Boaventura - A Reinvenção Solidaria e Participativa do Estado

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  • 7/22/2019 Boaventura - A Reinveno Solidaria e Participativa do Estado

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    BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

    Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

    Centro de Estudos Sociais

    A Reinveno Solidria e Participativa do Estado

    A questo da reforma do Estado uma questo intrigante. Dos dois paradigmas de transformao social damodernidade, a revoluo e o reformismo, o primeiro foi pensado para ser exercido contra o Estado e osegundo para ser exercido pelo Estado. Para o reformismo, o paradigma que acabou por dominar nos pasescentrais e que posteriormente veio a estender-se a todo o sistema mundial, a sociedade a entidadeproblemtica e, como tal, objecto de reforma. O Estado, esse, a soluo do problema, o sujeito da reforma.A primeira observao a fazer , pois, que quando, como hoje acontece, o Estado se torna ele prprioproblemtico e se transforma em objecto de reforma, o que est verdadeiramente em causa a crise doreformismo. Ou seja, a reforma do Estado o outro lado da crise do reformismo. Esta observao conduz auma outra, formulvel como questo: se, durante a vigncia do reformismo, o Estado foi o sujeito da reforma ea sociedade o objecto, hoje, quando o Estado se constitui como objecto de reforma, quem o sujeito dareforma? Ser agora a vez da sociedade? E nesse caso quem na sociedade? Ou ser o prprio Estado

    quem se auto-reforma? E, nesse caso, quem no Estado o sujeito da reforma de que o Estado objecto? Ou,ainda, ser que a reforma do Estado pe em causa a distino entre Estado e sociedade que at agora temvigorado? Nesta palestra comearei por analisar o contexto social e poltico do movimento para a reforma doEstado. Indicarei depois brevemente as diferentes alternativas de reforma e seus promotores para meconcentrar ento no papel do chamado terceiro sector na reforma do Estado, especificando as condies quedeterminam o sentido poltico desse papel e da reforma em que ele se traduz.

    Depois de um breve perodo em que pretendeu ser a via gradual, pacfica e legal para o socialismo, oreformismo, no seu sentido mais amplo, foi o processo poltico atravs do qual o movimento operrio e seusaliados resistiram reduo da vida social, lei do valor, lgica da acumulao e s regras do mercado porvia da incorporao de uma institucionalidade que garantiu a sustentabilidade de interdependncia no

    mercantis, cooperativas, solidrias, voluntrias. Essa institucionalidade significou a vigncia possvel dointeresse geral ou do interesse pblico numa sociedade capitalista, um interesse desdobrado em trs grandestemas: a regulao do trabalho; a proteco social contra riscos sociais, e a segurana contra a desordem e aviolncia. A institucionalidade reformista traduziu-se numa articulao especfica entre os trs princpios deregulao na modernidade: o princpio do Estado, o princpio do mercado e o princpio da comunidade.Estabeleceu-se um crculo virtuoso entre o princpio do Estado e o princpio do mercado de que ambos sairamreforados, enquanto o princpio da comunidade, assente na obrigao poltica horizontal cidado a cidado,foi totalmente descaracterizado na medida em que o reconhecimento poltico da cooperao e a solidariedadeentre cidados foi restringido s formas de cooperao e de solidariedade mediadas pelo Estado. Nesta novaarticulao regulatria, o potencial catico do mercado, que se manifestava sob a forma da questo social anomia, excluso social, desagregao familiar, violncia , mantido sob controle na medida em que a

    questo social entra na agenda poltica pela mo da democracia e da cidadania. Politizar a questo socialsignificou submet-la a critrios no capitalistas, no para a eliminar, mas to s para a minorar e, nessamedida, manter sob controle o capitalismo enquanto consequncia (a questo social) significou legitim-lo

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    enquanto causa. O Estado foi a arena poltica onde o capitalismo procurou realizar todas as suaspotencialidades por via do reconhecimento dos seus limites.

    A forma poltica mais acabada do reformismo foi o Estado-Providncia nos pases centrais do sistema mundiale o Estado desenvolvimentista nos pases semiperifricos e perifricos. O reformismo assenta na ideia de ques normal a mudana social que pode ser normalizada. A lgica da normalizao deriva de uma simetria

    entre melhoria e repetio e os dispositivos da normalizao so o direito, o sistema educativo e a identidadecultural. A repetio a condio da ordem e a melhoria a condio do progresso. As duas pertencem-semutuamente e o ritmo da mudana social normal determinado pela sequncia dos momentos de repetio edos momentos de melhoria.

    H algo de paradoxal no reformismo: na medida em que uma dada condio social se repete no melhora e namedida em que melhora no se repete. Este paradoxo, longe de paralizar a poltica reformista, a sua grandefonte de energia. assim por duas razes principais. Por um lado, o carcter fragmentrio desigual eselectivo da mudana social normal confere-lhe grande opacidade, fazendo com que a mesma condio oupoltica seja por uns grupos sociais considerada repetio e, por outros, melhoria; os conflitos entre eles so omotor das reformas. Por outro lado, a ausncia de uma direco global na mudana normal permite que os

    processos de mudana possam ser vistos, quer como fenmenos de curto prazo, quer como manifestaes decurto prazo de fenmenos de longo prazo. A indeterminao destas temporalidades refora a inevitabilidadeda mudana e com ela a legitimidade desta.

    A opacidade e a indeterminao da mudana social normal operam ainda a outros trs nveis, ambos elespotenciadores da legitimidade do paradigma reformista. Em primeiro lugar, a articulao entre repetio emelhoria permite conceber a mudana social como um jogo de soma positiva em que os processos de inclusosocial sobrepujam os da excluso social Qualquer prova emprica em contrrio, se, no limite, no puder serrefutada, tende a ser vista como um fenmeno transitrio e reversvel. Em segundo lugar, o carcter dasmedidas reformistas intrinsecamente ambguo, a natureza capitalista ou anti-capitalista delas , em princpio,contestvel. Em terceiro lugar, a indeterminao e a opacidade das polticas reformistas conferem-lhes grandeplasticidade e abstraco, permitindo-lhe funcionar como modelos polticos credveis em contextos sociaismuito distintos. Ao contrrio das aparncias e dos discursos, o paradigma da transformao reformista foisempre mais internacional e transnacional que o paradigma da transformao revolucionria.

    O papel central do Estado nacional na mudana social reformista desdobrou-se em trs estratgiasfundamentais: acumulao, confiana e legitimao. Atravs das estratgias de acumulao, o Estadogarantiu a estabilidade da produo capitalista; atravs das estratgias da confiana, o Estado garantiu aestabilidade das expectativas aos cidados ameaados pelos riscos decorrentes das externalidades daacumulao capitalista, e da distanciao das aces tcnicas em relao s suas consequncias e, portanto,ao contexto imediato das interaces humanas. Atravs das estratgias de hegemonia, o Estado garantiu alealdade das diferentes classes sociais gesto estatal das oportunidades e dos riscos e, nessa medida,garantiu a sua prpria estabilidade, tanto enquanto entidade poltica, como enquanto entidade administrativa.

    Vejamos mais em detalhe o campo da interveno social de cada uma das estratgias estatais, bem como omodo como em cada uma delas operam a simetria entre repetio e melhoria e os cdigos binrios deavaliao poltica. O campo de interveno social da estratgia de acumulao a mercantilizao do trabalhode bens e servios: o momento de repetio da mudana normal neste campo a sustentabilidade daacumulao e o momento da melhoria, o crescimento econmico. A avaliao poltica pauta-se pelo cdigobinrio: promover o mercado/restringir o mercado. A estratgia da hegemonia abrange trs campos sociais deinterveno. O primeiro campo o da participao e da representao poltica, sendo o cdigo binrio:democrtico/antidemocrtico. Nela a repetio a democracia liberal e a melhoria, a expanso dos direitos. Osegundo campo o consumo social sujeito ao cdigo binrio justo/injusto. A repetio a paz social, amelhoria, a equidade social. O terceiro campo o consumo cultural, a educao e a comunicao de massa

    sujeito ao cdigo leal/desleal, em que o momento de repetio a identidade cultural e o momento de melhoriaa distribuio do conhecimento e da informao. Finalmente, a estratgia de confiana abrange igualmentetrs campos de interveno social. O primeiro campo o dos riscos na relaes internacionais avaliados

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    segundo o cdigo amigo/inimigo. O momento de repetio a soberania e a segurana nacionais e omomento de melhoria a luta por melhorar a posio no sistema mundial. O segundo campo o dos riscos dasrelaes sociais (dos crimes aos acidentes), sujeito ao duplo cdigo binrio legal/ilegal, relevante/irrelevante.Nele a repetio a ordem jurdica em vigor, e a melhoria, preveno dos riscos e o aumento da capacidaderepressiva. Finalmente, o terceiro campo o dos riscos da tecnologia e dos acidentes ambientais, sujeiro aocdigo binrio: seguro/inseguro, previsvel/imprevisvel. O momento de repetio o sistema de peritos, e o demelhoria o avano tecnolgico.

