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MOBILIZAÇÃO POPULAR – Quase duas mil pessoas acompanharam a Romaria dos Mártires da Caminhada Latino-Americana, em Ribeirão Cascalheira, no Mato Grosso, que celebrou os 30 anos de martírio do padre João Bosco R$ 2,00 Guerra no Oriente Médio Muçulmanos se unem contra ataques de Israel à Palestina e ao Líbano A s maiores correntes do Islã - sunismo e xiismo - se aliam para resistir às ações militares de Israel, que invadiu a Palestina e o Lí- bano. O Hamas e o Hezbollah, organizações dos países ata- www.brasildefato.com.br Ano 4 Número 177 São Paulo De 20 a 26 de julho de 2006 Uma visão popular do Brasil e do mundo Governo omisso alimenta a violência em SP À mercê de nova onda de ataques atribuídos à organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), o Estado de São Paulo sofre as conseqüências da falta de políticas públicas de se- gurança. Entidades de defesa de direitos humanos denunciam a ação revanchista e inócua da polí- cia no combate ao crime, enquan- to apontam situações de barbárie em um presídio de Araraquara – onde 1.400 detentos, expostos a sujeira e doença, ocupam um espaço destinado a abrigar 400. Pág. 4 As opções da esquerda em ano eleitoral Três alternativas de estratégia dividem a esquerda, neste ano eleitoral. PT e PCdoB acreditam na reeleição do presidente Lula para acentuar as mudanças ini- ciadas pelo primeiro mandato e impedir o retrocesso simbolizado pela candidatura de Geraldo Al- ckmin, do PSDB. PSOL, PSTU e PCB identificam na campanha de Heloísa Helena um meio para enfrentar e superar o neo- liberalismo. A Consulta Popular concentrará suas forças nas lutas sociais, como a reestatização da Companhia Vale do Rio Doce. Pág. 3 É preciso resgatar a utopia Movimentos haitianos se organizam por mudanças Cansadas da ingerência inter- nacional e de governos neolibe- rais, as organizações populares do Haiti se preparam para tomar o poder. Unificam pautas e articu- lam mobilizações conjuntas. Essa é a experiência narrada por Marc- Arthur Fils-Aimé, diretor do Ins- tituto Cultural Karl Lévêque, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato. Para ele, a Missão da ONU, comandada pelo Brasil, impede a solução dos problemas do país. Pág. 6 cados, abandonam rivalidades e se unem contra o inimigo comum. O governo iraniano alerta o israelense que não vai tolerar agressões à Síria. Exige a retirada das tropas do Líbano e da Palestina. O conflito se alastra. Seiscentas pessoas fo- ram mortas nos ataques, desde 28 de junho. Israel mobiliza sua população. Dos 7 milhões de habitantes, 3 milhões têm treinamento militar. O Oriente Médio está em guerra. Países ocidentais, omissos, encaram o conflito como rotineiro, resulta- do da instabilidade corrente da região. O impasse, gerado pelo belicismo israelense, pode gerar um conflito longo e mundial. Pág. 5 EDITORIAL Douglas Mansur Povos árabes do Oriente Médio, de credos e nacionalidades diferentes, se aliam para combater Israel, cujo exército ocupa a Palestina e o Líbano O modelo neoliberal, imple- mentado desde o início da década de 1990, não se limitou a hegemonizar o capital financeiro sobre o produtivo, privatizar as empresas estatais e desnacionalizar a economia. A democracia do Estado burguês foi reduzida a um acessório deco- rativo. Os direitos e as liberdades democráticas do Estado burguês não são concessões da burguesia, mas conquistas da classe traba- lhadora, obtidas com as lutas que se opuseram aos interesses e aos objetivos da elite brasileira. O neoliberalismo conseguiu fragi- lizar ainda mais a democracia e as instituições do Estado. A pri- vatização e a desnacionalização da economia, associadas ao pre- domínio dos interesses do capital financeiro, promoveram uma ver- dadeira desestruturação dos cen- tros internos de decisão política e de planejamento estratégico. Os organismos internacionais, financeiros e comerciais exercem verdadeiros papéis de polícia, vigiando, inibindo e, sempre que necessário, reprimindo toda e qualquer tentativa de romper com a agenda neoliberal imposta aos países da periferia do sistema capitalista. Há um esforço draco- niano para desqualificar e silen- ciar as propostas que se opõem ao modelo neoliberal e, princi- palmente, ao sistema capitalista. Essa dominação imperialista conta com o apoio das burguesias locais e dos governos enfraque- cidos ou cooptados pela idéia de que, seguindo a receita dos ricos, atingirão o status de esquerda civilizada e amadurecida. Esses governos acreditam que, se- guindo receituários e cumprindo acordos nocivos aos interesses da população, poderão ingressar no restrito clube dos países ri- cos. Clube que sobrevive graças à rapinagem internacional que promove. Afinal, de que adianta sentar à mesa dos banqueiros internacionais se no interior do Maranhão há pessoas morrendo por falta de vitamina B? Infelizmente, esse debate pare- ce passar longe das disputas elei- torais deste ano. As discussões se restringem às fofocas de corredo- res, à troca de cargos e favores, à garantia de benefícios indivi- duais, às denuncias de corrupção (que deve ser combatida, sempre, com todo o rigor da lei). Enfim, o debate político se restringe àquilo que o pensador marxista Antônio Gramsci chamou de pequena po- lítica. Enquanto a grande política, a definição do destino do país, a elaboração de um projeto estra- tégico de desenvolvimento que atenda os interesses e necessida- des do povo, é posta de lado. Talvez seja esse esvaziamento da política a principal razão de a esquerda brasileira estar tão de- sunida neste processo eleitoral. A unidade política, dos que querem transformar a realidade, não se dá pelas vontades pessoais ou dis- cursos ideológicos. Acontece em torno de propostas, estratégias e projetos políticos. Na ausência deles, cada um se dá o direito de fazer a defesa de sua proposta, de eleger seus inimigos, de buscar as alianças políticas mais con- venientes. Não fazem nada mais que o jogo da direita, que aposta sempre no fracionamento das forças progressistas para perpe- tuar seu domínio político. Caberá aos movimentos so- ciais e às forças progressistas a tarefa de deslegitimar e apresen- tar alternativas ao sistema capi- talista. Torna-se cada vez mais evidente a necessidade de uma unidade e de inovar nas formas de organização social e política. Torna-se imperioso resgatar o sonho, a utopia da transformação social. Os seres humanos são dotados de inteligência e capa- cidades que lhes possibilitam construir uma sociedade superior à capitalista. Missão investiga ação dos EUA no Paraguai Pág. 7 Mexicanos nas ruas contra fraudes Pág. 7 Os desafios do novo ministro da Agricultura Pág. 4 Ahmed Deeb/ Word News

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EDITORIAL Uma visão popular do Brasil e do mundo Muçulmanos se unem contra ataques de Israel à Palestina e ao Líbano R$ 2,00 s maiores correntes do Islã - sunismo e xiismo - se aliam para resistir às ações militares de Israel, que invadiu a Palestina e o Lí- bano. O Hamas e o Hezbollah, organizações dos países ata- www.brasildefato.com.br Pág. 7 Pág. 4 Pág. 7 Ahmed Deeb/ Word News Douglas Mansur

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MOBILIZAÇÃO POPULAR – Quase duas mil pessoas acompanharam a

Romaria dos Mártires da Caminhada Latino-Americana, em Ribeirão Cascalheira,

no Mato Grosso, que celebrou os 30 anos de martírio do padre João Bosco

R$ 2,00

Guerra no Oriente MédioMuçulmanos se unem contra ataques de Israel à Palestina e ao Líbano

A s maiores correntes do Islã - sunismo e xiismo - se aliam para resistir

às ações militares de Israel, que invadiu a Palestina e o Lí-bano. O Hamas e o Hezbollah, organizações dos países ata-

www.brasildefato.com.br

Ano 4 • Número 177

São Paulo • De 20 a 26 de julho de 2006

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Governo omissoalimenta a

violência em SPÀ mercê de nova onda de

ataques atribuídos à organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), o Estado de São Paulo sofre as conseqüências da falta de políticas públicas de se-gurança. Entidades de defesa de direitos humanos denunciam a ação revanchista e inócua da polí-cia no combate ao crime, enquan-to apontam situações de barbárie em um presídio de Araraquara – onde 1.400 detentos, expostos a sujeira e doença, ocupam um espaço destinado a abrigar 400.

