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Cena do filme Bom dia, meu nome é Sheila, que retrata a profissão de operador de telemarketing São Paulo, de 8 a 14 de julho de 2010 www.brasildefato.com.br Ano 8 • Número 384 Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 ISSN 1978-5134 Descaso do poder público agrav a situação das vítimas no Nordest e As chuvas que provocaram enchentes em Alagoas e Pernambuco não são uma exclusividade desta temporada. Elas ocorrem todos os anos, ainda que, neste, as consequências tenham sido mais graves. Os desastres são sempre acompanhados de promessas dos governantes de fazer investimentos para que a população não seja mais atingida. Entretanto, os projetos implementados raramente conformam reformas estruturantes que resolvam o problema dos atingidos. Um exemplo é o projeto dos governos federal e alagoano de construção de moradias na Lagoa Mundaú, em Maceió (AL). A oferta não acompanha o crescimento demográfico da região e habitações que estavam quase prontas, com beneficiários definidos, foram ocupadas por vítimas das enchentes. Págs. 4 e 5 As críticas que foram feitas à recomendação do 3º Pro- grama Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) de que, antes das reintegrações de posse, ocorressem audiências coletivas com os envolvidos, escondem um fundo ideoló- gico. A proposta foi retirada após pressão de setores conservadores que confiam no comprometimento incon- dicional do Poder Judiciário com a defesa da propriedade. Esse é o tema da quarta e úl- tima reportagem da série pu- blicada pelo Brasil de Fato sobre recuos do governo federal em pontos chave do PNDH-3. Pág. 7 PNDH: repulsa à audiência pública tem fim ideológico Antônio Cruz/Abr Como forma de impe- dir a privatização da água sugeridas por transnacio- nais, os camponeses no Haiti têm trocado expe- riências, sobretudo com movimentos sociais como a Via Campesina, acerca de um modelo solidário de captação de chuva por meio de cisternas espe- ciais que armazenam até 8 mil litros. Pág. 11 A disputa pela água no Haiti pós-terremoto Um ano após a deposição de Manuel Zelaya em Honduras, a situação política instável do país reflete negativamente na economia. Mais de 1,2 milhão dos cerca de 8 milhões de hondurenhos não têm emprego e um terço da população vive com menos de um dólar por dia. Pág. 9 No pós-golpe, economia de Honduras definha Em artigo, o economista Mark Weisbrot analisa as diferenças entre as situações econômicas de Venezuela e Grécia. Para ele, o país sul-americano não está em crise; apenas sofre as consequências de algumas políticas macroeconômicas equivocadas do governo. Pág. 11 Na Venezuela, a crise inventada pela imprensa À medida que o tem- po passa e a situação no Quirguistão torna-se mais desesperadora para os re- fugiados, o mito de que o conflito seja meramente ét- nico cai por terra, ao menos parcialmente, depois de uma análise sobre suas ori- gens. A jornalista uzbeque Ekaterina Golubina acredi- ta que “ainda que haja, de fato, um embate maior en- tre membros das etnias uz- beque e quirguiz na região, é provável que o conflito se trate de uma luta por poder entre a elite deposta e a nascente”. Pág. 12 No Quirguistão, motivações dos enfrentamentos não são étnicas A categoria do operador de telemarketing é odiada por boa parte das pessoas. Mas o que poucos sabem é que essa profissão revela indícios diversos de explora- ção do trabalho. “O trabalho é muito isolado. O tempo para refeição e para ir ao ba- nheiro é muito pequeno. E há a inexistência de tradição sindical”, afirma Ricardo Antunes, um dos organiza- dores do livro Infoproletá- rios – Degradação real do trabalho virtual. Pág. 3 O lado real do trabalhador em serviços de telemarketing Reprodução Estragos causados pela enchente do Rio Mundaú no município de Branquinha, em Alagoas Alfonso Ocando/Prensa Miraflores

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Uma visão popular do Brasil e do mundo São Paulo, de 8 a 14 de julho de 2010 www.brasildefato.com.brAno8•Número384 As chuvas que provocaram enchentes em Alagoas e Pernambuco não são uma exclusividade desta temporada. Elas ocorrem todos os anos, ainda que, neste, as consequências tenham sido mais graves. Os desastres são sempre acompanhados de promessas dos governantes de fazer investimentos para que a população não seja mais atingida. Entretanto, os projetos implementados raramente

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Cena do fi lme Bom dia, meu nome é Sheila, que retrata a profi ssão de operador de telemarketing

São Paulo, de 8 a 14 de julho de 2010 www.brasildefato.com.brAno 8 • Número 384

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

ISSN 1978-5134

Descaso do poder público agravasituação das vítimas no NordesteAs chuvas que provocaram enchentes em Alagoas e

Pernambuco não são uma exclusividade desta temporada.

Elas ocorrem todos os anos, ainda que, neste, as

consequências tenham sido mais graves. Os desastres são

sempre acompanhados de promessas dos governantes de

fazer investimentos para que a população não seja mais

atingida. Entretanto, os projetos implementados raramente

conformam reformas estruturantes que resolvam o

problema dos atingidos. Um exemplo é o projeto dos

governos federal e alagoano de construção de moradias na

Lagoa Mundaú, em Maceió (AL). A oferta não acompanha

o crescimento demográfico da região e habitações que

estavam quase prontas, com beneficiários definidos, foram

ocupadas por vítimas das enchentes. Págs. 4 e 5

As críticas que foram feitas à recomendação do 3º Pro-grama Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) de que, antes das reintegrações de posse, ocorressem audiências coletivas com os envolvidos, escondem um fundo ideoló-gico. A proposta foi retirada após pressão de setores conservadores que confiam no comprometimento incon-dicional do Poder Judiciário com a defesa da propriedade. Esse é o tema da quarta e úl-tima reportagem da série pu-blicada pelo Brasil de Fato sobre recuos do governo federal em pontos chave do PNDH-3. Pág. 7

PNDH: repulsaà audiênciapública temfi m ideológico

Antônio Cruz/Abr

Como forma de impe-dir a privatização da água sugeridas por transnacio-nais, os camponeses no Haiti têm trocado expe-riências, sobretudo com movimentos sociais como a Via Campesina, acerca de um modelo solidário de captação de chuva por meio de cisternas espe-ciais que armazenam até 8 mil litros. Pág. 11

A disputa pelaágua no Haitipós-terremoto

Um ano após a deposição de Manuel Zelaya em Honduras, a situação política instável do país reflete negativamente na economia. Mais de 1,2 milhão dos cerca de 8 milhões de hondurenhos não têm emprego e um terço da população vive com menos de um dólar por dia. Pág. 9

No pós-golpe,economia de Honduras defi nha

Em artigo, o economista Mark Weisbrot analisa as diferenças entre as situações

econômicas de Venezuela e Grécia. Para ele, o país sul-americano não está

em crise; apenas sofre as consequências de algumas políticas macroeconômicas

equivocadas do governo. Pág. 11

Na Venezuela, a crise inventada

pela imprensa

À medida que o tem-po passa e a situação no Quirguistão torna-se mais desesperadora para os re-fugiados, o mito de que o conflito seja meramente ét-nico cai por terra, ao menos parcialmente, depois de uma análise sobre suas ori-gens. A jornalista uzbeque Ekaterina Golubina acredi-ta que “ainda que haja, de fato, um embate maior en-tre membros das etnias uz-beque e quirguiz na região, é provável que o conflito se trate de uma luta por poder entre a elite deposta e a nascente”. Pág. 12

No Quirguistão,motivações dosenfrentamentosnão são étnicas

A categoria do operador de telemarketing é odiada por boa parte das pessoas. Mas o que poucos sabem é que essa profissão revela indícios diversos de explora-ção do trabalho. “O trabalho é muito isolado. O tempo para refeição e para ir ao ba-nheiro é muito pequeno. E há a inexistência de tradição sindical”, afirma Ricardo Antunes, um dos organiza-dores do livro Infoproletá-rios – Degradação real do trabalho virtual. Pág. 3

O lado real dotrabalhador emserviços detelemarketing

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Copa do Mundo, esquerda dividida e direita sedenta

COMO UM iceberg a navegar em águas quentes e turbulentas, a velha mídia está derretendo. O mundo está mudando, o Brasil é outro e os brasileiros desenvolvem, aceleradamente, novos hábitos de informação.

Um retrato desse processo po-de ser visto na recente pesquisa encomendada pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom-P.R.), destinada a descobrir o que o brasileiro lê, ouve, vê e como analisa os fatos e forma sua opinião.

A pesquisa revelou as dimensões que o iceberg ainda preserva. A televisão e o radio permanecem como os meios de comunicação mais comuns aos brasileiros. A TV é assistida por 96,6% da população brasileira, e o rádio, por expres-sivos 80,3%. Os jornais e revistas fi cam bem atrás. Cerca de 46% costumam ler jornais, e menos de 35%, revistas. Perto de apenas 11,5% são leitores diários dos jor-nais tradicionais.

Quanto à internet, os resultados, da forma como estão apresentados, preferiram escolher o lado cheio do copo. Avalia-se que a internet no Brasil segue a tendência de cresci-mento mundial e já é utilizada por 46,1% da população brasileira. No entanto, é preciso uma avaliação sobre o lado vazio do copo, ou se-ja, a constatação de que os 53,9% de pessoas que não têm qualquer acesso à internet ainda revelam um quadro de exclusão digital que precisa ser superado. Ponto para o Programa Nacional da Banda Lar-ga, que representa a chance de uma mudança estrutural e defi nitiva na forma como os brasileiros se infor-mam e comunicam-se.

A internet tem devorado a TV e o rádio com grande apetite. Os conectados já gastam, em média, mais tempo navegando do que em frente à TV ou ao rádio. Esse avan-ço relaciona-se não apenas a um novo hábito, mas ao crescimento da renda nacional e à incorporação de contingentes populacionais pobres à classe média, que passaram a ter condições de adquirir um computa-dor conectado.

O processo em curso não levará ao desaparecimento da TV, do rádio e da mídia impressa. O que está ha-vendo é que as velhas mídias estão sendo canibalizadas pela internet, que tornou-se a mídia das mídias, uma plataforma capaz de integrar os mais diversos meios e oferecer ao público alternativas fl exíveis e novas opções de entretenimento, comunicação pessoal e “autoco-municação de massa”, como diz o espanhol Manuel Castells.

Ainda usando a analogia do ice-berg, a internet tem o poder de di-luir, para engolir, a velha mídia.

A pesquisa da Secom-P.R. dá uma boa pista sobre o grande sucesso das plataformas eletrôni-cas das redes sociais. A formação de opinião entre os brasileiros se dá, em grande medida, na in-terlocução com amigos (70,9%), família (57,7%), colegas de traba-lho (27,3%) e de escola (6,9%), o namorado ou namorada (2,5%), a igreja (1,9%), os movimentos so-ciais (1,8%) e os sindicatos (0,8%). Alerta para movimentos sociais, sindicatos e igrejas: seu “sex appe-al” anda mais baixo que o das (os) namoradas (os).

Estes números confi rmam es-tudos de longa data que afi rmam que as redes sociais infl uem mais na formação da opinião do que os meios de comunicação. Por isso, uma informação muitas vezes bombardeada pela mídia demora a cair nas graças ou desgraças da opinião pública: ela depende do fi ltro exercido pela rede de rela-ções sociais que envolve a vida de qualquer pessoa. Explica também por que algo que a imprensa bom-bardeia como negativo pode ser visto pela maioria como positivo. A alta popularidade do governo Lula, diante do longo e pesado cerco mi-diático, talvez seja o exemplo mais retumbante.

Em suma, o povo não engole tudo o que se despeja sobre ele: mastiga, deglute, digere e muitas vezes cospe conteúdos que não se encaixam em seus valores, sua percepção da realidade e diante de informações que ele consegue por meios próprios e muito mais confi áveis.

É aqui que mora o perigo para a velha mídia. Sua credibilidade está descendo ladeira abaixo. Segundo a citada pesquisa, quase 60% das pessoas acham que as

notícias veiculadas pela imprensa são tendenciosas.

Um dado ainda mais grave: 8 em cada 10 brasileiros acreditam muito pouco ou não acreditam no que a imprensa veicula. Quanto maior o nível de renda e de escolaridade do brasileiro (que é o rumo da atual trajetória do país), maior o senso crítico em relação ao que a mídia veicula - ou “inocula”.

A velha mídia está se tornando cada vez mais salgada para o povo. Em dois sentidos: ela pode estar exagerando em conteúdos cada vez mais difíceis de engolir, e as pesso-as estão cada vez menos dispostas a comprar conteúdos que podem conseguir de graça, de forma mais simples, e por canais diretos, mais interativos, confi áveis, simpáticos e prazerosos. Num momento em que tudo o que parece sólido se desmancha... na água, quem qui-ser sobreviver vai ter que trocar as lições de moral pelas explicações didáticas; vai ter que demitir os pit bulls e contratar mais explicado-res, humoristas e chargistas. Terá que abandonar o cargo, em que se autoempossou, de superego da Re-pública.

Do contrário, obstinados na defe-sa de seus próprios interesses e na descarga ideológica coletiva de suas raivas particulares, alguns dos mais tradicionais veículos de comuni-cação serão vítimas de seu próprio veneno. Ao exagerarem no sal, apenas contribuirão para acelerar o processo de derretimento do im-pávido colosso iceberg que já não está em terra fi rme. (Carta Maior: www.cartamaior.com.br)

Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica

Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política.

debate Antonio Lassance

A velha mídia está derretendocrônica Luiz Ricardo Leitão

ANO DE COPA do Mundo é também ano de eleições em nosso país. São dis-putas que mobilizam o povo, carregam expectativas e sonhos, porque tocam a vida dos milhões de brasileiros. No campeonato de seleções de futebol, os brasileiros fazem verdadeiro mutirão passivo para torcer pelo Brasil. Já as eleições, normalmente ensejam enga-jamento, mobilização e uma tomada de posição ativa. Enquanto o resul-tado da primeira pode nos alegrar ou entristecer, as eleições podem mudar a vida da população para melhor ou para pior. Além disso, desde a rede-mocratização, é a primeira vez que Luiz Inácio Lula da Silva não será can-didato. A partir de 1989, a eleição de Lula foi fator de unidade da esquerda, sobretudo antes de 2002.

Unidade da diretaBoas análises de setores populares

sobre as forças da esquerda podem deixar de lado a conjuntura do campo inimigo, das forças anti-populares, do grande capital e do imperialismo. Por exemplo, a direita está unifi cada na candidatura do tucano José Serra e se prepara para as eleições. A ação de Aécio Neves, que criou uma fi ssura com Serra, aponta que o mineiro al-meja o Planalto para 2014 e constrói a sua caminhada.

A candidatura de Serra ruma com passos tortuosos e atrapalhados e, apesar disso, a direita neoliberal, ali-nhada ao imperialismo capitaneado

pelos Estados Unidos, quer voltar ao Planalto. Por isso, vão lutar até o fi m e lançarão mão do que existe de pior na política brasileira. O orçamento “ofi -cial” é assustador: R$ 180 milhões.

Fragmentação da esquerdaEmbora em um momento delicado

– em que os setores populares apre-sentam diversas candidaturas – não resta dúvidas quanto ao necessário enfrentamento ao que representa a campanha tucana. Por mais que as três candidaturas mais bem posicio-nadas nas pesquisas, Dilma, Serra e Marina, sejam semelhantes na medida em que não enfrentam os problemas estruturais do país com medidas que coloquem limites ao avanço do grande capital, não há que se duvidar do grau de retrocesso que representa a vitória do PSDB.

Copa do MundoA Copa do Mundo 2010 acaba para

o Brasil. A seleção brasileira comanda-da pelo Dunga se despediu da África do Sul ao ser derrotada pela Holanda. É verdade que muitas são as lições a serem tiradas dessa eliminação e de

todo o processo dos que comandam o futebol brasileiro. Na derrota, cabe, inclusive, uma boa análise de todo es-se ufanismo da chamada grande mídia e das grandes empresas nacionais e transnacionais que lucram com esse evento, considerado o maior espetácu-lo mundial do futebol. Assim, durante quase um mês, o Brasil viveu apenas do “planeta bola”.

Na derrota brasileira, somada com os fi ascos de França, Itália e Inglater-ra, seria maravilhoso se a opinião pú-blica mundial atentasse para o poder onipotente das federações nacionais de futebol e da própria Federação Internacional de Futebol (Fifa), uma verdadeira máfi a que impõe exigên-cias aos governos nacionais e não se submete a nenhum mecanismo de-mocrático de fi scalização e controle público.

Em 2014, o próximo Mundial da Fi-fa será realizado no Brasil. Essa máfi a está preparada, em conluio com a má-fi a nacional (leia-se CBF), para sugar daqui uma gigantesca soma de riqueza produzida pelo povo brasileiro. Como condição, imporão a necessidade de construir novos estádios e uma infra-

estrutura de transportes e hospeda-gens desassociadas das necessidades da população – criando verdadeiros elefantes brancos. Ainda, exigem isen-ções fi scais paras os patrocinadores, aumentando os lucros das transna-cionais, às custas do povo brasileiro. Ambiente propício para proliferar a corrupção.

O fato é que, agora, esperamos que o país se volte para sua realidade, que está muito além apenas do futebol e da Copa do Mundo. Ou seja, passada a Copa, é hora do país encarar seus gra-ves problemas.