    O paradigma reformista assenta em trs pressupostos. Primeiro, os mecanismos de repetio e de melhoriaoperam eficazmente no mbito do territrio nacional sem grande interferncia externa, nem grande turbulnciainterna. Segundo, a capacidade financeira do Estado assenta na sua capacidade reguladora e vice-versa, jque a segurana e o bem estar social so obtidos pela produo em massa de produtos e servios que tm aforma de mercadoria ainda que no sejam distribudos atravs do mercado. Terceiro, os riscos e os perigosque o Estado gere atravs das estratgias de confiana no ocorrem com grande frequncia e, quandoocorrem, ocorrem numa escala adequada interveno poltica e administrativa do Estado.

    Estes trs pressupostos dependem, contudo, de um meta-pressuposto. Enquanto mudana social normal, o

    reformismo no pensvel sem o contraponto da mudana social anormal, ou seja, da revoluo. Alis, omesmo vale para a revoluo. A anlise das grandes revolues modernas mostra que todas elas recorremao reformismo como condio do seu xito e consolidao. De facto, uma vez ocorrida a rupturarevolucionria, as primeiras medidas dos novos poderes foram invariavelmente as de se protegerem contra aecloso de novas revolues para o que recorreram lgica reformista da repetio e melhoria.Retrospectivamente, pois, as revolues tm sido sempre o momento inaugural do reformismo enquanto oreformismo s faz sentido poltico enquanto processo ps-revolucionrio. Mesmo quando o seu objectivo prevenir a ecloso da revoluo, a sua lgica opera por antecipao da situao ps-revolucionria.

    A Crise do Reformismo

    Desde a dcada de oitenta temos vindo a assistir crise do paradigma da mudana normal. A simetria entrerepetio e melhoria perdeu-se; em vez dela, a repetio comeou a ser vista como a nica melhoria possvele, com isso, o jogo de soma positiva foi substitudo pelo jogo de soma zero e os processos de excluso socialpassaram a dominar sobre os de incluso social. Um a um, os pressupostos do reformismo foram postos emcausa. O capitalismo global e o seu brao poltico, o Consenso de Washington, desestruturaram os espaosnacionais de conflito e negociao, minaram a capacidade financeira e reguladora do Estado, ao mesmo tempoque aumentaram a escala e a frequncia dos riscos at uma e outra ultrapassarem os limiares de uma gestonacional vivel. A articulao entre as trs estratgias do Estado acumulao, hegemonia e confiana ,que presidem ao reformismo, entrou em processo de desagregao e foi paulatinamente substituda por uma

    outra dominada inteiramente pela estratgia de acumulao.

    O Estado fraco, que emerge do Consenso de Washington, s fraco ao nvel das estratgias de hegemonia ede confiana. Ao nvel da estratgia de acumulao mais forte do que nunca, na medida em que passa acompetir ao Estado a gerir e a legitimar no espao nacional as exigncias do capitalismo global. No se trata,pois, da crise do Estado em geral, mas de um certo tipo de Estado. No se trata do regresso do princpio domercado, mas de uma nova articulao, mais directa e mais ntima, entre o princpio do Estado e o princpio domercado. Na verdade, a fraqueza do Estado no foi o efeito secundrio ou perverso da globalizao daeconomia. Foi um processo poltico muito preciso destinado a construir um outro Estado forte, cuja fora estejamais finamente sintonizada com as exgincias polticas do capitalismo global. A fora do Estado, que noperodo do reformismo consistiu na capacidade do Estado em promover interdependncias no mercantis,

    passou a consistir na capacidade do Estado em submeter todas as interdependncias lgica mercantil. Omercado por si s est longe de o poder fazer sem correr o risco de ingovernabilidade.

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    Contudo, a crise do reformismo decorreu, antes de mais, da crise do seu meta-pressuposto, a ps-revoluo.Com a queda do muro de Berlim passmos de um perodo ps-revolucionrio para um perodo ps-ps-revolucionrio. Fora do contexto poltico da ps-revoluo, o reformismo deixou de fazer sentido. Deixou deser possvel porque deixou de ser necessrio e no o contrrio. Enquanto no surgir no horizonte um outromomento revolucionrio, no ser inaugurado um novo paradigma reformista. O colapso da tenso entrerepetio e melhoria, enquanto paradigma de transformao social e a converso da repetio na nicahpotese de melhoria possvel, significa, sem dvida, excluso social e degradao da qualidade de vida damaioria, mas no significa estagnao. Trata-se de um movimento intenso catico, feito de super-incluses ede super-excluses, que no se deixa controlar pelo ritmo da repetio e melhoria. No se trata de mudananormal, to pouco de mudana anormal. A questo da reforma substituda pela questo da governabilidade. o movimento de mudana social prprio de um perodo histrico que demasiado prematuro para ser pr-revolucionrio e demasiado tardio para ser ps-revolucinrio. esse o nosso perodo histrico.

    A Primeira Fase: O Estado Irresponsvel

    O reformismo, tal como a revoluo, visaram a transformao da sociedade. No caso do reformismo, forassociais que o sustentaram usaram o Estado como instrumento de transformao social. Como cadainterveno do Estado na sociedade tambm uma interveno no prprio Estado, o Estado transformou-seprofundamente, sobretudo nos ltimos cinquenta anos. O fim do reformismo social determinou o incio domovimento para a reforma do Estado. Este movimento conheceu duas fases principais. A primeira assentouparadoxalmente na ideia de que o Estado irreformvel. O Estado inerentemente ineficaz, parasitrio epredador, por isso a nica reforma possvel e legtima consiste em reduzir o Estado ao mnimo necessrio aofuncionamento do mercado. O potencial de fracasso e de dano do Estado s pode ser reduzido reduzindo otamanho e o mbito do Estado. nesta fase que se retoma um debate que vinha j do sc. XIX sobre asfunes do Estado. Distingue-se ento entre as funes que so exclusivas do Estado das que o Estado foi

    tomando por usurpao ou concorrncia de outras instncias no estatais de regulao social, com aimplicao de que o Estado deve ser confinado s suas funes exclusivas.

    Esta fase do movimento da reforma do Estado prolongou-se at aos primeiros anos da dcada de noventa. Talcomo o reformismo social, foi um movimento global desta vez impulsionado pelas instituies financeirasmultilaterais e pela aco concertada dos Estados centrais com recurso a dispositivos normativos einstitucionais muito poderosos pela sua abstraco e unidimensonalidade, tais como dvida externa,ajustamento estrutural, controle do dfice pblico e inflao, privatizao, desregulamentao, reconhecimentodo colapso eminente do Estado-Providncia e sobretudo da segurana social, e a consequente reduodrstica do consumo colectivo da proteco social, etc., etc.

    Esta primeira fase da reforma do Estado, a fase do Estado mnimo, atingiu o seu climax com as convulses

    polticas nos pases comunistas da Europa Central e de Leste, mas foi a tambm que os limites da sua lgicareformadora se comearam a manifestar. A emergncia das mafias, a corrupo poltica generalizada e ocolapso de alguns estados do chamado Terceiro Mundo vieram mostrar os dilemas do consenso do Estadofraco. que como a reforma do Estado tem de ser levada a cabo pelo prprio Estado, s um Estado fortepode produzir eficazmente a sua fraqueza. Por outro lado, como toda a desregulamentao envolveregulamentao, o Estado, paradoxalmente, tem de intervir para deixar de intervir. Em face disto, comeou aser claro que o capitalismo global no pode dispensar a existncia de Estados fortes ainda que a fora estataltenha de ser de um tipo muito diferente daquele que vigorou no perodo do reformismo e se traduziu no Estado-Providncia e no Estado desenvolvimentista. H, pois, que reconstruir essa nova fora estatal. A questo doEstado no se resolve pela reduo da quantidade de Estado. Resolve-se, sim, pela construo de uma outraqualidade de Estado e para isso h que, ao contrrio do que sucedeu na primeira fase, partir da ideia de que oEstado reformvel. este o perfil geral da segunda fase do movimento da reforma do Estado, a fase em quenos encontramos. S nesta fase o pndulo do reformismo passa inequivocamente do reformismo social, acargo do Estado, para o reformismo estatal, a cargo dos sectores da sociedade com capacidade de

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    interveno no Estado. Esta oscilao, aparentemente simtrica, esconde uma profunda assimetria. Enquantoo reformismo social, sendo um movimento transnacional, foi um movimento transnacional de baixa intensidade,j que ocorreu no espao-tempo nacional a sociedade nacional e o Estado-nao propulsionado porforas sociais e polticas nacionais, o reformismo estatal um movimento transnacional de alta intensidadeuma vez que as foras que o promovem com mais convico so elas prprias transnacionais. A sociedadenacional agora o espao-miniatura de uma arena social global. O Estado nacional, sobretudo na periferia dosistema mundial, uma caixa de ressonncia de foras que o transcendem.