Pág. 4

As opções daesquerda emano eleitoral

Três alternativas de estratégia dividem a esquerda, neste ano eleitoral. PT e PCdoB acreditam na reeleição do presidente Lula para acentuar as mudanças ini-ciadas pelo primeiro mandato e impedir o retrocesso simbolizado pela candidatura de Geraldo Al-ckmin, do PSDB. PSOL, PSTU e PCB identifi cam na campanha de Heloísa Helena um meio para enfrentar e superar o neo-liberalismo. A Consulta Popular concentrará suas forças nas lutas sociais, como a reestatização da Companhia Vale do Rio Doce.

Pág. 3

É preciso resgatar a utopia

Movimentos haitianos seorganizam por mudanças

Cansadas da ingerência inter-nacional e de governos neolibe-rais, as organizações populares do Haiti se preparam para tomar o poder. Unifi cam pautas e articu-lam mobilizações conjuntas. Essa é a experiência narrada por Marc-

Arthur Fils-Aimé, diretor do Ins-tituto Cultural Karl Lévêque, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato. Para ele, a Missão da ONU, comandada pelo Brasil, impede a solução dos problemas do país.

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cados, abandonam rivalidades e se unem contra o inimigo comum. O governo iraniano alerta o israelense que não vai tolerar agressões à Síria. Exige a retirada das tropas do Líbano e da Palestina. O confl ito se

alastra. Seiscentas pessoas fo-ram mortas nos ataques, desde 28 de junho. Israel mobiliza sua população. Dos 7 milhões de habitantes, 3 milhões têm treinamento militar. O Oriente Médio está em guerra. Países

ocidentais, omissos, encaram o confl ito como rotineiro, resulta-do da instabilidade corrente da região. O impasse, gerado pelo belicismo israelense, pode gerar um confl ito longo e mundial.

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EDITORIAL

Dou

glas

Man

sur

Povos árabes do Oriente Médio, de credos e nacionalidades diferentes, se aliam para combater Israel, cujo exército ocupa a Palestina e o Líbano

O modelo neoliberal, imple-mentado desde o início da década de 1990, não se

limitou a hegemonizar o capital fi nanceiro sobre o produtivo, privatizar as empresas estatais e desnacionalizar a economia. A democracia do Estado burguês foi reduzida a um acessório deco-rativo. Os direitos e as liberdades democráticas do Estado burguês não são concessões da burguesia, mas conquistas da classe traba-lhadora, obtidas com as lutas que se opuseram aos interesses e aos objetivos da elite brasileira. O neoliberalismo conseguiu fragi-lizar ainda mais a democracia e as instituições do Estado. A pri-vatização e a desnacionalização da economia, associadas ao pre-domínio dos interesses do capital fi nanceiro, promoveram uma ver-dadeira desestruturação dos cen-tros internos de decisão política e de planejamento estratégico.

Os organismos internacionais, fi nanceiros e comerciais exercem verdadeiros papéis de polícia, vigiando, inibindo e, sempre que necessário, reprimindo toda e qualquer tentativa de romper com a agenda neoliberal imposta aos países da periferia do sistema capitalista. Há um esforço draco-niano para desqualifi car e silen-ciar as propostas que se opõem ao modelo neoliberal e, princi-palmente, ao sistema capitalista.

Essa dominação imperialista conta com o apoio das burguesias locais e dos governos enfraque-cidos ou cooptados pela idéia de que, seguindo a receita dos ricos, atingirão o status de esquerda civilizada e amadurecida. Esses governos acreditam que, se-guindo receituários e cumprindo acordos nocivos aos interesses da população, poderão ingressar no restrito clube dos países ri-cos. Clube que sobrevive graças à rapinagem internacional que promove. Afi nal, de que adianta sentar à mesa dos banqueiros internacionais se no interior do Maranhão há pessoas morrendo por falta de vitamina B?

Infelizmente, esse debate pare-ce passar longe das disputas elei-torais deste ano. As discussões se restringem às fofocas de corredo-res, à troca de cargos e favores, à garantia de benefícios indivi-duais, às denuncias de corrupção (que deve ser combatida, sempre, com todo o rigor da lei). Enfi m, o debate político se restringe àquilo que o pensador marxista Antônio Gramsci chamou de pequena po-lítica. Enquanto a grande política, a defi nição do destino do país, a elaboração de um projeto estra-tégico de desenvolvimento que atenda os interesses e necessida-des do povo, é posta de lado.

Talvez seja esse esvaziamento da política a principal razão de a

esquerda brasileira estar tão de-sunida neste processo eleitoral. A unidade política, dos que querem transformar a realidade, não se dá pelas vontades pessoais ou dis-cursos ideológicos. Acontece em torno de propostas, estratégias e projetos políticos. Na ausência deles, cada um se dá o direito de fazer a defesa de sua proposta, de eleger seus inimigos, de buscar as alianças políticas mais con-venientes. Não fazem nada mais que o jogo da direita, que aposta sempre no fracionamento das forças progressistas para perpe-tuar seu domínio político.

Caberá aos movimentos so-ciais e às forças progressistas a tarefa de deslegitimar e apresen-tar alternativas ao sistema capi-talista. Torna-se cada vez mais evidente a necessidade de uma unidade e de inovar nas formas de organização social e política. Torna-se imperioso resgatar o sonho, a utopia da transformação social. Os seres humanos são dotados de inteligência e capa-cidades que lhes possibilitam construir uma sociedade superior à capitalista.

Missão investigaação dos

EUA no ParaguaiPág. 7

Mexicanosnas ruas

contra fraudesPág. 7

Os desafi os donovo ministro da Agricultura

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De 20 a 26 de julho de 20062

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DEBATE CRÔNICACRÔNICA

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Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Im-pressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 - Campos Elíseos - CEP 01218-010 - Tel. (11) 2131-0800 - São Paulo/SP - [email protected]

Gráfi ca: GZM Editorial e Gráfi ca S.A.Conselho Editorial: Alípio Freire • César Sanson • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Pedro Ivo Batista • Ricardo Gebrim

CARTAS DOS LEITORESCARTAS DOS LEITORES

A era da mediocridadeA saga da diáspora africana

CONFISSÃOConfesso: sou de direita. Voto e

votarei no PSDB, sempre que for. Mas não sou burro. Encontrei, no quarto de minha fi lha, estudante de Pedagogia na Universidade de São Paulo, um dos exemplares do Brasil de Fato, edição de 6 a 12 de julho. Não concordo com a li-nha editorial do jornal e acho que algumas das matérias reproduzem o óbvio, sem entrar em um mérito mais analítico, como é o caso da CTEEP. Não é disso que vou tratar. Devo dizer que nunca havia lido um jornal em que se desse tanto destaque à questão africana. Minha família é de origem angolesa, por isso acompanho a questão de perto. A matéria “Transgênico, duro de engolir”, na página 7, explica o que ninguém mais quer ver: a culpa da miséria africana é dos mais ricos. E digo mais: não querem encon-trar soluções para essa miséria, mas lucrar cada vez mais com ela. A África está na mira dos ricos, quer seja pelo petróleo ou outros recursos, como o solo e a água. No fi m da década a África subsaariana provavelmente se tornará tão im-portante como fonte de importações energéticas americanas quanto o Médio Oriente. A África Ocidental tem uns 60 mil milhões de barris de reservas provadas de petróleo.

