BoletimEF.org Raizes Etnicas Da Capoeira

download BoletimEF.org Raizes Etnicas Da Capoeira

of 80

Transcript of BoletimEF.org Raizes Etnicas Da Capoeira

FIS -

Faculdades Integradas Simonsen Departamento de Histria Curso de Ps-Graduao em Histria da frica e da Dispora Africana no Brasil

Bruno Rodolfo Martins

RAZES TNICAS DA CAPOEIRA

Rio de Janeiro Fevereiro 2010

Bruno Rodolfo Martins

RAZES TNICAS DA CAPOEIRA

Monografia apresentada ao curso de PsGraduao em Histria da frica e da Dispora Africana no Brasil das Faculdades Integradas Simonsen como pr-requisito para a obteno do ttulo de Especialista em Histria. Orientadora: Prof. Sheila Conceio Silva Lima

Rio de Janeiro Fevereiro 2010

Dissertao aprovada em _____ de ___________ de 2010:

_____________________________________________________

Professora Mestre Patrcia Wolley Cardoso Lins (FIS)

__________________________________________________ Professor Doutor Srgio Chahon (FIS)

_____________________________________________________ Professora Mestre Sheila Conceio Silva Lima (FIS)

_____________________________________________________ Estudante Concluinte Bruno Rodolfo Martins

II

Epgrafes:"enquanto os lees no contarem suas histrias, os contos de caa glorificaro sempre os caadores"(provrbio africano)

sou bastante curioso, suficientemente incrdulo, demasiado insolente para contentar-me com uma resposta to grosseira(Friedrich Nietzsche)

III

SUMRIO

Resumo Abstract Agradecimentos Introduo Captulo I - Aspectos Histricos sobre as Origens da Capoeira 1.1. O Rio de Janeiro do Imprio 1.2. A Escravido unindo frica e Brasil 1.3. Sendo Escravo na frica 1.4. Sendo Escravo no Brasil 1.5. Porto de Chegada: a escravido no Imprio 1.6. Escravos de ganho Captulo II - Noes identitrias 2.1. Capoeira, quem voc? 2.2. As identidades: a capoeira e o capoeira 2.3. Sou angoleira... que veio de Angola? Captulo III - Interrogaes para as tradies 3.1. A capoeira nos sculos XX-XXI 3.2. A institucionalizao da Capoeira Captulo IV - Nos caminhos das tradies 4.1. Observaes e aproximaes diante de outras expresses afro descendentes 4.1.1. Primeira anlise com as religiosidades tradicionais de matrizes africanas 4.1.2. Segunda anlise com os brinquedos populares 4.2. Debate sobre tradies com as histrias orais Apontamentos Finais Fontes e Bibliografia Anexos p.36 p.38 p.28 p.29 p.32 p.13 p.15 p.16 p.19 p.23 p.26 p.V p.VI p.VII p.8

p.43 p.43 p.46 p.48 p.56 p.60 p.64

IV

RESUMO

Este estudo pretende auxiliar as pessoas, capoeiras, acadmicas ou afins, no debate sobre tradies nas manifestaes culturais afro-brasileiras e, de forma incisiva, na prpria capoeira. Percebemos em vrias destas manifestaes algumas questes atreladas valorizao de uma ou outra tradio em detrimento de outras, e desejamos descobrir e aprofundar o que ser tradicional e quais os sentidos e suas implicaes no mundo que vivemos hoje. Buscamos aspectos histricos sobre as origens da capoeira, remontando ao sculo XIX, para problematizarmos diante da chamada institucionalizao, que demarca e funda tradies no comeo do sculo XX e altera profundamente as perspectivas da capoeira e sobre a capoeira. Experimentamos, no intuito de procurar aproximaes tnicas, comparar a capoeira com outras manifestaes que teriam uma mesma descendncia cultural africana. Aps analisarmos tais discursos acadmicos, fomos ao encontro dos discursos de capoeiras procurar evidncias, convergncias e divergncias entre estes. As razes tnicas da capoeira podem continuar obscuras, mas os discursos de tradio esto postos para as anlises, reflexes e proposies.

V

ABSTRACT

In the following work, we intend to bring some light to the discussion about tradition in afro-brasillian cultural manifestations, in special in the Capoeira. It has been perceived, in some of these manisfestations, some issues related to the different degree of interest shown for one tradition in despise of the others, and now we try to find out what means to be traditiotional, and how it does affect the world we live in. We tracked back for historical aspects about Capoeira's very origin, circa XIX century, to raise questions about the so called "Institutionalisation", which founded traditions early in the XX century and played a very important role in the way the perspective of the Capoeira has changed ever since. Trying to find etnical parallels, we compared Capoeira with others manifestations which supposely would share the same african origins. Following the analysis of academic material, we looked into the discuss of the Capoeiras in order to find convergences and discrepances between both sources. The etnical roots of the Capoeira may remain obscure, but all the tradition discussion is open for analysis, reflections and propositions.

VI

AGRADECIMENTOS

A tudo que acontece em minha vida, e a todas as pessoas que passam por ela agora.

capoeira, que sem ela no existiria Sabar; a Caapa, que me iniciou e me fez despertar de mim mesmo. Aos grandes amigos que me acompanham h algum tempo nas trilhas da capoeira, Mico Branco, Paoca e Carcar, s rodas, aos trabalhos e aos debates que muito tivemos e temos juntos. Aos mestres Nilo e Baiano Anzol, que acompanharam minha vida acadmica misturada com a de capoeira, e que me mostraram suas razes: a capoeira de Artur Emdio e de Bimba. Aos mestres Brinco e Neco Pelourinho, que me acolheram na escola de Pastinha no Rio de Janeiro e com sua capoeira Angola.

turma da Especializao que, durante tantos sbados muito valiosos, juntos conseguimos estudar e nos divertir simultaneamente em imensas discusses srias e sem sentido. Sem estas pessoas, sem dvida, o aproveitamento no teria sido to bom quanto foi. com muito carinho a estas, uma quase dedicao: Ana Paula, Vagner, Ana Paula, Maria Nazar, Mnica, Mrcia, Lidiane, Valria, Snia e Vilma.

minha me e ao meu pai, pela ajuda e compreenso em muitas vezes que precisava me concentrar, estudar e me isolar, ou ocupar e bagunar os espaos de nossa casa.

E professora Sheila, pela atitude em abraar um tema como este que escolhi e que tanto me ajudou durante o curso, na elaborao desta monografia, e na transformao de minha pessoa em um historiador, especialista em frica, nas palavras da prpria.

VII

RAZES TNICAS DA CAPOEIRA

INTRODUO

Capoeira. Debater sobre ela to bom, misterioso e provocante quanto o prprio ato de apropriao dela, to curioso quanto o desenrolar de um jogo. para acadmicos, objeto de estudo, de desejo por revelaes e exerccio de abstrao acerca deste tema: sua histria, suas razes. Para muitos capoeiras, aqueles que a praticam, e para muitas capoeiras, referncia s modalidades/estilos/prxis dela, este tema quase um tabu. Pesquisar j um ato de abertura de pensamento, de disponibilidade para outros diversos modos de se ver aquilo que se pesquisa, mas ainda so poucos acadmicos que so capoeiras, assim como os capoeiras que so acadmicos. como um jogo de capoeira. Conflito bsico estabelecido aqui e agora, que gera este trabalho, que elaborado por um capoeira e suas dvidas de muito antes de se tornar acadmico. Debater sobre um passado quase mitolgico da capoeira pode ser entendido como um desencantamento dela, principalmente para os e as capoeiras que mantm suas tradies e suas relaes de poder sustentadas neste encanto. A todo momento neste trabalho estaremos dialogando com os seres acadmicos e os seres capoeiras, buscando neste jogo os discursos sobre tradies e histrias da capoeira. dison Carneiro comenta que os capoeiras da Bahia denominam o seu jogo de vadiao e no passa disto a capoeira, tal como se realiza nas festas populares de cidade. Os jogadores se divertem, fingindo lutar [...], mas nem sempre ter sido assim.1 A capoeira, para muitos mestres ou zeladores, indefinvel.2 E hoje ainda temos muitas faces dela se mostrando, ora de forma cooperativa, ora de forma competitiva, o que torna a tarefa de uma definio um tanto problemtica. O embate entre diferentes escolas e grupos de capoeira existentes separa os capoeiras3, permitindo muitas vezes um processo de dominao por fora da capoeira (no sentido de controle externo), com os cuidados na manuteno das tradies sendo colocados de lado (como a escolha e a definio de quem pode e deve ser mestre) em detrimento destes interesses externos, em especial no que tange a enquadramentos no sistema social e econmico vigente, estimulando a competio e o lucro, por exemplo, tpicos de uma viso empresarial; assim como a prpria folclorizao

12

3

CARNEIRO, dison. Cadernos de Folclore. n.1, Capoeira. MEC/FUNARTE. Rio de Janeiro; 1975. p.9 Preferimos o termo zelador, no lugar de mestre, por melhor demonstrar o papel desta pessoa, que do cuidar da capoeira. No entanto, a nomenclatura usual a de mestre, remetendo dicotomia mestre-aprendiz, resqucio de idias tecnicistas, militares e/ou pedagogicamente tradicionais. Um paralelo pode ser feito com outras tradies afro, como a expresso zelador(a)-de-santo no lugar de pai ou me-de-santo de Candombls e Umbandas. Praticantes de capoeira

8

que estimula transformaes voltadas para apresentaes e espetculos, fenmeno este j bastante conhecido de muitas tradies populares brasileiras. No entanto, alguns apontamentos gerais ainda podemos fazer. Hoje a capoeira se manifesta enquanto ritual, numa roda, com seus mestres e outros participantes desta (participantes vivos ou mortos, conforme as concepes de Vida de cada capoeira). Supomos que nem sempre foi assim. O que chamamos de uma capoeira antiga, originria de todas as outras, mantida enquanto mito distante pelo aspecto espao-temporal, fruto de um desejo de fundamentao das tcnicas ou das tradies. Predominantemente, as capoeiras da cidade de Salvador, a (de) Angola e a (Luta) Regional (Baiana), se perpetuaram por todo Brasil e tambm pela superfcie do planeta desde suas invenes. As capoeiras de outras regies do territrio, pelo menos desde a vinda da Repblica, tm ocupado espaos menores em importncia nos imaginrios dos capoeiras. As grandes cidades porturias do Brasil so responsveis pelas evidncias de capoeira: podemos citar alm de Salvador e com equivalente histria, as cidades do Rio de Janeiro e Recife, como So Lus do Maranho e Belm, porta de entrada da regio norte e da floresta Amaznica. Mas devido a poucos estudos em umas, a grande represso do Estado em outras, ou simplesmente pelo domnio do discurso pelas capoeiras baianas, difceis de encontrar so as pistas dessas outras capoeiras. Ainda se diz, por exemplo, que quando as capoeiras baianas chegaram nestas cidades, essas outras capoeiras nativas teriam sido amalgamadas ou simplesmente absorvidas por estas. Temos ainda o movimento de uma capoeira chamada contempornea, que pouco conseguimos definir, mas que pretenderia unificar as duas capoeiras baianas, ou todas as capoeiras existentes, para que se pudesse aproveitar os diversos aspectos que estas teriam.4 Curiosamente este movimento bem visvel na regio sudeste e sul; diriam alguns antigos folcloristas um fenmeno de modernidade, contrapondo as tradies, que viriam do nordeste e norte? * Entre as questes metodolgicas deste trabalho, bom apontarmos algumas: a primeira (mas no necessariamente em ordem de importncia) o estudo de culturas orais atravs de registros. A maior parte do que poderia ser trabalhado est nas, ou melhor, so as pessoas, especialmente as que viveram nos tempos em que as capoeiras foram sendo inventadas. Os registros nem sempre so feitos a partir destas pessoas, o que acaba gerando certos anacronismos (afinal, por se tratar de, como chamamos hoje, uma cultura oral, os registros brancos que poderiam ser armazenados e acessados tempos depois no ocupam4

TAKEGUMA, Rui. Capoeira qual a sua? Angola, Regional ou Contempornea. Disponvel em: http://www.ime.usp.br/~salles/ceaca/capo1.html Acesso em: 25 de junho de 2006.