    Segunda Fase: O Estado Reformvel

    Esta segunda fase, de que me passarei a ocupar de seguida, social e politicamente mais complexa do que aanterior. A primeira fase, a fase do Estado mnimo irreformvel, foi uma fase totalmente dominada pela fora eos interesses do capitalismo global. Foi a fase area do neo-liberalismo. Nos pases centrais, o movimento

    sindical foi fustigado pela desagregao da legislao fordista e, rpida e violentamente posto na defensiva. Aesquerda marxista, que desde a dcada de sessenta procedera crtica do Estado-Providncia, sentiu-sedesarmada para o defender e os novos movimentos sociais, ciosos da sua autonomia em relao ao Estado einteressados em reas de interveno social consideradas marginais pelo bloco corporativo que sustentava oEstado-Providncia, no se sentiram mobilizados para defender o reformismo que este ltimo protagonizava.Nos pases semiperifricos, o Estado desenvolvimentista tinha sido tambm, em muitos casos, um Estadoautoritrio e repressivo e as foras progressistas concentraram-se nas tarefas da transio democrtica.Muitas das receitas neo-liberais, porque desmantelavam o intervencionismo do Estado autoritrio, passarampoliticamente como contributos para o processo de democratizao, beneficiando assim da legitimidade queeste ltimo grangeava, sobretudo entre o operariado industrial e as classes mdias urbanas. Nos pasesperifricos, a desvalorizao dos poucos produtos por eles colocados no comrcio internacional, a dvida

    externa e o ajustamento estrutural transformaram o Estado numa entidade quase invivel, um lumpen-Estado merc da benevolncia internacional.

    A primeira fase do movimento de reforma do Estado foi, por estas razes, um perodo de pensamento nico, dediagnsticos inequvocos e de terapias de choque. Os resultados disfuncionais que delas resultaram e asbrechas que produziram no Consenso de Washington, a reorganizao das foras progressistas queentretanto se verificou, e o fantasma da ingovernabilidade e o seu possvel impacto nos pases centrais por viada imigrao, das epidemias ou do terrorismo, todos estes factores contribuiram para que se abrisse numasegunda fase da reforma do Estado e que nesta fase fosse muito mais amplo o espectro poltico, maisprofundas as controvrsias e mais credveis as alternativas. Em termos de engenharia institucional, esta faseassenta em dois pilares fundamentais: a reforma do sistema jurdico e em especial do sistema judicial: o papel

    do chamado terceiro sector na reforma do Estado. Neste texto concentrar-me-ei neste segundo pilar.

    A Reforma do Estado e o Terceiro Sector

    Terceiro sector uma designao residual e vaga com que se pretende dar conta de um vastssimo conjuntode organizaes sociais que no so nem estatais nem mercantis, ou seja, organizaes sociais que, por umlado, sendo privadas, no visam fins lucrativos, e, por outro lado, sendo animadas por objectivos sociais,pblicos ou colectivos, no so estatais. Entre tais organizaes podem mencionar-se cooperativas,associaes mutualistas, associaes no lucrativas, organizaes no governamentais, organizaes quasi-

    no governamentais, organizaes de voluntariado, organizaes comunitrias ou de base, etc. Asdesignaes vernculas do terceiro sector variam de pas para pas e as variaes, longe de seremmeramente terminolgicas, reflectem histrias e tradies diferentes, diferentes culturas e contextos polticos.

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    Em Frana tradicional a designao de economia social, nos pases anglo-saxnicos fala-se de sectorvoluntrio e de organizaes no lucrativas, enquanto nos pases do chamado Terceiro Mundo domina adesignao de organizaes no governamentais.

    Nos pases centrais e em especial na Europa, o terceiro sector surgiu no sc. XIX como alternativa aocapitalismo, tendo razes ideolgicas heterogneas que vo do socialismo em suas mltiplas faces ao

    cristianismo social e ao liberalismo, visando novas formas de organizao de produo e de consumo que, oradesafiavam frontalmente os princpios da economia poltica burguesa em ascenso, ora buscavam to sminimizar os custos humanos da Revoluo Industrial, funcionando de modo compensatrio e em contra-ciclo.Subjacente a todo este movimento, em que boa parte do operariado e das classes populares se reviramdurante algum tempo, estava o propsito de combater o isolamento do indivduo face ao Estado e organizao capitalista da produo e da sociedade. A ideia de autonomia associativa , pois, matricial nestemovimento. ela que organiza e articula todos os outros vectores normativos do movimento como sejam aajuda mtua, a cooperao, a solidariedade, a confiana, a educao para formas alternativas de produo, deconsumo e, afinal, de vida.

    No cabe aqui fazer a histria da economia social durante o nosso sculo. Se, por um lado, o movimento

    socialista e comunista abandonaram cedo os preceitos e objectivos da economia social em favor de outrosconsiderados mais avanados e mais eficazes na construo de uma alternativa ao capitalismo, por outro lado,em muitos pases da Europa, as cooperativas e as mutualidades consolidaram intervenes importantes nodomnio da proteco social, da sade e dos acidentes de trabalho. Importante para a minha anlise o factode, desde finais da dcada de setenta, se ter vindo a assistir nos pases centrais reemergncia do terceirosector ou da economia social. No se trata de um mero regresso ao passado alguns autores falam da novaeconomia social mas so evidentes no novo terceiro sector os ecos, as memrias, e a cultura institucionaldo velho terceiro sector. Antes de me debruar sobre o significado poltico desta reemergncia, devo referirque uma das novidades mais notrias do novo terceiro sector o facto de ele ter emergido com igual pujananos pases perifricos e semiperifricos do sistema mundial sob a forma de organizaes no-governamentais,quer nacionais, quer transnacionais. Se nalguns destes pases tais organizaes resultaram da consolidao

    e, por vezes, do declnio dos novos movimentos sociais, noutros, sobretudo nos mais perifricos, o surto de taisorganizaes decorreu da mudana de estratgia dos pases centrais no domnio da assistncia e dacooperao internacional, a qual passou a ser canalizada preferencialmente para actores no estatais.

    No fcil determinar o significado poltico da reemergncia do terceiro sector. A heterogeneidade poltica queo caracteriza desde o sc. XIX agora potenciada pelo facto de estar a emergir, tanto nos pases centrais,como nos pases perifricos e, portanto, em contextos sociais e polticos muito distintos. A prpria unidade deanlise deste fenmeno problemtica, pois, se nos pases centrais o terceiro sector parece ser o resultado aforas endgenas identificveis no espao nacional, em alguns pases perifricos, sobretudo nos menosdesenvolvidos, o terceiro sector o efeito local de indues, quando no de presses ou de interfernciasinternacionais.

    Muito em geral poder dizer-se que a emergncia do terceiro sector significa que finalmente o terceiro pilar daregulao social na modernidade ocidental, o princpio da comunidade, consegue destronar a hegemonia queos outros dois pilares, o princpio do Estado e o princpio do mercado, partilharam at agora com diferentespesos relativos em diferentes perodos. O grande teorizador do princpio da comunidade foi Rousseau que oconcebeu como contraponto indispensvel do princpio do Estado. Enquanto este ltimo estabelecia aobrigao poltica vertical entre cidados e o Estado, o princpio da comunidade afirmava a obrigao polticahorizontal e solidria de cidado a cidado. Segundo ele, esta a obrigao poltica originria, a queestabelece a inalienabilidade da soberania do povo de que deriva a obrigao poltica com o Estado.

    A comunidade assim concebida como um todo e isso que explica as reservas de Rousseau s associaese corporaes, podendo, alis, por isso, parecer estranho que o invoque como patrono do princpio da

    comunidade. A verdade que para Rousseau a comunidade um todo e como todo que deve sersalvaguardada. Para isso, necessrio eliminar todos os obstculos s interaces polticas entre cidados,uma vez que s destas pode emergir uma vontade geral no distorcida. Dada a sua concepo de soberania

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    popular, Rousseau, ao contrrio de Montesquieu em LEsprit des Lois, no precisa de conceber asassociaes e corporaes como barreiras contra a tirania do Estado. Ao contrrio, Rousseau preocupa-secom a possibilidade de as associaes e corporaes se poderem transformar, elas prprias, em grupospoderosos e privilegiados capazes de distorcer a vontade geral em favor dos seus interesses particulares. Porisso, prope que, a haver associaes, elas sejam pequenas, no maior nmero possvel e que se evitedesigualdades de poder entre elas. Esta posio de Rousseau tem hoje uma actualidade renovada. Nomomento em que o terceiro sector crescentemente invocado como um antdoto contra a privatizao doEstado de Bem Estar por grupos de interesse corporativos, importante reter a advertncia de Rousseau deque o terceiro sector pode ser ele prprio uma fonte de corporativismo.

    O ressurgimento do terceiro sector no final do sculo pode ser lido como a oportunidade para o princpio dacomunidade comprovar as suas vantagens comparativas em relao ao princpio do mercado e ao princpio doEstado, os quais tero falhado nas suas respectivas tentativas de hegemonizar a regulao social nosperodos anteriores, o princpio do mercado no perodo do capitalismo desorganizado ou capitalismo liberal, e oprincpio do Estado no perodo do capitalismo organizado ou capitalismo fordista. Esta leitura peca, porm, pordemasiado superficial. Em primeiro lugar, no to claro que estejamos perante um duplo falhano, do Estadoe do mercado; em segundo lugar, a existir tal falhano, ainda menos claro que o princpio da comunidade,

    depois de um sculo de marginalizao e de colonizao por parte do Estado e do mercado, tenha ainda aautonomia e energia necessrias para protagonizar uma nova proposta de regulao social, mais justa, capazde repor a equao entre regulao social e emancipao social que constitui a matriz originria damodernidade ocidental.

