repartio constitucional dos Poderes, nos pases que a consagraram.

    certo prescrever o art. 4 do Cdigo Civil suo, em tmida aplicao daquelas ideias, ter o juiz de decidir de acordo com o direito e a equidade, quando a lei se referir a seu critrio ou a circunstncias ou a motivos poderosos. No entanto, no chancela as teses da Escola Livre.

    A interpretao, verdadeiramente teleolgica, e no h como conceb-la de outra forma, que confere eficcia prtica jurisprudncia, est vinculada Lei, quer pela aplicao lgica, quer pela analgica, cujos germes esto incutidos no Direito positivo.

    O princpio no inveno do jurista, porm descoberta do Direito, que se encontra latente no Direito positivo.

    ESTA A LIO DE FERRARA, PARA QUEM NO SE PODE CONCEDER AO MAGISTRADO UM SALVOCONDUTO TERICO PARA A VIOLAO DA LEI.

    Da que, devido a crticas procedentes ao exagero formal da escola tradicional evoluram os cultores do Direito para mtodos que, preservando a lgica e o valor intrnseco do sistema, levavam em conta, os dados da realidade. Assim faziam at formarem a espcie, espera de deciso.

    O art. 5 da nossa Lei de Introduo ao Cdigo Civil filia-se a essa posio intermdia, ao estabelecer, que, na aplicao da lei, o juiz atender aos fins sociais a que ela se dirige e s exigncias do bem comum.

    Segundo o Prof. e Desembargador Serpa Lopes. em seus Comentrios Lei de Introduo ao Cdigo Civil, vol. I, pp. 121 e segs.; os fins sociais dizem algo do sistema teleolgico constituindo-se o Bem Comum, de noo tomista, nas justas exigncias.

  • 26

    Por outro lado, autoriza o art. 127 do CPC, a, em casos previstos em lei, decidir o juiz por equidade, como se Legislador fosse.

    ASPECTOS ATUAIS DA INTERPRETAO DA LEI

    A evoluo e universalizao de sistemas jurdicos, aliado ao avano tecnolgico da informao e da linguagem so fatores responsveis pela introduo de algumas perspectivas novas no que se refere aos mtodos de interpretao, a partir da concepo de novas fontes jurdicas.

    Em termos de codificao, por exemplo, o Cdigo Civil portugus de 1966, alm de alargar a possibilidade de julgamento por equidade, quando haja acordo entre as partes, e a relao jurdica no seja indisponvel (art. 4, b), permite, no art. 10, n 3, ao cuidar da integrao das lacunas da lei, e, na falta de caso anlogo, ser a situao resolvida segundo a norma que o prprio intrprete criar, se houvesse a necessidade de legislar dentro do esprito do sistema.

    Esse mesmo Cdigo Portugus, prescreve, no art. 8, a obrigao de julgar e o dever de obedincia lei, fixando, em seu n 2, que este no pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral, o contedo do preceito legislativo. Mas, no art. 9, ao ocupar-se da interpretao da lei, estabelece em seu item 1, no dever cingir-se sua letra, mas reconstituir, a partir dos textos, o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurdico, as circunstncias em que a lei foi elaborada e as condies especficas do tempo em que aplicada. Adita, no n 2, no poder, porm, ser considerado pelo intrprete o pensamento legislativo que no tenha na lei um mnimo de correspondncia verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

    Sob tais perspectivas, ajusta-se como um critrio apto a atender tais necessidades o da interpretao pela lgica do provvel, sugerido pelo Prof. Arnaldo Wald ("Os Mtodos Modernos de Interpretao, in "Revista de Direito Civil", n 31, pp. 7 e segs.), em que os juzos de valor so aferidos segundo a categoria do razovel e no conforme os esquemas do racional e da lgica formal. O razovel, para o autor, refere-se sempre situao concreta, procura conciliar os princpios de equidade com a segurana jurdica, ante a necessidade de soluo em face do caso concreto, em que entram em relevo os valores econmicos e sociais envolvidos e expressos na norma concreta.

    Lacunas no Direito Positivo

    Controverte-se sobre a existncia de lacunas no Direito positivo e a respeito das formas de preench-las, respectivamente no Direito Pblico e no Direito Privado.

    Se por lacunas se compreendem vazios insuscetveis de preenchimento, ento no h nelas falar no Direito. Se no recaem sob normas de reenvio, predispostas, neste caso situam-se fora do campo jurdico.

    A lacuna, entretanto, tal como admitida, verifica-se quando inexiste disposio legal que regula especialmente determinada matria, que pode ser

  • 27

    suprida por outra norma aplicada por analogia, ou, se tal no ocorre. Na lio de Ferrara (ob. cit., pp. 224/32), o fato comporta-se na esfera de liberdade extrajurdica ou juridicamente indiferente, se aquele resultado imprprio ndole da relao.

    A ordem jurdica tem horror ao vcuo, expressa o mestre italiano. As lacunas, como tais, comuns no ordenamento jurdico, ocorre quando situaes novas no so abrangidas por lei preexistente, preenchendo-se mediante interpretao e desenvolvimento do contedo legislativo e extenso, e desaparecem na aplicao.

    Podem eventualmente ser intencionais; quando o legislador se defrontou com situaes ainda no amadurecidas para a disciplina legislativa, preferindo deixar sua soluo, provisoriamente, doutrina e jurisprudncia .