9

tanto valor por dentro destas tradies). Na verdade, at o sculo XIX, em se tratando do mundo Velho, as culturas de base das populaes europias se perpetuavam predominantemente pela forma oral.5 Isso sem precisar mencionar as culturas africanas (excetuando as com influncia islmica) e do Novo mundo. Por isso, se tratando de um surgimento numa poca em que as pessoas mantinham suas tradies oralmente, h dificuldade de lidar com as possveis fontes de origem; a segunda o fazer-se refletir sobre os discursos tradicionais da capoeira, mas tambm sobre os discursos acadmicos. Ambos muitas vezes reproduzem a situao estabelecida ao invs de estimular a reflexo e a crtica; terceiro, para estudarmos culturas que se estabeleceram h muito tempo no Brasil seria preciso compar-las com manifestaes que foram registradas em algum momento, que vivem ainda hoje e/ou que tm seus traos em manifestaes descendentes. Por este motivo procuraremos em expresses artsticas de em torno do sculo XIX traos que possamos compar-las s manifestaes culturais de hoje; tambm buscaremos nossas fontes primrias em acervos de instituies de capoeira, procurando qualquer registro que possa nos ajudar a elucidar alguma questo sobre origens e tradies na capoeira; e, entre estas, incluiremos no debate o que chamamos de histria oral, retratando e dialogando com discursos de mestres representantes das capoeiras presentes no Rio de Janeiro. Algumas pesquisas em desenvolvimento e que estaremos examinando tambm so (1) as possibilidades de a capoeira ter se expandido pelos portos e a relao com uma disseminao tnica predominante, (2) os registros de priso de capoeiras (muito usados hoje) e a relao com as etnias, (3) a observao dos registros de chegada em portos brasileiros, dos de sada dos portos africanos, somando s etnias inventadas tanto pelos traficantes como pelos africanos escravizados em terras brasileiras, (4) a dinmica do comrcio interno africano, com nfase no comrcio de escravos, e as possveis etnias que estariam sendo comercializadas e (5) a relao dos portos africanos com os brasileiros. Nosso recorte histrico-temporal para captarmos a base das razes da capoeira o final da Colnia e o comeo do Imprio do Brasil (em torno de 1808 e 1850), com o foco na capital de ento, Rio de Janeiro. Os motivos so vrios: o volume de comrcio transatlntico com o Rio aumentado gradativamente neste perodo at tornar a cidade uma das mais importantes de seu tempo, com seus portos super movimentados; uma poca e um local em que se comea a ter um grande nmero de registros de forma sistemtica (instituies oficiais, jornais etc.) e de outras (como de viajantes e artistas) em especial, de registros sobre capoeira;5

Ver o debate sobre culturas populares versus tradies em: TENDERINI, Helena Maria. Na pisada do galope: Cavalo Marinho na fronteira traada entre brincadeira e realidade. Dissertao (Mestrado em Antropologia). UFPE, 2003.

10

o favorecimento da pesquisa de fontes devido presena das instituies oficiais na cidade. Mas nossa problemtica se concretiza nos dias de hoje, pelas transformaes ocorridas na capoeira atravs da anlise e crtica dos discursos sobre tradio e seus desdobramentos no cotidiano dela. Entre as questes comuns que intrigam capoeiras e afins esto: (1) a capoeira uma manifestao desenvolvida em solo brasileiro ou africano?; (2) desenvolvida na rea urbana das cidades ou nas reas rurais?; (3) desenvolvida nas cidades litorneas ou interioranas?; (4) uma vez que a capoeira carioca/fluminense tem grande nmero de relatos, sendo estes os mais antigos pesquisados at hoje, por que se fala da capoeira baiana enquanto origem?; (5) a capoeira pode ser considerada subversiva? Popular? Afro-descendente? Arte marginal e muito reprimida pelo Estado? Arte da negociao? Arte rebelde ou revolucionria? Arte negra ou esporte branco? * Nossas fundamentaes estaro distribudas em quatro captulos. No primeiro, trataremos de procurar num recorte mais longnquo, o final do sculo XVIII e a primeira metade do sculo XIX, as origens da capoeira. Remontamos algumas vidas de africanos na frica e na Amrica portuguesa, tentando abarcar as questes sociais provocadas pelo sistema de escravido e o impacto do trfico transatlntico nas duas bandas deste Oceano que separa estes continentes, assim como as adaptaes que estes povos precisaram fazer para continuarem vivos. O foco territorial o Rio de Janeiro, cidade que aumentara de importncia gradativamente diante o Imprio portugus, tornando-se capital deste e, entre outros motivos, teve um grande nmero de registros e memrias acerca da capoeira desde ento; somando s macias levas de escravos chegando a todo momento, transformando definitivamente a cidade e seus modos de viver. No segundo, debatemos sobre as diversas identidades que a capoeira teria com o passar do tempo, assim como dos prprios praticantes os capoeiras, pesquisando as possibilidades de considerar alguma etnia ou nao responsvel pela criao da capoeira e demonstrando os entraves que isto provoca. J no terceiro, estaremos narrando rapidamente um panorama da capoeira nos sculos XX e XXI, quando acompanha as mudanas da sociedade, se adaptando e gerando suas prprias demandas, atravs das ondas de institucionalizao e necessidade de reconhecimento oficial. A problemtica resultante destes momentos que tentamos entender e estudar: os discursos de tradio e seus desdobramentos. Finalmente, no ltimo, nossas observaes e conversas com diversas manifestaes culturais afro sero utilizadas para aproximarmos ou no tais manifestaes com os modos 11

de se vivenciar a capoeira. Teria ela alguma relao com outras manifestaes descendentes tambm de alguma parte da frica, de onde poderamos concluir acerca de uma etnia comum formadora a tais expresses? Aqui, valorizaremos os discursos sobre tradio de alguns mestres de distintas linhagens da capoeira do Rio de Janeiro, percebendo as convergncias e as divergncias de suas vivncias atravs de seus depoimentos.

12

CAPTULO I

Aspectos Histricos sobre as Origens da Capoeira

1.1. O Rio de Janeiro do Imprio

Desde 1763, o Rio de Janeiro veio ocupando espao cada vez maior no cenrio do Imprio Portugus. As questes polticas, econmicas, sociais cada vez mais se concentravam na cidade. Com a vinda da Corte portuguesa, em 1808, o crescimento de sua importncia tomou propores enormes. Tinha se tornado a capital do Imprio luso-brasileiro. O Rio de Janeiro constitua o principal porto do Brasil, com intensa atividade comercial, articulando metrpole, o litoral nordestino, o sul, e at mesmo a regio do Prata. Em torno da regio, o acar progredia em Campos dos Goitacases e o caf comeava a prosperar pelo Vale do Paraba. O interior fornecia acesso s regies mineiras, que tambm podiam ser atingidas a partir do planalto paulista, importante ponto de passagem, por sua vez, para o comrcio de montarias e couros, que tinha origem nos frteis e extensos campos do sul. O Rio comunicava-se ainda, ao norte, com a antiga regio aucareira do litoral nordestino, de grande densidade de escravos, compreendida pela Bahia e por Pernambuco, que, neste perodo, viu tambm crescer a importncia do algodo e do tabaco e consumia em abundncia o charque do sul.6 At 1808 poucas eram as embarcaes estrangeiras que aportavam na cidade, mas depois deste marco e com a Abertura dos portos s naes amigas, o fluxo aumentou consideravelmente, tanto de embarcaes estrangeiras como portuguesas. Entre as atividades comerciais desenvolvidas de forma intensa a partir desse evento foi o trfico de escravos, de onde se estima que somente no perodo de 1808 a 1821 cerca de 500 mil escravos foram trazidos para o Rio de Janeiro.7 A economia urbana e o trfico internacional de escravos foram expandidos juntos com a cidade, especialmente de 1808 a 1850, considerados por Mary Karasch os anos mais importantes da histria da escravido no Rio, e a cidade teve a maior populao escrava urbana das Amricas.8 Pela Baa de Guanabara, porta da cidade, circulava apenas embarcaes portuguesas (conseqncia do pacto colonial); suas ruas eram de terra batida, normalmente fruto de um aterramento, j que a cidade possua muitos mangues e terrenos alagadios; as construes6

7

8

NEVES, Lcia Maria B.P., MACHADO, Humberto Fernandes. O Imprio do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p.30 MANSUR, Andr Luis. Milagre do crescimento. In: 1808-2008, 200 anos da Famlia Real no Brasil. Revista Aventuras na histria. So Paulo: Abril, maro de 2008 (edio de colecionador). p.38 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). So Paulo: Cia das Letras, 2000. p.28

13

bsicas da populao eram de certa maneira simples, com um andar somente, feitas com pedra bruta e uma argamassa, com telas de madeira e sem vidros nas janelas. As praas e largos eram pontos de encontro: festas, comrcio, religio, represso entre estes lugares o Campo de Santana demarcava os limites da cidade com a rea rural na direo norte. O que chamamos hoje de zona sul era rea rural. Os lugares pblicos eram dominados pelos trabalhadores, normalmente escravos. Por freguesias ou parquias a cidade estava dividida, basicamente em: Santa Ana, Santa Rita, Sacramento, Candelria e So Jos.9 Cada uma tinha uma especificidade, sendo acentuada com o volume de pessoas que iria se alterar.10 De repente aquela colnia de outrora precisava mudar sua posio para a de sede do governo portugus. Apesar de existirem planos de emergncia de transferncia da Corte portuguesa para o Brasil, nada fora planejado para a chegada das quase 15 mil pessoas ilustres.11 O prncipe regente D. Joo tratou de despachar vrias ordens, medidas e leis para que a cidade, assim como toda a ex-colnia fosse adaptada s necessidades que agora demandavam. A criao de vrias instituies oficiais, o alojamento da Corte e o desalojamento das pessoas que possuam casas adequadas para ela (com o famoso sinal PR de Prncipe Regente, e que teve seu sentido mudado para Ponha-se na Rua pela populao)12, a abertura de novas estradas e bairros expandindo a cidade, as reformas urbanas e as tentativas de solucionar as epidemias e doenas corriqueiras... enfim, era preciso (im)pr uma certa ordem na casa.13 Era preciso alinh-la com os ideais de sede de um Imprio, um pouco depois efetivado oficialmente. Nestas demandas tambm estavam includas questes de ordem pblica na capital: a cidade tinha um contingente de escravos grande com suas atividades pelas ruas, chamados escravos de ganho ou ao ganho.14 Apesar dos esforos oficiais, as ruas, os comrcios, as estivas, os chafarizes, as praas e todo lugar pblico era territrio de algum grupo de escravos, e a todo o momento poderia acontecer brigas, disputas e mortes, tanto com os agentes de segurana como entre estes grupos. Muitas vezes estes escravos de ganho tinham entre suas caractersticas a prtica da capoeiragem.15 Os capoeiras, escravos ou no, precisavam ser controlados. E com a presena cada vez maior desta circulao escrava pela cidade, chegados a todo o momento pela Baa de9 10

11

12 13

14 15

Ver mapa da cidade, retirado de KARASCH, Mary C. A vida dos escravos... Anexo: p.72 RIBEIRO, Flvia; MANUEL, Maurcio. Vidinha provinciana. In: 1808-2008, 200 anos da Famlia Real no Brasil. Revista Aventuras na histria. So Paulo: Abril, maro de 2008 (edio de colecionador). p.26-29 RIBEIRO, Flvia. Capital de um imprio. In: 1808-2008, 200 anos da Famlia Real no Brasil. Revista Aventuras na histria. So Paulo: Abril, maro de 2008 (edio de colecionador). p.25 RIBEIRO, Flvia. Capital de um imprio...p.25 Expresso popular designando aspectos de uma suposta organizao sendo aplicada, e que antes no haveria. Grifos meus. frente desenvolveremos mais sobre escravos de ganho. O debate com as definies e noes sobre capoeira est em captulo especial.