    Quanto primeira questo, no me parece que o princpio do mercado esteja a passar por qualquer crise. Aocontrrio, o perodo actual pode ser visto como um perodo de total hegemonia do mercado, identificvel nahubris com que a lgica empresarial do lucro tem vindo a permear reas de sociedade civil at agora poupadas incivilidade do mercado como, por exemplo, a cultura, a educao, a religio, a administrao pblica, aproteco social, a produo e gesto de sentimentos, atmosferas, emoes, ambientes, gostos, atraces,repulsas, impulsos. A mercantilizao do modo de estar no mundo est a converter-se no nico modo racional

    de estar no mundo mercantil.Quanto ao princpio do Estado, evidente que a crise do reformismo social ou do fordismo, central e perifrico,representa uma crise das formas polticas estatais que dominaram no perodo anterior, o Estado do Bem Estarno centro do sistema mundial e o Estado desenvolvimentista na semiperiferia e periferia do sistema mundial.Mas no se trata de uma crise generalizada do Estado nem muito menos de uma crise final como pretendemas teses mais extremistas da globalizao. O carcter repressivo do Estado, o seu protagonismo nosprocessos de regionalizao supranacional e de liberalizao da economia mundial, a sua funo previdencialfacilitadora e protectora em relao a empresas privadas que desempenham funes consideradas deinteresse pblico, nada disto parece atravessar qualquer crise. O que est em crise no Estado o seu papelna promoo de intermediaes no mercantis entre cidados que o Estado tem desempenhado

    nomeadamente atravs da poltica fiscal e das polticas sociais. A maior sintonia que tem vindo a ser exigidaentre as estratgias de hegemomia e de confiana, por um lado, e as estratgias de acumulao, por outro,sob o domnio desta ltima, tem vindo a fortalecer todas as funes do Estado que contribuam para ofortalecimento do capitalismo global.

    Como resulta de forma eloquente do World Development Report, 1997 do Banco Mundial, estas funesestatais so cada vez mais importantes e exigem um Estado forte para as desempenhar. Do que se trata, pois, de saber do impacto desta mudana de qualidade do Estado na produo dos quatro bens pblicos que oEstado veio a assumir no perodo anterior, ou seja, a legitimidade, o bem estar social e econmico, asegurana e a identidade cultural. Qualquer destes bens pblicos assentou num modelo de regulao socialbaseado numa articulao entre as diferentes estratgias estatais que entretanto colapsou. Quando se falahoje de reforma do Estado, os problemas que se pem so basicamente dois: (1) se esses bens soincontornveis, e, (2) no caso de o serem, como vo ser produzidos no novo modelo de regulao no horizontee na nova forma poltica em que ele se vai traduzir. na resposta a estes dois problemas que a questo do

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    terceiro sector surge com toda a acuidade. Portanto, ao abord-lo, a primeira posio de partida que o queest em causa uma nova forma poltica do Estado.

    Para determinar o contributo do terceiro sector neste domnio, temos ento que responder outra questoprvia acima referida: depois de dcadas de marginalizao e de colonizao, que recursos dispe o terceirosector para contribuir credivelmente para a reforma do Estado. Para responder a esta questo, til passar

    em revista os debates principais que o terceiro sector tem suscitado nas duas ltimas dcadas. O Estado estsempre presente nesses debates, mas no com a centralidade que lhe atribuiremos na parte final deste texto.

    Antes de mais, e como j referimos, de salientar que os termos do debate divergem muito no espao-tempodo sistema mundial. Nos pases centrais, o contexto do debate a partir do final da dcada de setenta basicamente a crise do Estado-Providncia. A leitura neoliberal desta crise apontou para a privatizao maciados servios sociais do Estado, na segurana social, na sade, na educao, na habitao. E, para almdeles, dos prprios servios de segurana pblica e prisionais. A eficincia do mercado na gesto dosrecursos foi considerada incontestvel, em contraste com o funcionamento burocrtico do Estado. A eficinciado mercado na gesto dos recursos colidia, no entanto, com a ineficincia (quando no, total perversidade) domercado no que respeita equidade na distribuio dos recursos antes confiada ao Estado. Sobretudo as

    organizaes sociais e polticas progressistas, ainda que desarmadas no que respeita defesa daadministrao pblica do Estado que elas prprias tinham contestado, conseguiram manter na agenda polticaa tenso entre eficincia e equidade. O terceiro sector surgiu ento como o campo privilegiado para gerir essatenso e gerar compromissos. O recurso ao terceiro sector num momento de grande turbulncia institucionalno deixa de ser surpreendente. que, durante muito, se pensou que uma das limitaes do terceiro sectorera a rigidez institucional das organizaes que nele cabiam, ao tempo sobretudo cooperativas e mutualidades,uma rigidez que se adequaria mal aos desafios da mudana social acelerada. Esta rigidez, de resto,contrastava com a flexibilidade do mercado e do prprio Estado dada a ductilidade do sistema jurdico paracobrir novas reas de interveno social. A partir da dcada de setenta, a rigidez institucional do terceirosector parece ter desaparecido ou deixado de ser relevante e, segundo alguns autores, a popularidade doterceiro sector reside precisamente na sua plasticidade conceptual. Como dizem Anheier e Seibel: O leque

    amplo de atributos sociais econmicos, que cabem no termo terceiro sector, permite aos polticos servir-sedaquelas partes ou aspectos do terceiro sector que apoiam a sua crtica e interpretao da crise do Estado deBem Estar (1990: 8).

    Esta ductilidade conceptual, que politicamente til, acaba por tornar difcil a sistematizao da anlise e ascomparaes internacionais e intersectoriais. Como diz Defourny, A variedade de solues jurdicas, asdificuldades em encontrar termos equivalentes nas diferentes lnguas, as diferentes tradies de associativismoe os diferentes contextos sociais, culturais e polticos... [tudo isto faz com que] o terceiro sector possa serentendido internacionalmente como tendo ao mesmo tempo uma identidade bem definida e um modo flexvelde dar expresso aos seus vrios componentes dependendo das circunstncias (1992: 46).

    Qualquer que seja a ambiguidade conceitual do terceiro sector, a verdade que nos pases centrais o

    ressurgimento do terceiro sector est ligado crise do Estado-Providncia. Isto significa que o terceiro sectorno ressurja num contexto de lutas sociais e polticas avanadas que procuram substituir o Estado-Providnciapor formas de cooperao, solidariedade e participao mais desenvolvidas. Pelo contrrio, ressurge no inciode uma fase de retraco de polticas progressistas em que os direitos humanos da terceira gerao, osdireitos econmicos e sociais, conquistados pelas classes trabalhadoras depois de 1945, comeam a serpostos em causa, a sua sustentabilidade questionada e a sua restrio considerada inevitvel.

    Isto significa que nos pases centrais o ressurgimento de um terceiro sector autnomo, capaz de cumprirmelhor que o Estado a dimenso social, no um processo poltico autnomo. certo que as organizaesdo terceiro sector aproveitaram o momento poltico para reforar as suas aces de lobbyingjunto do Estado eobter vantagens e concesses para o desenvolvimento da sua interveno, mas a verdade que muitas das

    novas iniciativas do terceiro sector resultaram inicialmente de cooperativas de trabalhadores desempregados,do controle operrio de empresas falidas ou abandonadas, de iniciativas locais para promover a reinsero detrabalhadores e famlias afectadas pela desindustrializao e pela reestruturao industrial, etc., etc. A nova

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    atraco pelo terceiro sector resulta, assim, de um vazio ideolgico provocado pela dupla crise da socialdemocracia, que sustentava o reformismo social e o Estado-Providncia, e do socialismo que durante dcadasserviu, simultaneamente, de alternativa social-democracia e de travo ao desmantelamento desta por partedas foras conservadoras.

    Podemos, pois, concluir que nos pases centrais o terceiro sector surge num contexto de crise, de expectativas

    descendentes, a respeito do desempenho por parte do Estado dos quatro bens pblicos acima referidos. Estecontexto sugere que grande o risco de o terceiro sector ser chamado a ressurgir, no pelo mrito prprio dosvalores que subjazem ao princpio da comunidade cooperao, solidariedade, participao, equidade,transparncia, democracia interna , mas para actuar como amortecedor das tenses produzidas pelosconflitos polticos decorrentes do ataque neo-liberal s conquistas polticas dos sectores progressistas epopulares obtidas no perodo anterior. Se esse for o caso, o terceiro sector converte-se rapidamente nasoluo de um problema irresolvel e o mito do terceiro sector ter o mesmo destino que teve anteriormente omito do Estado e, antes deste, o mito do mercado. Esta advertncia, longe de minimizar as potencialidades doterceiro sector na construo de uma regulao social e poltica mais solidria e participativa, visa apenassignificar que as oportunidades que se nos deparam neste domnio acontecem num contexto de grandesriscos.