    Pode o juiz, todavia, sempre preench-las na base do sistema jurdico, que capaz, em si, de gerar norma para qualquer hiptese.

    Analogia

    Ubi eadem est legis ratio, ibi cadem debet esse legis dispositio. o princpio que inspira esta primeira forma de integrao da norma jurdica.

    No consiste propriamente em fonte de Direito, embora considerada como tal, com carter secundrio, em face da art 4 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil, pois no cria o Direito novo, mas limita-se a descobrir o existente. Invocando-a, o juiz desenvolve normas latentes no sistema, em elaborao vinculada lei, pois o Direito, ainda no esclio de Ferrara (ibidem), no apenas o contedo imediato das disposies expressas, porm o virtual de normas no expressas, desde que, nsitas ao sistema.

    , pois, o "processo lgico pelo qual o aplicador do Direito estende preceito legal a casos no previstos em seu dispositivo" (Prof. Caio Mario, ob. cit., pp. 56/7), que a concebe, como CIvis Bevilaqua (Teoria Geral do Direito Civil, 7 ed., n 30, p.34), como fonte de Direito subsidiria desde as Ordenaes, (L. 3, tt. 69), ao determinarem ao juiz proceder de semelhante a semelhante.

    Para recorrer-se analogia, mister concorram os seguintes pressupostos (Ferrara): a) a falta de precisa disposio legal para o caso a decidir b) a igualdade jurdica na essncia entre o caso a regular e o regulado (semelhana jurdica dos fatos); c) no caber interpretao extensiva, com que no se confunde; exceto se no processo penal vier a prejudicar o acusado, no sendo aplicvel .

    Para aferir-se a semelhana dos fatos, basta que se levem em conta os elementos juridicamente relevantes, as notas decisivas, no os acidentais e acessrios.

    Importa distingui-la, logo, da interpretao extensiva, ambas de conseqncias diferentes.

    Esta, que se insere no processo de interpretao lgica, pressupe que o seu caso, no previsto diretamente na lei, se enquadra em seu sentido, apesar de refugir sua letra. Na analogia, o caso no contemplado, absolutamente, na disposio legal. A primeira completa a letra da lei, a segunda, seu pensamento.

    Da que, segundo Ferrara (ob. cit., pp. 224/32), probe-se a extenso de normas excepcionais s por analogia.

    No se pode tambm recorrer analogia, quando prevalece o argumento a contrario sensu, que exclui casos outros, fora dos previstos.

  • 28

    Por outro lado, a interpretao extensiva tem lugar exatamente, quando o sentido literal da lei no coincide com sua vontade, que se deduz da interpretao lgica. Deve o pensamento, no caso, triunfar da escama verbal (prior atque potentior est quam vox, mens dicentis 7, 2, D. 33, 10), conforme o jurista italiano.

    Princpios Gerais de Direito

    Constituem ainda fonte subsidiada do Direito, conforme Clvis Bevilaqua (Teoria Geral, p. 36), formando "as regras mais gerais que constituem o fundamento da cincia e da arte do direito; no somente os princpios que dominam o direito nacional, como ainda o conjunto dos preceitos essenciais, que servem de expresso ao fenmeno jurdico."

    No Direito anterior, eram tambm fonte subsidiria os princpios de Direito romano, sob a inspirao da boa razo (Lei de 28.8.1772).

    Com a codificao, passaram a extrair-se dela, em esforo de abstrao apurado. fonte subsidiria no Cdigo Italiano (art. 12) e no portugus (art. 13).

    Serviram, no Direito brasileiro, construo da teoria da impreviso, ampliao da responsabilidade civil e da garantia dos direitos pelo mandado de segurana.

    6. FORMAS DE INTERPRETAO

    A norma jurdica, quer tenha sido fabricada intencionalmente (a lei em sentido formal e em sentido material), quer tenha sido apurada pelos cultores e aplicadores do Direito (a jurisprudncia, os tratados, as convenes, etc), exige uma fase de burilamento e adequao ao momento histrico e social da sua aplicao.

    Enquanto texto frio e latente, espelha to-s o instante da sua confeco ou do seu incorporamento ao conjunto normativo. Cabe ao intrprete vivific-la e dar-lhe a destinao adequada s exigncias scio-culturais dos seus sditos, assim entendidos pela submisso gerada pela coercibilidade das normas. Destacando a misso do exegeta, diz Caio Mrio da Silva Pereira que s o esforo hermenutico pode dar vida ao nosso Cdigo Comercial, publicado em 1850, diante da complexidade da vida mercantil de nossos dias; s pela atualizao do trabalho do intrprete possvel conceber-se o vigor do Cdigo de Napoleo, que vem de 1804, ou a sobrevivncia dos cnones da Constituio americana, que de 1787.4

    4 Instituies de Direito Civil, Forense, 1991, vol. 1, p. 135.

  • 29

    Volvendo ao tema principal da interpretao, sabido que vrias so as espcies de interpretao classificadas pelos doutrinadores, tambm chamados de processos de interpretao. E clssica a enumerao de Tito Fulgncio5, ordenando ditos processos quanto origem e quanto aos elementos:

    Quanto origem, a interpretao pode ser: a) Autntica, quando operada por intermdio de um novo diploma, editado

    posteriormente ao texto obscuro, ao qual visa dar a clareza originariamente omitida, vezes por despreparo intelectual do confeccionador da norma. Nessas hipteses, lembra Caio Mrio da impossibilidade da explicao ser dada por um diploma hierarquica-mente inferior norma explicada.6

    b) Judicial, quando proferida por rgo judicante, independentemente de nvel, assim sendo entendida tanto a manifestao de um Juzo monocrtico como o decisum de um Tribunal. A adequao do caso sub judice norma eleita como a ele aplicvel (ou a operao inversa), finda por exigir do julgador a demonstrao do entendimento que este hauriu da norma aplicada. Mais das vezes tal exigncia imperativo legal, inarredvel, como o caso brasileiro (CPC, art. 458, incs. II e III e art. 131; CPP, art. 381, incs. III e IV). Joo Franzen de Lima chama este mtodo de interpretao judiciria, ressaltando que as decises da justia s se impem s pessoas que forem parte na demanda; mas a interpretao reiterada da lei num mesmo sentido constitui a jurisprudncia, que tem relevante valor para a deciso de casos anlogos 7.

    e) Doutrinria ou doutrinal, desde que feita pelos doutores do direito, ou seja, os jurisconsultos, em seus escritos e opinamentos, detalhando o texto da norma em conjugao com os conceitos que inspiraram a edio desta.

    Quanto aos elementos, a interpretao considerada: a) Gramatical, em razo do intrprete recorrer a elementos puramente

    filolgicos do texto analisado, deste extraindo o sentido aps acurada apreciao do emprego das palavras, da significao dos vocbulos. Exemplifica Amoldo Wald que quando se declara na lei que todos os homens tm capacidade jurdica e o intrprete quer saber se o texto estabelecido visa no apenas ao homem, mas tambm mulher,

    5 Programas de Direito Civil, vol. 1, p. 7.

    6 ob. op. cit., p. 137.

    7 ob. op. cit., p. 110.

  • 30

    vamos estudar qual o sentido da palavra homem utilizado pelo legislador... Veremos, assim, que a inteno do legislador, ao empregar a palavra todo homem era de usar o masculino, abrangendo tanto o masculino como o feminino, quer dizer, dando a capacidade jurdica no s ao homem como tambm mulher 8.

    A interpretao gramatical tambm denominada literal, farisica e especiosa e foi introduzida na cincia jurdica pelos adeptos da Escola de Exegese, movimento cultural contemporneo do Cdigo Napolenico de 1804, e cujo fundamento-mor era a desnecessidade de analisar o diploma sob outros prismas, j que segundo Demolombe, a lei era tudo, competindo ao intrprete apenas extrair o sentido pleno dos textos, para apreender-lhes o significado, ordenar as concluses parciais, e, afinal, atingir as grandes sistematizaes.9

    Pelos filiados Escola de Exegese, algumas regras foram erigidas a princpio para a aplicao do mtodo gramatical, a saber:

    1 - As palavras devem ser analisadas em articulao com os outros vocbulos do texto.

    II - Se uma palavra tem um sentido tcnico ao lado de um sentido vulgar, deve o intrprete optar pelo sentido tcnico.

    III - O sentido comum da palavra, entretanto, no dever ser desprezado, desde que no contenha inexatides, impropriedades ou equivocidades.

    IV - O processo gramatical deve ser considerado como o incio da atividade interpretativa do Direito, estando sujeito, pois, s falhas e s imperfeies factveis na atividade humana.

    Crticas so disparadas contra a interpretao gramatical, pelos mais representativos cultores do Direito. Tanto que, em reao s Escolas de estrito legalismo (a de Exegese e a Pandectista, esta ltima elevando a norma legal ao patamar de dogma), surgiram a Escola Histrica-Dogmtica (o elemento sistemtico deveria ser utilizado, reconstruindo o sistema orgnico do Direito, do qual mostrava apenas uma face); a Escola Atualizadora do Direito (a lei com vida prpria e o Direito acompanhando as evolues sociais); e a Escola Teleolgica (o carter finalista do Direito).

    8 Curso de Direito Civil Brasileiro, 6 edio, RT. p. 70, vol. 1, 1989.

    9 Miguel Reale, ob. op. cit., p. 308.

  • 31

    b) Lgica 10 consistindo na nfase oferecida analise do texto da norma, em lugar das palavras que compem o mesmo. Busca descobrir o sentido e o alcance da lei independentemente do auxlio de elementos exteriores, aplicando ao dispositivo regras tradicionais e precisas, tomadas de emprstimo lgica geral. Pode ser fracionada em trs subespcies: analtica, sistemtica e jurdica.

    A interpretao analtica lgica por excelncia, contradizendo a interpretao gramatical, afirmando o esprito do texto sobre as palavras do texto. Para os seus defensores, cabe ao intrprete analisar a obra em si, e no a inteno de quem a fez.

    Na interpretao sistemtica, todas as normas devem ser analisadas tendo em conta as suas inter-relaes com outras normas do ordenamento.

    J a interpretao jurdica, para efeito didtico, desdobrada em trs campos de perquirio: a ratio legis (qual a razo da existncia da norma); a vis legis (qual o grau de vigor da norma. Se de jus cogens ou no, etc.); e o ocasio legis (a conjuntura scio-histrico-cultural que serviu de contorno criao da norma).