Este ano teremos eleições para car-gos importantíssimos em nosso país, como o de presidente da República, o Congresso Nacional, governos es-taduais e Assembleias Legislativas. Sinalizamos, com essas eleições, o percurso que queremos percorrer para construir o futuro do nosso país. As eleições são importantes. Mas não são determinantes. Nenhum eleitor estará dando um cheque em branco ao seu candidato. Ao contrário, caberá ao eleitor exigir dos seus representantes eleitos o cumprimento das promessas feitas nos períodos eleitorais. Isso

somente será possível com um maior nível de conscientização política, or-ganização e lutas populares. Caso con-trário, prevalecerá, sempre, o poder do capital.

Desafi osPrecisamos estar atentos à este pro-

cesso eleitoral. Mesmo que no atual processo eleitoral não exista realmen-te disputa de projetos e que os verda-deiros problemas do povo não entrem na pauta dos principais candidatos. A ausência desses debates se deve, em grande parte, à mídia burguesa que é partidária e esforça-se para esca-motear as causas dos problemas que afetam o povo brasileiro. Mais do que isso, buscam criminalizar as organiza-ções populares, os movimentos sociais e todos os que se contrapõem aos seus interesses e objetivos.

Há, nesse país, desde a eleição de Lula, em 2002, uma complexidade política ainda indecifrável para as forças de esquerda e progressistas. A evidência maior dessa realidade é exatamente a fragmentação com que a esquerda enfrentará a próxima eleição. Isso, somente será superado num próximo ascenso das lutas so-ciais. Portanto, caberá aos movimen-tos sociais continuar trabalhando na formação política, na organização de base e na mobilização popular. Somente assim, asseguraremos con-quistas signifi cativas e duradouras ao povo brasileiro.

de 8 a 14 de julho de 20102

editorial

Gama

Lições (quase) defi nitivas da ÁfricaEMBORA A COPA 2010 ainda esteja às vésperas da sua final, o badalado torneio terá sido, sem dúvida, tão ou mais interessante fora das quatro linhas do que lá dentro do gramado, onde raros craques e seleções lograram comover os amantes da pelota. Afi nal de contas, enquanto o famigerado padrão toyotista do “futebol de resultados” parece ser a tônica da maioria absoluta das partidas (à exceção, claro, dos jogos de Alemanha e Espanha), o debate acerca das relações sociais e mercantis que gravitam ao redor do bilionário espetáculo tem obtido uma enor-me repercussão na mídia e na opinião pública. No Brasil e no exterior, quase tudo foi objeto de oportunas matérias de revistas como Le Monde Diplomatique e Carta Capital, em especial as negociatas da Fifa, dirigida desde 1976 por dois renomados mafi osos da bola, e a crescente crise fi nanceira das grandes equipes europeias e brasileiras. Graças à Copa, pisou-se na lama de Havelange, Blatter, Teixeira & Cia, cujos escândalos de corrupção e lavagem de dinheiro atingem um patamar só comparável à dívida dos clubes – que, lá como cá, vivem todos eles à beira da falência, ao passo que seus dirigentes desfi lam garbosos pelos estádios com ares de estrelas midiáticas.

A própria eliminação da equipe de Dunga & Cia. deveria servir de lição a to-dos nós, que amamos o esporte, mas não ignoramos a sua singular dimensão simbólica e cultural. A derrota, apesar de dolorida, tem lá suas compensações. De imediato, ela estanca por completo o pernicioso chauvinismo cultivado pelos canalhas de plantão (não apenas os grotescos Galvões Buenos da mídia, mas também as grandes corporações envolvidas no negócio), que se travestiu nesta Copa no “espírito guerreiro” apregoado por uma cervejaria de Bruzundanga. A expulsão de Felipe Melo após a estúpida agressão ao ‘rival’ holandês talvez ajude a sepultar, se possível antes de 2014, aquela triste e belicosa concepção de jogo defendida por Dunga, cedendo espaço, quem sabe, ao alegre futebol-arte graças ao qual Garrincha, Pelé, Tostão, Gérson, Rivelino, Zico, Sócrates, Romário, Ro-naldo e tantos outros craques encantaram o planeta-bola.

Abra-se aqui um parêntese imprescindível, que a vitória alemã sobre a Ar-gentina nos impõe: se a virtude está sempre em um ponto médio (“in media res”, diziam os latinos), não basta apenas o talento individual de Kakás, Messis ou Cristianos Ronaldos para triunfar em um jogo coletivo como é o futebol. A inteligência tática dos alemães, sob o comando do competente técnico Joachim Löw, demonstrou-nos que é preciso contar com um bom elenco, em que se con-jugue a experiência dos veteranos à nova safra de craques, e, sobretudo, explorar muito bem os pontos vulneráveis do adversário – itens subestimados tanto pelo carismático, porém neófi to treinador Maradona, quanto pelo tosco e obstinado Dunga.

Com uma dose cruel de ironia, o fi asco na África ensina ainda que, no teatro da vida, a busca do equilíbrio é a única forma de redenção. Quem alegava que o fra-casso de 2006 se deveu ao suposto clima de ‘libertinagem’ desfrutado pela tchur-ma de Ronaldinho & Adriano, sob os olhares cúmplices de Parreira, justifi cando assim o regime de caserna adotado para os ‘guerreiros’ de Dunga, deverá agora rever seus conceitos, ciente de que não será jamais um quartel, nem tampouco um bordel, a justa medida para um saudável convívio social. Reação doentia a 2006, o neodunguismo não deixa de ser um índice eloquente do estágio em que se encontra a civilização de Bruzundanga. As declarações absurdas de Felipe Melo, incapaz de admitir a própria truculência e destempero, são uma súmula irretocável do comportamento que as elites da colônia cultivam há séculos, hoje disseminado pelo conjunto da classe média e já visível em vários estratos popu-lares. O motorista de trânsito que avança sobre o pedestre, o playboy que agride mendigos e prostitutas, ou o deputado que ignora a Lei da Ficha Limpa e, sob as bênçãos do Supremo, sonha eleger-se para mais um mandato de maracutaias – todos eles são netos e bisnetos de Brás Cubas e Macunaíma, com um discurso liberal de exportação e uma práxis cotidiana de exclusão.

As mazelas desta era pós-moderna e biocibernética do capital, porém, não são exclusivas das nações periféricas. Que o diga o completo desequilíbrio da França de Raymond Domenech, retrato da fratura étnica e social do país, onde a imigra-ção pós-colonial africana assusta a ‘elegante’ burguesia e acirra as reações racis-tas dos torcedores, que, após o vexame na África, invadiram a sede da Federação para exigir “uma seleção branca e cristã”, sem nenhum atleta negro ou muçul-mano. Felizmente, apesar da Jabulani e das falhas de arbitragem, nem tudo é motivo para pessimismo no planeta-bola: além de belos gestos de fair-play dos atletas, atos como o apoio dos argentinos à indicação das Avós da Plaza de Mayo para o Nobel da Paz, ou a singela iniciativa dos uruguaios de fi rmar um acordo de intercâmbio técnico com a província que os recebeu na África, indicam-nos que ainda há sinais de vida inteligente entre nós. Oxalá sejam eles o prenúncio de tempos menos belicosos e mais solidários de hoje até 2014!

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do

Brasil (lançado em 2009 pela Expressão Popular).

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio

Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Nina Fideles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Fran-zen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

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InfoproletáriosSubtítulo: Degradação real do trabalho virtualOrganizadores: Ruy Braga e Ricardo AntunesPáginas: 256Ano de publicação: 2009 Preço: R$ 44,00

Serviço

de 8 a 14 de julho de 2010 3

brasil

Mesmo atuando no setor de serviços, o operador é uma espécie de novo proletariado

Reprodução

Leandro Uchoasdo Rio de Janeiro (RJ)

NOS ESTADOS Unidos, o 4 de julho é uma data amplamente comemorada. O Dia da Inde-pendência do país é marcado por potentes marchas milita-res e outras celebrações. No Brasil, a data está destinada a ter pouca visibilidade e até ge-rar certa repulsa. É que o 4 de julho marca, no país, o Dia do Operador de Telemarketing. Em ampla expansão – cresce de 14% a 17% ao ano – a ca-tegoria é odiada por boa parte das pessoas em todo o mundo. Tomado por chato, o operador é frequentemente maltratado pelas pessoas. O que poucos conseguem perceber é que, muitas vezes, essa é a alterna-tiva de emprego que têm.

Surgida na carona dos avan-ços tecnológicos – que supos-tamente serviriam para me-lhorar a vida das pessoas –, a profi ssão revela indícios di-versos de exploração do traba-lho. Há alguns meses, foi lan-çado o livro Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual. A obra foi organizada pelos sociólogos Ricardo An-tunes, da Universidade Esta-dual de Campinas (Unicamp), e Ruy Braga, da Universidade de São Paulo (USP), e aborda o surgimento da profi ssão no contexto da reconfi guração do mundo do trabalho e das ana-logias entre a precarização do setor e a do universo indus-trial dos séculos XIX e XX.

A principal constatação dos estudos é a de que o opera-dor de telemarketing, mes-mo atuando no setor de ser-viços, é uma espécie de novo proletário. A partir do aumen-to do uso da tecnologia de in-formação, e da permanência de relações de exploração do trabalho, surge um trabalha-dor contraditório. É moder-no, mas convive com as condi-ções de trabalho precárias do passado. “O trabalho é mui-to isolado – as pessoas traba-lham em baias. O tempo para refeição e para ir ao banheiro é muito pequeno. E há a ine-xistência de tradição sindical”, afi rma Ricardo.

A profi ssão surgiu nos anos de 1990. A partir da privati-zação das telecomunicações, empresas passaram a ofere-cer serviços por telefone. Com o tempo, as centrais de atendi-mento tornaram-se verdadei-ros núcleos de comunicação e de verifi cação de satisfação de clientes. O fenômeno ocor-re no mundo todo. Embora o Brasil tenha um número me-nor de centrais em relação a outros países – 4% do que têm os Estados Unidos –, apresen-ta maior índice de trabalha-dores por local de trabalho – média de 1.103 por corpora-ção, contra 172 na Alemanha. O crescimento do setor é sig-nifi cativo, também, em todo o mundo – no Reino Unido, avançou 250% em dez anos; na Alemanha, 100% em sete. Enquanto nos Estados Unidos 3% da população já trabalham no setor, no Brasil o índice é de 2% da população economi-camente ativa com ensino su-perior incompleto.

HipertaylorismoA socióloga Selma Venco,

da Unicamp e autora de um dos capítulos de Infoproletá-rios, encontra na precariza-ção da profi ssão elementos do chamado taylorismo. “São di-versas características próprias do mundo industrial. Há a se-paração entre quem trabalha e quem planeja, a obediên-cia a um tempo médio, o con-trole massivo da produtivida-de através da própria tecnolo-gia. Mas há elementos novos, como a capacidade de pressão do cliente. Já não é mais só a

Do outro lado da linha, o proletárioTRABALHO Em ampla expansão, a categoria dos operadores de telemarketing reproduz, em novos moldes, as relações de trabalho precarizadas do passado

máquina e o chefe”, diz. Escu-dado pela distância promovi-da pelo telefone, e com o po-der de desejar e reclamar, o cliente seria elevado a uma “condição de rei”. Alguns es-tudiosos criaram o conceito de hipertaylorismo, a medi-da que as novas tecnologias permitem controle da produ-tividade dos operadores em tempo real.

Segundo os dados, os tra-balhadores do telemarketing não têm o tempo de prepara-ção adequado. O treinamen-to, que deveria durar cerca de quatro meses, costuma ser oferecido por um período que varia de uma semana a um mês. O resultado é a incapa-cidade de cumprir as rigoro-sas metas que são estabeleci-das. Em média, nos primeiros quatro meses, há um enorme desgaste do trabalhador, pela cobrança excessiva, pela au-sência de resultados e pela individualização do fracasso. Depois, por aproximadamen-te dez meses, ocorre uma re-lativa satisfação do trabalha-dor, porque ele passa a con-seguir desempenhar o seu pa-pel. Após esse tempo, vem o período chamado de “rotini-zação”. O trabalhador passa a sofrer com o monitoramen-to constante, a incapacida-de de progredir e as doenças que invariavelmente apare-cem (LER, tendinite, surdez precoce, afetação nas cordas vocais, entre outras).

Mas o operador fi ca, de certa forma, preso ao em-prego. “Num mercado como o brasileiro, em que dois em cada três postos pagam me-nos de dois salários míni-mos, ele não tem para on-de ir. Torna-se um opera-dor ‘lateralizado’. Muda de emprego sem mudar sua for-ma de atuação”, diz Ruy Bra-ga, que na última década se especializa no estudo do se-tor. Em poucos meses, o tra-balhador considera sua ativi-dade insuportável – e por ve-zes antiética –, mas não tem como sair. “O telemarketing resume as relações de traba-lho nos anos 2000. Exem-plos disso são o fechamento de postos, o aumento do se-tor de serviços e a precariza-ção”, completa Ruy.

Home offi ceOutro questionamento trazido

pelos pesquisadores diz respei-to à suposta vantagem do “home offi ce”. A capacidade que as no-vas tecnologias têm de permitir que se trabalhe em casa é, em ge-ral, considerada positiva. As pes-soas tendem a louvar a possibili-dade de planejar seu horário e tra-balhar perto da família. Entretan-to, Ricardo Antunes denuncia a precarização embutida nesse pro-cesso. “Esse é o melhor dos mun-dos para o capital. Ele se desobri-ga de fornecer espaço ao traba-lhador, de pagar custos, de arcar com as demandas de saúde. E, ao trabalhar em casa, a pessoa per-de o controle da carga horária: o público e o privado se misturam. A jornada termina por se esten-der”, avalia.

Os dados do livro são pe-remptórios. O aclamado avanço tecnológico não tem gerado be-nefícios sociais e a exploração do trabalho segue, revestida por novos formatos. “O avanço tec-nológico está a serviço das rela-ções de exploração e da busca por lucro”, avalia Ruy. Ricardo concorda. “A tecnologia tal co-mo conhecemos é plasmada por relações sociais de produção ca-pitalista. Tem a cara, a forma e o conteúdo do capital. É mol-dada para a valorização do lu-cro.” Segundo ele, uma socie-dade que não se deixe escravi-zar pelo produtivismo poderia usar a tecnologia para trabalhar apenas três horas por dia, qua-tro dias por semana.

do Rio de Janeiro (RJ)

As pesquisas relaciona-das ao setor de telemarke-ting revelam dados inquie-tantes. Entre os operado-res, há uma predominân-cia massiva de jovens e de mulheres. Além disso, o ín-dice de negros, obesos, ho-mossexuais, transexuais e defi cientes físicos é acima da média de outras catego-rias. Enquanto empresá-rios do setor louvam tal per-fi l, afi rmando que o setor se-ria mais “democrático”, os estudiosos não são tão oti-mistas. As causas da cons-tatação revelariam distúr-bios sociais, além de novos indícios de precarização do trabalho. O motivo princi-pal do predomínio de seto-res sociais marginalizados seria a invisibilidade permi-tida aos operadores.

do Rio de Janeiro (RJ)

Em 2009, um curta-me-tragem do diretor Ânge-lo Defanti, um dos princi-pais da nova geração cario-ca de cineastas, fez sucesso no Festival do Rio. “Bom dia, meu nome é Sheila – ou como trabalhar em te-lemarketing e ganhar um vale-coxinha” retrata, com humor, as condições pre-cárias do trabalhador do setor. Inspirado em repor-tagem homônima da re-vista Piauí, ganhou o prê-mio Porta Curtas do Fes-tival. Desde então, o tra-balho já foi exibido em di-versos festivais do interior, acumulando o Prêmio Luis Espinal na 5ª Mostra Cine-Trabalho.

O vale-coxinha faz refe-rência ao tíquete alimenta-ção recebido pelos opera-dores, em seu pequeno ho-

Estados Unidos e na Euro-pa, para repelir as ligações de telemarketing. A estraté-gia seria responder ao ope-rador com outras perguntas ou respostas estranhas. Ati-vistas holandeses criaram o site www.egbg.nl, com tra-dução em português, para orientar as pessoas a lidar com as ligações. A organi-zação de defesa do consu-midor estadunidense, Fe-deral Trade Commission, criou um cadastro de pes-soas que não desejam ser incomodadas por telefone-mas – o Do Not Call Regis-try. A empresa que ligar pa-ra os números cadastrados é multada. (LU)

Do outro lado da linha, os potenciais clientes não per-cebem se o trabalhador é ne-gro, homossexual ou obe-so. E, por não encontrarem oportunidade em carreiras mais valorizadas, esses se-tores terminam por se con-tentar com o telemarketing. Como não existe uma pers-pectiva de carreira, eles es-tão condenados a perma-necer na função. Transexu-ais afi rmaram, em entrevis-tas para pesquisas, que se não puderem trabalhar nos setores que tradicionalmen-te os emprega – moda, por exemplo – eles não têm tan-tas opções.

O predomínio de jovens entre os operadores é fá-cil de se explicar – a profi s-são não exige grandes quali-fi cações. Porém, o dado que mais impressiona é a pre-sença de mulheres. Segundo estudos, de 76% a 85% dos trabalhadores são do gêne-ro feminino. Segundo a so-cióloga Selma Venco, isso se dá por conta “de uma cons-trução social histórica so-bre a presença da mulher no trabalho”. Consideradas mais dóceis e delicadas, se-riam mais capazes de dar tratamento adequado aos clientes. Os homens fi ca-riam com o cargo de chefi a (os dados revelam, inclusi-

ve, que homens abandonam com maior frequência a fun-ção de operador).