Bernardo Joffi ly

S alvador (BA) sediou en-tre os dia 12 e 14, a 2ª Conferência de Intelectuais

da África e da Diáspora (Ciad). Não é um acontecimento qual-quer. É a primeira vez que se discute em um evento deste por-te, no Novo Mundo (a 1ª Ciad foi em Dacar, no Senegal), o sentido passado e presente da saga dos africanos carregados para fora de suas terras pelo escravismo colonial nas Américas.

Os netos dos africanos es-cravizados que para cá foram trazidos nos navios negreiros, ou tumbeiros,compõem hoje uma parcela considerável dos povos americanos. Em alguns países, como o Haiti e a Jamaica, são a esmagadora maioria da popula-ção. Em outros formam uma ex-pressiva minoria, como os EUA, onde são perto de 40 milhões. No Brasil, predominantemente mestiço – de uma mestiçagem talvez sem paralelo –, é provável que sejam maioria. Como o são certamente em Salvador, a maior cidade negra fora da África.

Em um leitura mais ampla, é possível dizer que toda a espécie humana compõe uma grande diáspora africana. As últimas descobertas da ciência atestam que o homo sapiens nasceu de um tronco único, no Continente Negro, provavelmente no vale do Rift, no Quênia atual.

A diáspora que ocupa a Conferência de Salvador, porém, tem um sentido mais preciso: é aquela provocada pelo tráfego negreiro, nos três séculos e meio desde 1502, quando os primei-ros africanos escravizados che-garam na Ilha de São Domingos (Antilhas), até outubro de 1855, data do último desembarque conhecido de um tumbeiro, em Serinhaém, Pernambuco.

ARQUIPÉLAGO CULTURALNesse período, calcula-se

que 12 milhões de africanos escravizados aportaram no No-vo Mundo. E a população da África permaneceu estagnada, em cerca de 100 milhões de ha-

Luiz Ricardo Leitão Cantada em verso e prosa pelas sereias da mídia como “a maior Copa

de todos os tempos”, o evento da Alemanha tornou-se, afi nal, um símbolo contundente desta era medíocre e banal que a globalização neoliberal nos impõe. Brasil e Argentina continuam a ser os celeiros da matéria-prima, mas o dono do empório ainda é o Velho Mundo, com seus estádios de cartão-postal. Dentro dos gramados, aliás, o badalado “espetáculo” foi tão pífi o e requentado que até FIFA, essa mega-empresa que vende seu “produto” no planeta bola, já estuda novas medidas para aumentar o nú-mero de gols nos jogos e reacender no público sua paixão pelo nobre e violento esporte bretão.

O talento, de fato, andou longe das quatro linhas. Cansadas pelo fi m das ligas européias e mais preocupadas com os contratos milionários que esperavam assinar após o show, as estrelas não brilharam na Ale-manha. E como “em terra de cego quem tem um olho é rei”, o francês-argelino Zidane logrou beliscar o título de “melhor jogador” do torneio, por meia dúzia de belas jogadas que fez nas últimas partidas da seleção francesa. Ao fi nal, tudo não passou de um sonho de uma noite de verão: expulso da decisão após uma polêmica agressão ao italiano Materazzi, o maestro Zizu foi mais um a provar que há algo de podre no reino do futebol. Por outro lado, o título da aguerrida – porém opaca – seleção italiana lembrou-nos que, em um esporte totalmente coletivo, a vitória jamais poderá depender do brilho individual desta ou daquela celebri-dade da pelota.

Para os brasileiros, em especial, a Copa deixou várias lições, quase todas amargas, mas de enorme valia para o nosso povo. Embora a sele-ção não deva ser vista como um índice ou retrato fi dedigno do país, não julgo descabidas as analogias que alguns jornalistas e certos fi lósofos de bar trataram de estabelecer entre a sociedade brasileira e o microcosmo representado pela equipe de Parreira. De fato, há traços afi ns entre os dois “comandantes” (o presidente e o treinador), sobretudo o cinismo e a presunção das duas fi guras. Lula, por exemplo, com a sua verborréia con-tumaz, não hesitou em declarar que “o sistema de saúde do Brasil é quase ideal” (sic); Parreira, por sua vez, não deixou por menos nas coletivas de imprensa: somos os pentacampeões do mundo, possuímos o melhor futebol do planeta e só perdemos a Copa por um acidente de percurso – tudo isso dito com a maior desfaçatez, entre sorrisos e chistes, durante uma entrevista paga (!) em um hotel da Barra da Tijuca, no Rio, como se estivesse regressando da Alemanha com a própria taça nas mãos...

Invocando as estatísticas para exaltar os “méritos” do seu trabalho, Parreira apenas repete a mesma tática adotada pela equipe econômica do governo, cujos números apregoam o progresso de Pindorama, mas cujos resultados práticos se vêem na explosão do desemprego e da violência social país afora. A seleção canarinho veio a ser, pois, um espelho cris-talino das elites tupiniquins: além de trair as expectativas dessa gente bronzeada que não cansa de mostrar seu valor e atribui à magia do fu-tebol a sua própria identidade nacional, assumiu com total desfaçatez a política do “tô nem aí” que se difundiu em várias esferas da nossa vida pública. Que o diga o “ala” Roberto Carlos, após a inexplicável cena do jogo contra a França, quando se abaixou para ajeitar a meia, bem na hora do cruzamento que resultou no gol gaulês. Quem viu suas declarações ao “Fantástico” pode ter pensado que ele vive em outro planeta, tamanho o desdém que dedicou ao incidente. O pior, porém, é que ele não é o único a fi ngir-se de “morto” em plena era da mediocridade neoliberal: Lulas, Parreiras, RC e todos os netos de Brás Cubas e Macunaíma estão à von-tade em Pindorama, zombando dos vivos e maquiando com suas fi cções a triste realidade da nossa pátria sem chuteiras.

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em

Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular)

Angola fornece 4% das importações americanas de petróleo, as quais po-deriam duplicar no fi m da década. Matérias sobre a questão africana faltam para o público. Minha fi lha me disse que o jornal tem o compro-misso de cobrir a questão africana toda semana. Só posso elogiar tal de-cisão, principalmente se forem feitas com a mesma qualidade jornalística da matéria sobre os transgênicos no continente. Parabenizo o repórter e o jornal. Acompanharei a cobertura do jornal. Não porque concorde com sua linha editorial, mas porque traz informações que ninguém mais traz. Parabéns pelo bom trabalho.

Wladin ShitomirJundiaí (SP)

MOTIVAÇÃOQueremos parabenizar o jornal

Brasil de Fato, pois foi a partir dele que nós criamos um pequeno molde intitulado Iara de Fato, que é um pe-queno empenho de uma associação não governamental – Associação de Amigos e Amigas da Infância (AMINF), com o intuito de fazer valer nossas idéias e ajudar no cres-cimento de nosso distrito – Iara, no municipio de Barro (CE). Somos assinantes e muito fã do trabalho competente de vocês.