    II - Doutrinria. Tambm chamada doutrinal, flui da opinio dos jurisconsultores. J foi reportada neste trabalho.

    III - Jurisprudencial. Descende da interpretao judicial. por demais dinmica, j que oferecida a casos concretos postos ao julgamento do poder competente, muito embora passvel de cristalizao, v.g. as smulas dos Tribunais brasileiros e os precedentes da common law.

    IV - Inventiva. Bem ao gosto dos adeptos do jus faciendi, ao preconizar que ao intrprete facultado compor as lacunas da norma jurdica, adequando-a ao caso sub studio, demonstra ser muito mais uma tcnica de integrao da norma de que um meio de interpretao desta.

    V - Estruturante. Busca vivificar a norma de conformidade com o contexto onde a mesma est inserida. Assemelha-se interpretao sistemtica.

    10 Aqui digredimos da sistematizao formulada por Tito Fulgncio (ob. op. cit., p. 136) e Joo Franzen

    de Lima (ob. op. cit., pp. 110 e 111), preferindo analisar a interpretao sistemtica como espcie de interpretao lgica, ao lado da interpretao analtica e da interpretao jurdica. Quase ao estilo de Miguel Reale (ob. op. cit., pp. 309 e as.).

  • 32

    VI - Sociolgica. Mira adaptar a norma s reais necessidades sociais e econmicas, contemporneas aplicao da lei.

    VII - Do refazimento da norma. Bem assemelhada inventiva. A interpretao tem o condo de praticamente refazer, recriar a norma, de acordo com o instante scio-poltico-econmico da aplicao.

    VIII - Restritiva. Mtodo ou processo de interpretao visto na hermenutica pelo ngulo do resultado. Segundo Carlos Maximiliano11, o exegeta extrai do texto menos do que a letra da lei - primeira vista - traduz. Ou seja, o legislador disse mais do que queria (dixit plus quam voluit) e, ento, obriga o intrprete a restringir o sentido da lei.12

    IX - Ampliativa. Outra que considerada quanto ao resultado advindo da exegese. E tambm conhecida como extensiva, ampla, lata, liberal e generosa. Ainda segundo Carlos Maximiliano (ob. op. cit.), extrai do texto mais do que ditam as palavras (dixit minus quam voluit).

    Alm dos mtodos acima comentados, h outras formas de interpretao contempladas na doutrina, conforme destaque a seguir.

    A interpretao histrica aquela que toma por base os antecedentes normativos do texto em anlise. Cuida o exegeta de estudar, em caso de lei, a exposio de motivos, os debates parlamentares, as disposies internacionais sobre o assunto etc. Presente, passado e futuro, como circunstncias de tempo, so encaradas pelo intrprete no desenvolvimento do processo cognitivo da norma. Por isso, difcil seria entender o inteiro significado da lei sem consultar elementos histricos, circunstncias sociolgicas e, ainda, os fatores polticos, como opina Antnio de Queiroz Filho13. Entretanto, Caio Mario da Silva Pereira diz que no existe esta modalidade de interpretao, havendo sim, o elemento histrico para coadjuvar o trabalho do intrprete14, que mesmo sendo

    11 Hermenutica e Aplicao do Direito, Forense, 9 edio, p. 198.

    12 Amoldo Wald, ob. op. cit., p. 72.

    13 Lies de Direito Penal, So Paulo, RT, 1966, p. 100.

    14 ob. op. cit., p. 140.

  • 33

    de grande valia, no tem autonomia suficiente para figurar como espcie de interpretao.

    declarativa15 ou declaratria16 a interpretao mais singela, limitada a dizer timidamente o sentido da lei, sem maior aprofundamento do intrprete. E mais invocada para obstar as outras espcies de interpretao, sob o argumento de que o texto da norma j suficientemente claro. Nesse diapaso, o velho aforismo in claris non fit interpretatio soa mais como no complique o bvio.

    Progressiva a exegese que catapulta para o futuro o contedo da norma. E como explica Eduardo Couture: o certo que a lei, uma vez nascida, segue vivendo ao longo do tempo e muito alm da significao originria que lhe emprestou o legislador: os atos de responsabilidade, por prejuzos causados pelos automveis, no estavam na idia de Portals; continuamos, entretanto, a nos guiar pelos princpios do Cdigo Napolenico na determinao dessa responsabilidade17 .

    A interpretao teleolgica (finalidade da norma), afirmada por Rudolf Von Jering em sua obra O Fim do Direito18, como no poderia ser diferente; mira a compreenso finalstica da norma.

    A interpretao ab-rogatria usada quando presente um conflito entre dispositivos legais. Haver uma opo do exegeta, conforme veremos oportunamente.

    Posto o inexaurido elenco de mtodos, tcnicas, processos ou simplesmente elementos de interpretao das normas jurdicas, notadamente as legais, est claro que os exegetas dispem de um vasto leque de opes para analisar e aflorar o entendimento das ditas regras. Para selecionar, dentre tantos, qual o caminho mais adequado ao desbravamento do real objetivo do texto, mister que sejam adotados alguns critrios orientadores da opo acertada. Vejamos.