Para Claudia Mazzei No-gueira, da Universidade Fe-deral de Santa Catarina (UFSC), não há uma predo-minância das mulheres ape-nas nesse setor. Todas as profi ssões com jornada par-cial demandariam trabalho feminino. Por permitir maior tempo às tarefas domésticas, as carreiras seriam ideais às mulheres. “E a própria mu-lher legitima essa situação. Ela acha satisfatório, porque pode cuidar dos fi lhos”, la-menta. A predominância de homossexuais também teria relação com o jeito dócil de tratar o cliente. (LU)

Profi ssão das minoriasEntre os operadores de telemarketing, predominam jovens, mulheres, negros e homossexuais

Infoproletário nas telasFilme premiado no Festival do Rio já tratava da precarização na função

rário destinado à refeição. O curta faz constante alu-são ao linguajar dos opera-dores, repleto de gerundis-mos e ao treinamento anti-ético que receberiam. “Em parte, escolhi tratar esse tema porque queria algo que me permitisse experi-mentar novas linguagens. Mas eu também queria de-nunciar a degradação da profi ssão. Mostrar o lado do operador aos que se ir-ritam com ele”, diz Ângelo, que no fi lme chama o am-biente de trabalho de “sen-zala eletrônica”.

Segundo a reportagem que inspirou o fi lme, exis-tiriam organizações, nos

Em média, nos primeiros quatro meses, há um enorme desgaste do trabalhador, pela cobrança excessiva, pela ausência de resultados e pela individualização do fracasso

Segundo a socióloga Selma Venco, isso se dá por conta “de uma construção social histórica sobre a presença da mulher no trabalho

O “vale-coxinha” que alimenta a “senzala eletrônica”

Divulgação

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Mobilização da sociedade teve de enfrentar despreparo das administrações municipais

de 8 a 14 de julho de 20104

brasil

Destruição em Palmares, Mata Sul de Pernambuco

Fotos: Denilson Vasconcelos

Jônatas Camposdo Recife (PE)

PASSARAM-SE mais de 20 dias das fortes chuvas e inun-dações que destruíram deze-nas de cidades em Pernam-buco e Alagoas, principalmen-te na Zona da Mata. Desde o dia 18 de junho, início das en-chentes, levantamentos pre-liminares asseguram que já existem 57 mortos, 69 desapa-recidos e 300 mil desabriga-dos nos dois estados. Foram destruídas mais de 30 mil ca-sas, além de pontes, hospitais e milhares de quilômetros de estradas e linhas férreas.

Palmares, Mata Sul de Per-nambuco, é uma das cidades mais atingidas. A ponte que faz parte das obras de du-plicação da BR-101 e que se-quer tinha sido inaugurada, foi destruída pela força das águas do rio Una, junto com outra ponte antiga. Desde que elas ruíram, carros e ca-minhões têm que fazer des-vios para seguir do Nordeste ao Sul por uma das principais rodovias do país.

O município de Barrei-ros, litoral sul de Pernambu-co e desembocadura do rio Una, foi devastado. A cida-de de Correntes, no agreste pernambucano, também te-

ve pontes arrastadas e bair-ros inteiros levados pelo rio Mundaú, o mesmo que arra-sou Branquinha, Rio Largo, Murici e União dos Palmares, em Alagoas.

O fenômeno climático cha-mado “Onda de Leste”, que foi intensifi cado pelo aque-cimento acima do normal do Oceano Atlântico com a in-tensifi cação dos ventos tropi-cais, provocou, em curto es-paço de tempo, uma grande quantidade de chuva concen-trada nas proximidades das cabeceiras dos vários rios. Caiu mais água em três dias na região do que, em média, em um mês inteiro.

Mas, apesar da força des-proporcional ocorrida neste último desastre, as enchentes são velhas conhecidas do lito-ral e zonas da mata nordesti-nos. Não há nada de extraor-dinário na elevação das águas dos rios. São ciclos naturais em épocas de intensidade de chuvas. O drama humano que estão vivendo as pessoas da-quela região tem a ver com uma série de fatores que vão muito além dos climáticos.

A monocultura da cana-de-açúcar devastou as matas ci-liares que protegiam as mar-gens dos rios e asseguravam a retenção de sedimentos, evi-tando o assoreamento nos cursos das águas. A ocupa-ção irregular das margens pe-las populações mais pobres é um problema cultural e secu-lar. O uso político da pobre-za pelas elites políticas mais conservadoras e atrasadas que estão exatamente nesta região e a falta de infraestru-tura de barragens são ingre-dientes da tragédia.

Dezenas de enchentes no século passado deixaram su-as marcas em Pernambuco e Alagoas, destacando-se as de 1966, 1970, 1974 e 1975. Ne-nhuma dessas com a inten-sidade da enchente de agos-to de 2000 e da atual. Além disso, pequenas inundações e deslizamentos ceifam vidas todos os anos na região. Nes-

sas épocas, ocorrem os so-brevoos de autoridades em helicópteros, edição de me-didas provisórias, visitas às áreas atingidas e muita, mui-ta promessa.

A principal delas é a reti-rada das famílias das áre-as ribeirinhas. “As prefeitu-ras não podem permitir no-vas ocupações nesses locais de modo algum, serão esco-lhidos terrenos em regiões seguras”, assegurou o secre-tário nacional de Defesa Civil, Pedro Sanguinetti, em agosto de 2000. “Será muita irres-ponsabilidade reconstruir na beira do rio. Precisamos ar-rumar terrenos longe do rio”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 24 de junho, visitando Palmares.

O bairro das Pedreiras, em Palmares, fi ca à beira do rio, em uma área de curva das águas. Em 2000, foi inunda-do. Agora, além da destruição das casas, nem os postes de iluminação pública restaram. Assim como a praça Ismael Gouveia, também em Palma-res, que tornou-se uma crate-ra com cerca de cinco metros de profundidade, para onde foram arrastados uma carre-ta e alguns carros de passeio.

Nos municípios alagoanos, o drama humano é maior e anterior às enchentes. Estas, só terminaram por destruir a parca atividade produtiva da região e os casebres cons-truídos sem nenhuma estru-tura. A destruída Braquinha é a base da política dos co-ronéis “Renans”, “Collors” e outros. O cenário de miséria que agora é visto pelo mundo midiatizado.

A Constituição Federal de 1988 já determinava a elabo-ração dos Planos Diretores de Desenvolvimento para as ci-

dades acima de 20 mil habi-tantes. Nesses planos, deve-riam constar as normas para ocupação de terras para mo-radia, preservação das mar-gens dos rios e ocupação do solo. Em 2001, a Lei Federal 10.257, o Estatuto das Cida-des, apontou novas diretri-zes para a gestão urbana e, inclusive, a participação po-pular nas decisões dos pode-res executivos.

Caso a lei seja, de fato, cumprida, dezenas de bair-ros nesses municípios terão, simplesmente, que desapare-cer. Sem uma política afi rma-tiva para realocar centenas de famílias dos locais onde ou-trora construíram suas vidas e sua identidade, estas volta-rão novamente às margens, como fi zeram em tragédias anteriores.

Quem vive da pesca e de plantar pequenos roçados às margens dos rios da região, sabe que, apesar de poluídos por usinas, lavanderias in-dustriais, hospitais e esgotos, os rios têm vida. E que uma hora ele acaba devolvendo o que teimam em jogar den-tro do seu leito. Nas enchen-tes, o rio retoma o espaço que era seu, suas margens e anti-gos alagadiços aterrados para construção das cidades. Em enchentes, o rio não obedece a suas curvas, “vai reto”, co-mo diz a sabedoria popular.

As velhas e conhecidas enchentes no Nordeste

Como ajudarPara dirigir doações ao Co-mitê Ecumênico, o telefone é (81) 3226.0063

Donativos preferenciais:

• Água mineral• Material de higiene

pessoal• Material de limpeza• Alimentos para pronto

consumo• Roupas, agasalhos e

cobertores e colchões

Doações em dinheiroBanco do BrasilAgência: 3234-4Conta Corrente: 5633-2Obs.: Em nome do Comi-tê da Ação da Cidadania Pernambuco Solidário.

Acompanhe as ações do Comitê no Blog http://soschuvaspe.blogspot.com.

do Recife (PE)

Enquanto a imprensa local e nacional se convencia da destruição nas áreas atingi-das, um comitê formado por entidades da sociedade ci-vil e igrejas já se mobilizava, prevendo o pior. No dia 19 de junho, com algumas cidades ainda debaixo d’água, o Co-mitê Ecumênico de Apoio às Vítimas das Enchentes já se articulava para colher dona-tivos, carros para transpor-te e dinheiro. Essas mesmas pessoas vivenciaram a en-chente de 2000 na região e já tinham relatos da gravida-de das ocorridas deste ano.

O Comitê da Ação da Ci-dadania é uma das entida-des que fazem parte do Co-mitê Ecumênico. Seu coor-denador, Anselmo Monteiro, considera que a sociedade amadureceu, pois compre-endeu a tragédia, mas tam-

bém está interessada em so-luções para além das emer-genciais. “A emergência con-tinua, mas são necessárias ações estruturadoras para que sofrimentos idênticos não se repitam”, diz. O Co-mitê Ecumênico já discute a criação de espaços de convi-vência e outras ações lúdicas para as crianças, “o elo mais fraco desta corrente”, segun-do Anselmo.

Mas, se por um lado a so-ciedade civil se mobiliza, por outro, a desorganização dos municípios fi ca eviden-te quando os donativos co-meçam a chegar. As pesso-as e entidades não sabiam a quem se reportar. Em Pal-mares (PE), a prefeitura pa-recia inexistente. Foi preciso que a Defesa Civil e o Exér-cito, praticamente, assumis-sem o comando da cidade.

Na corrente de solidarie-dade, cada um ajuda como pode. O sargento do Exér-

cito, Silvio Severino Carva-lho, que compôs as tropas do Brasil no terremoto ocor-rido no Haiti, disponibilizou a água de seu poço artesiano para toda a população. Água

Na dia 05, os minis-tros Carlos Eduardo Ga-bas (Previdência Social) e Rômulo Paes (Desenvolvi-mento Social e Combate à Fome) anunciaram a libe-ração de R$ 55 milhões pa-ra 110 mil aposentados e pensionistas de Pernambu-co e Alagoas.

O dinheiro será libera-do através de empréstimos que aposentados poderão fazer no valor de seu be-nefício e pagar em 24 ve-zes sem juros. O 13º salá-rio dos aposentados tam-bém será liberado a partir de agosto.

Os ministros sobrevoa-ram as áreas atingidas na Zona da Mata de Pernam-buco e tiveram uma reu-nião com o governador Eduardo Campos (PSB) no Palácio do Governo per-nambucano. Campos anun-ciou o mapeamento de 600 hectares para reconstrução de casas longe dos locais de risco. (JC)

Governo anuncia R$ 55 milhões para aposentados

Em Palmares (PE), a prefeitura parecia inexistente. Foi preciso que a Defesa Civil e o Exército, praticamente, assumissem o comando da cidade

Entidades se mobilizam para atender as vítimas

CHUVAS NO NORDESTE Pobreza, ocupação irregular, desmatamento e letargia das oligarquias políticas nordestinas fazem as chuvas matar gente, praticamente, todos os anos

O drama humano que estão vivendo as pessoas daquela região tem a ver com uma série de fatores que vão muito além dos climáticos

é item básico e escasso nos municípios atingidos. O pico d’água fi ca até 24 horas fun-cionando. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) organizou du-

A destruída Braquinha é a base da política dos coronéis “Renans”, “Collors” e outros. O cenário de miséria que agora é visto pelo mundo midiatizado

as brigadas de solidarieda-de que trabalham no apoio à população e na reorganiza-ção do município.

O Governo de Pernambu-co recruta voluntários para trabalhar na reconstrução das cidades. As pessoas ca-dastradas exercem funções de apoio administrativo co-mo digitadores, merendei-ros, cuidadores de idosos e crianças, recreadores, auxi-liares de cozinha e serviços gerais, entre outras. (JC)

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de 8 a 14 de julho de 2010 5

brasil

Casas do conjunto residencial às margens da Lagoa Mundaú, no bairro do Vergel do Lago, que foram ocupadas

Paulo Rios/Agência Alagoas

Clarice Maiade Maceió (AL)

“A PESSOA TEM que passar por toda essa humilhação pa-ra ter onde morar?”, se per-gunta, sozinha, a desconhe-cida que observa atônita a confusão formada em frente à Federação dos Pescadores de Alagoas (Fepeal), na orla da Lagoa Mundaú, em Ma-ceió (AL).

O bate-boca entre lideran-ças comunitárias era apenas o início de uma discussão que, no decorrer do dia 1º de julho, ainda envolveria representan-tes do governo estadual e dos moradores das favelas, desa-brigados após as fortes chuvas que caíram no estado.

Na área, estão em plena construção blocos de aparta-mentos para abrigar pesca-dores. Em frente, nas mar-gens da Lagoa, há centenas de barracos tomados pela cheia e por dejetos de toda espécie. Quando a água baixou, resta-ram lama, lixo, baratas e ra-tos por toda a parte. Deses-peradas com a situação, cer-ca de 100 famílias ocuparam 72 das habitações parcialmen-te prontas.

Segundo informações dos moradores locais, outras 50 famílias chegaram a ocupar uma escola da rede pública de ensino e outras foram removi-das para abrigos.

Outros moradores da co-munidade resolveram procu-rar a Secretaria de Infra-Es-trutura (Seinfra) para saber quais famílias seriam con-templadas para morar nos apartamentos ocupados e co-mo fi caria a situação dessas. Receberam um pedaço de pa-pel. Nele constava o nome do “contemplado” e o número do apartamento, carimbado e assinado por uma assisten-te social do órgão, chamada Fátima Vieira, para que eles pudessem “negociar” a saída dos ocupantes.

A partir daí estava amplia-da a crise e a situação de vio-lência entre os moradores. Al-guns que receberam o papel resolveram esperar, atende-ram aos pedidos dos ocupan-tes. “A gente não quer tomar nada de ninguém, só quer ter onde morar. Só queremos que digam para onde a gente vai”, disse Adriana Torre de Jesus.

Outros resolveram enfren-tar a situação com a força. Se-gundo os relatos, apareceu até policial militar armado. “Tem gente que chega até com peda-ço de papel de caderno, outros escritos a lápis, sem assinatu-

de Maceió (AL)

A obra de urbanização da orla da Lagoa Mundaú é um dos carros chefes do governo de Alagoas e poderá ser usa-da como um dos palanques eleitorais de Teotônio Vile-la Filho (PSDB), que preten-de concorrer à reeleição com o ex-presidente Fernando Collor de Mello (PTB).

Segundo informações da Secretaria de Infra-Estru-tura (Seinfra), o projeto es-tá orçado em R$ 35 milhões, sendo R$ 29,7 milhões ce-didos pelo governo federal, recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e R$ 5,2 milhões de contrapartida estadual. Pre-vê a construção de 1.181 ha-bitações para famílias que vivem no entorno da Lagoa Mundaú, sendo 360 para as que dependem da pesca e ou-

de Maceió (AL)

O rio Mundaú desagua na Lagoa Mundaú. Ele fez au-mentar o volume de água que surpreendeu morado-res da região. No estado, 28 cidades foram atingidas pe-las enchentes. Dessas, qua-tro (São Luiz do Quitunde, Matriz do Camaragibe, Jun-diá e Ibateguara) estão em situação de emergência. Ou-tras 15 (Quebrangulo, San-tana do Mundaú, Joaquim Gomes, São José da Laje, União dos Palmares, Bran-quinha, Paulo Jacinto, Mu-rici, Rio Largo, Viçosa, Ata-laia, Cajueiro, Capela, Jacuí-pe e Satuba) decretaram es-tado de calamidade pública.

Novecentas e sessenta fa-mílias de pescadores que vi-vem nos municípios de San-ta Luzia do Norte, Pilar, Ma-rechal Deodoro, Coqueiro Seco e Maceió também esta-

riam passando por necessi-dades. “Essas famílias estão sem condição de se manter com a pesca, a situação está complicada. Disseram que está difícil de conseguir do-ações, elas parecem que não chegam aos pescadores”, ex-plica Maria Eliane, presi-dente da Fepeal.

As enchentes no estado atingiram 181 mil pesso-as e provocaram 37 mortes, 69 pessoas estão desapare-cidas. Ao todo, 26.618 pes-soas estão desabrigadas e 47.897 desalojadas. No dia 29 de junho, foi divulga-do o boletim epidemiológi-co. Ele aponta que mais de 200 pessoas já teriam apre-sentado problemas de saú-de e há grande preocupação com os casos de leptospiro-se. Segundo informações do Corpo de Bombeiros de Ala-goas, 950 homens estão en-volvidos nas ações humani-tárias. (CM)

tras 821 para os que desem-penham outras atividades. “Nós temos muito mais de trezentos pescadores, não sei dizer quantas famílias, mas todos que passam necessida-de recorrem à pesca do pei-xe ou do sururu”, diz Maria Eliane, a presidente da Fede-ração dos Pescadores de Ala-goas (Fepeal).

Os contemplados seriam moradores das comunidades Sururu de Capote, Muvuca, Torre e Mundaú. “Eles não podem misturar todo mundo nos apartamentos, as pesso-as que são de uma favela que-rem fi car junto com as outras que são do mesmo lugar. Tem lugar que é mais perigoso que outro e as pessoas às vezes não se dão”, explica a mora-dora Adriana Torre.