    Nos pases perifricos e semiperifricos, o contexto dos debates sobre o terceiro sector muito diferente.Antes de mais, sobressai, a partir da dcada de setenta, o crescimento sem precedentes do terceiro sector queaqui conhecido pelo nome bem mais corrente de Organizaes no Governamentais (ONGs). De salientartambm que este crescimento se deve menos iniciativa dos pases perifricos no caso dos pasessemiperifricos a situao mais complexa do que iniciativa dos pases centrais que passaram a canalisaros seus fundos de ajuda ao desenvolvimento para actores sociais no estatais. O contexto poltico no aquia crise do Estado-Providncia, o qual no existe, mas antes o objectivo de criar o mercado e a sociedade civilatravs do provimento de servios bsicos que o Estado no est e, muitas vezes, nunca esteve em condiesde prestar. Entre 1975 e 1985, houve um aumento de 1400% de assistncia ao desenvolvimento canalizadapara as ONGs (Fowler, 1991: 55 in Adams 5). No Nepal as ONGs aumentaram de 220 em 1990 para 1210 em

    1993, enquanto na Tunsia cresceram de 1886 em 1988 para 5186 em 1991 (Hulme e Edwards, 1997: 4). NoQunia, as ONGs controlam entre 30 a 40% das despesas de desenvolvimento e 40% das despesas de sade(Ndegwa, 1994: 23). Em Moambique, os programas de emergncia, a ajuda humanitria e outras actividadesde desenvolvimento esto em largussima medida a cargo de ONGs internacionais que actuam em articulaocom ONGs nacionais, as quais em 1996 eram em nmero de 164. A visibilidade nacional e internacional dasONGs cresceu dramaticamente nos anos noventa com as Conferncias da ONU, da Cimeira da Terra no Rioem 1992 Conferncia de Mulheres em Beijing em 1995.

    Sendo muito diferentes os contextos polticos e operacionais do terceiro sector no centro e na periferia dosistema mundial, no surpreende que sejam igualmente distintos os temas de debate que o terceiro sector temsuscitado num e noutro caso. H obviamente alguns pontos de comum nessa discusso e sero esses que eu

    privilegiarei. Quanto mais no seja, porque, por um lado, o ressurgimento do terceiro sector ocorre no contextoda expanso de uma ortodoxia transnacional, o neoliberalismo e o Consenso de Washington, e porque, poroutro lado, uma parte do terceiro sector nos pases centrais, as Organizaes no Governamentais para odesenvolvimento, vai ter um papel decisivo na promoo, financiao e operao das organizaes nogovernamentais nos pases perifricos e semiperifricos. Uma breve referncia aos temas debate esclarecer-nos- sobre as condies para uma refundao ou reinveno solidria e participativa do Estado e o papel doterceiro sector nela. Refiro quatro debates principais: localizao estrutural entre o pblico e o privado;organizao interna, transparncia responsabilizao; redes nacionais e transnacionais; relaes com oEstado.

    O debate sobre a localizao estrutural do terceiro sectorcentra-se volta da questo de saber o queverdadeiramente o distingue dos sectores tradicionais pblico e privado, sendo certo que a distino doterceiro sector se constri a partir da combinao de caractersticas, tanto do sector pblico, como do sectorprivado. A motivao e a iniciativa da aco colectiva aproxima o terceiro sector do sector privado, ainda queno primeiro o motor da aco seja a cooperao e a ajuda mtua, enquanto no segundo o motor da aco o

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    lucro. Este facto leva a atribuir ao terceiro sector uma eficincia gerencial semelhante do sector privadocapitalista. Mas, por outro lado, a ausncia de motivo de lucro, a orientao para um interesse colectivodistinto do interesse privado, quer de quem presta o servio ou contribui para ele, quer de quem o recebe, agesto democrtica e independente, uma distribuio de recursos assente em valores humanos e no emvalores de capital, todas estas caractersticas aproximam o terceiro sector do sector pblico estatal e combase nelas que o terceiro sector usualmente creditado com a virtualidade de combinar eficincia comequidade.

    Estas caractersticas so obviamente muito gerais e esto formuladas ao nvel de tipos-ideais. No planoemprico, as distines so mais complexas. Em primeiro lugar, h organizaes do terceiro sector que, pelotipo de servios que prestam ou produtos que produzem, esto muito mais prximas do sector privado do quedo sector pblico. Por exemplo, as cooperativas de trabalhadores. Mas mesmo aqui h distines a fazer.Enquanto as pequenas e mdias cooperativas tendem a ser trabalho-intensivas, j que so muitas vezes oresultado dodownsizingde empresas capitalistas, e a incentivar a participao dos trabalhadores napropriedade, na gesto e nos lucros, as grandes cooperativas so mais difceis de distinguir das empresascapitalistas do mesmo tamanho, ainda que em geral pratiquem preos inferiores aos seus scios e distribuamuma percentagem maior dos lucros. Por exemplo, no caso de organizaes mutualistas, a lgica de seguro

    bastante distinta da do seguro privado. Para alm de os gastos correntes tenderem a ser baixos, privilegia-sea solidariedade entre os segurados de modo a que os segurados de baixo risco contribuam para os segurosdos segurados de alto risco.

    Outras organizaes do terceiro sector dedicam-se a actividades ou prestam servios que no podem seradequadamente expressos em dinheiro, desde o trabalho humanitrio e a ajuda de emergncia educaopopular. Trata-se de organizaes que no continuum entre os polos privado e pblico esto mais prximas dopolo pblico. Nos pases centrais e semiperifricos, estas organizaes tendem a prestar serviosanteriormente prestados pelo Estado, enquanto nos pases perifricos prestam servios que, anteriormente, ouno eram prestados, ou eram prestados pelas comunidades. Neste domnio interessante o papel dasassociaes de crdito, crdito informal ou crdito rotativo que, muitas vezes, no so mais que uma

    expresso organizativa, mais formal, de mecanismos de crdito mtuo entre classes populares, tanto rurais,como urbanas.

    A localizao estrutural do terceiro sector torna-se ainda mais complexa no caso de organizaes que, emboracumpram o formato legal do terceiro sector, nada tm a ver com a filosofia que lhe serve de base, quer porquese trata de organizaes de fachada, cuja lgica basicamente o lucro, mas que se organizam sob a forma deterceiro sector para facilitar aprovao, obter subsdios, ter acesso a crdito ou a benefcios fiscais. H aindaorganizaes dualistas com seces que funcionam segundo uma lgica solidarista ou mutualista e outrassegundo uma lgica capitalista. O debate acerca da localizao estrutural do terceiro sector serve paraespecificar as condies sob as quais o terceiro sector pode contribuir para a reforma do Estado. O que estem causa na discusso sobre a localizao estrutural do terceiro sector a reformulao dos limites entre o

    pblico e o privado e com ele a estruturao da esfera pblica e da qualidade democrtica desta, sobretudo noque respeita s classes mdias baixas e aos excludos e marginalizados que tendem a ser grupos sociaisabrangidos pelas aces do terceiro sector.

    O segundo debate refere-se organizao interna, transparncia e responsabilizao. A variedade dasorganizaes que cabem dentro do terceiro sector enorme. Se algumas dispem de uma organizaoaltamente formalizada, outras so bastante informais; se umas dispem de membros e restringem a suaactividade a eles, outras no tm membros ou, se os tm, no restrigem a eles a sua actividade. A gnese daorganizao tem neste domnio uma importncia crucial. Nos pases centrais importante distinguir asorganizaes que se mantm em actividade desde h muitas dcadas das que surgiram no contexto polticodos anos setenta. As primeiras, em geral, de origem operria e/ou filantrpica, tendem a ser organizaes demembros, com estilos de actuao e de organizao altamente formalizados, enquanto as segundas decorremde reestruturaes recentes da economia global, e restringem a sua aco aos membros, ou so o resultadoda evoluo dos novos movimentos sociais e actuam para alm dos seus membros atravs de estruturas levese descentralizadas e modos de actuao informais.

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    A organizao interna das organizaes varia muito em termos de democracia interna, participao etransparncia. Nos pases perifricos e semiperifricos os padres normativos de organizao sodecisivamente afectados pelas fontes de financimento das suas actividades, quase sempre doadoresestrangeiros, e pelas condies por estes postas quanto orientao, gesto e responsabilizao daactividade das organizaes. Nestes casos, tende a gerar-se um conflito que, pela sua pertincia, podemosdesignar por estrutural, o conflito entre o que poderamos chamar a responsabilizao ascendente e aresponsabilizao descendente. A primeira, a responsabilizao ascendente a prestao de contas e asatisfao das exigncias postas pelos doadores internacionais que, por vezes, so eles prprios organizaesno governamentais. Como a satisfao de tais exigncias normalmente condio da continuao definanciamento, a responsabilizao ascendente converte-se num poderoso factor condicionante dasprioridades e orientao da actuao das organizaes dependentes. A autonomia em relao aos Estadosnacionais muitas vezes obtida custa da dependncia em relao aos doadores estrangeiros.