14

Guanabara, assim como de libertos e outros tipos de baixa posio na estratificao social da poca, o controle (ou a falta dele) por aquele Estado em construo das ruas da capital se torna um problema. As investidas neste ordenamento urbano com vista para os capoeiras tomaram muita ateno das autoridades oficiais, principalmente pela polcia recm estruturada, tanto que os registros policiais so bastante utilizados para retratar boa parte da vida desses capoeiras.16 Estes registros, assim como notcias de peridicos e ilustraes artsticas esto presentes no Rio de Janeiro de forma bem abrangente, se comparamos com outras cidades do Imprio no mesmo perodo, como Salvador, Recife, Belm e So Lus. Uma vez que tais estudos estariam ainda com o potencial de serem realizados, quando confrontados, poderiam trazer algumas elucidaes sobre nosso tema.

1.2. A escravido unindo frica e Brasil

Antes de analisarmos a questo da escravido durante a primeira metade do imprio e suas implicaes para este estudo, vale trabalharmos a dinmica da escravido pela frica, de uma forma interna, e depois com devidas influncias externas pelos europeus. Estima-se que cerca de 10 milhes de africanos chegaram vivos na Amrica durante o tempo em que o trfico transatlntico fez circular os navios negreiros. Destes 10 milhes, aproximadamente 3.600.000 foram trazidos para o Brasil. De acordo com dados do IBGE (2000)17, no perodo de 1531 a 1855 em torno de 2.107.00 africanos foram trazidos para terras brasileiras. J pelas estimativas mais recentes, 50 mil no sculo XVI, 560 mil no sculo XVII, 1.891.000 no sculo XVIII e 1.145.000 no sculo XIX.18 Considerando todo africano que fora embarcado e que no fora desembarcado, o nmero de pessoas retiradas de frica com destino Amrica certamente indefinido. Isto se tratando de dados oficiais, sem contar com o trfico clandestino e ilegal. De acordo com dados apresentados por Alexandre Ribeiro, no perodo de 1501 a 1867, dos africanos trazidos para a Amrica, 46% vieram para o Brasil; desses 46% teramos em torno de 21% para o Rio de Janeiro, 15% para Bahia, 8% para Pernambuco e 2% para Amaznia.19 O perodo em que focaremos nosso trabalho o que

16

17 18

19

Muitos trabalhos j foram feitos com base nestes registros, em especial SOARES, Carlos Eugnio Lbano. A capoeira escrava e outras tradies rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 2ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. Disponvel em: www.ibge.gov.br/brasil500/index2.html. Acesso em: 22 de julho de 2009 GES, Jos Roberto. Escravido. Disponvel em: http://catalogos.bn.br/redememoria/escravidao.html. Acesso em: 22 de julho de 2009 Material debatido em aulas com o professor Alexandre, com a disciplina O trfico internacional e o comrcio de escravos no Brasil no perodo de julho de 2008 (Notas de aula, Curso de Especializao Histria da frica e da Dispora Africana no Brasil - FIS). As percentagens foram adaptadas.

15

intensifica estes nmeros no Rio de Janeiro, com o final da Colnia at a proibio efetiva do trfico durante o Imprio, com seus efeitos visveis em todo territrio. A historiografia atual afirma que para que este comrcio perdurasse durante tanto tempo era preciso um trato entre as duas bandas do Oceano Atlntico. O comrcio de escravos em frica era corriqueiro desde tempos anteriores chegada dos europeus com seus negreiros. Esteve muito relacionado estrutura de poder que as sociedades africanas possuam. Antes de aprofundarmos em nossas questes e em nosso recorte ser interessante contextualizar como o comrcio de escravos funcionava em frica e sua relao com as dinmicas sociais e culturais dos povos que se envolveram diretamente com o comrcio transatlntico. Trs grandes regies so comumente usadas para falar das origens dos africanos que vieram para a Amrica, especificamente, para o Brasil: a Costa Ocidental, que corresponderia a regio da Costa do Ouro at a Costa dos Escravos (faixa do litoral de Senegal at Camares), a regio Central (entre Congo, Angola e Benguela) e a Costa Oriental (basicamente Moambique).20 Os povos destas duas ltimas regies tm em comum a influncia bantu em suas formaes culturais, de onde, por exemplo, ramificou-se entre 400 e 500 lnguas.21 Hoje se sabe que a maior parte dos africanos que vieram para o Brasil tiveram origem dessa regio.22 Da Costa Ocidental temos contribuies bem diversas, que hoje podem ser identificadas com as culturas tradicionais fon, iourub, fanti, ashanti e tambm do isl.

1.3. Sendo escravo na frica

De forma generalizada, nestas regies to distintas, havia formas de se tornar escravo comuns. Boa parte das pessoas era escravizada atravs de guerras, como subprodutos delas, tornando-se prisioneiros. Guerra propriamente dita e tambm pequenos ataques ou seqestros para pilhagens. Paul Lovejoy entende que os modos de se fazer guerras, assim como seus motivos, foram mudados conforme a influncia do comrcio transatlntico.23 Ktia Mattoso nota que essas guerras, atravs de campanhas sistematizadas para pilhagens, foram freqentes

20

21

22

23

Ver mapas com estas regies e suas limitaes aproximadas, retirados de SOUZA, Marina de Mello e. frica e Brasil africano. So Paulo. tica, 2008. Em anexo: p.67, 68, 69; e de KARASCH, Mary C. A vida dos escravos... Em anexo: p.71 KWONONOKA, Amrico. Usos e costumes dos Bantu de Angola. Disponvel em: http://www.folhadeangola.com/noticia.php?id=1810 acesso em: 1 de setembro de 2009. O autor faz meno ao lingista alemo Meinhoff, de obra que no tivemos acesso no artigo. Ver dados socializados por Alexandre Ribeiro e disponveis em http://estudosnegros.blogspot.com/ 2009/08/grafico-e-tabelas-sobre-diaspora-no.html acesso em 3 de setembro de 2009. LOVEJOY, Paul E.. A escravido na frica: uma histria de suas transformaes. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002.

16

nos sculos XVII e XVIII, qui no XIX.24 Enquanto John Thornton aponta que os europeus se alinharam com os interesses dos comerciantes africanos, influenciando pouco as questes internas do continente.25 Este mesmo autor sustenta que os africanos tiveram uma posio ativa diante deste comrcio, fazendo-o por escolha e no mesmo nvel (sem uma dependncia) com os europeus, tanto que os artigos europeus no eram necessrios aos africanos eram artigos comprados muitas vezes por prestgio ou fetiche, ou simplesmente pelo gosto de algo diferente.26 Tecidos diferentes eram mais valorizados do que outros artigos, como o ferro; e neste caso preciso ter cuidado ao estudar os fatos evitando anacronismos (s vezes at moralistas). J os escravos podem ser entendidos como uma fonte de trabalho e de riqueza, e que de certa maneira sua venda e remoo da frica significou uma grande perda. Os escravos sempre eram o outro: um grupo no vendia os seus irmos, mas sim seus inimigos (preferencialmente). Uma das diferenas que pode ter alterado a dinmica interna do comrcio e das guerras est na presena dos traficantes europeus com seus negreiros (podendo carregar uns 300 escravos de uma vez s), que estimulou sem dvida uma produo de mercadoria alm da normalidade. Em outras palavras,a expanso da riqueza por meio da guerra e da escravizao era, claro, uma forma barata para aumentar o poder.27 De acordo com Ktia Mattoso, o homem preto se tornara com o passar do tempo e (se acentuando com) o contato com o homem branco, a fortuna essencial do continente negro.28 Assim, temos a guerra como uma forma, a mais usual, de escravizao. As punies judiciais ou por questes religiosas tambm faziam parte. Havia tambm outros modos, menos comuns, como a escravizao voluntria, que tinha a fome ou dvidas por justificativa. A coero devia funcionar, pois se tornar escravo era uma das piores punies: o escravo poderia ser vendido e, por conseguinte, no saber para qual fim. Este poderia ser uma longa jornada penosa a p para longe de casa, ou cair dentro de um tumbeiro e passar por uma outra longa jornada, sem saber o que lhe ia acontecer ou brevemente morrer num sacrifcio ritual ou outro especfico de algum funeral. A venda [...] acarretava grandes riscos para os escravos, incluindo marchas foradas, alimentao precria, exposio a doenas em condio de

24

25

26

27

28

A autora no comenta sobre o sculo XIX com relao a este aspecto, apontando ainda o sculo XVIII batendo os recordes de exportao para as Amricas. MATTOSO, Ktia M. de Queirs. Ser escravo no Brasil. 3ed. So Paulo: Brasiliense, 2003. p.30 THORNTON, John. A frica e os africanos na formao do mundo atlntico (1400-1800). Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. (captulos 2, 3 e 4) THORNTON, John. A frica e os africanos na formao do mundo atlntico (1400-1800). Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. p.90 THORNTON, John. A frica e os africanos na formao do mundo atlntico (1400-1800). Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. p.164 MATTOSO, Ktia M. de Queirs. Ser escravo no Brasil. 3ed. So Paulo: Brasiliense, 2003. p.17

17

exausto e fome, e maus-tratos. A morte e os danos fsicos permanentes eram comuns, e os escravos sabiam disso por experincia prpria.29 Nessa inclinao, Francis Moore observa as conseqncias desta prtica de transformar o indivduo em escravo e como teria se tornado algo comum na Senegmbia, em 1730:Desde que esse Trfico de Escravos foi iniciado, todas as Punies foram mudadas para escravido; havendo uma vantagem em tais condenaes, eles esforam-se por ver Crimes onde podem, de modo a obter o Benefcio de vender Criminosos. No apenas Assassinato, Roubo e Adultrio so punidos com a venda dos Criminosos como Escravos, mas todo caso insignificante punido da mesma maneira. 30

Suspeitamos que este fenmeno tenha ocorrido em outras regies do continente e pelos anos seguintes. Toda esta conjuntura favorecia tambm o controle e ordem pelos chefes daquelas comunidades litorneas, quando aproveitando para despacharem os indivduos problemticos para a manuteno da ordem, como crianas consideradas bocas inteis em tempos de crise, alm das j citadas situaes.31 Em ambas as regies a guerra era costumeira, mas os motivos eram distintos, principalmente se tivermos as guerras europias como referncia. Uma situao distinta era a jirad, a guerra santa dos islmicos, que tinha na escravizao um dos modos de converso de infiis, num sistema social em que a escravido no s era legtima como redentora. A expanso do Isl pelo norte da frica at praticamente a Costa do Ouro mantinha um comrcio de relao estreita com as Arbias, fazendo com que escravos eunucos e do sexo feminino, preferencialmente, percorressem as areias dos desertos para l, em direo ao Oriente.32 Pode-se dizer que os africanos em geral preferiam vender e conseguiam preos melhores ao leste com as mulheres e a oeste com os homens, mas pelos mesmos motivos: ser um produtor de riqueza e poder naquelas sociedades em que estariam se inserindo, seja Oriente Mdio, ndia ou Amrica.