Laura HévilaBarro (CE)

QUE PAPELÃODitas personalidades do mundo

esportivo, musical e tecnológico desembocam numa campanha de baixa criatividade e de um perigo indutivo muito grande. Vendem suas imagens para recuperar a suja imagem duma das grandes inimiga da humanidade: “Aracruz Celu-lose”. Que papelão. O que que a despolitização, o oportunismo e a força do deus mercado não fazem com as pessoas. “Aracruz fazendo um bonito papel no mundo inteiro”. Que maravilha! Não acham? Os ín-dios, os quilombolas e os pequenos agricultores do Espírito Santo, que sofrem diretamente com a expan-são da monocultura do eucalipto, não acham! “E a seleção chega a Berlim”. Que papelão, hem, Gil? É bem verdade que o poder trans-forma as pessoas. Como pode o mesmo ministro que reconhece as comunidades quilombolas, legiti-ma a Aracruz nos despejos a força desses povos de suas terras, hem? Diante disso nada mais a acres-centar. Pelé, Daiane, Seu Jorge, Marcos Pontes, Popó, Bernadim, Robert Scheit e o grande ministro Gilberto Gil estão, devotamente acunhado na vergonha brasileira. Que papelão!

Emiliano MoraisPor correio eletrônico

bitantes, pois, para cada pessoa aqui chegada como cativo, várias morriam no transporte, ou princi-palmente nas guerras fomentadas pelos tumbeiros. A diáspora teve portanto uma enorme importância para a África, assim como para as três Américas. E a ela se soma-ram, a partir da segunda metade do século passado, os seus ramos mais novos na Europa Ocidental (França, Reino Unido, Portugal).

A despeito dos horrores que o marcaram, esse processo criou também um arquipélago cultural africano de notável vigor. Os que se interessam por estatísticas lembrarão que a África é o mais pobre dos continentes, e o que menos se desenvolve, castigado por guerras e pela pandemia da AIDs. E que em todos os países das Américas os negros e mesti-ços têm menor renda, maior taxa de desemprego, menos acesso à saúde e educação.

Esses fatos reais convivem, po-rém, com outros que igualmente merecem atenção. Por exemplo: pouco depois que se criou a indús-tria de massa da música (com o fo-nógrafo, o disco e o CD, o cinema falado, a TV e a internet), e esta globalizou-se, a diáspora africana a hegemonizou.

O jazz e seu primo mais jo-vem, o rock, o samba, o frevo, o axé, o reggae, o mambo, a salsa, o merengue, a cúmbia, e até a recentemente descoberta música

de Cabo Verde de Cesária Évora constituem uma superpotência musical. Que outra matriz cultural detém tantos discos de ouro e pla-tina no planeta? E quem negará o seu parentesco, que tem tudo a ver com a diáspora negra?

Tudo isso acontece e prospera sem que se refl ita muito a respei-to. A Ciad não é portanto uma dessas siglas engenhosas que a diplomacia cria às vezes, mas uma necessidade palpável, a re-clamar atenção, debate, conside-ração. Já era hora do mundo da intelectualidade e das instituições ofi ciais se debruçar um pouco mais sobre uma realidade tão rica e palpitante. A julgar pela lista de participantes, há uma percepção diferenciada dessa necessidade. O presidente Lula, como anfi trião, marcou presença, assim como vá-rios chefes de Estado e de gover-no, e ministros, principalmente da Cultura, como o brasileiro Gilber-to Gil e o cubano Abel Prieto.

Já o governo dos EUA não se fez representar. A segunda maior diáspora negra das Américas esteve presente na Conferência mas por meio de expoentes da sociedade civil, como o cantor e ativista do movimento negro Steve Wonder.

Bernardo Joffi ly é jornalista, autor do Atlas Histórico Isto É

Brasil 500 anos e editor do portal Vermelho (www.vermelho.org.br)

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De 20 a 26 de julho de 2006 3

NACIONALELEIÇÕESELEIÇÕES

As opções da esquerdaO Brasil de Fato ouviu políticos e lideranças políticas sobre os caminhos da esquerda neste ano eleitoral. O PSOL, com o apoio do PSTU e do PCB, lança a candidatura de Heloísa Helena como alternativa às práticas neoliberais implantadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O

Luís Brasilinoda Redação

Convictos de que a dispu-ta entre Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Geraldo Alck-min (PSDB) representa uma falsa polarização, os partidos PSOL, PSTU e PCB criaram uma chapa unifi cada, a Fren-te de Esquerda, para apoiar a candidatura da senadora Heloísa Helena (PSOL-AL) à presidência.

O PSOL foi formado após a direção nacional do PT ex-pulsar quatro parlamentares que votaram, em 2003, con-tra a reforma da Previdência – quando uma emenda cons-titucional se tornou uma das primeiras atitudes neoliberais do governo Lula, criando um teto para as contribuições previdenciárias e, assim, estimulando os fundos de pensão privados.

Outros quadros se soma-ram ao núcleo inicial, após o fi m das eleições internas petistas, em setembro de 2005, movidos pelo desgas-te causado por ações como a manutenção da política econômica sustentada pelo tripé neoliberal: juros altos, para frear o crescimento da economia e dessa forma combater a infl ação; elevado superavit primário, de modo a possibilitar que a União honrasse seus compromissos com o mercado fi nanceiro; e foco nas exportações para gerar divisas.

DAQUI PARA A FRENTEUm dos dissidentes, o de-

putado federal Ivan Valente (PSOL-SP), avalia que o PT já não representa mais um partido estratégico. Para ele, a candidatura de Heloísa He-lena vem retomar um proces-so histórico de mudança, de transformação e afi rmação do socialismo e de um pro-grama democrático-popular contra o neoliberalismo. “Até para ter alguém que, de fato, combata o projeto da direita brasileira com o qual o PT se associou”, diz Valente.

Seu companheiro de coligação e também candi-dato a uma vaga da Câmara

O presidente Luiz Iná-cio Lula da Silva (PT) é o candidato mais forte destas eleições. Apoiado também pelo PCdoB e PRB, sua vitória no primeiro turno foi confi rmada na maioria das pesquisas de intenção de voto feitas nos últimos três anos e meio. Lula está mui-to à frente de seu principal oponente, Geraldo Alckmin (PSDB), em grande parte pelo desastre que foi o go-verno de seu antecessor, do também tucano Fernando Henrique Cardoso.

Baseado nisso, dirigentes petistas como o deputado estadual Raul Pont (RS) mos-tram irritação diante da tese da “falsa polarização entre PT e PSDB”. “Isso é ma-fé ou provocação”, rebate Pont, secretário-geral nacional do PT. Para ele, Lula representa o campo democrático popu-lar, de defesa da soberania nacional e de construção de políticas públicas voltadas para a maioria da população. “(A polarização) é o elemento básico da conjuntura eleitoral que vivemos”, analisa Pont.

Altamiro Borges, secre-tário de comunicação do PCdoB e editor da Revista Debate Sindical, ressalta, entre os dados positivos do governo Lula, a não crimi-nalização dos movimentos sociais, a paralisação das negociações da Área de Li-vre Comércio das Américas (Alca), a manutenção do controle sobre as estatais, a retomada da contratação de servidores públicos.

Borges também enume-ra os históricos de alguns assessores de Alckmin para combater o argumento da “falsa polarização”. “Na questão sindical e trabalhis-ta, o assessor é o José Pas-tori (economista da Univer-sidade de São Paulo), ícone da fl exibilização trabalhista no Brasil e defensor do des-monte do sindicalismo. Na política agrária, o assessor é

O Movimento Consulta Popular (MCP) aprovou, em Plenária Nacional, realizada em junho, a decisão de não se pautar pela defi nição do voto nas eleições deste ano. Isso signifi ca não apoiar nenhum candidato, tampouco o voto nulo. O advogado Ricardo Gebrim, da coordenação na-cional do MCP, avalia que a esquerda brasileira enfrenta um esgotamento político da estratégia centrada na luta eleitoral. “Durante muitos anos a eleição de Lula à pre-sidência foi o elemento unifi -cador da maioria da esquerda. Com a vitória em 2002 e o de-sempenho do governo, houve não só o esgotamento de um ciclo hegemonizado pelo PT mas também do ciclo centra-do na luta eleitoral como um todo”, indica Gebrim.