As habitações destinadas aos pescadores são blocos de apartamentos de 42 m², com dois quartos, cozinha, ba-

nheiro, sala e área de servi-ço. Os 36 primeiros a fi carem prontos foram entregues em 2009, não a pescadores, mas às pessoas que foram remo-vidas de casas situadas na área onde seriam feitas as construções. Segundo Ân-gela Paim, responsável pelo projeto de desenvolvimento urbano da Seinfra, durante a reunião com o governo, es-sas pessoas receberam apar-tamentos para que não fosse preciso pagar indenização.

Ainda segundo as informa-ções ofi ciais, mais 132 apar-tamentos foram entregues este ano. A escolha dos con-templados é feita pela Sein-fra, junto com as lideranças comunitárias a partir de ca-dastros feitos entre os anos de 2005 e 2008. “Eles de-viam ter entregue para to-do mundo de uma vez, dar para um e não dar para ou-tros que estão no meio da la-

ma há muito mais tempo não é justo”, diz a moradora Ma-ria Mercedes.

Os 72 apartamentos ocu-pados pelas mais de cem fa-mílias de desabrigados se-riam entregues em breve, eles estavam parcialmente acabados. “Tem apartamen-to com duas, três famílias dentro. É certo a gente fi car nessa situação enquanto ou-tros apartamentos foram da-dos até para dono de merca-dinho? Não deveria ser en-tregue para quem é pescador e para quem é marisqueira?”, questiona a moradora Joseil-da dos Santos Zacarias.

Além da construção das ca-sas, as obras de urbanização preveem a retirada de toda a favela da área. A propaganda do governo, em torno do pro-jeto, é de que a área fi cará se-melhante às outras explora-das com o turismo em Ma-ceió. (CM)

Desabrigados e favelados disputammoradia em área violenta de MaceióCHUVAS NO NORDESTE Negligência do governo alagoano acirra disputa entre afetados por enchentes

Pescadores sofrem com as chuvas

Projeto do governo é insufi cientePrograma de construção de casas promete, mas não deve atender pescadores

ra, dizendo que é dono e que a gente tem que sair”, conta Flá-via Queiroz.

“Eles agiram muito erra-do [os funcionários do gover-no]. Como é que eles dizem para as pessoas que elas são as donas dos apartamentos e mandam elas irem lá nos ti-rar? Eles deviam ter espera-do”, argumenta Rita de Cássia dos Santos.

MobilizaçãoApavorados com a situação

instável instalada, um gru-po, liderado principalmente por mulheres, organizou uma manifestação no dia 29 de ju-nho. Enquanto o então secre-tário de infra-estrutura, Mar-co Fireman, e outras autori-dades locais, inauguravam um conjunto habitacional, as mulheres interditaram uma avenida.

Durante a manifestação, as lideranças denunciaram di-

versas irregularidades e es-quemas de negociação, troca e venda das moradias. No dia 1º, sete representantes das fa-mílias – cinco mulheres e dois homens – se reuniram com a líder comunitária responsável pelo cadastro da área, conhe-cida como Vânia, a presiden-te da Fepeal, Maria Eliane, e os representantes do gover-no: o secretário adjunto Leo-nardo Bitencourt, a responsá-vel pelo projeto de desenvolvi-mento urbano da Seinfra, Ân-gela Paim, e a assistente social Fátima Vieira.

Os pontos de pauta eram a situação das pessoas que ocu-param, sem ter para onde ir, e que são ameaçadas pelos “contemplados”; segurança para quem ocupou; pescado-res que não receberam casas e outros que possuem imó-veis e ganharam novas mo-radias; pescadores que vivem nas favelas há mais de 15 anos e novos “moradores” que rapi-damente ganham moradias; postura da secretaria de habi-tação; e quantidade de aparta-mentos a serem construídos.

“Nós queremos resolver nosso problema porque não temos para onde ir, não te-mos onde morar”, disse Maria Mercedes dos Santos.

Alternativa forçadaCom uma postura fechada

para negociação, o secretário

adjunto parecia armado com o argumento de que, em caso de resistência, a população se-ria retirada a partir da ação ju-dicial. Essa seria a “alternati-va buscada pelo governo”. “O senhor fala assim porque tem casa. Aqui ninguém quer nada de ninguém, a gente só quer fi car lá até ter para onde ir. Eu cheguei lá eu tinha 16 anos e agora tenho 30”, tentou ar-gumentar Joseilda dos Santos Zacarias.

As falas mais fortes foram das mulheres que acusaram as duas representantes do gover-no de ir pessoalmente man-dar os “contemplados” nego-ciar, com elas, uma troca: os apartamentos ocupados pelos barracos deles. “Não foi nin-guém que me disse, eu esta-va lá e vi, isso foi falado na mi-nha frente”, argumenta Adria-na. As funcionárias da Seinfra e o secretário não viram pro-blema algum na proposta e a reafi rmaram como solução.

Desespero fi nalAo fi nal da reunião, na

frente da sede da Secretaria, a situação era de desespero. As mulheres choravam sem saber o que diriam ao grupo que aguardava o resultado na sede da Fepeal. “Eles querem que a gente saia de lá que nem cachorro. Se eu tivesse dinhei-ro alugava um apartamento ou uma casa, mas eu não te-

nho nada, não tenho para on-de ir. Se eles mandarem a po-lícia para lá vão ter que me ti-rar, eu não vou sair, não vou sair que nem cachorro”, la-mentou Joseilda.

Na volta, mais de 100 pes-soas aguardavam pelas res-postas que poderiam dar novo rumo às famílias. Segundo os presentes, no meio da assem-bléia havia ainda trafi cantes e outros responsáveis por cri-mes na região.

O clima era tenso e a popu-lação ameaçava, em caso de despejo, acampar em frente ao palácio do governo. Foi então que o secretário, em-possado naquele dia, Fer-nando Nunes, enviou uma assessora para informar que será formada uma comissão com representantes do go-verno, das colônias de pesca-dores Z5 e Z16, além da Fede-ração dos Pescadores de Ala-goas, para verifi car os crité-rios de distribuição dos apar-tamentos e se os escolhidos são pescadores.

“É certo fazer isso, mas e as pessoas que ganharam, se-rá que elas vão esperar? E de-pois, a gente vai morar lá mes-mo?”, questiona Joseilda.

O confl itoPara entender melhor o con-

fl ito e a possibilidade de haver um desfecho violento nos pró-ximos dias, é preciso conside-

rar que as moradias estão sen-do construídas em uma re-gião em que a população po-bre tem se multiplicado e jun-to com ela a violência.

A orla lagunar é uma bela área contrastada pela miséria de centenas de barracos er-guidos sobre pedaços de pau, papelão, lona e plástico. Deje-tos e esgoto se acumulam por toda a parte. Entre eles, ho-mens e mulheres tentam jun-tar o sururu e garantir a pró-pria sobrevivência.

“As margens da Lagoa já fo-ram bonitas. Hoje, os pesca-dores que tiravam o susten-to catando sururu correm ris-cos de pegar um monte de do-enças. É muito esgoto despe-jado, lixo, se não fi zerem al-guma coisa a situação vai fi -car pior. Tem assalto para to-do lado, jovem, pai de família está correndo risco, é uma si-tuação complicada. O sururu está diminuindo e muitos têm que fazer outros trabalhos pa-ra sobreviver”, alerta Antonio Gomes, conhecido como Toi-nho Pescador, liderança da categoria no estado.

Caminhar na calçada e na ciclovia é mais seguro se esti-ver na companhia de um mo-rador local. “Alguém que co-nheça as pessoas daqui”, co-menta a presidente da Fede-ração dos Pescadores de Ala-goas, Maria Eliane. Os alertasaparecem por toda parte: “umgaroto de 14 anos que colocouum revólver na minha cabeçae mandou entregar tudo queeu tinha”; “um trafi cante que chegou e disse para eu sair dobarraco que agora era dele”;ou “a pessoa sai para pescar equando volta tem um montede maloqueiro fumando ma-conha no barraco”.

Dezenas de pessoas, cada uma com uma história dife-rente. Nenhuma tem vontade de denunciar, de dizer o no-me. Todas têm medo de não conseguir criar os fi lhos: “te-nho uma fi lha pequena moça, não posso falar nada não”.

Alguns relatos são entre-gues escondidos, em forma de carta. Neles, acusações con-tras as lideranças comunitá-rias responsáveis pela orga-nização dos cadastros e do di-álogo com o governo. Denún-cias de negociação e favoreci-mento para escolha dos con-templados. As lideranças se defendem, argumentam ser mal compreendidas. O certo é que ali, naquele local, misé-ria briga com miséria. São de-sabrigados a contar com a so-lidariedade de favelados. To-dos com a esperança de ter onde morar.

“Nós queremos resolver nosso problema porque não temos para onde ir, não temos onde morar”

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A missionária Dorothy Stang

de 8 a 14 de julho de 20106

brasil

Manifestação contra a violência no campo em frente ao Tribunal de Justiça do Pará

Elcimar Neves/Ag.Pará

Marcio Zontade Marabá (PA)

A COMISSÃO Pastoral da Terra (CPT) no Pará e o Co-mitê Rio Maria divulgaram nota, no dia 22 de junho, de-nunciando a morosidade da justiça paraense e as mano-bras judiciais orquestradas para garantir a liberdade dos fazendeiros Valter Valente, Geraldo de Oliveira Braga e Jerônimo Alves Amorim. Os três são mandantes impunes de assassinatos contra traba-lhadores rurais e líderes sin-dicais na região. Eles perma-necem livres pois os crimes, cujas ações judiciais tramita-ram por mais de 20 anos, ter-minaram prescritos.

Em entrevista, o advogado da CP, Frei Henry Burin des Roziers, explica e comenta estes casos. Para ele, a justi-ça paraense é muito bem ali-cerçada para cometer arbi-trariedades, anulações e fa-zer vista grossa em benefício dos latifundiários do estado. O religioso também destaca as principais áreas de con-fl itos agrários na região e fa-la sobre sua atuação no esta-do desde a sua chegada, em 1990.

Brasil de Fato – Há quanto tempo o senhor está no Brasil e, especialmente, trabalhando no Pará?Frei Henry – Cheguei em 1978. Sou dominicano e vim para o Brasil visitar todas as comunidades dominicanas. Meu primeiro contato com a região Norte do país, mais in-tenso, foi quando fi z um está-gio num curso da CPT: fui in-formado de que era uma re-gião de confl itos agrários e que seria importante conhe-cer. Porém, fui morar no Pa-rá mesmo em 1990, vindo de Goiás, mas quase não fi quei. Quis conhecer também os problemas de países como a Guatemala, onde tinha uma repressão terrível nos anos de 1990. Depois de quatro meses na Guatemala, decidi que fi caria por lá. Voltei ao Pará apenas para me despe-dir dos amigos da CPT e, de passagem comprada para re-tornar, aconteceu o assassi-nato do sindicalista Expedito Ribeiro de Souza [presidente do Sindicato dos Trabalhado-res Rurais de Rio Maria, mu-

nicípio do sul paraense], em fevereiro de 1991. Ofereci-me para fi car e acompanhar o ca-so. Nesse momento, foi cria-do o Comitê Rio Maria – que se espalhou pelo Brasil e até pelo mundo para pressio-nar o andamento do proces-so – e passei a morar em Rio Maria. Dediquei-me tanto à causa que comecei a traba-lhar com todos os assassina-tos ocorridos na região, en-tre eles o do sindicalista João Canuto de Oliveira [morto em dezembro de 1985], colo-cando esses processos, antes parados, para andar e arru-mando testemunhas que, in-clusive, só iam depor porque confi avam em mim. Elas ti-nham muito medo de repre-sálias dos fazendeiros e pedi-ram que eu fi casse até a con-clusão dos processos. E aqui estou até hoje, sem conseguir

A absurda impunidade no ParáENTREVISTA Justiça do Pará acoberta crimes de latifundiários e assassinatos prescrevem após mais de 20 anos sem julgamento

ainda prender ninguém, mas lutando para isso.

O assassinato de Expedito Ribeiro de Souza é um dos mais emblemáticos entre os divulgados na nota do dia 22?

Sim, pelo modo como a jus-tiça paraense tratou a con-denação do mandante, o fa-zendeiro Jerônimo Alves de Amorim, além de todas as ilegalidades que surgiram ao longo do processo, com a co-nivência do Tribunal de Jus-tiça de Belém. A condena-ção de Jerônimo foi extrema-mente difícil. Um dos líderes da bancada ruralista no Con-gresso, o deputado federal Ronaldo Caiado [DEM/GO], dizia na imprensa que não aceitaria que “nosso compa-nheiro Jerônimo” fosse pre-so. Assim, Jerônimo só te-ve sua prisão decretada em 1993. Mas, até 1997, ele pas-seava de camionete, carrega-do de pistoleiros fortemente armados, pelas ruas de Rio Maria, sorrindo. E isso com a prisão pedida. A justiça do Pará não tinha coragem de prendê-lo. Só depois de uma forte pressão internacional, quando fomos atrás do chefe da Polícia Federal de Brasília pedindo sua prisão, é que ele foi preso pela Interpol; e no México, num cruzeiro maríti-mo que fazia com sua mulher em 1999. Levado para Belém, Jerônimo permaneceu pre-so até 2000, quando começa-mos outra briga: marcar o seu julgamento. Foi outra tor-menta, pois, quando marca-vam a data, os jurados desig-nados para o caso desistiam por medo ou porque eram comprados por Jerônimo. O julgamento quase não acon-tece porque ninguém queria participar. Então, apelamos para a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Reunimos-nos com o arce-bispo dom Thomás de Al-quino e fi zemos uma campa-nha muito forte para o julga-mento ser realizado. Por fi m, com muito empenho, conse-guimos. [Em junho de 2000,] Ele pegou 19 anos e seis me-ses de prisão em regime fe-chado. Mas, mesmo assim, Jerônimo coordenou de den-tro da cadeia a criação de um clima de terror na região de Rio Maria e Xinguara [PA], quando sua fazenda come-çou a ser ocupada por traba-lhadores rurais sem-terra. A “operação” resultou na mor-te de mais duas pessoas a seu

mando. Em seguida, seus ad-vogados pediram sua transfe-rência para perto de sua fa-mília, em Goiás. Mesmo com ele respondendo a outros cri-mes no Pará, o Tribunal de Justiça de Belém, ilegalmen-te, aceitou o pedido. Pessoal-mente fui ver o promotor do caso em Belém, indagando sobre essa transferência, mas o Tribunal de Justiça de Be-lém já tinha decidido e o ca-so passou à tutela do Tribunal de Justiça de Goiás. Lá, ele te-ve todas as mordomias, como autorização para ir a festas de família no interior do esta-do. Finalmente, o mais depri-mente. Em 2001, Jerônimo já cumpria sua pena em prisão domiciliar graças a um ates-tado de doença que lhe foi da-do após uma junta de médi-cos militares ter diagnostica-do um glaucoma e um câncer de próstata e, em seguida, ter sido pedido pelos seus advo-gados um indulto por ter uma doença incurável. Porém, em nenhum lugar o laudo atesta-va que ele tinha uma doença incurável, que estava em fase terminal de sua vida. Por is-so, o juiz de primeira instân-cia negou, mas um desembar-gador, em dezembro de 2001, concedeu o indulto, após ape-nas um ano e meio preso. Ele está muito bem de saúde até hoje. Sabendo disso, ainda fi -zemos a última tentativa de pedir uma indenização para

a viúva de Expedito, mas ele nem compareceu na audiên-cia. Mandou apenas um ad-vogado que a todo instante o consultava por telefone sobre o valor pedido pela viúva de Expedito. Conclusão, o advo-gado disse: “meu cliente não aceita esse valor”, audiência encerrada.

Os crimes cometidos por outros dois fazendeiros, contra líderes sindicais, divulgados pela nota, aconteceram na mesma época do assassinato do Expedito. Existe uma articulação entre fazendeiros para assassinar lideranças locais dos trabalhadores?

Sem dúvida. Os fazendeiros tinham articulado o assassi-nato de várias lideranças, co-mo João Canuto de Oliveira, Braz Antonio de Oliveira, en-tre outros. Vale lembrar, que o Braz era diretor do Sindi-cato dos Trabalhadores Ru-rais de Rio Maria e foi mor-to junto ao seu companhei-ro de luta Ronan Rafael Ven-tura, em abril de 1990, por uma máfi a a serviço desses fazendeiros, em especial, de Geraldo Oliveira Braga. Ali-ás, com relação à morte des-ses dois companheiros, exis-te uma outra barbaridade co-metida pela justiça do Pará. Após 19 anos de tramitação e morosidade, no dia 16 de fevereiro de 2009, o Supre-mo Tribunal Federal decla-rou a prescrição do crime. Braga, hoje com 74 anos, é dono de um grande latifún-dio em Minas Gerais. E os fazendeiros Adilson Laran-jeira e Vantuir Gonçalves de

Paula, que mandaram matar o sindicalista João Canuto de Oliveira, foram condenados, em 2003, a 19 anos e 10 me-ses de prisão. Contudo, eles nunca foram capturados pa-ra cumprir pena. Um deles até morreu de morte natural, em 2007.

Então, há uma articulação entre os fazendeiros e a justiça do Pará para que os assassinatos de lideranças permaneçam impunes?