29

30

31

32

LOVEJOY, Paul E.. A escravido na frica: uma histria de suas transformaes. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002. p.55 Francis Moore (no conseguimos a referncia completa) apud LOVEJOY, Paul E.. A escravido na frica: uma histria de suas transformaes. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002. p.145 MATTOSO, Ktia M. de Queirs. Ser escravo no Brasil. 3ed. So Paulo: Brasiliense, 2003. p.30 Eram consideradas crianas de bocas inteis aquelas que eram difceis de alimentar durante tempos de crise. Para mais detalhes ver o captulo de SILVA, Alberto da Costa e. Nas terras do Islame. In: A manilha e o libambo: a frica e a escravido (1500-1700). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

18

1.4. Sendo escravo no Brasil

Na Amrica (desde a invaso portuguesa), ser africano e ser negro tinha sentidos bem diferentes dos que temos hoje. Vrias foram s designaes populares para os tipos de negro, apontando como referncia o local de onde estes vieram, assim como preto da angola ou negro da costa... a princpio, para o sinh, no haviam povos africanos diversos: apenas o negro escravo.33 Ser negro no Brasil era ser escravo. Negro era o nome utilizado pelos portugueses para designar o outro que devia ser escravo ou escravizado: era o negro da terra, que se referia aos nativos amerndios, e o negro africano, os trazidos da frica. Todas as culturas destes continentes atravs de seus povos escravizados em terras agora luso-brasileiras estavam reduzidas a uma cultura: a cultura escrava. Isto no impediu, contudo, que estratgias de resistncia cultural no acontecessem por parte destes escravizados. Afinal, era apenas um ponto de vista do branco colonizador. Em 1937, Arthur Ramos discute a necessidade de se repensar os estudos de frica e de seus descendentes:

A sabedoria popular faz do negro da Africa um typo uniforme, de cr preta, cabellos encarapinhados, nariz chato, mandbula saliente... de cultura inferior, religio atrazada (grosseiro fetichismo...), vida social em estado de barbarie, com praticas de anthropophagia... Denominaes communs os englobam, a todos: negro, preto, africano, etc. No entanto, nada mais falso do que esta noo popular, de frica. H razo de estabelecer para grupos humanos de frica, uma diferenciao antropolgica e 34 cultural, da mesma maneira que para os povos brancos da Europa.

J a idia mais atual de negro segue a de negritude, ambas geradas ou influenciadas em momentos histricos diferentes desde o movimento pan-africano.35 O que vale frisar que muitos dos nomes a que nos referimos para conseguir estudar tais povos, com suas peculiaridades culturais, foram inventados pelos traficantes e colonizadores.

33 34 35

RAMOS , Arthur. As culturas negras no novo mundo. Civilizao Brasileira: Rio de Janeiro, 1937. p.288 RAMOS, Arthur. As culturas negras no novo mundo. Civilizao Brasileira: Rio de Janeiro, 1937. p.24-25 O Pan-africanismo um movimento poltico-ideolgico centrado na noo de raa, noo que se torna primordial para unir aqueles que a despeito de suas especificidades histricas so assemelhados por sua origem humana e negra. HERNANDEZ, Leila Leite. A frica na sala de aula: visita histria contempornea. So Paulo: Selo Negro, 2005. p.138. A grande Revoluo do Haiti, em 1804, desencadeou de modo espetacular o movimento pan-africanista mundial, que se intensificou nas Amricas a partir das aspiraes abolicionistas e ps-abolicionistas e da luta contra a tutela colonial e imperial na frica, no Caribe e no Pacfico. WEDDERBURN, Carlos Moore. Abdias Nascimento e o surgimento de um Pan africanismo contemporneo global. (Prefcio do livro O Brasil na Mira do Pan-Africanismo. Salvador: CEAO/ EDUFBA, 2002, p. 17-32) Disponvel em: www.abdias.com.br/exilio/pan_africanismo_texto.htm Acesso em: 26 de outubro de 2009.

19

Nos portos africanos, o que ocorreu foi uma certa catalogao das mercadorias de deportao com pouca preocupao a este aspecto de identidade. O registro era feito muitas vezes pelo local de origem da mercadoria, ou do porto que esta estava sendo despachada para o outro lado do Atlntico. Um indivduo poderia ser comercializado vrias vezes, pelo interior do continente africano ou mesmo entre seus portos antes de chegar num negreiro e fazer a viajem transatlntica. Assim, por exemplo, um indivduo chamado de benguela pode ter sido nativo daquela regio de mesmo nome ou no, ou pode ter sido vendido de outras regies do continente chegando ao porto de mesmo nome e sendo deportado de l. J as identidades inventadas no Brasil (podem e) tm forte tendncia de terem sido firmadas por etnias presentes e reencontradas. Estes povos podem ter se identificado e conseguido se unir de alguma forma, para alm e no s pelo estigma de escravo, mas por suas razes tnicas. Alinhamos-nos com Arthur Ramos quando defende a idia de que seja preferencial estudar estas culturas atravs das comparaes com as manifestaes que permaneceram ou que sejam descendentes daquelas mais antigas, pois no teramos a segurana (como ainda problemtico) de afirmar que esta descende daquela, ou que isto angola ou isto nag etc.. O mesmo autor resume nossa estratgia de pesquisa:

Os documentos de escravido, apresentam-se porm, falhos por varias razes: os negros eram capturados em qualquer regio, mesmo no profundo interior, sem descriminao de procedencia e embarcados em portos da costa, que reuniam assim escravos de varias tribus e de varias regies muito differentes s vezes; os nomes que traziam eram quase sempre destes portos de procedencia, comportando, portanto, uma informao falsa; muitos dos documentos alfandegarios, e asientos dos senhores desapareceram ou foram destruidos, como no Brasil... Tudo isso originava uma vasta confuso sobre a exacta procedencia dos povos negros importados ao Novo Mundo. Um criterio inverso foi, ento, utilizado pelos scientistas que se dedicaram ao problema do Negro no Novo Mundo: o estudo das suas caracteristicas culturaes e o 36 seu cotejo com os padres de cultura no habitat de origem.

Estas etnias inventadas, tambm chamadas de naes37, em resumo, no necessariamente tinham seus membros com uma mesma origem identitria africana. Critrios etnolingusticos e geogrficos j foram utilizados para categorizar estas etnias e suas relaes com o continente negro, assim como para distingui-las no continente americano.36 37

RAMOS , Arthur. As culturas negras no novo mundo. Civilizao Brasileira: Rio de Janeiro, 1937. p.85-86 Este termo, de acordo com Mariza Soares, designava qualquer povo com o qual o Estado portugus se relacionava. Com o impacto das mudanas nas relaes que estes estabeleceram com os povos africanos, a partir do sculo XVIII, comea-se a usar mais o termo nao em detrimento do termo gentio, o que demonstraria a importncia do escravo no quadro dos conflitos internos, das rotas e dos portos de embarque.

20

Categoricamente, Mariza Soares afirma: em nenhum caso possvel afirmar com certeza que a nao corresponda a um grupo tnico!38 No entanto, tambm no podemos dizer que no houve propsito em classificar ou no os africanos. Se assim fosse, no encontraramos to distintos nomes no trabalho de Karasch para etnias encontradas, registradas no Rio de Janeiro.39 Mariza Soares problematiza justamente os motivos de tais denominaes existirem e terem forte fundamento para isso. Ela ressalta quecada uma dessas designaes vem acompanhada de caractersticas fsicas e comportamentais, formas de vestir, lnguas, crenas. Combinadas umas s outras, essas descries permitem vislumbrar uma enorme variedade de critrios a partir dos quais os africanos so enquadrados na sociedade: os escravos apropriados ao trabalho domstico, os que melhor servem s atividades mineradoras e, no caso das mulheres, porque no, as mais desejveis parceiras sexuais. Mais que uma forma de identificar escravos, este um recurso adotado para classificar e 40 organizar a escravaria traficada da frica para a Amrica.

Podemos entender que estas etnias ou naes presentes no Brasil, atravs das pesquisas acadmicas recentes nos campos da historiografia e pelas tradies culturais mantidas desde os primeiros africanos, foram transformadas, sincretizadas, inventadas para uma formao identitria destes africanos no continente americano, sob a posio de escravo ou descendente. A seguir, uma correlao entre possveis portos/locais de partida da frica, os grupos humanos possveis de terem atravessado o Atlntico para o Brasil, e a provvel descendncia enraizada e nomeada no Brasil:

Nome genrico da regio: Pases atuais:

frica Ocidental (Costa do Ouro, Costas do Escravos) Cabo Verde, Senegal, Gmbia, Guin Bissau, Guin, Serra Leoa, Libria, Costa do Marfim, Gana, Togo, Benin, Nigria, Camares, So Tom e Prncipe

Portos principais de embarque:

Cacheu, Bissau, So Jorge da Mina, Ajud, Jakin, Cotonu, Porto Novo, Badagri, Lagos, So Tom e Prncipe

Alguns grupos etnolingusticos:

Jalofos, Soninqus, Tucolores, Mandingas, Sereres, Bambaras, Beafadas, Banhus, Acs, Acuamus, Fons,

38

39

40

SOARES, Mariza de Carvalho. Mina, Angola e Guin: Nomes dfrica no Rio de Janeiro Setecentista. Tempo, v. 3 n.6, 1998. p.78 Para se ter uma idia, a autora faz 4 referncias frica Ocidental, aproximadamente 40 para frica Oriental e mais de 300 nomes para a frica Centro-Ocidental. SOARES, Mariza de Carvalho. Mina, Angola e Guin: Nomes dfrica no Rio de Janeiro Setecentista. Tempo, v. 3 n.6, 1998. p.73

21

Daomeanos, Fantes, Axantes, Fulas, Ois, Iourubs, Benis, Edos, Ev, Ijs, Ibibios, Ibos, Itsequiris, Igalas, Baribas, Hauas, Nupes, etc... Etnia ou nao brasileira: Mal, Iourub, Fanti, Ashanti, Jeje, Nag, Mina

Nome genrico da regio: Pases atuais: Portos principais de embarque: Alguns grupos etnolingusticos:

frica Centro-ocidental Congo, Repblica Democrtica do Congo, Angola Cabinda, Luanda, Benguela Tios, Congos, Lubas, Jingas, Dembos, Ambundos, Ovimbundos, Imbangalas, Cassanjes, Lundas, Quiocos, etc

Etnia ou nao brasileira:

Congo, Angola

Nome genrico da regio: Pases atuais: Portos principais de embarque: Alguns grupos etnolingusticos: Etnia ou nao brasileira:

frica Oriental Moambique, Madasgacar Moambique, So Loureno Ias, Xonas, etc... Moambique 41

Com a pretenso de definir algumas etnias embarcadas na frica, precisaramos recorrer a registros que devem estar nestes pases ou em Portugal, alm de algum outro registro que possa ter chegado a terras brasileiras e arquivado. Com estes supostos em mos, deveramos considerar que as informaes contidas neles fossem corretas, no sentido de corresponder nomes dados e africanos embarcados. sabido, contudo, que poucas dessas expresses foram realmente registradas coerentemente, afinal, traficante algum deveria estar preocupado com isso; muitas vezes o registro feito era de acordo com o porto de embarque. Conseguindo chegar com vida, os africanos ficavam muitas vezes em quarentena.42 Entre outras possibilidades de destino em terras brasileiras, diz-se normalmente que as famlias e as etnias eram separadas propositalmente, para evitar conspiraes ou revoltas organizadas. Alm disso, havia a distribuio interna pelas provncias, o que provocava41

42

Obs.: Tratando-se de Rio de Janeiro, resume-se Guin e Mina para os Ocidentais e Angola para os Centrais Estes quadros foram baseados em mapas de SOUZA, Marina de Mello e. frica e Brasil africano. So Paulo: tica, 2008. Em anexo: p.68, 70 FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO, Alexandre; SILVA, Daniel. Aspectos comparativos do trfico de africanos para o Brasil (sculos XVIII e XIX). Revista Afro-sia, 31, 2004. p.107

22

misturas e separaes familiares e tnicas. Com isso, poderamos tambm cruzar alguns dados da chegada de africanos, com seus destinos seguintes. J a partir do Imprio, analisar estas migraes fica favorvel, melhor ainda se esta distribuio estivesse sendo feita pela capital, que, como j vimos, se transforma na maior cidade escrava das Amricas neste perodo.