Sendo assim, a Consulta não irá se pautar pelo voto. Mesmo reconhecendo que as eleições ainda cumprem um papel importante, o ad-vogado explica que o obje-tivo é evoluir na construção de uma força social para as lutas e aproveitar a questão eleitoral para denunciar os limites da democracia repre-sentativa. Para o MCP, esse modelo não abre espaço pa-ra que um projeto popular se viabilize.

EM TORNO DAS LUTASApesar de reconhecer

que existem candidaturas

melhores e piores, Gebrim analisa que escolher uma delas, ou optar pelo voto nulo, se insere na lógica de atribuir à questão eleitoral um papel que ela já não tem. “Declarar apoio a Lula sig-nifi ca validar um processo que não aponta perspectivas de transformação. Reconhe-cemos que muita gente va-lorosa da esquerda acredita nesse caminho para impedir um retrocesso na política na-cional. Respeitamos aqueles que acreditam que é possí-vel reunifi car a esquerda na construção de uma frente eleitoral na candidatura He-loísa Helena. E respeitamos também os que acham que o voto nulo representa um protesto político. Mas, na nossa opinião, a esquerda brasileira não vai se reuni-fi car em torno da defi nição eleitoral e sim em torno das lutas, em torno da defi nição de um plano comum e pode até se reunifi car em torno da construção de um programa mínimo”, prevê o coordena-dor da Consulta.

Segundo Gebrim, a isen-ção em relação à disputa eleitoral libera o movimento para construir as assem-bléias populares, empenhar-se na construção de uma campanha pela reestatização da Companhia Vale do Rio Doce, lutar por tarifas elétri-cas populares e se inserir na reforma agrária. (LB)

Alternativa à institucionalidade

PT e o PCdoB apostam na reeleição para aprofundar as mudanças iniciadas no atual mandato. A Consulta Popular, entendendo que a esquerda não tem mais espaço para avançar por meio das eleições, investe nas lutas sociais e na formação da militância

Federal, Dirceu Travesso (PSTU-SP), explica que a falência do PT criou a ne-cessidade de uma alternativa de esquerda. Porém, Traves-so ressalta a importância da candidatura apresentar, no processo eleitoral, uma alternativa que possa tam-bém se expressar depois em mobilizações, ocupações de terra, greves, organização de movimentos populares e luta contra a Área de Livre Comércio das Américas (Al-ca) e projetos do imperialis-mo, entre outras bandeiras da esquerda social.

COMO FAZEREmpenhada em impedir

que a conquista de cargos dentro do aparato estatal se consolide como o principal objetivo, a Frente de Esquer-da prevê mecanismos para não ser cooptada pela institu-cionalidade burguesa – como entendem que aconteceu com o PT. Travesso, que é também do Movimento Na-cional de Oposição Bancária, avisa não ter fórmula mágica para evitar que isso aconteça, mas dá pistas: “Controle da direção pela base, manter o centro na luta social, demo-cracia interna, rodízio nos mandatos parlamentares e sindicais e discussão per-manente de um programa de ruptura com o regime demo-crático burguês”.

Travesso critica a posi-ção do Movimento Consulta Popular: “Eles estão enver-gonhados de anunciar apoio ao Lula”, provoca. Ivan Valente confessa admiração pela Consulta mas explica que a participação no pro-cesso institucional, com-binada com a organização popular, é uma necessidade da sociedade de massas e também da correlação de forças atual. “Não partici-pando do processo eleitoral, perde-se a oportunidade de dialogar com milhões de trabalhadores e um instru-mento de politização. Só há prejuízo se passar a mensa-gem de que a transformação virá simplesmente do voto”, completa Valente.

A esperança de mudar, de fato

o Xico Graziano, aquele que diz que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é banditismo social”, alerta Borges.

OPÇÕESPara Pont, a candidatura

de Heloísa Helena é muito mais de crítica ao Lula e ao PT do que um projeto de governo: “Eles não têm uni-dade programática para go-vernar o país. Se o PSOL e o PSTU tiverem que defi nir posições com a complexida-de que se enfrenta em qual-quer governo, explodem em 20 pedaços”. Borges acredi-ta que o PSOL vai enfrentar um dilema durante a campa-nha: “Quero ver eles irem à televisão dizer que concor-dam com a política externa positiva, com as políticas sociais abrangentes. Para se afi rmar, vão ter que atacar o governo Lula e, querendo ou não, contribuirão com a oposição de direita”.

Um dos trunfos do Mo-vimento Consulta Popular (MCP) com a postura de não entrar na disputa eleitoral é evitar fazer esse papel. Borges, entretanto, lembra das eleições presidenciais realizadas dia 2, no México. A Outra Campanha, promo-vida pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional, também optou por não as-sumir posição e o resultado ofi cial do pleito apontou uma diferença de 220 mil votos em favor do candi-dato da direita. O mesmo poderia acontecer no Brasil sem o apoio da militância da Consulta.

Para Raul Pont, faltou ao MCP capacidade de avaliação da conjuntura: “Hoje, existem vários par-tidos que se reivindicam do movimento popular ou da esquerda. Não é possível que nesse quadro não tenha alguém mais ou menos sin-tonizado com a Consulta Popular”. (LB)

Lula-lá para não retroceder

Movimento Consulta Popular aproveitará período eleitoral para denunciar os limites da democracia institucional burguesa

Candidatura de Heloísa Helena vem retomar um processo histórico de mudança e transformação, diz Ivan Valente

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De 20 a 26 de julho de 20064

NACIONAL

SEGURANÇA PÚBLICASEGURANÇA PÚBLICA

Novos ataques, velhos problemas Nova onda de ataques resulta de políticas equivocadas e da constante violação dos direitos humanos

Dafne Meloda Redação

A penas dois meses após as pri-meiras séries de ataques, o cri-me organizado voltou a reali-

zar ações no Estado de São Paulo, entre os dias 11 e 16. Os ataques, atribuídos ao Primeiro Comando da Capital (PCC), teriam sido em represália à prisão e à transferência de líderes da organização criminosa para um presídio no Paraná. Po-rém, especialistas e integrantes de organizações de direitos humanos acreditam que os fatores que de-sencadearam os novos ataques vão além da questão factual.

Entre as razões estruturais das ondas de violência está a situação de barbárie nos presídios de São Paulo – em uma das ações, em um supermercado, os criminosos dei-xaram bilhetes com a mensagem: “Contra a opressão carcerária”.

Para pressionar os governos estadual e federal a tomar medidas mais efi cazes no combate à violên-cia, entidades como a Justiça Glo-bal, Pastoral Carcerária e o Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo levaram à Organização das Nações Unidas (ONU), na semana passa-da, uma denúncia sobre a situação no presídio de Araraquara, interior de São Paulo – onde o juiz José Roberto Bernardi Liberal não au-torizou a transferência dos presos, alegando não ser sua incumbência, mas sim da Justiça Federal. O pe-dido foi feito pela Defensoria Pú-blica de São Paulo em decorrência das graves violações dos direitos humanos no local.