Logicamente. Por isso, nos-sa luta sempre foi para colo-car na cadeia esses fazendei-ros criminosos, pois, se a jus-tiça é conivente, a matança continua. E o motivo de toda essa morosidade é que a jus-tiça paraense não é indepen-dente, é muito ligada à classe social mais abastada e mani-pulada pela ideologia de gru-pos dominantes do agronegó-cio. Todo esse tribunal de jú-ri é uma farsa, algo para ilu-dir o povo. Como se vai jul-gar um crime 28 anos depois de cometido? Não tem condi-ções. Outro caso é o do lavra-dor Belchior Martins da Cos-ta, assassinado em março de 1982, com 140 tiros, a mando do fazendeiro Valter Valente. Hoje, com 80 anos, Valente não será submetido a julga-mento. E José Herzog, acu-sado pelo assassinato, foi jul-gado e absolvido só no último dia 24 de junho deste ano. Ambos se benefi ciaram da morosidade proposital.

E quais são as regiões mais afetadas?

A região mais tensa nes-ses últimos tempos é a da fa-zenda Maria Bonita, do ban-queiro Daniel Dantas, ocu-pada pelo MST em Eldora-do dos Carajás [PA]. Além desta, há uma região explosi-va formada pelos municípios de Santana do Araguaia, San-

ta Maria e Cumaru do Norte[todas no Pará], onde há ex-tensas fazendas, inclusive dogrupo de Daniel Dantas, e in-felizmente ainda não existemmovimentos sociais organi-zados. Por isso, as ocupaçõesnessa área sofrem mais comas ameaças de pistoleiros, se-guranças de empresas priva-das e da própria polícia. Semcontar que essa região tam-bém tem um histórico de tra-balho escravo. Um exemplo éa fazenda Cristalina, em San-tana do Araguaia, que é co-nhecida como a antiga fazen-da da Volkswagen. A empre-sa recebeu essa fazenda, de140 mil hectares, nos anos de1980. Em 2008, quando 84mil hectares dela foram de-sapropriados pelo Incra, umaorganização que lutava pelaterra, a Federação Nacionaldos Trabalhadores e Traba-lhadoras na Agricultura Fa-miliar [Fetraf], ocupou a áreacom 600 famílias. Porém,o processo de assentamen-to até hoje não aconteceu e asituação fi cou explosiva por-que essas famílias, muito po-bres, passaram a sofrer re-presálias de grupos armadosque, inclusive, extorquem di-nheiro desses miseráveis.

Qual a principal tarefa da CPT no Pará?

Além da luta contra a im-punidade, apoiamos as ocu-pações de terra, principal-mente do MST. Outra verten-te é o combate ao trabalho es-cravo. De 1978 até 2000 ha-via muito trabalho escravo naregião e só conseguimos aca-bar com parte disso quandopressionamos o Ministériodo Trabalho a formar umafrente contra essa vergonhaque ainda perdura no Brasil.Antes, a justiça ajudava o fa-zendeiro, pois ele ia nas re-partições públicas e ameaça-va, comprava servidores paranão ser denunciado, e quan-do os fi scais ignoravam essasameaças ou não se vendiam,eles eram assassinados. Sódepois que esse grupo forma-do pelo Ministério do Traba-lho começou a agir com umpessoal móvel apoiado pelaPolícia Federal é que dimi-nuiu a tensão e o trabalho es-cravo na região sul do Pará.

Qual refl exão o senhor faz desses vintes anos em que está no Pará, mudou algo?

O que mudou é que ago-ra existem ocupações de ter-ra feitas de modo organizadopelo MST. Agem de maneirafocada contra o latifúndio, oagronegócio, têm uma causae defendem a preservação daregião amazônica. Por outrolado, nesses últimos anos,houve muito despejo vio-lento. Outro agravante, so-bretudo na região sul do Pa-rá, é que a força do latifún-dio agropecuário foi se es-palhando muito, tendo umaatuação gigantesca, princi-palmente do grupo SantaBárbara, de Daniel Dantas,que fortaleceu muito o grupode políticos ruralistas.

Para encerrar, quanto “custa” hoje a vida do senhor? E quem quer pagar por ela?

Venho sofrendo ameaçasdesde 2000 de fazendeiros.A partir de 2005, tambémcomecei a ser ameaçado pordois policiais civis que de-nunciei pela tortura de umacriança. Um deles ainda nãocumpre seu mandado de pri-são. Quando Dorothy Stangfoi assassinada [em feverei-ro de 2005], saiu um lista emque minha morte valia R$100 mil. Desde então, a jus-tiça do Pará, contra minhavontade, determinou que umsegurança me acompanhas-se. Agora dizem que vale sóR$ 20 mil, me desvaloriza-ram [risos]. Mas sei que umfazendeiro da região disseque, se ocupassem a fazendadele, ele se vingaria de mime me mataria. De todo mo-do, estou tranquilo, seguin-do meu trabalho.

“A justiça paraense não é independente, é muito ligada à classe social mais abastada e manipulada pela ideologia de grupos dominantes do agronegócio”

“Quando Dorothy Stang foi assassinada, saiu um lista em que minha morte valia R$ 100 mil. Desde então, a justiça do Pará, contra minha vontade, determinou que um segurança me acompanhasse”

“Todo esse tribunal de júri é uma farsa, algo para iludir o povo. Como se vai julgar um crime 28 anos depois de cometido? Não tem condições”

Reprodução

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Mesmo sem mandato judicial, a polícia chega para expulsar acampados

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brasil

Protesto do MST em Belém pela reforma agrária e contra a violência no campo

Fotos: Elcimar Neves/ Ag.Pará

Raquel Júniado Rio de Janeiro (RJ)

AS AMEAÇAS e intimidações começaram às 10 horas da manhã, quando um grupo de segurança armada chegou ao local – um acampamento de famílias sem terra, na Fazen-da Cambará, em Santa Luzia do Pará, a 200 km da capital, Belém. Os seguranças, com escopetas, dispararam sete ti-ros em direção a uma ocupa-ção onde estavam 150 famí-lias. Além disso, bloquearam a entrada e a saída do local. As-sim foi o dia todo. Por volta de 17 horas chegaram as polícias civil e militar, de quatro cida-des da redondeza para mediar o confl ito. Segundo os sem ter-ra, no entanto, eles já aparece-ram dispostos a expulsar as famílias do local, embora não houvesse mandado de rein-tegração de posse. As autori-dades policiais requentaram uma ordem expedida seis me-ses antes e já considerada nula pela justiça paraense. As lide-ranças do acampamento pedi-ram um tempo para dialogar e pensar o que fazer, já que sa-biam que aquele mandado era inválido. “Não vamos dar tempo. Daqui a pouco o cho-que está chegando. E o cho-que vocês sabem como é que tira vocês, então é melhor sa-írem logo”, respondeu o coro-nel da PM, segundo relato de Ulisses Manaças, da coorde-nação estadual do Movimen-to dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Pará.

Este caso ocorreu no dia 11 de junho. Ulisses estava no acampamento no momento do despejo e relata que, co-mo não teve conversa, as fa-mílias foram instruídas a ti-rar os pertences dos barracos e colocar no próprio cami-nhão da polícia. O Batalhão de Choque chegou, mas não precisou agir. As famílias se-guiram em marcha até um lo-cal distante dois quilômetros da propriedade, onde se alo-jaram, provisoriamente, em um pequeno pedaço de ter-ra cedido por um camponês. “Havia três mulheres grávi-das e muitas crianças. E eles fi zeram terror o dia todo. Fe-lizmente, ninguém fi cou feri-do, mas criaram um clima de pânico”, denuncia Ulisses.

De acordo com as reco-mendações do 3º Plano Na-cional de Direitos Humanos (PNDH 3), como foi publica-do originalmente, esta deso-cupação não teria acontecido desta maneira. O texto origi-nal sugeria que, antes de rein-tegrações de posse, ocorres-sem audiências coletivas com os envolvidos e também com a

Retrocesso no combate à violênciaPNDH 3 O Brasil de Fato publica nesta edição a quarta e última reportagem da série produzida pela Escola Politécnica de Sáude Joaquim Venâncio – EPSJV/Fiocruz sobre recuos do governo federal em pontos chave do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos. Confi ra, a seguir, matéria sobre a realização de audiência coletiva antes de reintegração de posse

presença do Ministério Públi-co, poder público local, órgãos públicos especializados e PM. Mas o decreto 7.177, de 12 de maio, modifi cou este item do programa.

A quarta e última reporta-gem da série sobre as modi-fi cações no PNDH 3 discute o problema dos confl itos pe-la terra no Brasil e como o texto original tratava o tema. Em visita à Escola Politécni-ca de Saúde Joaquim Venân-cio (EPSJV/Fiocruz), onde foi convidado para proferir a aula inaugural do ano letivo, o mi-nistro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, comentou a reação dos latifundiários à proposta, explicando que o Plano não era uma ameaça à proprieda-de privada. “O que o progra-ma diz é que deve haver um mecanismo de mediação pa-cífi ca de confl itos, sem desres-peitar o direito à proprieda-de, mas sem passar pela via da criminalização”, disse.

O que mudouA partir do decreto de 12 de

maio, o texto do PNDH 3, no que se refere ao tema da me-diação dos confl itos no cam-po, passou a vigorar com du-as modifi cações: a expressão “audiências coletivas” foi su-primida e, apesar de a me-diação de confl itos continuar sendo sugerida, a prática dei-xou de fi gurar como ato ini-cial. O assunto é tema da ação programática “d”, presente no objetivo estratégico “VI – Acesso à justiça no campo e na cidade”. O texto original suge-ria: “Propor projeto de lei pa-ra institucionalizar a utiliza-ção da mediação como ato ini-cial das demandas de confl i-tos agrários e urbanos, priori-zando a realização de audiên-cia coletiva com os envolvidos, com a presença do Ministério Público, do poder público lo-cal, órgãos públicos especiali-zados e Polícia Militar, como medida preliminar à avaliação da concessão de medidas limi-nares, sem prejuízo de outros meios institucionais para so-lução de confl itos”. Após o de-creto, a redação fi cou assim: “Propor projeto de lei para institucionalizar a utilização da mediação nas demandas de confl itos coletivos agrários e urbanos, priorizando a oiti-va do Incra, institutos de ter-ras estaduais, Ministério Pú-blico e outros órgãos públicos especializados, sem prejuízo de outros meios institucionais para solução de confl itos”.

Em fevereiro de 2010, me-nos de dois meses após o lan-çamento do PNDH 3, o depu-tado federal Carlos Mendes

Thame (PSDB/SP) apresen-tou quatro projetos de decre-to legislativo (PDC) para tor-narem nulos alguns dispositi-vos do plano. Um deles, o PDC 2399/2010 questiona justa-mente essa ação programáti-ca. “O dispositivo do PNDH 3 do presidente Lula, cuja efi cá-cia deve ser suspensa, afronta os princípios constitucionais de independência do Poder Judiciário e do amplo poder de cautela assegurada ao jul-gador, que se encontram vin-

nar o juiz a decidir pura e simplesmente com base em critérios ideológicos, de for-ma a privá-lo de ter contato com a realidade. “O confl ito fundiário é eminentemente de fundo social e o juiz fi ca melhor instrumentalizado para compreender a reali-dade. Sem isso, a tendência é que a decisão seja supos-tamente técnica, despida de qualquer sentido da reali-dade e marcadamente ide-ológica”, diz.

O caso que abre esta re-portagem, da desocupação da fazenda Cambará, é, na opinião de Ulisses Mana-

ças, do MST, um exemplode situação em que a au-diência era necessária, jáque, segundo o movimen-to, não havia um mandadode reintegração atual. Ulis-ses denuncia que, na rea-lidade, a parte da fazendaocupada pelas famílias setrata de uma gleba federal.A fazenda fi ca às margensda BR 316, que liga o Paráa São Luiz do Maranhão e,como se trata de uma rodo-via federal, de acordo como MST, as áreas em tornoda BR são consideradas pú-blicas, mas que foram apro-priadas ilegalmente pe-lo dono da fazenda Cam-bará. “A primeira proposta[do PNDH 3] era um avan-ço. Este é um exemplo es-candaloso de terra públicaapropriada de forma ilíci-ta. Se houvesse a audiênciapública na região, provavel-mente a polícia não faria odespejo de forma violenta”,aposta. (RJ)

Rejeição às audiências tem fundo ideológicoOpositores do PNDH confi am no alinhamento dos juízes com os latifundiários

culados ao princípio do juiz natural, na sistemática ju-risdicional brasileira. A sim-ples concepção de instaurar-se, como estágio preliminar para a solução de demandas e confl itos agrários e urba-nos, a mediação obrigatória, constitui-se em ato emascu-latório do Poder Judiciário”, diz Thame, na justifi cativa do projeto. Segundo o deputado, o dispositivo tem uma função “castradora” do Judiciário. “O enunciado é muito claro em

seus objetivos: institucionali-zar a mediação como ato ini-cial das demandas de confl i-tos agrários e urbanos, deno-tando claramente o propósito de subverter a ordem jurídica e seus princípios basilares, in-clusive com grave prejuízo à celeridade processual e para a pacifi cação da confl ituosidade social”, completa Thame.

O presidente da Associa-ção Juízes para a Democra-cia (AJD), o juiz Luiz Fernan-do Barros Vidal, discorda que

o dispositivo previsto no PN-DH 3 afronte os princípiosconstitucionais. Para ele, portrás deste argumento, se es-conde um discurso reacioná-rio. “Invocaram uma autono-mia e independência do Judi-ciário, na verdade, para justi-fi car um comportamento rea-cionário. Não há nada de in-constitucional em você suge-rir ao juiz que faça audiên-cia”, diz.

Luiz Fernando completa que, mesmo sem esse dispo-sitivo no PNDH 3, é plena-mente possível aos juízes re-alizarem audiências antes de tomarem decisões como a de conceder uma liminar pa-ra reintegração de posse, por exemplo. Ele explica que o có-digo de processo civil permi-te ao juiz agir desta manei-ra e que, portanto, o Plano não apresentou nada inédito, apesar de ser importante este item estar expresso na publi-cação. “Se eu quiser fazer uma audiência para ouvir as pesso-as, eu faço, não precisa de lei para isso. Vários juízes já tive-ram esse cuidado de chamar os envolvidos, sentar, conver-sar. Todas estas críticas ser-viram, na verdade, para uma tentativa maldosa de desqua-lifi car o Plano e o ministro, al-go de má fé”, observa.

A reportagem procurou o deputado Mendes Thame, mas, por meio de sua asses-soria, ele informou que está de licença médica e que, por-tanto, não poderia responder. Entretanto, a assessoria de imprensa do deputado adian-tou que o projeto de decreto legislativo 2399/2010 perde o objetivo com as mudanças re-alizadas pelo governo federal no Plano, por meio do decre-to 7.177, de 2010. (Escola Poli-técnica de Saúde Joaquim Ve-nâncio (EPSJV/Fiocruz)O texto original

sugeria que, antes de reintegrações de posse, ocorressem audiências coletivas com os envolvidos

“O que o programa diz é que deve haver um mecanismo de mediação pacífi ca de confl itos, sem desrespeitar o direito à propriedade”

“Invocaram uma autonomia e independência do Judiciário, na verdade, para justifi car um comportamento reacionário”

do Rio de Janeiro (RJ)

Como já informou a pri-meira reportagem desta sé-rie (sobre ensino e símbo-los religiosos, publicada na edição 381), um conjunto de movimentos lançaram uma campanha pela integralida-de do PNDH 3. Entre essas entidades está a Comissão Pastoral da Terra (CPT), li-gada à Igreja Católica, que questiona, entre outros as-pectos, a modifi cação do dis-positivo que previa a reali-zação de audiências coleti-vas. “Qualquer ação que um movimento faça, eles [os la-tifundiários] apelam para o Poder Judiciário e o Poder Judiciário é rapidíssimo pa-ra atender qualquer deman-da do agronegócio”, avalia Antônio Canuto, secretário da coordenação nacional da CPT. Na opinião do juiz Luiz Fernando Barros Vidas, da Associação Juízes para a De-

mocracia (AJD), ao pressio-narem pela retirada das au-diências públicas do Plano, os setores contrários a este dispositivo, na realidade, fa-zem uma aposta de que o or-denamento jurídico e os cri-térios ideológicos dos juízes são de defesa intransigente da propriedade. “Conhecen-do a nossa história, o per-fi l do Judiciário, as caracte-rísticas das nossas leis, você apostar nesta solução de tu-tela incondicional da pro-priedade é uma aposta boa, pega bem”, comenta.

Para ele, a reação conser-vadora objetivava condicio-

“Sem isso a tendência é que a decisão seja supostamente técnica, despida de qualquer sentido da realidade e marcadamente ideológica”

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O debate reuniu cerca de 200 pessoas para discutir a diversifi cação das culturas de oleaginosas

O biodiesel pode ser refi nado a partir de espécies como a mamona

de 8 a 14 de julho de 20108

brasil

PROMOÇÃO

Aline Scarsoenviada a Fortaleza (CE)

CERCA DE duzentas pessoas, entre representantes de coo-perativas da agricultura fa-miliar, comunidades de bair-ros e estudantes da Universi-dade Federal do Ceará (UFC), participaram de debate so-bre agroenergia realizado em Fortaleza (CE), no dia 30 de junho. Com o tema “Matriz energética brasileira: suas potencialidades e desafi os”, este foi o primeiro de uma sé-rie de cinco eventos promovi-dos pelo Brasil de Fato, em parceria com a Petrobras, pa-ra discutir a diversifi cação da matriz energética brasileira a partir de fontes limpas e sus-tentáveis, e organizar a agri-cultura familiar para a pro-dução de agrocombustíveis no Brasil.