1.5. Porto de chegada: a escravido no Imprio

O perodo imperial teve o trfico de escravos aumentado, principalmente at 1850. A capital foi responsvel por demandar boa parte dos africanos escravizados, conseguindo o epteto de cidade africana nas Amricas. Os viajantes, de forma geral, quando chegavam nela poderiam no conseguir distingui-la de uma cidade porturia africana. Desde o momento em que eram levados de bote praia at chegarem a uma casa particular ou hotel, [os viajantes] eram cercados por escravos negros com rostos cheios de cicatrizes, dentes limados e roupas de estilo africano, em especial, no calor de meio-dia, quando os brancos desertavam das ruas.43 Sem contar que, paralelamente ao desembarque destes viajantes, outros viajantes, de forma compulsria, estavam sendo desembarcados... As atividades econmicas que relacionadas com a cidade cada vez mais solicitavam escravos. Ora era a redistribuio para outras cidades (para os engenhos de cana em Campos dos Goitacazes, para as zonas cafeeiras pelo Vale do Paraba, para as Minas, para Angra dos Reis, para o Norte e Nordeste em Salvador, Recife, So Lus e Gro-Par, e para o Sul, em especial So Paulo, Santos e Rio Grande do Sul assim como Buenos Aires ou Montevidu), atendendo as necessidades peculiares da cada uma; ora ficavam para trabalhar pela cidade ou por suas expanses. Este comrcio provocava um volume grande de escravos circulando. Podiam chegar de frica e serem reenviados para outra cidade porturia, por exemplo, para Pernambuco, e vice-versa. Os que j se encontravam em terra podiam ser enviados para outras cidades e vilas por diversas razes. Este fluxo poderia acontecer tambm com as regies mais interiores do Imprio - como Minas Gerais, Gois e Mato Grosso - e o Rio. Basicamente, estes fluxos que garantiam a transferncia de importantes contingentes de escravos estavam ligados aos novos interesses econmicos da poca.44 Nesse sentido, pode-se identificar dois tipos bsicos de estratificao para as funes do escravo no Brasil: uma rural (como nos canaviais e cafezais) e outra urbana (como nas

43 44

KARASCH, Mary C. A vida dos escravos... p.19 MATTOSO, Ktia M. de Queirs. Ser escravo no Brasil. 3ed. So Paulo: Brasiliense, 2003. p.63

23

maiores cidades, que correspondiam aos principais portos: Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Belm).45 A forma rural se expressava nas casas grandes e nas senzalas, com grupos numerosos de escravos (que poderia ser, por exemplo, de 10 a 100) que trabalhavam nas lavouras sob a viglia de feitores e capites-do-mato, em que negociaes com os senhores eram difceis, se no inexistentes (pelo menos at o fim do trfico em 1850) devido facilidade de reposio, assim como suas formas de resistncia ou enfrentamento organizado parecem ter sido restritas.46 Na forma urbana, os escravos muitas vezes nem viviam com seus senhores, um senhor com muitos escravos tinha em torno de 10. Esses indivduos assumiam tarefas de alguma responsabilidade, domsticas ou na rua, possuindo certa abertura para negociao (tanto que os nmeros de alforria nas cidades urbanas so maiores que nas rurais) e havendo uma possibilidade de maior encontro com outros indivduos, e por conseqncia, de melhor organizar alguma resistncia.47 A escravido na capital se enquadra no tipo urbano. Com a chegada da Corte, a cidade cada vez mais ganhava um contorno europeu em suas estruturas fsicas, nas mentalidades, tornando-se uma cidade cosmopolita.48 Mas, junto a esse fenmeno, paradoxalmente, ela ficava tambm cada vez mais africana. Os negreiros chegavam a todo o momento, a oferta e a procura por escravos aumentara em todo o Imprio, muitos deles ainda viajariam bastante at chegar em seu destino, podendo ser uma mina ou uma lavoura pelo interior ou uma outra cidade porturia, onde, de novo, poderia ter que viajar... Muitos ficavam pela cidade mesmo, tanto a populao branca aumentou, como a populao negra e desta descendente. At 1830, no s na capital, mas tambm em Salvador e Recife, houve uma compra desenfreada de africanos, motivada pelos rumores do fim do trfico e mostrando a capacidade de conseguir recursos para isso da elite escravocrata. Alis, estes negociantes de grosso trato, os traficantes de africanos eram homens que por sua riqueza desempenhavam papel de destaque na economia, na poltica e na sociedade do Rio de Janeiro, Salvador e Recife.49

45

46

47

48

49

NEVES, Lcia Maria B.P., MACHADO, Humberto Fernandes. O Imprio do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p.298 Detalhes sobre a vida dos escravos nas zonas cafeeiras ver o captulo O poder do caf em NEVES, Lcia Maria B.P., MACHADO, Humberto Fernandes. O Imprio do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999 Vlido ler o trabalho de AMARAL, Rodrigo de Aguiar. Nos limites da escravido urbana: a vida dos pequenos senhores de escravos no Rio de Janeiro, c.1800 c.1860. Dissertao de mestrado, UFRJ, 2006 Expresso adaptada por ns de NEVES, Lcia Maria B.P., MACHADO, Humberto Fernandes. O Imprio do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999 Ver o artigo de FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO, Alexandre; SILVA, Daniel. Aspectos comparativos do trfico de africanos para o Brasil (sculos XVIII e XIX). Revista Afro-sia, 31, 2004. p.100

24

J sabemos que os escravos eram numerosos, mas tambm, com o fenmeno da alforria era relativamente comum na cidade50, havia um contingente, alm do de escravos, de libertos e de livres grande. Ambas as classificaes demonstravam o quo estratificado era o mundo carioca da poca. Poderamos afirmar que o nvel mais bsico e baixo dessa estratificao era o de ser escravo africano e que ter as tarefas mais penosas ou desagradveis de fazer, enquanto o mais alto patamar seria o de um branco, de preferncia portugus e que fosse abastado. Mary Karasch detalha bem essa estratificao e seus nomes correspondendo ora pela cor ora pela origem. A posio e a atividade que cada um tinha coincidiam normalmente com estas. A estratificao demonstra a tendncia de ascenso pelo branqueamento: quanto mais branco mais includo naquela sociedade, mais livre.

Diviso bsica: Escravos libertos (ex-escravos) livres Obs.: para os escravos os nomes tinham a estrutura nome branco cristo + um dos termos de acordo com os seguintes

Entre os escravos: Os nascidos na frica eram inferiores na hierarquia e classificados por local de origem - negro ou africano novo (e/ou boal: escravo ainda ou no adaptado); ladino (adaptado, fala portugus). Soma-se ainda o local de embarque ou origem relatada. Por exemplo: o ladino Manoel Angola, ou o boal Manuel Congo.

Os nascidos no Brasil eram superiores na hierarquia e classificados por cor crioulo (termo mais usado: escravo nascido no Brasil), pardo (ou mulato: nascido no Brasil de pais africanos e europeus), cabra (ou bode: de origem mista ou indefinida, termo pejorativo; tambm cafuzo ou cariboco). Por exemplo: Manoel Crioulo, ou Manoel Pardo.

Entre os libertos ou forros: Pela maior incidncia, seriam nascidos no Brasil, pois era difcil do escravo africano sobreviver. A mdia era de 10 anos de vida (nos trabalhos mais pesados, urbanos ou rurais), e a faixa etria da maior parte importada era de crianas e jovens, do sexo masculino, normalmente chamados de moleques (indivduos at 30 anos).51

50

51

Ver captulo 4 de AMARAL, Rodrigo de Aguiar. Nos limites da escravido urbana: a vida dos pequenos senhores de escravos no Rio de Janeiro, c.1800 c.1860. Dissertao de mestrado, UFRJ, 2006 Ver captulos 1 e 4 de KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). So Paulo: Cia das Letras, 2000

25

Os livres eram aqueles que j nasciam nesta condio.

O tipo de atividade que cada escravo realizava tambm se mesclava a essas divises. Um escravo que tinha um escravo possua uma posio mais alta nesta hierarquia; o que tinha alguma qualificao profissional, por exemplo, se carpinteiro ou sapateiro, possua uma ta menor prestgio, que o fazia ficar na pior posio naquela sociedade. Parece que no meio dessa estrutura, o chamado escravo de ganho tinha uma posio entre os escravos de certa autonomia e de algumas peculiaridades.

1.6. Escravos de ganho

Essa figura singular foi tpica das cidades grandes, porturias, em especial no Rio do sculo XIX. Diante da quantidade de escravos presentes na cidade, uma parcela considervel era constituda pelos escravos de ganho.52 Tipo que provavelmente popularizou a capoeiragem. Como j vimos em outros trabalhos, em especial o de Lbano Soares, a capoeiragem carioca se desenvolveu nas ruas, nos portos ou onde estivesse presente algum escravo trabalhando (muitas vezes) na rua, em sua hora de folga ou necessitado de suas habilidades marciais. Ficamos inclinados a dar crdito a estes, j que era este o tipo de escravo comumente encontrado por estas bandas.53 Apesar do imaginrio e do senso quase comum produzido pelas aulas de histria nos anos fundamentais de ensino, tem-se descoberto e estudado sobre a vida dos escravos no Brasil, e cada vez mais desmitificando sua figura e sua quase exclusiva relao com o meio rural, com senzalas e casas grandes, capites-do-mato e trabalho em lavoura, assim como sua resistncia atravs do enfrentamento e da fuga e formao de quilombos. Esta figura apenas uma das facetas da vida dos escravos. Nas cidades grandes da poca o feitor estava ausente54, a segurana era feita atravs do que chamamos hoje de segurana particular, havendo certa ausncia das autoridades oficiais (houve mudanas com a estadia de D. Joo e a criao de polcias); e o controle dos escravos muitas vezes era feito pela negociao. O escravo de ganho raramente vivia com seu senhor: ele poderia residir numa casa separada, at num outro bairro. Ele precisava conseguir uma

52

53

54

Ver REINOSO, Jos Carlos. O escravo de ganho no Rio de Janeiro no sculo XIX. Monografia (Graduao em Histria). CUAM, 2008; SOARES, Luiz Carlos. Os escravos de ganho no Rio do sex XIX. Revista Brasileira de Histria. So Paulo; 1988. v.8 n.19. p.107-142 Cf: SOARES, Carlos Eugnio Lbano. A Capoeira escrava e outras tradies rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: Unicamp, 2004. Ler ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a escravido urbana no Rio de Janeiro (1808-1820). Dissertao (Mestrado). USP; So Paulo, 1983.