    1 - A interpretao extensiva no se aplica em casos de:

    15 Antnio Jos Fabrcio Leiria, Teoria eAplicao da Lei Penal, Saraiva, 1981, p. 56.

    16 Amoldo Wald, ob. op. cit., p. 72.

    17 Interpreta o das Leis Processuais, traduo de Gilda Russoxnano, Max Linionad, So Paulo, 1956, p.

    19 18

    Citado por Miguel Reale, ob. op. cit., p. 322.

  • 34

    a) Normas punitivas, em respeito ao princpio da legalidade, servido do direito natural para o patamar dos princpios constitucionais, exigindo expressa disposio de lei para a configurao delitiva e a respectiva sano (v.g. CF, art. 50, XXXIX e CP, art. 1);

    b) Normas de carter fiscal, notadamente no que diz respeito suspenso ou excluso do crdito tributrio; outorga de iseno; e dispensa do cumprimento de obrigaes tributrias acessrias (CTN, art. 111). Justifica Pontes de Miranda: o mtodo de fontes e de interpretao das leis tributrias no precisamente o mesmo m-todo de fontes e interpretao das leis comuns; e a fonte uma s: a lei. No h tributo sem lei que o haja estabelecido, respeitados os princpios constitucionais. No se pode, por meio de analogia, ou de argumentos lgicos, estender o que se editou nas leis. O entendimento rgido e estreito. A lei tributria limita direitos, impe deveres. Por outro lado, da natureza das leis tributrias a preciso, pela taxatividade e pelos elementos matemticos de que se tem de lanar mo para atingir o patrimnio das pessoas que no so sujeitas s regras jurdicas tributrias;19

    c) Normas de carter excepcional, quais aquelas geradas em momento de crise poltica ou institucional, bem assim as que excetuam determinados indivduos ou entidades da rbita da sua abrangncia. Tambm so assim havidas aquelas normas carregadas de especificidade tal, que so imprestveis tutela de outros casos que no aqueles norteadores da criao da regra. Exemplo: o decreto de utilidade pblica de certo bem, para fins de desapropriao.

    II - A interpretao extensiva sugerida nos casos de: a) Normas que assegurem direitos, garantias e prerrogativas; b) Normas que estabeleam prazos; c) Normas que favoream o poder pblico, entendido este como autntico

    representante dos interesses sociais; d) Normas que tm por objetivo eliminar formalidades, simplificando

    procedimentos rotineiros; e e) Normas que objetivam corrigir defeitos de normas anteriores. So chamadas

    de corretoras.

    III - A interpretao deve ser estrita:

    19 Comentrios Constituio de 1967, RT, Tomo II, p. 382.

  • 35

    a) Para as normas punitivas. S o legislador, no o Juiz, pode ampliar o catlogo de crimes inseridos no Cdigo e em leis posteriores, conforme ensina Carlos Maximiliano20. Ainda segundo este saudoso doutrinador, a vedao da exegese lata em caso de normas punitivas, tambm aplicvel s disposies apenadoras encartadas no Direito Privado21

    b) Nas normas de carter fiscal, encaradas sob ngulo da instrumentalizao do Estado para arrecadar meios de manuteno das suas outras atividades especficas. Para Carlos Maximiliano22, as normas de natureza fiscal se aproximam das penais, quanto exegese; porque encerram prescries de ordem pblica, imperativas ou proibitivas, e afetam o livre exerccio dos direitos patrimoniais. Registre-se, mesmo despiciendo, que a interpretao estrita no se aplica a todas as normas de Direito Tributrio, mas somente quelas impregnadas de inconteste fiscalidade. a exceo, vez que a regra a interpretao ps-lgica, tambm chamada de interpretao moderna por Adilson Gurgel e Carlos Gomes: aquela interpretao que adota um sistema misto - um somatrio de outros mtodos, desde o apriorstico - in dubio pro Iege ou in dubio pro jure - o literal (em determinados assuntos) at o teleolgico ou finalstico, que se verifica o alcance da norma segundo os fins a que se destina e os benefcios do bem comum - mens Iegis. Essa forma interpretativa atende ao que se convencionou chamar de processo econmico de interpretao

    - o intrprete deve levar em conta os efeitos econmicos do ato e no a sua forma jurdica (LICC, art. 5)23.

    c) Nas normas de Direito Excepcional, ou seja, de subsuno especfica, ao contrrio da generalidade da norma, que a regra.

    IV- H que ser manejada com reservas a interpretao modificativa, ensejadora da primazia da investigao social do fato e da norma a ele adequvel, em face do risco que o exegeta impe ao seu trabalho e ao resultado deste, dando base, no raro, a considervel desvirtuamento da norma.

    20 ob. op. cit., p. 322.

    21 ob. op. cit., p. 328.

    22 ob. op. cit., p. 332.

    23 Curso de Direito Tributrio, Saraiva, 3 edio, p. 37.

  • HERMENUTICA JURDICA - AULA 03:

    7. A ATUAO DO INTRPRETE JUDICIAL EM TERRA BRASILIS

    O julgador, ao estabelecer o raciocnio jurdico que o conduz deciso judicial permanece arraigado concepo do paradigma epistemolgico. A superao desse paradigma (dogmtico) cerceada em razo do modelo interpretativo subsuntivo-dedutivo, radicado num sistema hermeticamente encerrado na relao sujeito-objeto (de cunho causal-explicativo), que seqestra a temporalidade e ignora a pr-compreenso do ser-no-mundo.1

    Frente a tais premissas inibidoras da superao paradigmtica referida, o intrprete judicial no observa os limites de sentido e o teto hermenutico da norma constitucional, atuando de modo discricionrio na produo de sentidos (= norma em relao ao fato).