“É muito importante para um país não depender só de petróleo”, destacou o geren-te de gestão tecnológica da

Agricultura familiar pode produzirbiodiesel necessário para o Brasil

Petrobras Biocombustíveis, João Noberto Noschang Ne-to, um dos palestrantes do se-minário. “Nós estamos desen-volvendo tecnologia agríco-la, melhorando as condições de cultivo e de sementes para macaúba, pinhão-manso... A fi xação do agricultor no cam-po, com a geração de emprego e renda, não é um problema só nosso, mas do mundo to-do, e os biocombustíveis têm essa função social”, afi rmou.

O biodiesel é alternativa pa-ra substituir os derivados do petróleo na produção de ener-gia e pode ser refi nado a par-tir da soja, mamona, girassol, macaúba, dendê, entre outras espécies. No Ceará, o progra-ma de biodiesel tem incentivo do governo estadual, que dá ao agricultor R$ 200 por hec-tare plantado com oleaginosa consorciada com alimentos. Três mil e duzentos agricul-tores destinam parte do tra-balho para esse tipo de pro-dução depois de uma parceira entre a Petrobras Biocombus-tíveis e cooperativas da agri-cultura familiar.

“Estamos neste projeto por duas questões: primeiro por-que estamos evitando a mo-nocultura. A outra questão é que a produção de oleagi-nosa é uma forma de agre-gar renda ao produtor”, ex-plicou a representante dos movimentos sociais do cam-po e também palestrante do seminário, Antônia Ivonei-de da Silva, da Via Campe-sina. “Mas não iremos subs-tituir a produção de comida pela de oleaginosa para aten-der a demanda. Todos os pés de mamona, girassol ou algo-dão que nós plantamos foram consorciados com alimentos.

DEBATE No Ceará, Petrobras Biocombustíveis reafi rma prioridade em trabalhar com pequenos agricultores associados em cooperativas

da enviada a Fortaleza (CE)

A produção de fontes lim-pas de energia é uma ques-tão colocada internacio-nalmente desde que pes-quisas confi rmaram o ris-co de uma catástrofe huma-nitária caso se mantenha os atuais níveis de emis-são de gás carbônico. No Brasil, a produção de agro-combustíveis começa a ga-nhar corpo, mas a dúvida que fi ca é a seguinte: a sua produção será socialmente sustentável?

Fatima Lacerdado Rio de Janeiro (RJ)

QUEM DISSE que a esquer-da só se une na prisão, errou. A velha anedota que corre nos meios políticos e movimentos sociais não vale como referên-cia para a campanha “O Pe-tróleo Tem que Ser Nosso!”. Pelo menos é o que se pode concluir, a partir do conjun-to de organizações e entida-des que se reuniu para pro-mover o 1º Concurso Nacio-nal de Trabalhos Universitá-rios, patrocinado pelos petro-leiros do Estado do Rio de Ja-neiro, por meio da contribui-ção fi nanceira da categoria.

As inscrições para o concur-so vão se estender até 10 de setembro. O tema é “Petróleo, para que e para quem? O futu-ro do Brasil em nossas mãos.” Mais do que revelar talentos, em diversas áreas de produ-ção artística, jornalística e

Veja como se inscreverPodem participar do concurso estudantes univer-

sitários das redes pública e privada, da graduação ou pós-graduação (lato sensu e stricto sensu), con-correndo em uma das oito modalidades, de livre es-colha: 1) Áudio; 2) Vídeo; 3) Texto literário; 4) Tex-to acadêmico; 5) Texto jornalístico; 6) Trabalhos di-gitais; 7) Artes plásticas, desenho ou fotografi a; 8) Criatividade livre.

O primeiro passo é preencher a fi cha de inscrição na página eletrônica www.concursopetroleo.org.br. Os trabalhos são individuais e devem ser postados no correio ou entregues na Agência Petroleira de Notí-cias do Sindipetro-RJ (Avenida Passos, 34, centro do Rio de Janeiro/RJ) até o dia 10 de setembro de 2010. Os trabalhos não devem ser identifi cados, sob pena de desclassifi cação. O candidato deverá imprimir a fi -cha de inscrição on line e anexar ao trabalho, que se-rá identifi cado pelos organizadores do certame com um código. Os nomes dos autores só serão revelados, após a seleção fi nal da banca examinadora. (FL)

Energia sob controle do povo brasileiroCom o estímulo à fabri-

cação de etanol no Brasil a partir da década de 1970 por meio do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), o mo-nocultivo da cana-de-açúcar foi responsável por expulsar a população rural de suas terras. O temor é que possa acontecer algo semelhante a partir do incentivo da pro-dução de oleaginosa para o biodiesel, se este for apode-rado por grandes empresas do setor produtivo.

Mas como o povo brasilei-ro pode assumir o controle de uma possível nova matriz

energética? “O nosso grande desafi o é esse. É importante fazermos esse debate. O po-vo brasileiro precisa adqui-rir mais conhecimento nesse tema para que a gente possa lutar para assumir o contro-le da matriz”, destaca Antô-nia Ivoneide da Silva, da Via Campesina.

No Ceará, depois da pri-vatização da Companhia Energética do Ceará (Co-elce), responsável pela pro-dução e distribuição em todo o estado, o preço da energia encareceu. Des-de 1998, a empresa é con-

trolada pela Endesa Espa-nha, que hoje possui qua-se 60% das ações da com-panhia. Também a Petro-bras, quarta maior empre-sa de energia do mundo,também sofre com a cres-cente internacionalizaçãode seu capital. Atualmente,mais de 60% da (ainda) es-tatal pertence a acionistasestrangeiros. Para a inte-grante da Via Campesina,o controle social da produ-ção e distribuição é a únicaforma de reverter essa con-dição e, para isso, a luta é oúnico caminho. (AS)

Campanha do petróleo promove concurso para universitários

acadêmica, o objetivo é am-pliar a consciência e aprofun-dar o debate sobre questão tão relevante na atualidade: como explorar e o que fazer com es-sa fabulosa riqueza escondi-da no mar? Afi nal, as reservas de petróleo descobertas pode-rão tirar o país do atraso e seu povo da miséria? Ou servirão apenas para atrair a cobiça in-ternacional e a “maldição do petróleo”? Em que medida o trabalhador organizado e atu-ante tem condições de intervir nessa história?

Dezenas de prêmiosHaverá três premiações pa-

ra cada uma das oito modali-dades (ver box). Os trabalhos classifi cados em primeiro lu-gar receberão computadores; em segundo lugar vale-livros no valor de R$ 1 mil; em ter-ceiro lugar, vale-livros no va-lor de R$ 500,00. Os traba-lhos selecionados serão publi-cados e amplamente utiliza-

Se não for assim, não serve para a agricultura familiar”.

Cadeia produtivaPriorizar a plantação de

alimentos não signifi ca des-cartar a agricultura familiar da cadeia produtiva de agro-combustíveis. Dados da Pe-trobras Biocombustíveis con-fi rmam que 75% do agrocom-bustível produzido no país tem origem no esmagamen-to da soja. Como são poucos os pequenos agricultores que

conseguem trabalhar com es-se grão no país, a principal fonte de óleo para o biodie-sel não cria nenhum empre-go a mais no campo.

Também não há garantias de que a renda oriunda da plantação de qualquer ole-aginosa seja sufi ciente para a manutenção da família do pequeno produtor no cam-po. Isso porque 80% do custo do biodiesel está no processa-mento do óleo. Como cabe à agricultura familiar somen-

te vender a semente para es-magamento, resta ao produ-tor rural uma mísera parte da renda gerada.

Segundo Norberto, a Petro-bras Biocombustíveis estuda formas de esmagar a semen-te e retirar o óleo a partir das próprias cooperativas, o que agregaria mais valor ao pro-duto e garantiria maior ren-da para quem trabalhou duro na plantação. “Estamos per-cebendo que existe muito que melhorar. Nunca se inves-

tiu na cadeia das oleaginosascomo investimos atualmen-te, porque nunca houve tan-ta necessidade. Eu estive como presidente Lula e ele pediupara que fi zéssemos um ba-lanço do Programa Nacionaldo Biodiesel pois confi a que o biodiesel é a grande esperan-ça para a geração de empregoe renda para o pequeno pro-dutor no semi-árido”.

O desafi o que se coloca écomo diversifi car as culturas de oleaginosas no país e, aomesmo tempo, garantir quea produção de agrocombustí-vel não fi que sob controle dasgrandes empresas. Represen-tantes da agricultura familiarpresentes no evento reivin-dicaram o controle da cadeiaprodutiva e disseram que es-tão dispostos a plantar, esma-gar e produzir o óleo. “Querosaber como é possível aplicaressas técnicas na minha re-gião que ainda não tem na-da”, indagou Neuber JosélioAmador, assentado no esta-do de Goiás.

“Mas não iremos substituir a produção de comida pela de oleaginosa para atender a demanda”

dos na campanha “O Petróleo Tem que Ser Nosso”, que reú-ne trabalhadores da cidade e do campo, centrais sindicais, movimentos sociais, um am-plo leque de representações partidárias, organizações es-tudantis, religiosas e institui-ções civis.

A campanha tem como ban-deiras a retomada do mono-pólio estatal do petróleo, com controle social, o fortaleci-mento da Petrobras, a pros-pecção do petróleo de acor-do com as necessidades esta-belecidas a partir de um pro-jeto de desenvolvimento na-cional, sem desprezar a ques-tão ambiental. Defende, ain-da, que os recursos oriundos do petróleo sejam investidos em educação, saúde, reforma agrária, moradia e na pesqui-sa de fontes energéticas alter-nativas e menos poluentes. O projeto-de-lei dos movimen-tos sociais pode ser acessado na página www.apn.org.br.

Sobre o concurso, os candi-datos que quiserem mais in-formações devem acessar a página eletrônica www.concursopetróleo.org.br. Para fun-damentar os trabalhos, su-gere-se como fontes de pes-quisa artigos e matérias da Agência Petroleira de Notí-cias, www.apn.org.br ou das páginas eletrônicas de par-ceiros na promoção do con-curso: Associação de Enge-nheiros da Petrobrás (Ae-pet), Frente Nacional do Pe-troleiros (FNP), Federação Única dos Petroleiros (FUP), Sindicato Estadual dos Pro-fi ssionais do Ensino (Sepe-RJ), Sindicato dos Professo-res do Rio e Região (Sinpro-Rio e Região), diretórios cen-trais de estudantes (DCE) da UFRJ, UFF, UEE-RJ; além do Sindipetro-RJ e demais entidades que participam da Campanha “O Petróleo Tem que Ser Nosso!” (da Agência Petroleira de Notícias).

Miguel Stédile

Reprodução

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américa latina

Criança brinca perto do lixo em Tegucigalpa, capital hondurenha

Renato Godoy de Toledoenviado a Tegucigalpa

(Honduras)

É SABIDO QUE o saldo de um ano de golpe em Honduras, na esfera política, tem a instabili-dade e a repressão velada co-mo principais características. No aspecto econômico, a si-tuação acompanhou a piora e o país amarga as consequên-cias da instabilidade política e da crise fi nanceira interna-cional.

Segundo dados ofi ciais, o desemprego atinge cerca de 1,2 milhão de pessoas, em um país com uma população total de menos de 8 milhões de ha-bitantes. Ainda de acordo com estatísticas governamentais, um terço dos hondurenhos vi-ve com menos de 20 lempi-ras (a moeda local) diárias, o equivalente a um dólar. Para o Programa das Nações Uni-das para o Desenvolvimento (Pnud), a renda inferior a um dólar diário confi gura pobreza extrema.

Com o salário mínimo ele-vado pelo presidente deposto Manuel Zelaya, em 2008, par-te da população aponta que o problema do desemprego é fruto da política “populista” do ex-governante. Hoje, o dé-fi cit total de Honduras chega a 20 bilhões de dólares, o que equivale a 142% do PIB regis-trado em 2009. No ano do gol-pe, o país apresentou uma re-tração econômica de 2%. Por decreto, Zelaya colocou o salá-rio mínimo a 290 dólares pa-ra os trabalhadores urbanos e 214 para os rurais.

Classes altasApesar das críticas do pa-

tronato e de setores conser-vadores, hoje, o salário míni-mo considerado alto não su-pre as reais necessidades dos hondurenhos. Uma cesta bá-sica com 30 itens para uma fa-mília de cinco membros vale 338 dólares.

O descontentamento com o momento econômico do país não se limita apenas aos mais pobres. Nas classes mais altas, há uma reclamação contra os pacotes econômicos apresen-tados pelo governo de Porfi -rio Lobo, que têm como prin-cipal marca o aumento de im-postos.

No entanto, setores conser-vadores se valem das sanções econômicas promovidas pe-la Organização dos Estados Americanos (OEA) para argu-mentar que o problema hon-durenho não tem relação com o golpe de Estado, mas com o bloqueio da ajuda fi nanceira ao país centro-americano.

Direitos econômicosGilberto Ríos, da FoodFirst

Information & Action Ne-twork (Fian), aponta uma pio-ra signifi cativa da condição de vida em Honduras no últi-mo período. “Além dos direi-tos humanos, o golpe tem re-percussões ligadas aos direi-tos econômicos e sociais. A si-

tuação econômica e social do país piorou ainda mais. Há um maior desemprego e dimi-nuição da renda da população e mais fome”, explica.

Para o ex-candidato à pre-sidência de Honduras, Carlos H. Reyes, há um processo de piora econômica que tem si-do combatido pelos membros da Frente Nacional de Resis-tência Popular (FNRP), or-ganização criada após o gol-pe de 2009.

De acordo com Reyes, que retirou sua candidatura no ano passado por considerar ilegítimo o processo eleitoral, a defesa de direitos econômi-cos e sociais têm sido tão im-portantes para a FNRP como as bandeiras da volta de Ma-nuel Zelaya ao país e da ins-tauração de uma Assembleia Nacional Constituinte.

“Esse governo já emitiu um pacote de impostos e tu-do indica que vai impor ou-tros. Estão nos levando aqui ao que está acontecendo na Grécia. Além de toda nos-sa luta pela Assembleia Na-cional Constituinte, estamos em vigília em defesa dos nos-sos direitos sociais e econô-micos. A situação no país pio-ra por conta do desemprego e pelo fato de os EUA devolve-rem uma grande quantidade de imigrantes. E aqui não há trabalho”, relata.

do enviado a Tegucigalpa (Honduras)

Os EUA tentam vender a imagem de que Honduras vive um governo de conci-liação, onde não há viola-ção aos direitos humanos e a resistência praticamente não existe. Essa é a visão de Carlos H. Reyes, sindicalista hondurenho e ex-candida-to à presidência da Repúbli-ca de Honduras, em 2009. Atendendo aos movimen-tos sociais, Reyes foi um dos candidatos que desistiu do pleito e engrossou o boicote ao processo eleitoral.

Para o sindicalista, o go-verno de Honduras, desde o golpe de junho de 2009, tem suas ações baseadas nos interesses de Washing-ton, basicamente. “O embai-xador dos EUA aqui [Hugo Llorens] é quem dirige o go-verno. Eles tentam unifi car o Partido Liberal para divi-dir a resistência e continu-am aumentando o poder das Forças Armadas, dando-

do enviado a Tegucigalpa (Honduras)

A fi m de receber o reco-nhecimento de países la-tino-americanos e euro-peus, o presidente hondu-renho Porfi rio Lobo instau-rou uma Comissão da Verda-de, para, segundo ele, apurar o que ocorreu antes, duran-te e depois do golpe de Esta-do que derrubou o presiden-te Manuel Zelaya, em junho de 2009.

Como os movimentos so-ciais que compõem a Frente Nacional de Resistência Po-pular (FNRP) não reconhe-cem o governo, por ter sido eleito durante o regime gol-pista, as próprias organiza-ções criaram um mecanis-mo civil de apurar os abusos ocorridos.

A Comissão de Verdade (com ênfase no “de”) foi ini-

lhes mais armas e dinheiro. Além disso, há dois meses instalaram a segunda base militar no país, em meio a uma zona indígena onde há petróleo e água”, aponta.

Sob essa constatação, Reyes afi rma que o golpe em seu país é parte de uma estratégia dos EUA de reto-mar o controle sobre a Amé-rica Central.

Zelaya acusaNo aniversário do golpe

de Estado em Honduras, o presidente deposto Ma-nuel Zelaya afi rmou que as ações que o tiraram do po-der foram orquestradas pe-los EUA. O país administra-do por Barack Obama, ini-cialmente, mostrou-se con-trário ao golpe, mas foi uma das poucas nações a reco-nhecer as eleições de no-vembro de 2009. “Tudo in-dica que o golpe foi orques-trado na base militar de Pal-merola, pelo Comando Sul dos EUA, e executado torpe-mente por maus hondure-nhos. O tempo e o apoio pú-

Tese de participação dos EUA no golpe ganha forçaEx-candidato à presidência afi rma que governo atual é dirigido por Washington

blico que os EUA termina-ram dando ao golpe e àque-les que o executaram con-fi rmam sua participação”, afi rma a carta enviada por Zelaya, desde seu exílio na República Dominicana.

O porta-voz do Departa-mento de Estado dos Esta-dos Unidos, Mark Toner, li-mitou-se a dizer que a decla-ração do ex-presidente é “ri-dícula”. (RGT)

ciada no dia 28 de junho des-te ano, em Tegucigalpa, após o encerramento da marcha que celebrou um ano de re-sistência contra o golpe de Estado.

As investigações serão fei-tas por membros da socieda-de civil hondurenha e inter-nacional. Diversas persona-lidades devem participar das atividades, tais como a inte-grante das Avós da Praça de Maio Nora Cortiñas (Argen-tina), o Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel (Argentina), o sociólogo François Houtart (Bélgica) e o padre Fausto Milla (Honduras). “A parti-cipação dessas personalida-des dá uma grande credibili-dade à nossa comissão, que é uma contrapartida à comis-são instalada pelo governo, que visa legitimar o regime de fato”, explica Gilberto Rí-os, da FoodFirst Information & Action Network (Fian).