    A responsabilizao ascendente choca frequentemente com a responsabilizao descendente, ou seja, aconsiderao das aspiraes, prioridades e orientaes dos membros das organizaes ou das populaespor elas servidas perante as quais as organizaes devem igualmente ser responsveis. Sempre que hconflito, as organizaes vem-se na contingncia de buscar compromissos que, ora privilegiam uma, ora

    privilegiam outra das responsabilizaes. Em casos extremos, a sujeio aos doadores aliena a organizaodo seu pblico ou da sua base, e vice-versa, uma prioridade total dada a estes ltimos pode envolver aalienao do doador. Os conflitos de responsabilizao acabam sempre, por uma ou outra via, por condicionara democracia interna, a participao e a transparncia das organizaes.

    Nos pases perifricos a questo da responsabilizao descendente assume uma outra faceta muitoimportante, no directamente vinculada a conflitos com a responsabilizao ascendente. Trata-se dasobreposio das organizaes formais s redes informais de solidariedade e de ajuda mtua quecaracterizam ancestralmente as sociedades rurais. que nestes pases o terceiro sector representa umprincpio da comunidade derivado relativamente artificial e dbil em relao s vivncias, estruturas e prticascomunitrias tradicionais. Nestas condies, fcil criar-se distncia entre as organizaes e as comunidades,

    e, como ela, os recursos das primeiras se transformarem em exerccios de benevolncia repressiva mais oumenos paternalista sobre as segundas. Nos pases centrais os conflitos de responsabilizao tambmexistem, mas surgem por outras vias. A responsabilizao ascendente aqui a responsabilizao perante oEstado, perante a Igreja, perante elites locais que se apropriaram formal ou informalmente das organizaes.

    Quando tais elites provm de sectores religiosos conservadores, como o caso em Portugal de muitasinstituies particulares de solidariedade social, particularmente grande o perigo de a autonomia externa dasorganizaes ser a outra face do autoritarismo interno. Nessas situaes, os direitos dos membros ou daspopulaes beneficiadas transformam-se em benevolncia repressiva, a liberdade, em subverso, e aparticipao, em sujeio. Por estes e outros mecanismos, se as exigncias de democracia interna,participao e transparncia no forem levadas muito a srio, o terceiro sector pode facilmente transformar-se

    numa forma de despotismo descentralizado. A transformao dos membros ou beneficiados das associaesem clientes ou consumidores, sobretudo quando se trata de grupos sociais vulnerveis, no atenua o perigo doautoritarismo e pode at refor-lo.

    O terceiro debate incide sobre os tipos de relaes entre as organizaes do terceiro sectore seu impacto nofortalecimento do sector no seu conjunto. Em geral, o que est em causa a superao do quase-dilema queatravessa o terceiro sector. que sendo os objectivos deste de tipo universalista, pblico ou colectivo, o facto que as interaces cooperativas que instauram so sempre confinadas, quer em termos do sector e dombito da actividade, quer em termos da populao ou base social abrangidas. O estabelecimento de unies,associaes, federaes, confederaes, ou redes entre as organizaes uma forma de compatibilizar avocao universalista com a prtica particularista, maximizando a vocao sem descaracterizar a natureza daaco.

    Tambm este debate tem dois contextos principais, um, nos pases centrais, e outro, nos pases perifricos esemiperifricos. Nos pases centrais, o debate principal incide nos modos de conquistar economias de escala,

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    sobretudo nos sectores que mais directamente competem com o sector capitalista, sem descaracterizar afilosofia de base e a democracia interna, nem eliminar a especificidade prpria de cada uma das organizaese sua base social. Nos pases perifricos e semiperifricos, o debate principal tem incidido nas relaes entreas ONGs destes pases e as ONGs dos pases centrais. Estas relaes so cruciais como referi acima, e namedida em que se pautarem por regras que respeitem a autonomia e a integridade das diferentesorganizaes envolvidas so o cimento com que se constroem as formas de globalizao contra-hegemnica.Chamo globalizao contra-hegemnica a articulao transnacional de movimentos, associaes eorganizaes que defendem interesses e grupos subalternizados ou marginalizados pelo capitalismo global. Aglobalizao contra-hegemnica fundamental para organizar e disseminar estratgias polticas eficazes, criaralternativas ao comrcio livre por via de iniciativas de comrcio justo e garantir o acesso das ONGs dos pasesperifricos ao conhecimento tcnico e s redes polticas onde emergem as polticas hegemnicas que afectamestes pases.

    Estas relaes tm vindo a mudar nos ltimos anos devido a dois factores: por um lado, o facto de a ajudainternacional ter vindo a perder prioridade poltica nos pases centrais, sobretudo a ajuda no de emergncia,vocacionada para objectivos estruturais de investimento social e poltico; por outro lado, o facto de doadoresestatais ou no estatais terem vindo a dispensar a intermediao das ONGs dos seus pases nas suas

    relaes com as ONGs dos pases perifricos (Hulme e Edwards, 1997).

    Os debates a respeito das relaes e redes no interior do terceiro sector, tanto de mbito nacional como dembito internacional, so importantes porque neles se cruzam perspectivas contraditrias que, oratransformam o terceiro sector numa fora de combate e resistncia contra as relaes de poder autoritrias edesiguais que caracterizam o sistema mundial, ora fazem do terceiro sector um instrumento dcil,disfaradamente benevolente, dessas mesmas relaes.

    O quarto e ltimo debate diz respeito s relaes entre o terceiro sector e o Estado nacional, o debate quemais nos interessa no presente contexto. Como j referi, historicamente o terceiro sector emergiu cioso da suaautonomia em relao ao Estado e cultivou uma postura poltica de distanciamento quando no hostilidadeperante o Estado. Nos pases centrais, se, por um lado, a consolidao do Estado-Providncia esvaziou oubloqueou de algum modo as potencialidades de desenvolvimento do terceiro sector, por outro lado, osprocessos democrticos que sustentaram o Estado-Providncia permitiram que o terceiro sector mantivesse asua autonomia, ao mesmo tempo que tornaram possveis relaes de menor distncia e de maior cooperaoentre o Estado e o terceiro sector. Em muitos pases, o terceiro sector, muitas vezes ligado aos sindicatos, foiobjecto de polticas de diferenciao positiva e pde consolidar parcerias significativas com o Estado nodomnio das polticas sociais.

    Nos pases perifricos e semiperifricos, as limitaes do Estado-Providncia, as vicissitudes da democracia quase sempre de baixa intensidade e interrompida por perodos mais ou menos longos de ditadura e osprprios processos que deram origem ao terceiro sector, fizeram com que as relaes entre este e o Estadofossem muito mais instveis e problemticas: da proibio ou forte limitao da actuao das organizaes at

    converso destas em meros apndices ou instrumentos da aco estatal. A questo central a dedeterminar o papel do terceiro sector nas polticas pblicas e, como veremos a seguir, tal depende, tanto doprprio terceiro sector, como do Estado, como ainda do contexto internacional em que um e outro operam, dacultura poltica dominante, e das formas e nveis de mobilizao e de organizao social.

    Tal papel pode limitar-se execuo de polticas pblicas, mas pode tambm envolver a escolha das polticase, em ltima instncia, a formao da prpria agenda poltica (Thomas) e pode ser exercido, tanto por via dacomplementaridade, como por via da confrontao com o Estado. Bebbington e Farrington distinguem trstipos de relaes possveis: o terceiro sector enquanto instrumento do Estado; o terceiro sector enquantoamplificador de programas estatais; o terceiro sector enquanto parceiro nas estruturas de poder e decoordenao. Na ltima dcada, a situao nos pases perifricos tem criado grandes turbulncias nas

    relaes entre o Estado e o terceiro sector. Se verdade que tradicionalmente o problema principal foi o depreservar a autonomia e a integridade das organizaes e o de lutar para que o seu papel no se limitasse execuo das polticas e pudessem ter uma voz na formulao destas, hoje o virtual colapso de alguns pases

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    faz com que o problema se tenha invertido e seja agora o de preservar a autonomia e mesmo a soberania doEstado face s ONGs transnacionais, e o de garantir a participao do Estado, no s na execuo, comotambm na prpria formulao das polticas sociais adoptadas pelas organizaes e agncias no seu territrio.

    Daqui decorre que as relaes entre o Estado e o terceiro sector, alm de variarem muito dentro do sistemamundial, so complexas e instveis. Esta verificao importante quando indagamos sobre a participao do

    terceiro sector na reforma do Estado, o que passamos a fazer.

    A Reforma do Estado e o Terceiro Sector

    Como referi atrs, a segunda fase da reforma do Estado, em que nos encontramos, uma fase muitocomplexa e conflitual. Sob a mesma designao, reinveno do Estado, acolhem-se duas concepesdiametralmente opostas que designarei por Estado-empresrio e Estado-novssimo-movimento-social.