26

determinada quantia a ser entregue periodicamente ao senhor. O trabalho exercido pelos escravos, em geral, podia ser qualificado ou no: podiam ser forados a trabalhar na agricultura e em atividades de subsistncia, transporte, manufatura, pedreiras, obras pblicas, vendas e servios e administrao.55 Podiam ser artesos, msicos, amantes. Os de ganho podiam exercer alguma destas atividades, repassando algo para seu senhor, e aqueles que sozinhos ficavam ainda deveriam conseguir o que ter de comer e outras necessidades bsicas. O que fazia, no Rio de Janeiro, com que os escravos no fugissem ou no se rebelassem? Afinal, este tipo de escravo possua contatos de maior abrangncia, com maiores possibilidades de vida devido sua posio no ganho. No toa que a cidade tinha uma taxa de alforria abastada (paralelamente s taxas de libertos), aumentada ao longo da primeira metade do sculo XIX. Neste perodo vrias organizaes oficiais afro-brasileiras tiveram oportunidade de se manifestarem como foi o caso das Irmandades, como tambm as marginais como as maltas de capoeira e outras organizaes religiosas afro. Tal presena cada vez maior de escravos na cidade complexificava as relaes senhor-escravo, assim como estimulava e afirmava identidades distintas entre os escravos criando ou ratificando rivalidades. Contudo, estas manifestaes, suspeitamos, deviam se estruturar em torno de escravos com algum tempo em terra e com uma idade mais avanada (consideremos aqui mais de 20 anos), com um rodzio mais ou menos permanente de participao de escravos mais novos (lembrando das taxas de mortalidade na cidade). As aglomeraes de escravos ao ganho eram comuns, ficando amontoados nas esquinas, praas e praias espera de trabalho. Nestes momentos, quem sabe, poderiam estar vadiando ou, em outras palavras, praticando capoeira. Os negros de cesto, carregadores que utilizavam cestos para levar suas cargas, teriam se tornando fundamentais para o transporte de carga nas principais cidades da poca. Esse cesto e este carregador, como veremos mais adiante, se chamaria tambm capoeira.56

55 56

KARASCH, Mary C. A vida dos escravos ... p.259 Ver foto. Em anexo: p.75

27

CAPTULO II

Noes identitrias

2.1. Capoeira, quem voc?

Os rastros da capoeira pelos trabalhos j realizados nos levam capoeira escrava, termo usado por Carlos Eugnio Lbano Soares para designar a capoeira praticada em nosso recorte historiogrfico e que se supe poca consolidadora de sua prtica, assim como de seu reconhecimento oficial. Seguindo uma trajetria proposta por ele, a intensa anlise de documentos feita demonstra a dificuldade de, no comeo do sculo XIX, identificar algo que fosse capoeira, capoeira que pudesse estar prxima da noo de capoeira que temos hoje. Capoeiragem era termo usual para descrever a ao de certos indivduos, normalmente escravos, e que provocavam alvoroo, insegurana e por certo, um desconforto das elites da cidade. Crnicas j eram feitas em 1770 sobre a capoeiragem e os capoeiras, como por Hermeto Lima, citado pelo mesmo autor.57 Para as tentativas que aqui pretendemos fazer de trabalhar com identidades da capoeira, cabe pontuar a j clssica questo do termo capoeira. Muitos estudiosos j se debruaram sobre o problema do termo capoeira e h, como de se esperar em toda pesquisa, controvrsias. Adolfo Morales aponta em 1926 que o termo seria hbrido: capo de origem tupi-guarani e eira de origem portuguesa, levando ao sentido de mato ralo, baixo, que os praticantes usariam para treinar, para um possvel enfrentamento e/ou para fugir.58 Este termo usado no sentido de mato ralo e baixo at hoje, principalmente pelas pessoas que vivem ou viveram na zona rural da cidade ou nas zonas mais interioranas do Estado. Com este sentido estrito, o termo poderia fundamentar as possveis origens da capoeira no meio rural, muito difundidas pelas capoeiras baianas e por outros estudiosos, inclinados a defender a idia da capoeira enquanto artimanha de quilombos, s vezes citando Palmares e Zumbi como lugar e criador da capoeira. No entanto, o mesmo Morales, num momento seguinte, busca a derivao pela palavra caapo do tupi-guarani, designando cesto feito de palha tranada, e eiro quele que pratica uma ao... e assim, o carregador deste cesto se chamaria capoeira. Com este outro sentido, o termo poderia fundamentar as origens pelo meio urbano, em que havia muitos trabalhadores fazendo uso deste cesto. O prprio Morales, anos depois destas duas verses etimolgicas, dizia da origem do tipo social capoeira pela57

58

Apud: SOARES, Carlos Eugnio Lbano. A capoeira escrava e outras tradies rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850)... p.40-41 Apud: SOARES, Carlos Eugnio Lbano. A capoeira escrava e outras tradies rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850)... p.49-50.

28

atividade que este exerceria (carregando coisas nestes cestos, se defendendo ou se distraindo entre os afazeres ou outras mais que poderamos pleitear), e em especial pelos escravos de ganho no Rio de Janeiro.59 Escreve Adorno que ca-pura (ca = mato; pura = que j foi) resultaria nos brasileirismos capura, capora e capoeira. Outros estudiosos afirmam que a acepo capoeira designa um tipo especial de cesto, usado no transporte de galinhas, que eram conduzidas por escravos aos mercados. A esses escravos teria se estendido o emprego da denominao primeiramente s gaiolas. Segundo os defensores dessa hiptese, enquanto aguardavam a chegada dos comerciantes, os escravos se divertiam na prtica do brinquedo que tambm seria abrangido pelo nome capoeira.60 Muitos outros discorrem tambm sobre o problema do termo, mas no exclusivamente dele.61

2.2. As identidades: a capoeira e o capoeira

No comeo do sculo XIX no havia uma identidade de uma arte capoeira. Nada sistematizado ou declarado. Havia sim quem praticasse capoeiragem, termo que por si s no apontava que tipo de ao era esta, a no ser no sentido de vadiao, desordem, arruaa. O capoeira, esse tipo que foi maciamente perseguido durante todo este sculo como centro dos problemas de ordem pblica da capital, foi sendo citado de forma mais definida e com suas atribuies ao longo do mesmo sculo, basicamente devido s anotaes policiais (assim como o aumento do volume de peridicos na cidade). Aproveitando as anlises destes documentos feitas por Lbano Soares, a relao entre a movimentao prpria da capoeira, algo que pudssemos relacionar com as capoeiras de hoje, com o termo designando a prtica dessa movimentao (assim como a pessoa praticante) se d com o gradual aperfeioamento dos registros de prises pela polcia.62 Antes disso, um capoeira poderia ser qualquer pessoa que provocasse tumulto ou problemas similares. Os presos por capoeira ou por jogar capoeira de ento, no necessariamente praticavam o que chamamos hoje de capoeira. Este59

60 61

62

Os estudiosos que apresentam suas origens no meio rural, no negam o desenvolvimento da capoeira nos grandes centros urbanos, principalmente no que tange a este desenvolvimento pelo sculo XIX. Entre alguns destes est MELLO, Andr da Silva. A histria da capoeira: pressuposto para uma abordagem na perspectiva da cultura corporal. In: VIII Congresso Brasileiro de Histria da Educao Fsica, Esporte, Lazer e Dana., 2002, Ponta Grossa/PR: Universidade Estadual de Ponta Grossa, 2002; REIS, Letcia Vidor de Souza. Negros e brancos no jogo de capoeira: a reinveno da tradio. Mestrado em Cincia Social (Antropologia Social); USP, 1993. Inclusive, os escravos de ganho que vendiam produtos do tipo hortifrutigranjeiros circulavam entre os ambientes rurais da cidade levando-os para o centro urbano com freqncia. ADORNO, Camille. A arte da capoeira. 6ed. Goinia; Kelps, 1999. p.20 BUCHAS, Sergio Mazzoni. Capoeira: suas razes e evoluo no contexto social brasileiro. Monografia (Licenciatura em Educao Fsica); EEFD-UFRJ, 2004; KRATOCHWIL, Eduardo C. da Cunha. Capoeiragem carioca. Monografia (Licenciatura em Educao Fsica); EEFD-UFRJ, 2005. Lbano Soares faz referncia a HOLLOWAY, Thomas. Polcia no Rio de Janeiro: represso e resistncia numa cidade do sculo XIX. Rio de Janeiro; FGV, 1997, obra que no tivemos acesso.

29

fato, como j dito, foi mudando com o passar do tempo at demonstrar mesmo que quem era preso por capoeira era um capoeira, praticante de uma capoeira primeira em relao s de hoje. provvel, tambm indicativo, que os movimentos de hoje sejam descendentes destas capoeiras que pelo Brasil surgiram, em seus diferentes momentos e locais. Mas parece ter sido decisivo para a firmao da identidade da capoeira e do capoeira estes registros produzidos ao longo do sculo XIX. No vamos aprofundar aqui em umas teorias sobre a criao da capoeira, mas vale apontar que, entre estas, so bem diversas: podem apontar o Quilombo de Palmares e Zumbi como local e criador, ou algum outro quilombo qualquer, podem defender que surgiu no nordeste brasileiro em meio a canaviais, podem mostrar que africana, vinda direta da frica, podem negar ou afirmar uma influncia dos nativos amerndios, podem afirmar que surgiu em uma cidade e se espalhou devido ao deslocamento (compulsrio ou no) de seus praticantes, podem defender que a capoeira surgiu ao mesmo tempo em vrios pontos do Brasil, ou que pelo menos onde tinha povos de origem bantu, etc... Bernardo Conde levanta questes interessantes acerca das histrias de origem, sejam elas contadas pela tradio oral, considerando que hoje as capoeiras hegemnicas so baianas descendentes, que normalmente reforam o surgimento num passado escravista, no datado ou datado da chegada do primeiro escravo, ancorado algumas vezes nos quilombos, nas senzalas, que perdura at hoje remontando Bahia e Salvador; ou sejam elas contadas pela histria documentada, feita de forma falha, situada no Rio de Janeiro a partir do final do sculo XVIII, devido ao fato de no ter sido encontrado at o momento, nenhum documento com referncia capoeira, anterior aos anos 1790, seja em quilombos, seja em senzalas, no Recncavo baiano ou qualquer outro lugar.63 Outra discusso tambm clssica sobre identidade da capoeira se ela um jogo, uma luta, uma dana. Aqui, vale lanar os discursos de mestres de ontem e de hoje. O jogo de capoeira citado (naqueles registros) pelo sculo XIX, mas no se fala de luta ou dana. Sem esquecer do aspecto marcial, diz-se que ela deve ter sido dissimulada como jogo (ou quem sabe foi o inverso: um jogo que se tornou marcial?), sendo aprendida de oitiva.64 Com o elemento musical atrelado a essa prtica, ela pode ter sido confundida com