“Ditadura”Ríos aponta que o regime

golpista aplicou medidas dita-toriais e contra a vida huma-na, e que isso deve ser anali-sado na comissão. “Havia vio-lações de todo o tipo. Desta-camos os direitos humanos de primeira geração: o direi-to à vida, à verdade e os civis e políticos. Houve uma massi-va agressão física contra ma-nifestações e violações contra a mulher, perseguição e assas-sinatos”, relata.

Para Nohemí Peréz, irmã de Samuel Peréz, desapareci-do político desde 1982, a co-missão instalada pelo governo não conta com qualquer con-fi ança dos familiares de víti-mas. “Do governo, não espero nada. Não quero ser pessimis-ta, mas, deles, não posso espe-rar nada. Mas tenho esperança na Comissão de Verdade e na plataforma de direitos huma-nos. São personalidades que têm sido transparentes em su-as lutas”, aponta Peréz, que é membro do Comitê de Fami-liares de Detidos e Desapare-cidos em Honduras. (RGT)

A Comissão de Verdade (com ênfase no “de”) foi iniciada no dia 28 de junho deste ano, em Tegucigalpa, após o encerramento da marcha que celebrou um ano de resistência contra o golpe de Estado

FNRP lança “Comissão de Verdade”Iniciativa se contrapõe à comissão instaurada pelo governo Porfi rio Lobo

No pós-golpe, economia hondurenhadefi nha e desemprego disparaUM ANO DE GOLPE Honduras enfrenta consequências da instabilidade política interna e da crise fi nanceira internacional

Desemprego atinge cerca de 1,2 milhões de pessoas, em um país com uma população total de menos de 8 milhões de habitantes

Reprodução

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de 8 a 14 de julho de 201010

américa latina

Queremos um pedaço do sonho americano, pede imigrante em cartaz

Fotos: Reprodução

Mário Augusto Jakobskinddo Rio de Janeiro (RJ)

A ASSOCIAÇÃO Nacional de Cubanos Residentes no Bra-sil (ANCREB) realizou, no Rio de Janeiro, a sua segunda con-venção para analisar como po-de contribuir para fazer frente à ofensiva midiática contra Cuba, que, nos últimos meses, intensifi cou-se.

Um dos participantes do encontro, o jornalista cuba-no Edmundo García – que veio de Miami, onde vive há dez anos e tem um programa de rádio de grande audiência (um milhão de ouvintes em AM e na internet) –, conver-sou com o Brasil de Fato so-bre os desafi os de se viver nu-ma cidade dos Estados Unidos em que cubanos-estaduniden-ses têm grande presença e in-fl uência, inclusive na política estadunidense.

Ele explica, também, que os cubanos que eventual-mente vivem no exterior não necessariamente se alinham com as organizações de ex-trema direita que fazem vio-lenta campanha contra o re-gime socialista da ilha cari-benha. Segundo ele, as novas gerações de cubanos, embora não cheguem a ser revolucio-nárias, não aceitam o ideário anti-castrista dos remanes-centes da época em que Cuba era considerada o prostíbulo do Caribe.

O jornalista cubano reve-la – segundo ele, pela primei-ra vez – como Cuba, ao infor-mar o serviço secreto dos Es-tados Unidos de um complô, evitou que a extrema direi-ta estadunidense perpetrasse um atentado que poderia ter assassinado o então presiden-te Ronald Reagan (1981-1989) e que, possivelmente, convul-sionaria aquela nação.

Brasil de Fato – Há quanto tempo vive em Miami? Edmundo García – Há mais de dez anos.

Por que decidiu sair de Cuba e ir para Miami?

Minha saída de Cuba se deveu a uma decisão pesso-

al. Nunca fi z parte da chama-da “oposição” nem tive algum enfrentamento ou colisão com o governo cubano. Vivo em Miami porque é lá onde estão minhas raízes cubanas mais próximas.

Desde que se radicou em Miami, esteve alguma vez em Cuba?

Visitei Cuba em oito ocasi-ões depois de partir.

De um modo geral, quando se fala de cubanos residentes nos Estados Unidos, eles são associados aos setores de direita, dos que saíram nas ruas para comemorar a doença de Fidel Castro ou dos que previam o fi m do socialismo em Cuba, o que já foi objeto até de crônica irônica do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Mas parece que nem todos estão nessa linha. Explique o panorama dos cubanos que vivem nos Estados Unidos.

Sim, em Miami, vivem ter-roristas, mas que estão ca-da vez mais em minoria. Eles têm seus protetores, incluído o próprio governo dos Esta-dos Unidos. Mas, agora, a co-

munidade cubana, sobretu-do os que chegaram depois de 1980, têm uma visão di-ferente sobre Cuba. Não digo que sejam revolucionários, e sim que não sentem vínculos com a extrema direita, que é igual a um tigre com dinhei-ro, mas sem dentes, nem for-ça de convocação, nem pres-tígio e moral. Estão condena-dos pela história.

Como se deu o seu processo de politização até chegar a ser um defensor do regime cubano?

A ultra-direita cubana me fez abrir mais os olhos e pu-de ver que seus interesses são alheios e perigosos para o po-vo cubano.

Você é um radialista cubano que atua em Miami num espaço com um milhão de ouvintes. Como é ser cubano, não anti-regime socialista, vivendo em Miami? Em suma: como é viver numa cidade onde se encontram notórios terroristas circulando impunemente, como Posada Carriles e outros? Aliás, explique para os leitores quem é Carriles.

É um desafi o diário levantar uma voz alternativa em Mia-mi, mas é gratifi cante quan-to alcançamos quem quere-mos. Enfrentar diariamente os anti-cubanos produz adre-nalina, que estimula os dese-jos de realizar. Posada Carri-les é o Osama Bin Laden da América Latina, com dezenas de torturas, desaparecimentos e assassinatos em seu currícu-lo. Os Estados Unidos o jul-gam apenas como mentiroso e não querem deportá-lo pa-ra a Venezuela, onde ele está condenado por ser o respon-sável por uma explosão de um avião da Cubana de Aviação que provocou 73 mortes. Po-sada Carriles ingressou recen-temente nos Estados Unidos burlando o serviço de imigra-ção. Mentiu para entrar. Mas é bom saber que os Estados Unidos não querem moles-tar esse terrorista. É pura hi-pocrisia, portanto, sobretudo pelo fato de os Estados Uni-dos se colocarem, aos olhos do mundo, diferenciando terro-ristas. Ou seja, os bons, como Posada Carriles, e os demais.

Você tem sofrido ameaças da direita cubana, integrada por remanescentes do anterior regime e, até mesmo, repressores da ditadura de Fulgencio Batista (ditador derrubado pela Revolução Cubana, em 1959)?

Sim, fi zeram-me amea-ças pouco importantes, mas perseguiram-me economica-mente para que eu não fale, para que não transmita mi-nhas ideias. Entender de fo-ra de Cuba o processo políti-

co do país é algo longo de ex-plicar, mas te digo: está re-lacionado com a consciência de cada um, principalmente quando nos damos conta dos perigos e injustiças que Cuba enfrenta.

Em sua palestra no Rio de Janeiro, na atividade da Associação Nacional dos Cubanos Residentes no Brasil, você disse que o governo cubano informou ao governo dos Estados Unidos, no período do presidente Ronald Reagan, sobre a possibilidade de um atentado para assassiná-lo. Como é essa história?

A história é como contei. Nos anos 1980, um grupo ex-tremista branco dos Estados Unidos tinha tudo preparado para assassinar o presidente Ronald Reagan. Cuba obte-ve essa informação e a trans-mitiu às autoridades daquele país. O atentado foi neutrali-zado e os extremistas presos, com todas as provas. O servi-ço secreto dos EUA agradeceu ao governo cubano. O irônico da história é que o governo es-tadunidense fi nanciava e as-sessorava a tristemente céle-bre Fundação Nacional Cuba-no Americana, a qual, entre outras coisas, organizaria o plano de assassinato de Fidel Castro naquele ano.

Você, como cidadão estadunidense, revelou ter votado no presidente Barack Obama. Por que votou nele? E agora, está decepcionado ou repetiria tranquilamente o voto?

Não há dúvidas que Obama deu esperanças aos Estados Unidos e ao mundo, por sua cor, por sua inteligência e pela necessidade real de uma mu-dança, mas o establishment o engoliu. Falta-lhe caráter e, se não reagir logo, passará para a história como mais do mes-mo. E a direita estadunidense vai radicalizar ainda mais ca-

so tome o poder. Tudo isso é muito perigoso para os Esta-dos Unidos e para o mundo, principalmente para a Amé-rica Latina. A política exter-na estadunidense pouco mu-dou. Claro que Obama me de-cepcionou.

Você vê possibilidade de, no governo Obama, ocorrer alguma mudança de postura dos Estados Unidos em relação a Cuba?

Creio que Obama ainda es-tá em tempo de cumprir tan-to as promessas de campanha como as que fez na última Cú-pula da Américas, em Trini-dad y Tobago, aos presiden-tes da região; algo que não fez, mas, oxalá, corrija.

Bastaria apenas que cum-prisse o dito em Trinidad y Tobago e já estaria colocan-do um novo rumo em sua po-lítica em relação a Cuba. Fará isso? Não tenho grandes espe-ranças, mas aguardemos com a paciência de Jó, sempre com a certeza do que está em jogo para Cuba.

Alguma mensagem especial aos leitores do Brasil de Fato?

Ao Brasil, o gigante des-te continente, ao seu povo,agradeço pela solidariedade,por ser uma força de impor-tância vital dos novos tem-pos. Defender o direito deCuba a sua soberania, semingerências nem embargoscomerciais, é algo que ajudaa que esses mesmos direitossirvam para esta nossa Amé-rica. Não se deixem enganarpor campanhas midiáticaspagas e vergonhosas contra apequena, mas heroica e soli-dária, Cuba. Ajudem-nos a li-bertar os cinco heróis presosnos Estados Unidos.

Um socialista cubano em MiamiENTREVISTA Radialista que migrou de Cuba para os EUA defende o regime político vigente na ilha caribenha

Edmundo García, 42 anos, é um cubano que vive em Miami (EUA) há dez anos. Tem um programa de rádio cuja audi-ência alcança um milhão de ouvintes em todas as tardes, em AM e na internet, e onde defende a Revolução Cubana e denuncia ações da extrema direita do exílio cubano.

Quem é

“Nunca fi z parte da chamada “oposição” nem tive algum enfrentamento ou colisão com o governo cubano”

“Não há dúvidas que Obama deu esperanças aos Estados Unidos e ao mundo, por sua cor, por sua inteligência e pela necessidade real de uma mudança, mas o establishment o engoliu” “Em Miami, vivem

terroristas, mas que estão cada vez mais em minoria. Eles têm seus protetores, incluído o próprio governo dos Estados Unidos”

Café em La Pequena Havana, região de Miami ocupada, principalmente, por imigrantes cubanosCafé em La Pequena Havana, região de Miami ocupada, principalmente, por imigrantes cubanos

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Crianças carregam vasilhas e garrafas d´água: metade dos haitianos não tem acesso à água potável

ECONOMIA

de 8 a 14 de julho de 2010 11

américa latina

O presidente venezuelano Hugo Chávez

Reprodução

Thalles GomesTi Rivye Latibonit (Haiti)

MUITOS SÃO os desafios do povo haitiano na tarefa de re-construção do país após o ter-remoto de 12 de janeiro de 2010, que vitimou mais de 300 mil pessoas e desabrigou 1,5 milhão. No entanto, uma das demandas mais emergen-ciais – e que já difi cultava a vida de milhões de haitianos bem antes do terremoto – é a do acesso à água limpa.

Segundo dados da OMS (Organização Mundial de Saúde), um em cada dois haitianos não tem acesso à água potável. Se somarmos isso ao fato de que apenas 19% da população têm aces-so ao sistema de saneamento básico, e que esses dados não contabilizam os danos da ca-tástrofe de 12 de janeiro, po-demos perceber a gravida-de e centralidade da questão da água no panorama atual do país.

O acesso à água no Haiti: entre a privatização e a solidariedade

Enquanto algumas multina-cionais propõem como saída para esse dilema a privatiza-ção da água, transformando-a cada vez mais em mera mer-cadoria – a Nestlé, por exem-plo, colocou em circulação no país, após o terremoto, cer-ca de 1 milhão de dólares em garrafas de água –, há os que buscam outras formas de so-

COOPERAÇÃO Os movimentos sociais que compõem a Via Campesina Brasil estão compartindo com os camponeses haitianos as experiências e técnicas de captação da água da chuva

Mark Weisbrot

A CONTRAÇÃO da economia venezuelana observada no ano passado (como aconteceu na imensa maioria das econo-mias do hemisfério ociden-tal), o racionamento de ener-gia elétrica no país e a queda severa do valor da moeda lo-cal no mercado paralelo fi ze-ram com que reportagens so-bre a ruína econômica da Ve-nezuela voltassem às man-chetes.

O The Washington Post, em uma matéria que mais parece um editorial, relata que a Ve-nezuela está “presa em uma crise econômica” e que “anos de intervenções estatais na economia estão prejudicando brutalmente os negócios pri-vados”.

Mas há um importante fa-to que quase nunca é mencio-nado em reportagens sobre a Venezuela, pois não se encai-xa na narrativa de um país que gastou selvagemente du-rante os anos de bonança e que, logo, como a Grécia, en-frentará seus dias de acerto de contas. É o nível da dívida go-vernamental: atualmente, em cerca de 20% do PIB.

Em outras palavras, mes-mo triplicando o gasto social

pidamente, com a expansão planifi cada do investimento público neste ano, incluindo 6 bilhões de dólares para a geração de eletricidade.

O maior erro econômico do governo a longo prazo foi a manutenção de uma taxa de câmbio fi xa e sobrevalorizada. Apesar do Executivo ter des-valorizado o câmbio em janei-ro, de 2,25 bolívares para 4,3 bolívares o dólar para a maio-ria das transações estrangei-ras, ele continua sobrevalori-zado. A taxa do mercado ne-gro está em mais de 7 bolíva-res o dólar.

Câmbio sobrevalorizadoTal situação, por tornar, ar-

tifi cialmente, as importações mais baratas e as exportações mais caras, prejudica os seto-res de bens que não o petróleo e impede a diversifi cação da economia do país. Pior: a al-ta taxa de infl ação (28% no úl-timo ano e uma média de 21% anuais nos últimos sete anos)

torna o câmbio mais sobre-valorizado a cada ano. (A im-prensa também entendeu mal esse problema – a infl ação, por si só, é muito alta, mas o principal prejuízo que traz à economia não é a elevação dos preços em si, mas uma cres-cente sobrevalorização da ta-xa de câmbio real.)

Mas a Venezuela não está na mesma situação da Gré-cia – nem de Portugal, Irlan-da ou Espanha. Nem da Le-tônia ou Estônia. Os quatro primeiros países estão pre-sos em uma taxa sobrevalo-rizada – no caso, o euro – e implementam políticas fi s-cais pró-cíclicas (por exem-plo, redução do défi cit) que estão aprofundando suas re-cessões e/ou retardando su-as recuperações.

Eles não têm nenhum con-trole sobre políticas monetá-rias, prerrogativa do Banco Central Europeu. Os últimos dois países se encontram em situação semelhante, uma vez

que eles mantêm seus câm-bios vinculados ao euro, e per-deram em produção 6 ou 8 ve-zes o que a Venezuela perdeu nos últimos anos.

ControleJá a Venezuela, pelo contrá-

rio, controla suas próprias po-líticas cambial, monetária e fi scal. O país pode usar polí-ticas fi scais e monetárias ex-pansionistas para estimular a economia, e, também, po-de mudar a política cambial – deixando o câmbio fl utu-ante. Um câmbio administra-do – através do qual o gover-no não fi xa um câmbio, mas intervém, quando necessário, para preservar a estabilidade cambial – benefi ciaria mui-to mais a economia venezue-lana. O governo poderia es-tabelecer uma taxa de câm-bio em um nível competitivo e não teria que desperdiçar tan-tos dólares, como o faz atual-mente, tentando reduzir a di-ferença entre o câmbio ofi cial e o paralelo.

Embora houvesse previsões (como sempre exageradas) de que a infl ação dispararia devi-do à mais recente desvaloriza-ção, ela não disparou, possi-velmente porque muitas tran-sações com o exterior aconte-cem no mercado paralelo de qualquer forma.

A Venezuela está em uma boa posição para resolver seus atuais problemas macro-eco-nômicos e buscar uma robus-ta expansão econômica, co-mo o fez entre 2003 e 2008. O país não está enfrentando as consequências de uma cri-se, mas as de uma escolha po-lítica (do Counterpunch, ori-ginalmente publicado no The Guardian).

Mark Weisbrot é economistae co-diretor do Center for

Economic e Policy Research. É co-autor, com Dean Baker, de Social Security: the Phony Crisis.

Tradução: Igor Ojeda

real por pessoa, aumentan-do o acesso a saúde e educa-ção e emprestando ou doan-do bilhões de dólares para ou-tros países latino-americanos, a Venezuela estava reduzindo sua dívida durante a alta do preço do petróleo.

ComparaçãoA dívida pública caiu de

47,5% do PIB em 2003 pa-ra 13,8% em 2008. Em 2009, devido ao encolhimento da economia, esse passivo che-gou a 19,9% do PIB. Mes-mo se incluirmos a dívida da empresa estatal de petró-leo, a PDVSA, a dívida públi-ca venezuelana fi ca em 26% do PIB. A parcela estrangei-ra dessa dívida é menor que a metade do total.