    A primeira concepo, Estado-empresrio, tem muitas afinidades com a filosofia poltica que dominou aprimeira fase da reforma do Estado, a fase do Estado irreformvel e traduz-se em duas recomendaesbsicas: privatizar todas as funes que o Estado no tem de desempenhar com exclusividade; submeter aadministrao pblica a critrios de eficincia, eficcia, criatividade, competitividade e servio aosconsumidores prprios do mundo empresarial. A filosofia poltica que lhe subjaz consiste na busca de umanova e mais ntima articulao entre o princpio do Estado e o princpio do mercado sob a gide deste ltimo. Aformulao mais conhecida e meditica desta concepo o livroReinventing Government de David Osbornee Ted Gaebler, publicado em 1992, que serviu de base reforma da administrao pblica da AdministraoClinton apresentada pelo Vice-Presidente Al Gore no Gore Report de 1993. Esta mesma concepo, comalguns matizes, subjaz as propostas de reforma do Estado avanadas pelo Banco Mundial nos ltimos anos.

    A segunda concepo, o Estado-novssimo-movimento-social assenta na ideia de que perante a hubrisavassaladora do princpio do mercado, nem o princpio do Estado, nem o princpio da comunidade podem

    isoladamente garantir a sustentabilidade de interdependncias no mercantis, sem as quais a vida emsociedade se converte numa forma de fascismo societal. Prope assim uma articulao privilegiada entre osprincpios do Estado e da comunidade sob a gide deste ltimo. Ao contrrio da primeira concepo, queexplora os isomorfismos entre o mercado e o Estado, esta concepo explora os isomorfismos entre acomunidade e o Estado.

    Pode causar estranheza conceber o Estado como o novssimo movimento social. Quero, com isto, significarque as transformaes por que est a passar o Estado tornam obsoletas, tanto a teoria liberal, como a teoriamarxista do Estado e a tal ponto que, transitoriamente pelo menos, o Estado pode ser mais adequadamenteanalisado a partir de perspectivas tericas que antes foram utilizadas para analisar os processos de resistnciaou de autonomia em relao ao Estado. A pretensa inevitabilidade dos imperativos neo-liberais tem vindo a

    afectar de modo irreversvel o mbito e a forma do poder de regulao social do Estado. No se trata de umregresso ao passado uma vez que a desestabilizao da regulao social ps-liberal s pode ser levada acabo por um Estado ps-liberal. Por via dela, cria-se o anti-Estado dentro do prprio Estado. Em verdade,trata-se menos de desestabilizar a regulao social do que de despolitizar o Estado. Do meu ponto de vista,estas transformaes so to profundas que, sob a mesma designao de Estado, est a emergir uma novaforma de organizao poltica mais vasta que o Estado, de que o Estado o articulador e que integra umconjunto hbrido de fluxos, redes e organizaes em que se combinam e interpenetram elementos estatais eno estatais, nacionais, locais e globais. Esta nova organizao poltica no tem centro e a coordenao doEstado funciona como imaginao do centro. A regulao social que emerge desta nova forma poltica muitomais ampla e frrea que a regulao protagonizada pelo Estado no perodo anterior, mas como tambmmuito mais fragmentada e heterognea, quer quanto s suas fontes, quer quanto sua lgica, facilmentedissimulada como desregulao social. Alis, boa parte da nova regulao social ocorre por subcontrataopoltica com diferentes grupos e agentes em competio, veiculando diferentes concepes dos bens pblicose do interesse geral.

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    Neste novo marco poltico, o Estado torna-se ele prprio uma relao poltica parcelar e fracturada, poucocoerente, do ponto de vista institucional e burocrtico, campo de uma luta poltica menos codificada e reguladaque a luta poltica convencional. Esta descentrao do Estado significa menos o enfraquecimento do Estadodo que a mudana da qualidade da sua fora. Se certo que o Estado perde o controle da regulao social,ganha o controle da meta-regulao, ou seja, da seleco, coordenao, hierarquizao e regulao dosagentes no estatais que, por subcontratao poltica, adquirem concesses de poder estatal. A natureza, operfil e a orientao poltica do controle da meta-regulao so agora os objectos principais da luta poltica, aqual ocorre num espao pblico muito mais amplo que o espao pblico estatal, um espao pblico no estatalde que o Estado apenas um componente ainda que um componente privilegiado. As lutas pelademocratizao deste espao pblico tm assim um duplo objectivo: a democratizao da meta-regulao e ademocratizao interna dos agentes no estatais de regulao. Nesta nova configurao poltica, a mscaraliberal do Estado como portador do interesse geral cai definitivamente. O Estado um interesse sectorial suigeneris cuja especificidade consiste em assegurar as regras do jogo entre interesses sectoriais. Enquantosujeito poltico, o Estado passa a caracterizar-se mais pela sua emergncia do que pela sua coerncia. Da oser adequado conceb-lo como novssimo movimento social.

    Esta concepo traduz-se nas seguintes proposies fundamentais: (1) Os conflitos de interesse corporativos

    que configuram o espao pblico, quer do Estado de Bem Estar, quer do Estado desenvolvimentista, so hojeliliputianos quando comparados com os conflitos entre os interesses sectoriais que competem agora pelaconquista do espao pblico no estatal. O mbito destes extravasa do espao-tempo nacional, asdesigualdades entre eles so enormes e as regras do jogo esto em constante turbulncia;

    (2) A descentrao do Estado na regulao social neutralizou as virtualidades distributivas dademocracia representativa e com isso esta passou a poder coexistir, mais ou menospacificamente, com formas de sociabilidade fascista que simultaneamente agravam as condiesde vida da maioria e trivializam o agravamento em nome de imperativos transnacionais;

    (3) Nestas condies, o regime poltico democrtico, porque confinado ao Estado, deixou de podergarantir a democraticidade das relaes polticas no espao pblico no estatal. A luta anti-fascista passa assim a ser parte integrante do combate poltico no Estado democrtico, o que s possvel mediante a articulao entre democracia representativa e democracia participativa;

    (4) Nas novas condies, a luta anti-fascista consiste na estabilizao mnima das expectativas dasclasses populares que o Estado deixou de poder garantir ao perder o controle da regulaosocial. Tal estabilizao exige uma nova articulao entre o princpio do Estado e o princpio dacomunidade que potencie os isomorfismos entre eles.

    nesta articulao que o terceiro sector emerge com uma potencial fora anti-fascista no espao pblico noestatal. Seria, no entanto, inadequado pensar que o terceiro sector, s por si, se transforme por esta via numagente de reforma democrtica do Estado. Pelo contrrio, entregue a si prprio, o terceiro sector pode

    contemporizar facilmente, quer com o autoritarismo do Estado, quer com o autoritarismo do mercado. Mais, naausncia de uma aco poltica democrtica, incidindo simultaneamente sobre o Estado e o terceiro sector,pode facilmente passar por transio democrtica o que no mais do que a passagem de um autoritarismocentralizado para um autoritarismo descentralizado.

    S uma reforma simultnea do Estado e do terceiro sector, por via de articulao entre democraciarepresentativa e democracia participativa, pode garantir a eficcia do potencial democratizante de cada umdeles face aos fascismos pluralistas que se pretendem apropriar do espao pblico no estatal. S assim osisomorfismos normativos entre o Estado e o terceiro sector tais como a cooperao, a solidariedade, ademocracia, a prioridade das pessoas sobre o capital podero ser credibilizados politicamente.

    O que h de novo na situao actual que a fragilizao da obrigao poltica vertical entre Estado e cidado

    faz com que ela no possa garantir s por si a realizao destes valores, a qual, embora sempre precrios nassociedades capitalistas, foi, no entanto, suficiente para garantir a legitimidade mnima do Estado. Portanto, aocontrrio do que aconteceu com o Estado-Providncia, a obrigao poltica vertical, para se sustentar

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    politicamente, no pode dispensar o concurso da obrigao poltica horizontal que subjaz ao princpio dacomunidade. Mas, por outro lado, embora a obrigao poltica horizontal se reconhea em valoressemelhantes ou isomrficos aos da obrigao poltica vertical, faz assent-los, ao contrrio desta ltima, nono conceito de cidadania e antes no conceito de comunidade. Ora, as mesmas condies que fragilizam oprimeiro e a obrigao poltica que o sustenta fragilizam igualmente o segundo. De facto, a pujanaavassaladora do princpio do mercado impulsionada pelo capitalismo global pe em perigo todas asinterdependncias no mercantis, sejam elas geradas no contexto da cidadania ou no contexto dacomunidade. Por isso, para lhes fazer frente necessrio uma nova congruncia entre cidadania ecomunidade. a que reside a reinveno solidria e participativa do Estado.

    Este projecto poltico assenta numa dupla tarefa: refundar democraticamente a administrao pblica; refundardemocraticamente o terceiro sector. Farei a seguir algumas breves referncias a cada uma delas.