Gisele Barbieride Brasília (DF)

Uma crescente tensão entre os defensores do agronegócio e os da agricultura familiar. É nesse am-biente que o novo ministro Luís Carlos Guedes Pinto assume a pasta da Agricultura, Pecuária e Abaste-cimento, em substituição a Roberto Rodrigues – cujo pedido de demis-são, apesar da alegação de proble-mas pessoais, foi interpretado como uma evidência de que o agronegócio não pretende manifestar seu apoio explicito à reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Antes mesmo do governo Lula, a imagem do Ministério da Agricultura era a de uma pasta a serviço do agronegócio. A escolha de Rodrigues, ainda na primeira formação do governo, em 2003,

reforçou essa impressão: o ex-mi-nistro é produtor de cana, ex-pre-sidente da Associação Brasileira de Agribusiness e integrante de diversos conselhos representantes do agronegócio.

A trajetória do ministro Luís Carlos Guedes Pinto, ex-secretário-executivo na gestão de Rodrigues, é bem diferente. Ele foi presi-dente da Companhia Nacional de Abastecimento(Conab), em 2003, e sempre manteve boas relações com organizações sociais que lutam pela reforma agrária, como o Movimen-to dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Ao assumir o cargo, no início do mês, o novo ministro evitou criar atritos com o agrone-gócio e declarou que manteria as políticas em curso.

Guedes Pinto terá a difícil mis-são de melhorar a relação entre

AGRICULTURAAGRICULTURA

Mudanças à vista?governo e defensores da reforma agrária, estremecida por altos re-cursos concedidos desde o início do governo aos grandes produto-res. Os pequenos produtores es-peram do novo ministro medidas imediatas, como a atualização dos índices de produtividade para determinar se uma área está apta a ser desapropriada para fi ns de reforma agrária. “Esperamos que ele tire da gaveta a portaria inter-ministerial que institui os novos índices. É inaceitável que, de um lado, o latifúndio brigue por tecno-logia de ponta; e, de outro, pregue a manutenção de índices de produ-tividade dos anos de 1970”, avalia Áureo Scherer, integrante da dire-ção do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).

Outro desafi o para Guedes Pin-to é tentar solucionar a dívida dos

grandes produtores com governo, bancos e fornecedores, que chega a R$ 20 bilhões. Todo esse passivo foi contraído somente na safra an-terior e será refi nanciado à taxa de 8,75% ao ano.

AGRONEGÓCIO PROTEGIDOO descontentamento dos grandes

produtores e defensores do agrone-gócio, mesmo após tantos ganhos na gestão de Roberto Rodrigues, é momentâneo, na opinião de José Juliano de Carvalho Filho, profes-sor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo e integrante da Associa-ção Brasileira de Reforma Agrária (Abra): “Eles têm a comodidade de um alto montante de recursos à disposição, mas temporariamente estão abalados pelas grandes dí-vidas e pela alta do real frente ao dólar, que prejudica as exportações, responsáveis por grande parte de seus lucros”.

Segundo o professor, os pro-dutores contam com a política de proteção do agronegócio perpetuada pelo governo Lula. “Criou-se uma visão falsa de que o agronegócio é a salvação. Quando estamos com os mercados internacionais em alta, os grandes produtores rurais lucram. Mas quando há problemas com esses mercados, temos uma socia-lização das perdas do agronegócio”, explica Carvalho Filho, referindo-se às constantes renegociações das dí-vidas dos produtores e aos fartos re-cursos públicos destinados ao setor.

O ministro Guedes Pinto herda o peso de um pacote de R$ 50 bi-lhões lançado pelo governo federal, em maio, aos grandes produtores, enquanto a agricultura familiar – responsável pela produção, em média, de 60% dos produtos que a população consome – com apenas R$ 10 bilhões. (Leia a reportagem completa na Agência Brasil de Fa-to, www.brasildefato.com.br)

De acordo com o relatório enviado às Nações Unidas, onde cabem apenas 140 pessoas, estão 1.400. As condições de alimenta-ção são precárias: além de receber as refeições pelo teto, internos re-lataram ter achado cacos de vidro na comida. Não há eletricidade, e existem apenas 13 banheiros pa-ra todos os presos. “Os detentos têm sido obrigados a recorrer a sacos plásticos para realizar suas necessidades fi siológicas; os ex-crementos são empilhados em um

canto do pavilhão, propiciando a proliferação de insetos e bactérias. O risco de uma epidemia é iminen-te”, diz o documento. Muitos estão adoecendo, sem receber atendi-mento médico. Por duas semanas, nenhum interno teve acesso a banho ou a qualquer produto de higiene pessoal.

A Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) alegou que os presos já estão recebendo alimenta-ção adequada e tratamento médico. Entretanto, informou que só pode-

rão ser transferidos cem presos por semana.

DESCONTROLEPara Frederico dos Santos, do

Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), os novos ataques provam que a polí-cia paulista não tem mais controle sobre o PCC: “Não há um setor de inteligência que previna e coíba essas ações. A polícia não está pre-parada para coibir esses ataques”. Em sua opinião, a forma como o

governo estadual reage às ações do PCC, com revanchismo e buscando mostrar mais força, reforça a insta-bilidade na segurança pública.

Ariel de Castro Alves, advogado e integrante do Movimento Nacio-nal de Direitos Humanos, acredita que a resposta da polícia aos últi-mos ataques foi mais legalista do que nos ataques de maio. Foram 164 prisões e, de acordo com a assessoria de imprensa da Secreta-ria de Segurança Pública (SSP), a polícia não fez vítimas.

O quadro difere bastante da situação anterior. Até hoje, os números são incertos, e ainda investigados por entidades da so-ciedade e pelo Ministério Público. Os dados ofi ciais contabilizam 123 homicídios – 42 agentes de seguranças e 81 suspeitos, mortos pela polícia em confronto. Nesse número não são computadas as mortes de autoria desconhecida, que podem ter ocorrido por grupos de extermínio, com a possibilida-de de participação de policiais. Frederico dos Santos conta que a Ouvidoria das polícias registra cerca de 70 denúncias desse tipo naquele período.

13 MORTESA última ação suspeita da po-

lícia do Estado de São Paulo foi no dia 28 de junho: 13 supostos integrantes do PCC foram mortos a tiros, na cidade de São Bernardo do Campo. De acordo com a SSP, as mortes se deram em confronto, após a polícia descobrir que o gru-po realizaria ataques contra agen-tes penitenciários. Dias depois, a Justiça decretou sigilo nas investi-gações, impedindo as entidades de direitos humanos de acompanhar os esclarecimentos sobre as mor-tes de “suspeitos”. Santos conta que, quando questionado pelas entidades, o juiz responsável ale-gou que todos os mortos tinham passagem pela polícia. “É um absurdo um poder constituído di-zer isso. Não há pena de morte no Brasil. E, mesmo em países onde há, o criminoso é julgado antes”, protesta Santos.

O fato mostra que a atuação do Judiciário também contribui para a situação de caos que reina em São Paulo. Alves aponta que o Judi-ciário não tem cumprido sua obri-gação de fazer o Estado cumprir a lei, sendo conivente, por exemplo, com o quadro de violação dos di-reitos humanos nas prisões do país. “O Judiciário faz de conta que não tem participação nisso. Em São Paulo, temos um dos Judiciários mais conservadores. Não aplicam penas alternativas, vão lotando os presídios, e não os fi scalizam”, avalia Alves.