    Tendo em vista que a discricionariedade est conectada ao subjetivismo, arraigado ao esquema sujeito-objeto, contrrio ao paradigma intersubjetivo,2 vivenciamos o desvirtuamento do projeto democrtico constitucional ps-1988, no que tange ao seu elenco de direitos fundamentais.

    Sob tal perspectiva, o paradigma representacional concebe a interpretao como procedimento dotado de fases, capaz de acomodar, de forma dedutiva, as decises judiciais,3 de essncia metodolgico-positivista.

    1 STRECK, Lnio Luiz. Da Interpretao de Textos Concretizao de Direitos: a incindibilidade entre

    interpretar e aplicar a partir da diferena ontolgica entre texto e norma. Constituio, sistemas sociais e hermenutica: programa de ps-graduao em Direito da Unisinos: mestrado e doutorado / orgs. Andr Copetti, Lnio Luiz Streck, Leonel Severo Rocha ... [et al]. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed.; So Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 153. Para Streck: (...) a importncia da pr-compreenso, que passa condio de condio de possibilidade nesse novo modo de olhar a hermenutica jurdica. Nossos pr-juzos que conformam a nossa a pr-compreenso no so jamais arbitrrios. Pr-juzos no so inventado; eles nos orientam no emaranhado da tradio, que pode ser autntica e inautntica. 2 STRECK, Lnio Luiz. Verdade e Consenso. Constituio, Hermenutica e Teorias Discursivas. Da

    possibilidade necessidade de respostas corretas em direito, p. 6. Para Streck Estado Democrtico de Direito e discricionariedade so incompatveis. 3 Op. Cit., p. 153.

    36

  • Com isso, o ser-no-mundo deixa de ser introduzido no instante da aplicatio (APLICAO da lei ao fato); e, com ele, a tradio do fato e sua historicidade, e a fundamentao da deciso toma o contorno da interpretao abstrata, onde o intrprete convenciona os sentidos do texto constitucional ao seu bel prazer.

    Assim, o julgador brasileiro ao explicitar os fundamentos de sua deciso no utiliza os princpios constitucionais, e, quando os utiliza faz de modo meramente supletivo, como forma de legitimar a opo feita, no momento da resposta ao um caso difcil, onde a regra no conseguir responder satisfatoriamente.

    A manuteno do paradigma representacional, tanto no meio acadmico do Direito, quanto na vida cotidiana forense acarreta na COISIFICAO DA INTERPRETAO, ou ainda, segundo Lnio Streck, na objetificao da interpretao,4 uma vez que se permite, em razo das teorias discursivas, uma ampla e ilimitada liberdade do julgador, que transcende discricionariamente aos limites de sentido da norma constitucional, promovendo o desvirtuamento dos fins perquiridos pelo legislador constituinte.

    Essa atuao jurisdicional no observa a moldura limtrofe dos sentidos contidos na norma constitucional, especialmente quando se trata de direitos fundamentais.

    Para tanto, passa-se anlise casustica, por meio da ementa de um acrdo exarado pela Stima Cmara Criminal do Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, como forma de constatarmos, exemplo de julgado no cotidiano forense, da ausncia, ou inutilizao, dos princpios constitucionais, indispensveis ao norteamento da devida motivao das decises penais, tendo em vista o paradigma democrtico que vige em nosso pas:

    EMENTA: PROVA. FURTO. PALAVRA DA VTIMA E DO POLICIAL. VALOR. Em termos de prova convincente, a palavra da vtima, evidentemente, prepondera sobre a do ru. Esta preponderncia resulta do fato de que uma pessoa, sem

    4 Op. Cit., p. 151.

    37

  • desvios de personalidade, nunca ir acusar outra da prtica de um delito, quando isto no ocorreu. E quem acusado, em geral, procura fugir da responsabilidade por seu ato. Tratando-se de pessoa idnea, sem qualquer animosidade especfica contra o agente, como ocorre na hiptese em julgamento, no se poder imaginar que ela v a juzo mentir, acusando um inocente. O mesmo se diz do depoimento do policial. Afinal, em tese, trata-se de pessoas idneas, cujas declaraes retratam a verdade. No h porque, antecipadamente, ved-las, pois as hipteses de impedimento ou suspeio esto elencadas na lei processual de forma taxativa. Na hiptese, tanto a vtima como o policial informaram que viram parte da ao do recorrente e que ele, detido, mostrou o local onde escondera o objeto. Condenao mantida. FURTO QUALIFICADO. ROMPIMENTO DE JANELA DE VECULO. QUALIFICADORA CARACTERIZADA. Tendo em vista que a palavra obstculo significa aquilo que obsta, impede, dificulta alguma coisa, caracteriza o furto qualificado pelo inciso I, o cometido atravs da quebra do vidro da janela do veculo, situao ocorrida no caso em julgamento. Ademais, irrelevante, para o reconhecimento da qualificadora, fazer a distino entre obstculo externo coisa ou a ela inerente. As janelas foram colocadas para darem conforto ao motorista, mas so trancadas para obstaculizar o acesso de estranhos ao interior do automvel ou caminho. DECISO: Apelo defensivo desprovido. Por maioria.5

    A presente deciso penal emanada pela Stima Cmara Criminal do TJRS traz lume o paradigma representacional, eis que a deciso espelha o mtodo causal-explicativo como norte fundacional da deciso, isto , deduz-se, por exemplo, de que pessoas sem desvios de carter falem a verdade, e, por tal razo, apenas o depoimento desta e de um policial suficiente para ensejar a condenao, situao que agravada em razo de terem visto parte da ao criminosa, fato que descarta o flagrante prprio/constitucional.