63

64

CONDE, Bernardo Velloso. A arte da negociao: a capoeira como navegao social. Rio de Janeiro; Novas Idias, 2007. p.27 Sugesto de leitura sobre este tipo de aprendizado: ALVAREZ, Joo; SADE, Christian. Aprender na experincia: consideraes sobre o aprendizado na capoeira angola e no tiro com arco no zen budismo. In: II Colquio Franco-brasileiro de Filosofia da Educao: o devi-mestre - entre Deleuze e a educao, 2004, Rio de Janeiro. Oitiva era o nome popular dado para a atividade dos que ficavam no porto espera de trabalho. Normalmente a oferta de emprego repentino era gritada por um capataz para o grupo de trabalhadores que passavam o dia da rea porturia, na escuta, de ouvidos abertos, atitude atenta que remete postura do

30

uma dana... e at hoje se confunde, apesar tambm de ser uma. A est uma caracterstica da capoeira: ela uma negaa, ela nega antes de afirmar. Ela no , ela finge ser, conservando o que precisa conservar e revelando o necessrio para o outro. Da, quem est de fora do mundo da capoeira imagina algo acerca dela, algo que faz parte dela, mas que s uma faceta. Mestre Pastinha em seu livro acerca da Capoeira Angola categrico: luta, e luta violenta!65 Os rastros deixados pela capoeira mostram que ela foi uma expresso escrava, mas que influenciava e tambm fazia parte da vida de libertos e livres durante a primeira metade do sculo XIX. Com o fim oficial do trfico transatlntico em 1850, cada vez mais ela se tornava expresso de pobres. Em outras palavras, a capoeira nesta poca era uma expresso dos setores mais baixos da hierarquia social, desde ser escrava passando por liberta, livre... e que normalmente era pobre. No entanto ela foi embranquecendo com a diminuio de escravos na cidade66 e com a vinda cada vez maior de imigrantes europeus, especialmente portugueses pobres, depois desta data. Por esta trajetria, a capoeira informa das transformaes tnicas e culturais que envolveram escravos e libertos, africanos e crioulos, na cidade colonial, na passagem para metrpole imperial.67 Talvez fosse fcil distinguir no comeo do sculo um capoeira: devia ser o que chamamos hoje de afro descendente (nascido ou no no continente africano), ocupado com certas tarefas pela rua, ao ganho... Mas com o passar dos anos, este arqutipo foi mudando, mesmo ainda predominantemente afro, para ser mais branco e pobre. Como os imigrantes europeus vieram e comearam a ocupar posies que antes eram escravas, tambm adotaram certas prticas devido a estas posies sociais, entre elas a capoeira. Isso demonstra certo carter inclusivo da capoeira. Pode-se perceber estas mudanas paralelamente composio das maltas durante os sculos XIX-XX. Por enquanto, para procurar uma etnicidade da capoeira partiremos das anlises feitas por Lbano Soares pelos registros policiais, para depois investigarmos por nossas fontes escolhidas. Boa parte dos escravos presos ou perseguidos pela polcia, e registrados, eram capoeiras. No entanto, como j vimos, capoeira servia num primeiro momento para designar

65

66

67

capoeirista. Enquanto esperavam, organizavam rodas no cais, os discpulos eram iniciados na arte do corpo. Mais detalhes em CASTRO, Maurcio Barros de. Na roda da capoeira. Rio de Janeiro; IPHAN, CNFCP, 2008. p.20. Esta maneira de se comportar era semelhante a de escravos de ganho tempos antes, e como demonstrado, parece ter sido mantida. PASTINHA, Mestre. Capoeira Angola. 2ed.. Escola Grfica Nossa Senhora de Loreto: Salvador,1968. p.28 A febre amarela neste perodo assolou muitos escravos, alm do aumento da demanda de escravos para regies do interior. Ver tambm o captulo 4 As almas, os que morriam em KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). So Paulo: Cia das Letras, 2000 SOARES, Carlos Eugnio Lbano. A capoeira escrava e outras tradies rebeldes no Rio de Janeiro (1808 1850). 2ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. p.25

31

vrias perturbaes da ordem. O que cabe, agora, saber de que etnia, nao, estes escravos eram. Para ilustrar estas etnias, com dados de capoeiras presos, utilizaremos os grficos deste mesmo autor.68

2.3. Sou angoleira... que veio de Angola?

No grfico 1, que diz respeito ao perodo de 1810 a 1821, podemos rapidamente notar a presena macia dos centro-ocidentais (269 indivduos), chamando ateno para os congo, em maioria, seguidos de benguela, cabinda, angola, rebolo, cassange, monjolo, cabund, songo, mofunbe, ganguela, quissam. Os ocidentais so minorias (23 indivduos), apontando dois grupos: mina e calabar. Os orientais no so reportados neste grfico. Podemos verificar que apesar da nao congo ter um nmero maior, de forma generalizada os outros grupos centrais fariam parte do que hoje o territrio angolano. J com os ocidentais, parece que esta generalizao j ocorre: mina faz referencia Costa da Mina, lembrando tambm o forte de So Jorge da Mina, designando provavelmente vrios outros grupos tnicos de toda aquela regio. O mesmo ocorreria com o termo calabar. No recorte de 1826 a 1829 (grfico 2), temos a presena de africanos presos na Marinha (49 indivduos), com presena maior de congo, seguidos de cabinda, moambique, mina, nag, benguela, angola, monjolo e ambaca. Aqui j temos a presena da banda oriental com 6 moambique, assim como o aparecimento de outro termo genrico para a regio da Costa da Mina, apesar tambm de constituir uma etnia: os nag, nomenclatura utilizada na regio nordeste, Salvador e Recife em especial. Com relao aos centrais, cabe a mesma meno feita no grfico 1. J no grfico 3, de africanos presos no Calabouo, no ano de 1831, temos novamente uma grande presena centro-ocidental (com 134 indivduos), ressaltando agora a presena oriental (com 37 indivduos) e em minoria os ocidentais (com 28). Os mina so maioria entre os ocidentais (aqui no aparecem nag, mas tambm aparecem calabar), os moambique entre os orientais (alm dos inhambane, quilimane e mucena), e novamente os congo so maioria entre os centrais, seguidos dos benguela, cabinda e angola (alm de moange, ambaca, cassange, rebolo e monjolo). Podemos notar as mesmas observaes feitas sobre as generalizaes e os nomes. Lembrando que estes dois ltimos grficos retratam parcialmente o contingente de escravos presos. Estes possivelmente eram tambm capoeiras. Com a criao da polcia

68

Em anexo: p.74

32

inventaram-se as prises69, e seria interessante aprofundar os estudos em todas elas e em perodos semelhantes para melhor apreender o quadro de presos, escravos e capoeiras. Estes escravos que eram presos por capoeira j deviam estar habituados ao ambiente urbano, e se consegussemos atestar que fossem de ganho, isto seria uma certeza. Dificilmente seria um boal recm-chegado ou ainda sem dominar a lngua portuguesa e realizando os trabalhos mais penosos, quem devia estar entre estes presos. Outro aspecto a ser notado, seguindo a lgica de anlise de presos, o nmero de libertos e livres entre estes (que no foi relatado). Este quadro vai sendo alterado com cada vez menos escravos e mais livres (no geral, depois de 1850). Diante desses pequenos dados, seria possvel apontar uma etnia geradora daquela capoeira de outrora? Se sim, esta etnia corresponderia a um grupo cultural especfico em frica? Seu gestual e comportamento, suas tcnicas e artimanhas corresponderiam a alguma manifestao de alguma etnia especfica africana, ou teria ela diversas caractersticas de certos grupos descendentes de alguma outra regio africana? Na prtica, seria bem difcil que existisse algo do tipo capoeira no continente africano. O processo de adaptao a um outro sistema social teria impulsionado adaptaes a certas manifestaes culturais, em solo brasileiro. Este processo que fez com que certas formas culturais fossem mantidas ou desenvolvidas, em prol da firmeza de umas identidades para alm da comum, a de escravo, o que j foi chamado de inveno de tradies.70 possvel um claro paralelo com as ditas religies tradicionais de matrizes africanas: a maior parte dos cultos aos Orixs (de descendncia iourub) em frica era realizada por famlias e direcionados a um s orix. J em terras brasileiras, de alguma forma e por algum motivo no identificado oficialmente, estes cultos se amalgamaram, construindo o candombl (de Ketu, neste caso). Entre os capoeiras de hoje, h certo consenso que a capoeira descendente de Angola, desenvolvida por escravos vindos desta regio. Fato curioso que, mesmo as baianas (Capoeira Regional e Capoeira Angola), hegemnicas hoje, se apiam nesta idia, apesar da maior populao escrava baiana, no sculo XVIII, ter origem na regio ocidental da frica, como no Maranho. J as regies do Rio de Janeiro e Pernambuco tiveram uma grande presena dos centro-ocidentais.

69

70

Algumas delas: o Aljube, antiga priso eclesistica; o Arsenal da Marinha; o Calabouo do Castelo; a Pressiganga, a nau que a famlia real veio para o Brasil e que ficou aportada servindo de priso. Ver HOBSBAWN, Eric. Introduo: a inveno das tradies In: HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence (orgs.). A inveno das tradies. 3 ed.. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. Por tradio inventada entende-se um conjunto de prticas, normalmente reguladas por regras tcita ou abertamente aceitas; tais prticas, de natureza ritual ou simblica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento atravs da repetio, o que implica, automaticamente, uma continuidade com o passado. Alis, sempre que possvel, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histrico apropriado. p.9.

33

Os dados do projeto The Trans-Atlantic Slave Trade71 pretendem ser o que h de mais atualizado em termos das migraes de frica para as Amricas. Estamos ainda acessando dados especficos sobre Brasil, mas como sabemos hoje, boa parte dos africanos chegou a terras brasileiras, o que nos leva a fazer algumas aproximaes com estes dados.