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Justiça decretou sigilo nas investigações, impedindo que entidades de direitos humanos acompanhem esclarecimentos sobre as mortes de “supeitos”

Mais de cinco mil pessoas, entre religiosos, fi éis e membros de organizações e movimentos sociais, participaram da 29ª Romaria da Terra e das Águas, em Bom Jesus da Lapa, na Bahia. Plenários debateram sobre o rio São Francisco, Reforma Agrária, Terras Públicas e Comunidades Tradicionais, entre outros temas

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ORIENTE MÉDIOORIENTE MÉDIO

Os ataques, que estavam restritos à Faixa de Gaza, atingem o Líbano; e muçulmanos se unem

INTERNACIONAL

João Alexandre Peschanskida Redação

O inimigo é monstruoso e im-piedoso. Precisa ser destruído, pois não hesitará em assassinar a nós todos. Lutamos em nome da liber-dade e da democracia. Quem for contra as ações militares na Pales-tina e no Líbano, é contra Israel – é também nosso inimigo.

As quatro frases resumem o discurso dos porta-vozes do go-verno israelense. Supostamente moderados e pacifi stas, Shimon Peres, vice-primeiro-ministro, e Amir Peretz, ministro da Defesa, falam do “eixo do Mal, composto por Hamas, Hezbollah, Síria e Irã”. Conclamam a população israelense a resistir e manter-se solidária, pois “é a luta por nossa sobrevivência”.

O primeiro-ministro, Ehud Olmert, descarta negociações di-plomáticas com representantes da Palestina e do Líbano, países que mandou ocupar. Só pretende realizar reuniões se tais governos mostrarem disposição para desarmar o Hamas e o Hezbollah. “Israel mantém popu-lações inteiras como reféns. Foi sua estratégia contra os palestinos e é o que faz contra os libaneses”, explica o cientista político francês Gilbert Achcar, especialista em relações in-ternacionais do Oriente Médio, em entrevista ao Brasil de Fato.

ANIQUILAR O INIMIGOOs ataques israelenses objetivam

o aniquilamento do Hamas e do Hiz-bollah, vistos como grupos legítimos em seus países. As organizações não têm campos de treinamento ou sedes claras. Seus integrantes vivem nas grandes cidades palestinas e libane-sas, sistematicamente bombardeadas pelas tropas de Israel.

“Israel ataca, massacra, tortura. O governo diz que é a estratégia correta, que ajudará israelenses e árabes. Quando algum grupo revida, assim como inimigos de guerra respondem a ataques, não é uma ação legítima, mas terrorismo, monstruosidade”, revela o pacifi sta israelense Michael Warschawski, para o Brasil de Fato. Ele parti-cipou de um protesto em Telaviv, no dia 16, exigindo a retirada das tropas israelenses da Palestina e do Líbano. Só havia 800 pessoas. “As pessoas têm medo de se manifestar, pois o governo criminaliza quem se opõe à guerra, dizendo que são traidores e aliados dos terroristas”, completa. Sedes de entidades paci-fi stas israelenses foram invadidas e destruídas por soldados.

Warschawski denuncia a falta de oposição à guerra em Israel como decorrência do alto grau de militari-zação do país. Dos 7 milhões de ha-bitantes, 3 milhões têm treinamento militar e podem ser mobilizados pe-lo exército, conhecido como Tzahal. Este tem armamentos de ponta, muitos vindos dos Estados Unidos, que envia, anualmente, 3 bilhões de dólares para o governo de Israel.

O governo israelense não está disposto a mudar sua estratégia de guerra, analisa Achcar. “A arrogân-cia e a violência dos ataques podem revoltar e unir a população libanesa contra Israel. Isso pode desestabilizar a região e estender o confl ito, tempo-ral e geografi camente”, conclui.

Marcelo Netto Rodriguesda Redação

O confl ito no Oriente Mé-dio se alastra como nunca aconteceu nos últimos 20

anos e a improvável “união sagra-da” entre xiitas, sunitas e alauitas, em resposta a ataques de Israel, já é uma realidade. As ações simul-tâneas que partem do Hamas, na Faixa de Gaza, e do Hezbollah, ao sul do Líbano, colocaram em cena a Síria e o Irã. O governo sírio é alauita, o Hamas é sunita e o Irã, assim como o Hezbollah, são xiitas.

O medo de que a política pro-movida pelos Estados Unidos no Iraque impulsionasse um cresci-mento xiita – que se estenderia do Líbano ao Irã, passando pelo po-der alauita da Síria e os xiitas ira-quianos – se confi rma agora como “um cerco” ao Estado de Israel, no que já pode ser chamado de guerra do Oriente Médio.

Um milhão de pessoas deixaram o Líbano na última semana, segun-do estimativas da Organização das Nações Unidas. As mortes se mul-tiplicam. Enquanto o confl ito na Faixa de Gaza matou 87 palestinos e um soldado israelense, no Líbano, as vítimas fatais passam de 200 – contra 20, do lado israelense. Os feridos são mais de 600. Os israe-lenses de Haifa, por exemplo, têm apenas um minuto para correr para algum abrigo antiaéreo, após ouvir a sirene de aviso de mísseis. O barril de petróleo, cotado a 30 dólares às vésperas da invasão do Iraque, em 2003, hoje beira o recorde de 80 dólares.

O Irã declarou que, se a Síria for atacada, o país de Ahmadine-jad – que meses atrás declarou que Israel deveria ser apagado do mapa – assumirá esse ataque como se fosse contra o seu próprio território. Há suspeitas de que o Irã, na práti-ca, já entrou no confl ito. Segundo o Exército israelense, cerca de cem integrantes da Guarda Revolucio-nária do Irã estão no Líbano para ajudar o grupo islâmico Hezbollah – o qual tem usado mísseis de ori-gem iraniana e munição síria.

“O Hezbollah surgiu após a invasão israelense ao Líbano, em 1982, e o Hamas, durante a pri-meira Intifada (1987-1988). Am-bos opõem-se radicalmente a Isra-el e aos Estados Unidos, que estão por trás da força israelense. Têm ideologias parecidas. O Hamas é formado por muçulmanos sunitas e o Hezbollah, por muçulmanos xiitas. Mas são aliados da Síria e do Irã, formando uma aliança regional contra Israel”, explica o professor de ciência política na Universidade Paris VIII, Gilbert Achcar. “A vitória eleitoral do Hamas foi festejada como uma vitória do Hezbollah. E também do Irã”, diz.

O belicismo total de Israel

Uma reportagem publicada pelo Brasil de Fato, na edição da sema-na passada (176), falava sobre o livro Código da Bíblia – segundo o qual existe um código matemático na Bíblia que prevê um ataque nu-clear a Jerusalém, no dia 3 de agos-to. Nesse código, chama a atenção a palavra “terremoto”, que aparece no noticiário dos últimos dias como a tradução do nome do míssel de origem iraniana Zilzal, utilizado pelo Hezbollah.

Além disso, o confl ito, antes restrito ao Sul de Israel, na Faixa

Hamas – Movimento político palestino sunita criado em 1987, na cidade de Gaza, cuja sigla designa o Movimento de Resistência Islâmica. Preconiza a luta contra Israel, por todos os meios, visando a libertação da Palestina. No início do ano, o grupo venceu as eleições parlamentares palestinas su-perando o Fatah, de Yasser Arafat. O atual primeiro-ministro palestino Ismael Haniyeh pertence ao grupo.

Hezbollah – Partido de Deus, em árabe, o Hezbollah nasceu como uma milícia islâmica xiita após a invasão israelense no Líbano, em 1982. É fi nan-ciado pela Síria e pelo Irã. Seu principal líder é o xeique Hassan Nasrallah, considerado o herói responsável pela retirada das tropas israelenses do Sul do Líbano, no ano 2000.

O professor da Faculdade de Psicologia da Pon-tifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo Franklin Goldgrub fala sobre o Islã, suas divisões e perspectivas de união.