    Nesse caso, explcito o alto teor da discricionariedade judicial, eis que parte de uma suposio de descrdito social do acusado, de cunho discriminatrio, ao relegar a sua palavra ao nada.

    Ao passo que, se presume de antemo, que ele possui desvios de

    personalidade, violando assim, o princpio da isonomia constitucional, da

    5 Apelao Crime N 70015483142, Stima Cmara Criminal, Tribunal de Justia do RS, Relator: Sylvio

    Baptista Neto, Julgado em 14/09/2006.

    38

  • igualdade substancial de todos perante o ordenamento jurdico. Tal elemento resultado das experincias (mal sucedidas) de Estados totalitrios, promovedores de punies aos indivduos, em virtude de si mesmos (por serem quem so = seres largados prpria sorte), exercitando o Direito Penal do autor, e no do fato (tpico) que, em tese, teriam cometido.

    Observa-se que, no presente caso, o intrprete utiliza a presuno no sentido de que a vtima jamais acusaria algum sem sentido, isto , a presuno se baseia no sentido da mxima valorao da palavra da vtima, ainda que no subsistam provas contextualizadas da autoria e materialidade do delito.

    No havendo outros meios de contextualizao da prova acusatria o intrprete no fundamentou sua deciso com base em princpios constitucionais, mesmo que fosse para condenar, dentro de um contexto probatrio bem articulado.

    Quanto o intrprete extrapola aos limites da norma constitucional (teto hermenutico) age no af de seu solipsismo (egosmo), ao suscitar a edio de duas provas testemunhais: a da vtima e a do policial, como suficientes para ensejar a condenao, fatores que foram explicitamente utilizados para motivar a opo pela condenao.

    O referido caso traz, ainda, elementos que permitem identificar o forte apego s regras da lei ordinria processual em detrimento da norma constitucional, em razo da fundamentao utilizada, com fins de legitimar a condenao, baseando-se, apenas, na palavra da vtima; bem como, a inverso prejudicial dos parmetros de presuno no processo penal, conforme se verifica pelos fundamentos extrados do acrdo: Em termos de prova convincente, a palavra da vtima, evidentemente, prepondera sobre a do ru. Esta preponderncia resulta do fato de que uma pessoa, sem desvios de personalidade, nunca ir acusar outra da prtica de um delito, quando isto no ocorreu. Afinal, em tese, trata-se de pessoas idneas, cujas declaraes retratam a verdade. No h porque, antecipadamente, ved-las, pois as hipteses de impedimento ou suspeio esto elencadas na lei processual de forma taxativa.

    39

  • Desse modo, podemos inferir que: o julgador no v razes outras para vedar a utilizao isolada da palavra da vtima, no apenas porque ele presume que esta a vtima jamais acusaria algum da prtica de um delito quando o acusado no tenha efetivamente concorrido para sua prtica, pois entende o julgador que ela no tem desvios de personalidade, diversamente do acusado, pois um acusado de furto qualificado; e, portanto, j se presume ser ele o nico portador de desvios de personalidade.

    Alm disso, o intrprete refere que no h restries para a isolada considerao do depoimento da vtima como prova cabal, estando isenta de impedimentos e suspeio processual, eis que as suas hipteses no esto previstas na lei processual (penal) de forma taxativa, o que, para ele, o libertaria para fins de considerao da palavra da vtima (como a nica verdade no processo), chegando a admitir que a palavra da vtima prepondera sobre a do acusado.

    Ademais, a palavra do acusado s ganha peso quando para prejudic-lo frente ao fato, seno vejamos: Na hiptese, tanto a vtima como o policial informaram que viram parte da ao do recorrente e que ele, detido, mostrou o local onde escondera o objeto. Bem, se a vtima e o policial viram parte da ao, no viram toda a ao; e, ainda, partindo do pressuposto de que a palavra do acusado no possui valor algum, deveria ser completamente descartado dos autos a passagem onde o acusado indica o local onde teria escondido o objeto, pois afinal poderia ser o caso de uma receptao, e no de furto qualificado.

    Assim, o fato de o acusado ter mostrado o local onde teria depositado o bem

    no perfectibiliza a admisso do crime de furto qualificado, associado ao contexto probatrio de que a vtima e o policial (testemunhas) admitem no terem acompanhado toda a ao.

    A motivao utilizada no caso em tela desconsidera o arcabouo principiolgico constante em nossa Constituio Federal. O intrprete levanta consideraes dedutivas, tendo como pano de fundo juzos de (des)valor acerca da personalidade dos sujeitos constantes no processo, isto , deve-se confiar na vtima pelo seu carter, e no no acusado.