Quantidade de africanos trazidos para as Amricas: Regio (e pases atuais) Senegambia (Senegal. Gmbia, Guin Bissau) Serra Leoa (Guin, Serra Leoa) Cota do Barlavento (Libria, Costa do Marfim) Costa do Ouro (Gana, Togo, Benin) Baa do Benin (Nigria) Baa de Biafra (Camares) Centro oeste (Gabo, Congo, Angola) Sudeste Madasgacar) (Moambique, 40.000 200.000 400.000 600.000 600.000 200.000 200.000 1000.000 350.000 50.000 120.000 120.000 60.000 10.000 Perodo 1751-1800 150.000 Perodo 1801-1850 30.000

Origem desconhecida

40.000

200.00072

Entre 1450 e 1867, o sculo XVIII foi o perodo em que a banda Atlntica recebeu aproximadamente 54% de todos os africanos deportados da banda Africana (e que foram identificados). O sculo XIX fica com 30% destes neste mesmo perodo reportado em que houve o comrcio transatlntico. No Brasil, comparando estes dados com os j citados podemos perceber o paralelismo em termos gerais. Na segunda metade do sculo XVIII o nmero destes africanos chegados de cada regio da frica aumentou bastante, sendo este o pico do comrcio (considerando a diviso dos sculos do mesmo grfico Origens regionais...73). Mas na virada para a segunda metade do sculo h uma queda expressiva na maior parte dessas regies. Atribui-se normalmente como motivo a proibio do trfico acima

71 72 73

Cf: http://www.metascholar.org/TASTD-Voyages/index.html. Usamos as partes disponveis pela Internet. Em anexo: p.73 Ver o grfico Migrao Atlntica, que tambm baseou estas anlises. Em anexo: p.73

34

da Linha do Equador pela Inglaterra. Tal fato favoreceu, inclusive, o trfico com as regies centrais da frica, demonstrando o aumento tanto de congo ou angola, tanto de moambique. O Rio e a regio que hoje faz parte de Angola estiveram bem prximos cultural e comercialmente desde o comeo de suas colonizaes por Portugal. O trfico com Moambique se favorece tambm por este motivo: o elemento comum portugus. Tanto que no mapa Principais rotas de comrcio para o Brasil, Moambique s teria exportado para o Rio de Janeiro.74 Percebe-se que qualquer concluso de que, nas origens da capoeira, teria uma etnia predominante, e estas, descendentes de manifestaes predominantemente das regies centrais atlnticas da frica, um tanto enigmtica. Muitos nomes foram dados para os africanos pelos colonizadores, e quase sempre no corresponderiam prpria etnia, mas sim ao lugar de deportao; e considerando que as longas jornadas a que eram submetidos em seus transportes ainda no continente africano do interior para o litoral ou de alguma parte do litoral para outra muitos outros grupamentos, outras etnias, poderiam estar sendo misturadas. Para os traficantes parece que pouco importava, a no ser no caso de misturas propositais para evitar insurreies ou tentativas de fuga estratgia bastante comentada pelo senso comum que, tambm, os senhores em terras brasileiras usariam. Buscar os registros tnicos atravs da forma branca colonizadora por si s uma armadilha para nossas anlises, com o risco destas se tornarem superficiais. Podemos ter outros grupos tnicos, sem ser congo-angola, com suas culturas constituindo a tal da capoeira. Vimos que durante o sculo XIX na Corte, vrios tipos tnicos eram capoeiras atravs dos registros oficiais de presos. Atravs das tradies de capoeira podemos verificar a afirmativa de que foram congo-angola, em especial os angola, que teriam gerado a capoeira no Brasil. Mas estes angola eram realmente da regio que hoje denominamos Angola? Por isso, buscamos incluir e ponderar nossas avaliaes atravs de comparaes com outras tradies afro presentes no Brasil, no caso, no Rio de Janeiro e regio Sudeste; assim como debater com os discursos de dentro das tradies da capoeira. Iremos buscar nas histrias contadas pelos mestres, nas msicas, nos gestuais e nos rituais de algumas manifestaes que poderamos aproximar ou distanciar das de capoeira, assim como em documentrios produzidos acerca de tradies afro e de produes de prprios capoeiras, e em obras j clssicas de artistas do sculo XIX sobre a vida escrava no Rio, subsdios de comparaes com culturas que so consideradas de alguma etnia definida ou mesmo que se autodenominam desta ou daquela descendncia. CAPTULO III74

Ver mapa. Em anexo: p.66

35

Interrogaes para as tradies

3.1. A capoeira nos sculos XX-XXI

Nosso problema neste trabalho est na elaborao de novas percepes acerca da capoeira, em seu presente. Presente este baseado em vrias histrias. Como acadmico, refletir e criticar os discursos vigentes sobre a tradio na capoeira; j como capoeira, expandir o conhecimento acerca de sua histria e de suas origens, to nebulosas e divergentes hoje.75 A capoeira, como vimos nos captulos anteriores, teve suas origens provveis entre os escravos instalados no Brasil, e fora utilizada ora como reao ao prprio sistema, ora como negociao com este. bem verdade que estes aspectos da capoeira estiveram sempre juntos, como duas faces de uma mesma moeda. Assim como tambm verdade que esta negociao por um momento melhorava a condio de vida do capoeira, por outro, o mantinha atrelado s redes sociais que mantinham o sistema. Ou seja, quem ganhava com esta negociao, quando esta ocorria, sempre era o sistema, mas nem sempre aquele capoeira. A situao que identificamos hoje similar. O nosso sistema perpetua, de forma diversa, algumas caractersticas das relaes sociais de Antigo Regime, como aquelas entre escravos e senhores. E a capoeira tambm entra nesse jogo. As hierarquias de valores, de status, de poder, vigoram dentro e fora dela. Se antes ela podia de certa forma estar disponvel por motivos de sobrevivncia, mantendo uma condio marginal e paradoxalmente livre; hoje a temos com seu acesso restrito, entre outras limitaes, devido a especulaes de valores e seus desdobramentos, numa condio legal positiva, efetivamente controlada. Desde o fenmeno da institucionalizao da capoeira, iniciado oficialmente e diante do Estado por mestre Bimba (Manoel dos Reis Machado), e acompanhado por mestre Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha), durante a Era nacionalista de Getlio Vargas, todos os movimentos de capoeira buscaram um reconhecimento social. E por esse reconhecimento, a capoeira tem pago alguns valores preciosos de outrora. As tradies iniciadas naquele momento tomaram um rumo de se auto-afirmarem, se contrapondo umas s outras. A busca75

Ver FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. (Verso digitalizada em 2004) Disponvel em: www.sabotagem.revolt.org Acesso em: 1 de janeiro de 2008. Foucault sugere uma anlise do discurso atravs de conjuntos crticos e genealgicos que permitiriam procurar nos discursos as formas da excluso, da limitao, da apropriao, mostrando como estas se formaram, para que necessidades, como se modificaram e se deslocaram, que fora exerceram e em que medida foram contornadas; assim como perceber como sries de discursos se formaram atravs, apesar, ou com o apoio de sistemas de coero, assim como qual foi a norma especfica de cada uma e quais foram suas condies de apario, crescimento e de variao. (p.23)

36

pela brasilidade e pelo tradicional nas manifestaes populares, e no caso, na capoeira, gerou umas dicotomias entre novo e velho, moderno e tradicional, negro e branco, alto e baixo, extrapolando para as marcas de melhor e pior, de mal e bem, de resistncia e adaptao, de revoluo e de rendio...76 Frutos destes aspectos, entre os quais nos chama mais ateno, so os discursos de tradio na capoeira. O que leva algo a ser mais tradicional? E por qu? Quais so os desdobramentos de ser tradicional? Quais os sentidos de ser tradicional neste nosso mundo atual? H entre as capoeiras Angola e Regional um disputa de poder baseado em tradio? necessidade da capoeira estas possveis disputas? demanda da capoeira em si algum reconhecimento, ou apenas uma questo de seus praticantes diante de suas relaes com o mundo? A quem serve estas disputas? Algum ganha ou perde neste jogo?... Vale apontar uma pequena histria sobre estes dois mestres antes de continuarmos. Para conhecer um pouco sobre eles, sugerimos a prtica da capoeiragem, pois, participando de uma escola ou outra o capoeira ter muitas oportunidades de escutar histrias, vivendo a capoeira e convivendo com capoeiras. H filmagens interessantes sobre eles, duas destas so: Pastinha: uma vida pela capoeira de Antnio Carlos Muricy (1998) e Mestre Bimba: a capoeira iluminada de Luiz Fernando Goulart (2007), da qual extrairemos uns apontamentos. * Mestre Bimba nasceu em 1900, trabalhou muito como estivador. Freqentava capoeira de rua e foi preso umas tantas vezes. Chamado para ser inspetor da polcia, rejeitou por entender que capoeira sempre esteve contra a polcia. Percebeu que a capoeira estava intimamente ligada represso, e procurou mudar este quadro contrariando o tipo social correspondente ao capoeira da poca, se posicionando como educador. Em 1996, a UFBA reconheceu o ttulo de Doutor Honoris Causa (post mortem) ao mestre. Praticou a chamada capoeira angola durante 12 anos e achou que essa tinha se folclorizado muito e perdido as feies de luta. Fez vrias apresentaes e venceu desafios, tornando-se referncia esportiva na Bahia. Foi o primeiro a ensinar a capoeira entre quatro paredes e em espaos acadmicos. Foi tambm quem comeou a demonstrar outras manifestaes baianas associando-as s de capoeira, como o maculel, o samba de roda e a puxada de rede. Devido ao sentimento de pouco reconhecimento de seu trabalho pelo Estado baiano decidiu, aps ser convidado, ir para Goinia, com a promessa de se tornar professor universitrio. Foi enganado em relao

76

Vale a pena ler FRIGERIO, Alejandro. Capoeira: de arte negra a esporte branco. Revista Brasileira de Cincias Sociais. n.10, vol.4, junho, Rio de Janeiro; 1989. O autor comenta ainda que a capoeira se folcloriza. Em vez de se impor como uma manifestao cultural popular, com caractersticas prprias, apresenta-se uma imagem adulterada da mesma, procurando o que mais impressione e agrade o turista.

37

promessa feita, passando por dificuldades com a famlia e entrando num estado de tristeza. Em 1974 ele morreu, sem assistncia adequada depois de uma apresentao. * No que diz respeito ao Mestre Patinha, este nasce em 5 de abril de 1889, em Salvador. Filho de uma mulata baiana e de um comerciante espanhol, assumiu a capoeira de Gengibirra, bairro de Salvador, que era freqentada pela elite da capoeira, s tinha mestre, nas palavras de Pastinha. Parece que o motivo foi por ser considerado um visionrio, tendo um projeto para a capoeira angola diante da crescente demanda da regional, transformando-se numa liderana nesta reao. Pastinha era uma espcie de mito na cidade de Salvador, sendo referncia para muitos, inclusive para o mestre Bimba. Em 1966, realizou um de seus maiores sonhos que era de conhecer a frica. Especificamente Dacar, no Senegal, no Primeiro Festival Internacional de Arte Negra, pra mostrar a capoeira do Brasil. Ele dizia que o capoeirista devia ser um homem digno, honrado, decente, conforme depoimento de Jorge Amado no filme. J no final da dcada de 1970, j cego, teve sua posio e seu trabalho na capoeira questionado. O turismo e a comercializao da capoeira estavam em alta, com o risco de se esquecer a tradio e a reverncia aos ancestrais. Quando perdeu o espao no Pelourinho-19, enganado, ele veio a piorar de sade, segundo mestre Curi. Em 13 de novembro de 1981, no abrigo Dom Pedro II na Bahia morreu Pastinha com 93 anos. Para Pastinha: a capoeira mandinga, manha, malcia, tudo o que a boca come 77

3.2. A institucionalizao da capoeira

O perodo clssico, nas palavras de mestre Decnio, da histria da Capoeira, pode ser entendido como o da institucionalizao da capoeira, com a sua profissionalizao.78 J existem muitos trabalhos sobre este perodo, tratando da relao da capoeira e o Estado, a sada da marginalidade, a incorporao de novos valores capoeiragem, o surgimento das academias e a valorizao dos estilos de duas capoeiras baianas, representadas pela Regional de mestre Bimba e a Angola de mestre Pastinha. Este perodo est situado em torno de crises sociais e polticas, ou seja, de mudanas profundas em toda a sociedade brasileira. O imaginrio intensamente trabalhado pelas elites por todo o incio da Repblica acerca das manifestaes afro-descendentes era o de apagar da histria do Brasil a escravido; paralelamente e se possvel embranquecer a77 78

Estes apontamentos so resumos breve de vrios depoimentos nestes dois filmes. DECNIO FILHO, Angelo A. Evoluo histrica da capoeira. Disponvel em: http://www.portalcapoeira.com/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=37 Acesso em: 7 de junho de 2007.