    A refundao democrtica da administrao pblicaest nos antpodas da proposta do Estado-empresrio,nomeadamente na formulao que lhe foi dada por Osborne e Gaebler (1992). Como um dos mitos principaisda cultura poltica americana o Estado ser um obstculo economia, no surpreende que as propostas doEstado-empresrio, aparentemente destinadas a revigorar a administrao pblica, tenham redundado num

    ataque global a esta, fragilizando ainda mais a sua legitimidade na sociedade americana. A noo de empresaocupa hoje uma posio hegemnica no discurso contemporneo sobre a reforma organizacional (du Gay,1996: 155) e, de par com ela, a noo de contratualizao das relaes institucionais. No restam dvidas quea reconceptualizao do governo e do servio pblicos em termos de formas empresariais envolve areimaginao do social como uma forma do econmico (Gordon, 1991: 42-5 in du Gay, 1996: 156).

    Assim, para Osborne e Gaebler, o governo deve ser uma empresa que promove a concorrncia entre osservios pblicos; centrado em objectivos e resultados mais do que na obedincia a regras, deve preocupar-semais em obter recursos do que em gast-los; deve transformar os cidados em consumidores,descentralizando o poder segundo mecanismos de mercado em vez de mecanismos burocrticos (du Gay,1996: 160). O modelo burocrtico considerado inadequado na era da informao, do mercado global, daeconomia baseada no conhecimento, e , alm disso, demasiado lento e impessoal no cumprimento dos seusobjectivos.

    A crtica da burocracia no nasceu com a proposta do Estado-empresrio e h-de certamente subsistir depoisdesta ter deixado a ribalta. O que h de especfico na crtica actual a recusa em reconhecer que muitos dosdefeitos da burocracia resultaram de decises que visavam atingir objectivos polticos democrticos, tais comoa neutralizaode poderes fcticos, a equidade, a probidade, e a previsibilidade das decises e dos decisores,a acessibilidade e a independncia dos servios, etc., etc. O no reconhecimento destes objectivos dispensa acrtica de se posicionar perante eles e, consequentemente, de investigar a capacidade da gesto empresarialpara os realizar Nestas condies, a crtica da burocracia, em vez de incidir na anlise dos mecanismos quedesviaram a administrao pblica desses objectivos, corre o risco de transformar estes ltimos em custos detransaco que preciso minimizar ou mesmo eliminar em nome da eficincia, arvorada em critrio ltimo ou

    nico de gesto do Estado.

    Ficam assim por responder questes que, do ponto de vista da concepo que aqui perfilho, so fundamentais:como compatibilizar eficincia com equidade e democracia? Como garantir a independncia de funcionriosquando a qualidade do seu desempenho depende exclusivamente da avaliao dos consumidores dos seusservios? Como neutralizar as diferenas de poder entre consumidores? Qual a sorte dos consumidoresinsolventes ou daqueles que no tm poder para se defenderem de maus desempenhos burocrticos? Quaisos limites concorrncia entre servios pblicos? Onde que a luta pelos resultados se transforma em novasformas de privatizao do Estado quando no de corrupo? Como que, em clima de instabilidadediscricionaridade e concorrncia, possvel estabilizar as expectativas dos cidados a respeito de cada umdos quatro bens pblicos legitimidade poltica, bem estar social, segurana e identidade cultural?

    para responder a estas questes que se formula o objectivo da refundao democrtica da administraopblica. O papel do terceiro sector na prossecuo deste objectivo crucial, mas, ao contrrio do que podeparecer, a nova articulao entre o Estado e o terceiro sector no implica necessariamente a

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    complementaridade entre um e outro e, muito menos, a substituio de um pelo outro. Dependendo docontexto poltico, essa articulao pode consistir mesmo na confrontao ou oposio. Uma das ilustraesmais recentes e elucidativas a luta que as Organizaes no Governamentais do Qunia tm vindo a travardesde 1990 contra o Governo Queniano apostado em promulgar legislao no sentido de sujeitar a actividadedas ONGs ao controle poltico do Estado. Unidas em rede e com o apoio dos pases doadores e de ONGstransnacionais, obrigaram o Estado Queniano a sucessivas revises da lei, abrindo novos espaos para aactuao autnoma das ONGs, o que, no contexto poltico do Qunia, significa novos espaos de exercciodemocrtico. Mas a articulao por via da confrontao no tem de limitar-se aos casos de Estadosautoritrios, no democrticos. Mesmo nos Estados democrticos, a confrontao, sobretudo quando visaforar a abertura de espaos de democracia participativa em situaes de democracia representativa de baixaintensidade, pode ser a forma mais eficaz de o terceiro sector contribuir para a reforma solidria e participativado Estado.

    A complementaridade entre o terceiro sector e o Estado nos pases democrticos a outra grande via decriao de um espao pblico no estatal. Para isso, no entanto, necessrio distinguir entrecomplementaridade e substituio. A substituio assenta na distino entre funes exclusivas e funes noexclusivas do Estado que, por vezes, se designam por funes sociais do Estado. Por detrs desta distino

    est a ideia de que, sempre que o Estado no demonstre ter uma vantagem comparativa, deve ser substitudono exerccio das funes no exclusivas por instituies privadas mercantis ou do terceiro sector. Estadistino altamente problemtica, sobretudo porque a anlise da gnese do Estado moderno revela quenenhuma das funes do Estado foi originariamente exclusiva dele; a exclusividade do exerccio de funes foisempre o resultado de uma luta poltica. No havendo funes essencialmente exclusivas no h, porimplicao, funes essencialmente no exclusivas.

    Em vez desta distino prefervel partir dos quatro bens pblicos que tenho vindo a mencionar alegitimidade, o bem estar, a segurana e a identidade e investigar que tipo de articulaes entre o Estado eo terceiro sector, que novas constelaes polticas hbridas podem ser construdas em cada um deles. Ascondies divergem segundo os bens pblicos, mas em nenhum deles a complementaridade ou a

    confrontao pode redundar em substituio, uma vez que s o princpio do Estado pode garantir um pactopoltico de incluso assente na cidadania. Do ponto de vista da nova teoria democrtica, to importantereconhecer os limites do Estado na sustentao efectiva deste pacto como a sua insubstitubilidade na definiodas regras de jogo e da lgica poltica que o deve informar. Na busca de uma articulao virtuosa entre algica da reciprocidade prpria do princpio da comunidade e a lgica da cidadania prpria do princpio doEstado desenham-se os caminhos de uma poltica progressista neste fim de sculo. O Estado-novssimo-movimento-social o fundamento e a orientao de uma luta poltica que visa transformar a cidadaniaabstracta, facilmente falsificvel e inconsequente, num exerccio de reciprocidade concreta.

    Mas para que tal luta tenha alguma possibilidade de xito necessrio que a tarefa da refundao democrticada administrao pblica seja complementada pela tarefa da refundao democrtica do terceiro sector. A

    reviso breve dos debates principais sobre o terceiro sector, feita acima, reveladora de que o terceiro sectorest sujeito aos mesmos vcios que ultimamente tm sido atribudos ao Estado e cuja superao esperada doterceiro sector. O primeiro debate, sobre a localizao estrutural do terceiro sector, mostrou como exigente abusca da genuinidade dos objectivos e grande a tentao de promiscuidade, quer com o Estado, quer com omercado. O segundo debate, sobre a organizao interna, democraticidade e responsabilizao, mostroucomo fcil descaracterizar a participao, transformando-as em formas mais ou menos benevolentes depaternalismo e de autoritarismo. O terceiro debate, sobre as relaes entre as organizaes do terceiro sector,mostrou como exigente a tarefa de realizar uma coerncia mnima entre o universalismo dos objectivos e asescalas de aco e de organizao. E, finalmente, o quarto debate, sobre as relaes entre o terceiro sector eo Estado, mostrou que a potenciao da democracia, da solidariedade e da participao, que buscamos nanova articulao entre o princpio da comunidade e o princpio do Estado, apenas um entre outros e nem

    sequer o mais bvio resultado dessas relaes. Pelo contrrio, abundam experincias de promiscuidade anti-democrtica entre o Estado e o terceiro sector, em que o autoritarismo centralizado do Estado se apoia noautoritarismo descentralizado do terceiro sector e cada um deles usa o outro como alibi para se

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    desresponsabilizar perante os seus respectivos constituintes, os cidados no caso do Estado, os membros ouas comunidades no caso do terceiro sector.

    Sem uma profunda democratizao do terceiro sector ser um logro confiar a ele a tarefa da democratizaodo Estado e, mais em geral, do espao pblico no estatal. Alis, em muitos pases, a democratizao doterceiro sector ter de ser um acto originrio j que o terceiro sector, tal como aqui o definimos, no existe nem

    pode presumir-se que surja espontaneamente. Nestas situaes, ser o prprio Estado a ter de tomar ainiciativa de promover a criao do terceiro sector por via de polticas de diferenciao positiva em relao aosector privado capitalista. O perfil destas polticas um indicador seguro da natureza democrtica ouclientelista dos pactos polticos entre o princpio da comunidade e o princpio do Estado que se pretendemconstituir.

    Parece, pois, poder concluir-se que o isomorfismo entre os valores que subjazem a estes dois princpios acooperao, a solidariedade, a participao, a democracia e a prioridade de distribuio sobre a acumulao no um dado de partida, mas antes o resultado de uma luta poltica democrtica exigente que s ter xitona medida em que for capaz de denunciar os projectos de fascismo social que subrepticiamente se infiltram eescondem no seu seio.