    40

  • Por tudo isso, pertinente indagarmos se o caso em questo um caso fcil ou um caso de difcil resoluo judicial. 6 Costuma-se pensar que no sistema jurdico-penal no h casos de difcil resoluo, pois todos os delitos esto confinados em tipos penais (tidos como) fechados, caracterizadores da conduta que se pretende inibir, mediante a imposio de uma sano. Todavia, tal questo mais complexa do que parece.

    Assim, so considerados casos fceis os que possuem uma ancoragem legislativa onde no pairam dvidas, sendo certa e cristalina a aplicao da lei para a situao ftica judicializada. Nesse contexto terico, Dworkin sustenta que as normas como a que probe fumar em salas de aula so regras, e, que normas, semelhantes a que consagra a liberdade de imprensa so princpios. Desse modo, existe uma sensvel diferena entre princpios e regras, e em que consiste esta diferena? Para Dworkin, uma resposta rpida mostraria que as regras esto redigidas em termos mais concisos que os princpios.

    A referida regra que veda o tabagismo na universidade contm expresses como fumar e salas de aula que determinam com preciso as condies de sua aplicao, enquanto que o princpio constitucional referido utiliza expresses de textura aberta como liberdade de imprensa e no fornece elementos concretos de modo e lugar para sua aplicao.7

    Essa distino, num primeiro momento, se d no mbito da linguagem. Contudo, uma diferena mais sensvel, segundo Dworkin, reside num nvel lgico, que possui dois aspectos: a) as regras operam dentro de um esquema de tudo ou nada, onde a aplicao de seu preceito se d de modo automtico ao fato que nela se insere. Se algum fuma em sala de aula e a proibio est vigente, no necessrio nenhum elemento adicional para impedir que o infrator continue em sua conduta. O nexo entre

    6 Segundo Ronald Dworkin: O positivismo jurdico fornece uma teoria dos casos difceis. Quando uma

    ao judicial especfica no pode ser submetida a uma regra de direito clara, estabelecida de antemo por alguma instituio, o juiz tem, segundo tal teoria, o poder discricionrio para decidir o caso de uma maneira ou de outra. Sua opinio redigida em uma linguagem que parece supor que uma ou outra das partes tinha o direito preexistente de ganhar a causa, mas tal ideia no passa de uma fico. Na verdade, ele legisla novos direitos jurdicos (new legal rights), e em seguida os aplica retroativamente ao caso em questo. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a srio. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 127. 7 HART, Herbert L.A., DWORKIN, Ronald. La decisin judicial. El debate Hart-Dworkin. Estudio

    preliminar de Csar Rodriguez. Santaf de Bogot: Siglo del Hombre Editores: Facultad de Derecho. Universidad de los Andes, 1997, pp. 48-49.

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  • fatos e concluso jurdica atravs de uma regra automtico. Com base nesse mtodo de tudo ou nada, no haver conflitos de regras contrapostas, pois a eventual regra que proibia a conduta se v derrogada pela nova regra, que surte os seus efeitos.

    Entretanto, possvel que a proibio de fumar em sala de aula coexista com uma regra distinta, por exemplo, com uma que estabelece a permisso de fumar na sala de aula quando da aplicao de provas finais, consistindo numa exceo regra geral. A nova regra ficaria assim: est proibido fumar nas classes de aula, salvo durante a aplicao das provas finais. Com isso, se mantm a referida caracterstica das regras, onde elas se aplicam ou no, de modo automtico.

    Os princpios, por sua vez, no seguem um sistema de tudo ou nada. O princpio conserva sua vigncia e pode prevalecer em determinados casos e em outros no. Com isso, a diferena das regras para os princpios reside no fato de que estes no estabelecem um nexo direto entre os fatos e a concluso jurdica.

    Desse modo, conforme Dworkin, geralmente necessrio, em uma instncia intermediria do raciocnio, uma comparao de princpios encontrados. Por essa razo, segundo o referido autor, a comparao entre princpios no se resolve atravs da supervenincia de um deles e a supresso do outro; os dois princpios sobrevivem, ainda que somente um prevalea na singularidade do caso concreto; 8 b) o segundo aspecto denunciado por Dworkin consiste na distino substancial entre princpios e regras. No caso dos princpios faz-se necessrio pensar ou ponderar seu valor relativo em umas circunstncias determinadas. As regras, por sua vez, carecem dessa dimenso. Quando duas regras entram em conflito as perguntas que surgem so: uma regra derroga a outra? essa regra uma exceo outra? Consoante Dworkin, a resposta afirmativa a uma dessas perguntas resolve satisfatoriamente o problema. 9

    As duas distines explicadas de um lado, o carter conclusivo das regras e o no-conclusivo dos princpios e, de outro, a dimenso de peso prpria dos princpios

    8 HART, Herbert L.A., DWORKIN, Ronald. La decisin judicial. El debate Hart-Dworkin. Estudio

    preliminar de Csar Rodriguez. Santaf de Bogot: Siglo del Hombre Editores: Facultad de Derecho. Universidad de los Andes, 1997, pp. 49-50. 9 Ob. cit., p. 51.

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  • constituem a medula da diviso das normas jurdicas propostas por Dworkin. 10 Contudo, importante sublinhar dois matizes sem os quais a oposio entre regras e princpios resultaria excessiva.

    EM PRIMEIRO LUGAR, NEM SEMPRE CLARO SE UMA NORMA UM PRINCPIO OU UMA R