Compare esses números com os da Grécia, onde a dí-vida pública representa 115% do PIB e, estima-se, chega-rá a 149% em 2013. (A mé-dia da União Europeia é cer-ca de 79%). Dado o nível mui-to baixo das dívidas pública e externa do governo venezue-lano, a ideia de que o país es-tá enfrentando uma “crise econômica” é simplesmente equivocada.

Com o petróleo a cerca de 80 dólares o barril, a Vene-zuela está obtendo um razo-

ável superávit em conta cor-rente, e tem um nível saudá-vel de reservas. Além disso, o governo pode pedir dinhei-ro emprestado se necessá-rio – há alguns meses, a Chi-na concordou em emprestar à Venezuela 20 bilhões de dó-lares como adiantamento ao pagamento de futuros forne-cimentos de petróleo.

Desafi osNo entanto, o país ainda

enfrenta signifi cativos de-safi os econômicos, alguns dos quais pioraram depois de medidas macroeconômi-cas equivocadas. A economia encolheu 3,3% no ano passa-do. A imprensa internacional tem difi culdade para enten-der, mas o verdadeiro pro-blema foi que a política fi scal do governo foi muito conser-vadora – ao cortar gastos en-quanto a economia se cami-nhava para a recessão. Foi um erro, mas, oxalá, o gover-no reverterá essa situação ra-

Comparar e contrastarA ideia de que a Venezuela está enfrentando uma “crise econômica” é simplesmente equivocada, especialmente comparando-se com a Grécia

lidariedade. Os movimentos sociais que compõem a Via Campesina Brasil, por exem-plo, estão compartindo com os camponeses haitianos as experiências e técnicas de cap-tação da água da chuva.

SoluçãoCom índices pluviométri-

cos anuais que variam de 500

mm nas regiões mais áridas a 2.500 mm nas montanhas, o Haiti possui uma média anual de incidência de chuvas seme-lhante a de algumas das regi-ões mais úmidas no Brasil. De fato, não falta água no Haiti, o que falta é um melhor apro-veitamento da que já existe.

Diante disso, a técnica de captação de água da chuva por meio de cisternas e seu posterior reaproveitamento, tanto para uso humano co-mo para atividades produ-tivas agropecuárias, se con-fi gura como uma das solu-ções mais viáveis para o pro-blema do acesso à água lim-pa no país.

Uma troca de experiências nessa área já está em cur-

so há alguns anos entre mo-vimentos camponeses hai-tianos e brasileiros. A ida de técnicos brasileiros ao Hai-ti e a visita de camponeses e lideranças haitianas ao Brasil vêm alastrando e divulgando as diversas técnicas de cons-trução e utilização de cister-nas. Entretanto, após o ter-remoto, tornou-se necessário intensifi car e incrementar es-sa troca.

Por esse motivo, uma par-ceria entre a Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza do Go-verno da Bahia, a Coorde-nação-Geral de Ações Inter-nacionais de Combate à Fo-me do Ministério de Rela-ções Exteriores e a Via Cam-

pesina Brasil está proporcio-nando a entrega de 1.284 cis-ternas emergenciais de polie-tileno às famílias camponesashaitianas.

FormaçãoEsse tipo especial de cister-

na, com capacidade para ar-mazenar até 8 mil litros deágua, por ser feita de mate-rial mais fl exível e fi nancei-ramente mais acessível, é omais indicado para atenderas necessidades emergenciaisdos camponeses e campone-sas haitianos.

Essas 1.284 cisternas de-sembarcaram em solo haitia-no no dia 10 de junho de 2010 e, através da ação da Brigada da Via Campesina Brasil no Haiti e movimentos campo-neses haitianos, já começa-ram a ser distribuídas e ins-taladas em diversas regiões do país. Comunidades campone-sas nos departamentos Nor-te, Noroeste, Nordeste, Lati-bonit, Central, Oeste, Sudeste, Nippes e Grandanse já recebe-ram as cisternas.

O passo atual é o da for-mação técnica e política, pa-ra que as comunidades bene-fi ciadas possam não só insta-lar as cisternas em suas ca-sas, como também compre-ender os entraves e desafi os do acesso à água enfrenta-do no Haiti e no mundo. Es-sa formação já está em curso,organizada pelos movimen-tos camponeses haitianos ea Brigada da Via CampesinaBrasil no Haiti.

As primeiras cisternas já fo-ram instaladas. A perspectivaé que, para o próximo perío-do, 30 mil cisternas sejam en-viadas ao Haiti. Um exemploconcreto de solidariedade en-tre os povos, que não precisanem de armas nem de lucrospara se efetivar.

A ida de técnicos brasileiros ao Haiti e a visita de camponeses e lideranças haitianas ao Brasil vêm alastrando e divulgando as diversas técnicas de construção e utilização de cisternas

Alfonso Ocando/Prensa Mirafl ores

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Lula recebe o presidente da Síria, Bashar Al-Assad, no Itamaraty

ANÁLISE

de 8 a 14 de julho de 201012

internacional

Homem e criança descansam em campo de refugiados no Uzbequistão, próximo à fronteira com o Quirguistão

Reprodução

Raphael Tsavkko Garcia

À MEDIDA que o tempo pas-sa e a situação no Quirguis-tão torna-se mais desespera-dora para os refugiados e re-lativamente mais calma na ci-dade de Osh – principal foco dos enfrentamentos que vem ocorrendo recentemente –, o mito de que o confl ito seja meramente étnico cai por ter-ra, ao menos parcialmente.

As mortes nos confrontos na cidade de Osh, no sul do Quir-guistão, vêm depois da depo-sição do presidente Kurman-bek Bakiev, após uma violenta revolução que levou milhares de pessoas às ruas numa onda de violência avassaladora.

Revoluções e confl itos não são novidades no Quirguistão, que já havia enfrentado outro processo revolucionário em 2005, conhecido como Revo-lução das Tulipas, que acabou com a deposição do ditador Askar Akayev, no poder desde 1990, e a posse do agora desti-tuído Bakiev.

Luta por poderOsh, em particular, também

foi palco de confl itos sangren-tos, quando, em 1990, uzbe-ques e quirguizes entraram em confl ito pelo status políti-co da região; a maioria uzbe-que exigia um status especial ou a “devolução” da área ao Uzbequistão.

Uma visão do confl ito no QuirguistãoÁSIA CENTRAL Os enfrentamentos recentes entre quirguizes e uzbeques difi cilmente podem ser resumidos como puramente étnicos

Mas, agora, o confl ito difi -cilmente pode ser resumido como puramente étnico. É o que diz Mirsulzhan Namaza-liev, quirguiz e editor do blog Neweurasia.net. Ele salienta que os “casamentos interétni-cos são muito comuns na re-gião do Vale do Fergana”, on-de fi ca Osh, e que “a proximi-dade entre Uzbequistão, Tad-jiquistão e Quirguistão, que ali fazem fronteira, torna a migração algo extremamente simples e corriqueiro”.

Ekaterina Golubina, uzbe-que e autora e tradutora do portal de mídia cidadã Glo-bal Voices Online, acredi-ta que “ainda que haja, de fato, um embate maior en-tre membros das etnias uz-beque e quirguiz na região, é provável que o confl ito se trate de uma luta por po-der entre a elite deposta e a nascente”, ideia comparti-lhada pelos editores do blog Registan.net, uma das mais fi áveis fontes de informação em inglês sobre a região.

Guerra civil“Emerge um consenso de

que nada disso ocorreu por-que dois grupos étnicos não gostam um do outro. Há in-dícios de que o confl ito co-meçou como uma tentativa de desestabilizar o novo go-verno” [sob o comando de Roza Otunbayeva], dizem eles, que afi rmam ainda que a queda do antigo governo quebrou de forma drástica a cuidadosa cadeia de poder no país, em especial no sul – de onde vinha a família de Bakiev. Ou seja, o que vemos é uma competição por poder em que dois grupos antagô-nicos se digladiam e os uzbe-ques aproveitam para exigir maiores direitos e liberdades civis, acabando por sofrer as consequências.

Todos concordam que, de fato, existe um perigo de

guerra civil no Quirguistão, mas descartam categorica-mente um enfrentamento com o Uzbequistão, que tem se limitado a observar, refor-çar suas fronteiras e coorde-nar os esforços para a chega-da de, até o momento, mais de 100 mil refugiados do pa-ís vizinho.

Mesmo com a certeza da morte de civis uzbeques, o governo desse país difi cil-mente teria vontade de inter-vir, de uma forma ou de ou-tra. É o que acredita Nama-zaliev. Segundo ele, qualquer tipo de intervenção uzbeque seria vista como uma afronta à soberania do Quirguistão, sendo logo rechaçada.

LiçõesOs editores do Registan.net

lembram ainda que os confl i-tos em Osh em 1990, dada a magnitude e os mais de 300 mortos, serviram como uma poderosa lição para desenco-rajar qualquer tipo de hosti-lidade entre os países. Além disso, o presidente do Uzbe-quistão, Karim Islamov, teria maiores preocupações, como se manter no poder e solidifi -car seu governo repressivo, do que efetivamente intervir em assuntos estrangeiros.

A relação entre os dois paí-ses, porém, sempre foi tensa, e, normalmente, os aconte-cimentos em um refl etem no outro, como foi o caso da Re-

volução das Tulipas no Quir-guistão, que acabou animan-do a oposição democrática e liberal uzbeque a sair às ruas e exigir democracia.

Como consequência, entre 300 e mil pessoas foram mas-sacradas na cidade de Andijan (os números até hoje são des-conhecidos e nenhuma inves-tigação independente jamais foi feita) e, desde então, o go-verno tem evitado dar qual-quer espaço para contestação ainda que, de acordo com Go-lubina, o povo também tenha aprendido sua dura lição.

TemoresÉ unânime a certeza de

que a continuação do confl i-to no Quirguistão traria ape-nas mais sofrimento à popula-ção local e que todo esse pro-cesso se deu pela incapacida-de do exército local em inter-vir a tempo e com fi rmeza.

Namazaliev afi rma ainda que o único exército minima-mente capaz é o do Uzbequis-tão, enquanto tanto a polícia

quanto as Forças Armadas quirguizes são fracas, mal ar-madas e em pequeno número, o que talvez explique a ordem dada pela presidente interina de atirar para matar.

O temor é o de que, confron-tados com opositores bem ar-mados, as forças de segurança locais não consigam controlar a situação e que o envio mas-sivo de efetivos para o sul te-nha deixado o norte – e, con-sequentemente, a capital do país, Bishkek – desprotegida e livre para a ação dos apoiado-res do regime deposto.

PotênciasO fi m do confl ito ainda es-

tá por vir. Por hora, espera-se alguma atitude das potências e da ONU, e até mesmo uma ação mais fi rme da Rússia, pa-ra que o confl ito chegue ao fi m e seja dada uma solução para o retorno dos refugiados.

Golubina acredita que a co-munidade internacional não deixará a região se tornar um palco de confl itos semelhan-te aos vizinhos Afeganistão e Paquistão. Mas, até agora, nenhum esforço internacio-nal foi enviado para a região e apenas a Organização pa-ra a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) considerou analisar os pedidos de ajuda vindos do país.

Entrementes, a ajuda hu-manitária continua a chegar, vinda do norte, e uma imensa rede de blogueiros e ativistas foi formada para que a verda-de possa ser espalhada e pa-ra que sejam minimizados os esforços de contrainformação que tanto facilitam o trabalho dos que ativamente tentam tornar o confl ito ainda maior.

Raphael Tsavkko Garcia é ba-charel em Relações Internacio-

nais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestrando em comunicação pela Faculdade Cásper Líbero

Reginaldo Nasser

A GRANDE imprensa brasi-leira não deu o devido desta-que para a visita que o presi-dente da Síria, Bashar Al-As-sad, fez ao Brasil recentemen-te. Para desgosto dos críti-cos da política externa nacio-nal, ele afi rmou que o país tem credibilidade perante Israel e as nações árabes e, portanto, poderá exercer papel de des-taque no processo de paz no Oriente Médio.

É importante notar que os EUA desfrutaram, durante um bom tempo, de uma ca-pacidade única para mediar os confl itos na região e, ao que tudo indica, continuarão a ter infl uência mais do que qual-quer outro poder. Mas sua ca-pacidade está sendo reduzida, cada vez mais, como refl exo de um dinamismo maior das forças regionais.

O fortalecimento do poderio militar norte-americano em todas as partes do globo tem como propósito enviar uma mensagem para os inimigos, dissuadindo-os a não praticar determinados atos conside-

rados como ameaçadores do sistema internacional. Acre-ditava-se que as invasões mi-litares no Afeganistão e Ira-que teriam como consequên-cia o alinhamento à política norte-americana dos estados denominados párias (Síria e Irã). Mas, no entanto, longe de se tornarem receosos de ser alvos de intervenções nor-te-americanas, os estados do Oriente Médio não se aliaram aos EUA; pelo contrário, bus-caram fortifi car seu poder por meio de alianças, deixando de lado rivalidades regionais.

Novo eixoA recente aproximação en-

tre Irã, Turquia e Síria está criando um novo eixo regional que poderá substituir o tradi-cional triângulo árabe (Arábia Saudita, Egito e Síria) com im-pactos signifi cativos na geopo-lítica da região. As visitas dos presidentes iraniano e sírio à Turquia e a participação des-te último, juntamente com o Brasil, no episódio do proble-ma nuclear iraniano são fortes indicações de um novo senti-do de aliança que está sendo observado com muito interes-se e preocupação no Ocidente e, principalmente, em Israel, que vive, no momento, uma crise de governo. O ministro de Relações Exteriores de Is-rael, Avigdor Lieberman, con-testou duramente o encontro secreto que o premiê Benja-min Netanyahu teve com re-presentantes do governo tur-co na tentativa de reaproxi-mação dos dois governos.

Se reforçado – e é nessa pos-sibilidade que o governo Lula aposta –, esse novo trio pode-ria diminuir ainda mais a in-fl uência dos EUA, evitando, ao mesmo tempo, polarização com setores mais radicais no Oriente Médio, ao introduzir uma diversifi cada composição de forças e objetivos.

RecursosCada um desses atores (Irã,

Turquia e Síria) possui impor-

tantes recursos estratégicos: o Irã é uma potência energéti-ca do golfo Pérsico e tem cres-cente infl uência política na re-gião (Hizbollah, Hamas e xii-tas no Iraque); a Síria é uma nação árabe estável com im-portantes recursos militares e econômicos; a Turquia é uma potência euro-asiática emer-gente e membro da OTAN.

Apesar de separados por idioma e uma experiência histórica imperial, a Turquia tem reforçado os laços eco-nômicos com seus vizinhos, abriu as suas fronteiras e rea-lizou uma ampla consulta so-bre importantes questões re-gionais com os países muçul-manos. Assiste-se, ao mesmo tempo, a uma progressiva de-terioração das relações com o governo de Israel devido à questão palestina.

No aspecto comercial, os três países têm mantido uma política de fronteiras aber-tas e podem criar um mer-cado de mais de 150 milhões de pessoas. A discordân-cia da Síria com o Egito so-bre a questão palestina e su-as tensões com a Arábia Sau-dita sobre a questão irania-na – entre outros fatores – serviu para minar a unidade do chamado triângulo árabe, que exerceu uma importante infl uência sobre a geopolíti-ca do Oriente Médio duran-te décadas.

QuestõesDesacordos sobre a melhor

forma de responder às guer-ras israelenses no Líbano e em Gaza, as divergências em lidar com o Hizbollah e o Hamas, e o excessivo com-

O novo triângulo geopolítico do Oriente MédioA recente aproximação entre Irã, Turquia e Síria está criando um novo eixo regional que poderá causar impactos signifi cativos na geopolítica da região.

prometimento com os EUA(Egito e Arábia Saudita) mi-naram a credibilidade des-ses governos perante árabese muçulmanos.

Todas essas perspectivassão muito importantes, masserão duradouras? O queaconteceria se, por exem-plo, os EUA e Europa inten-sifi cassem uma pressão so-bre a Turquia para escolherentre os dois lados? Ou, se aArábia Saudita e o Egito ofe-receram à Turquia um papelcentral nos assuntos regio-nais, como parte de um no-vo eixo apoiado pelo os EUAe Europa? E se Barack Oba-ma exercer infl uência sobrea Turquia para ser sua novavoz na região, em vez do Egi-to e a Arábia Saudita?

Seja qual for a resposta aessas questões, o fato é que,tal como um extremado pen-sador conservador (SamuelHuntington) admitiu, a con-tragosto, “os povos e gover-nos das civilizações não oci-dentais já não são objetos dahistória, enquanto alvos dacolonização ocidental, masjuntam-se ao Ocidente comoagentes e sujeitos da histó-ria”. (Carta Maior)

Reginaldo Nasser é professor de Relações Internacionais da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Revoluções e confl itos não são novidades no Quirguistão, que já havia enfrentado outro processo revolucionário em 2005, conhecido como Revolução das Tulipas

Se reforçado – e é nessa possibilidade que o governo Lula aposta –, esse novo trio poderia diminuir ainda mais a infl uência dos EUA

O que aconteceria se, por exemplo, os EUA e Europa intensifi cassem uma pressão sobre a Turquia para escolher entre os dois lados

“Emerge um consenso de que nada disso ocorreu porque dois grupos étnicos não gostam um do outro”

Roosewelt Pinheiro/Br