Brasil de Fato – Como explicar essa improvável união sunita-xiita, representada pelo Hamas (na Faixa de Gaza) e pelo Hezbollah (no Sul do Lí-bano)?Franklin Goldgrub – Ainda não existe uma boa compreensão acerca das bases socioeconômicas subjacentes à divisão do Islã. Supõe-se que as vertentes xiita, sunita, wahabita e alauita retra-tem as profundas diferenças socioeconômicas do vasto mundo muçulmano, similar ao que aconte-ceu ao longo da história do cristianismo. As riva-lidades entre sunitas (que admitem a separação entre religião e Estado, lembrando o anglicanis-mo) e xiitas (em que religião e Estado são indis-sociáveis, como nos tempos em que o papado representava simultaneamente o poder espiritual e temporal) são apagadas quando se trata de enfrentar um inimigo comum, como Israel. Não é surpreendente que os alauitas, que governam a Síria, e os xiitas, que governam o Irã, se unam. BF – Qual a diferença básica de crença entre xiitas e sunitas?

Goldgrub – Os xiitas acreditam que a descen-dência de Maomé deveria ocorrer por paren-tesco. (Etimologicamente: Chiat Ali: Partido de Ali). Para os xiitas, Ali, genro de Maomé, deve-ria ter herdado o Califado e o Corão permanece como a referência central da fé islâmica. Para os sunitas, que representam a maioria dos mu-çulmanos, o Corão deve ser interpretado por um livro (Sunna), escrito a partir dos ensinamentos orais de Maomé, cuja fi nalidade seria adaptar e atualizar os ensinamentos originais do profeta a cada época e sociedade. Do ponto de vista econômico, o xiismo é tradicionalista e refl ete os valores de uma sociedade sobretudo rural, enquanto o sunismo parece traduzir o papel predominante alcançado pelo artesanato e pelo comércio.

BF – Bin Laden poderia formalizar a partir de agora uma união com o xiita Ahmadinejad?Goldgrub – Nada impediria uma aliança, mesmo que a rivalidade permaneça, no que se refere à liderança do Islã e à interpretação do Corão. Apesar da atribuição de uma fi liação sunita a Bin Laden, é plausível que ele esteja mais próximo do wahabismo, vertente saudita do Islã, cujo radicalismo supera em muito o su-nismo. (MNR)

OS MUÇULMANOS SE UNEM

O confl ito se alastrade Gaza, se transferiu para o Norte, com a entrada do Hezbollah. De acordo com o código, o ataque a Is-rael seria seguido por uma invasão vinda do Norte. Nasrallah, princi-pal líder do Hezbollah, em diversas declarações à imprensa, disse que “Israel não consegue entender as pistas”, “Vocês (os israelenses) vão se surpreender de novo assim como se surpreenderam com Haifa”, “Nós podemos atacar vocês praticamente em qualquer lugar”. Os foguetes “terremoto”, de origem iraniana, do Hezbollah, podem atingir alvos

a 400 km de distância, o que põe Jerusalém na mira.

Leia na Agência Brasil de Fato (www.brasildefato.com.br) artigos sobre o confl ito: do argentino Adol-fo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz – “Israel se transformou em um Estado terrorista”; do bispo de Jales, Dom Demétrio Valentini; e do economista canadense Michel Chossudovsky, do Centro de Pes-quisa da Globalização, para quem “os bombardeios israelenses podem levar à escalada da guerra no Médio Oriente”.

Segundo a ONU, um milhão de pessoas deixaram o Líbano na última semana e mortos passam de 200

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De 20 a 26 de julho de 20066

HAITIHAITI

Cansados da ocupaçãoOrganizações populares querem construir instrumento político revolucionário e

interromper intervenção da ONU

AMÉRICA LATINA

João Alexandre Peschanskida Redação

N em tutela internacional, nem gover-nos neoliberais. A população haitiana constrói seus próprios instrumentos

políticos. Nas organizações populares, fala-se em tomada do Estado, dentro de alguns anos. Mas os desafi os são muitos, analisa Marc-Arthur Fils-Aimé, diretor do Instituto Cultural Karl Lévêque. É preciso enfrentar e denunciar a ocupação. Começando pela Mis-são das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), que mantém o controle militar no país. Em seguida, vêm os outros mecanismos de infl uência da comunidade internacional, como a ingerência nas insti-tuições haitianas. Depois, a cumplicidade do governo do país com as potências. Por fi m, a divisão das organizações populares, rachadas e fragmentadas.

Energia para criar uma alternativa exis-te, revela Fils-Aimé: “Muitas forças de es-querda, fragmentadas, consideram que é o momento de criar uma força revolucionária capaz de tomar o poder”.

Brasil de Fato – Desde a eleição de René Préval, a quem muitos movimentos sociais decidiram “apoiar de modo crítico”, como está a situação política no Haiti?Marc-Arthur Fils-Aimé – Não mudou. Não se pode esperar grandes transformações desse governo que defende a ocupação do país. A maioria das organizações popula-res, instituições alternativas e personalida-des de esquerda ou progressistas apoiou criticamente sua eleição para manifestar rejeição a outros candidatos tradicionais, como Charles Henry Baker e Leslie Ma-nigat, que representavam uma guinada ainda mais à direita no cenário político. Mas sabíamos que Préval não ia enfrentar a estrutura neoliberal, que começou a se desenvolver na ditadura de Jean-Claude Duvalier (que governou de 1967 a 1986), caracterizada pela adoção da mais baixa taxação alfandegária do Caribe, com o objetivo de abrir nosso mercado. A medida sufocou a produção nacional e fez do Haiti, outrora um grande produtor de arroz, um dos maiores importadores per capita desse grão no mundo. Até agora, o novo go-verno, sob a direção de Jacques Édouard Alexis, não fez qualquer mudança no aparelho estatal e se contenta em dar de-clarações vagas visando agradar a todos. Mesmo a problemática da impunidade, apesar de seu peso enorme na política na-cional, não foi alvo de ações do governo. A insegurança reapareceu, principalmente sob a forma de seqüestros, chegando a 60 casos desde abril, de acordo com relatório da polícia nacional.

BF – O ex-presidente Jean-Bertrand Aris-tide, seqüestrado por tropas estaduniden-ses, apesar de ser um aliado dos EUA, vai voltar ao país?Fils-Aimé – As organizações partidárias de Aristide se mobilizam abertamente por seu retorno. São sinceras quando dizem que

seu líder está sob controle direto do im-perialismo estadunidense? Não é um meio de exercer certa pressão sobre o governo para recuperar força na administração pública? O governo de transição de Bo-niface Alexandre e Gérard Latortue havia demitido vários funcionários de baixo e médio escalão, sob a alegação de tornar as instituições mais autônomas. Mas o que fi zeram foi colocar seus protegidos na ad-ministração pública.

BF – A Organização das Nações Unidas (ONU) está colocando o Poder Judi-ciário sob tutela. Qual o impacto dessa medida?Fils-Aimé – O país está realmente ocupado. Não se trata da análise de alguns ilumina-dos. Nessa perspectiva, o Poder Judiciário, e a polícia como seu auxiliar, estão, desde o golpe de Estado de Aristide, em 1991, sob o controle internacional. Inicialmente, pela França; depois, pelo Canadá. A co-munidade internacional quer intensifi car seu controle sobre essa instituição, dito pelo novo responsável do secretariado-geral da ONU no país, o guatemalteco Edmond Mullet. Ele declarou que pretende concen-trar mais poder do que seu antecessor. O governo parece ignorar esse discurso, que ataca ainda mais a soberania nacional. Advogados e juízes protestaram.

BF – O governo brasileiro considera a in-tervenção uma ajuda humanitária.Fils-Aimé – A concretização da ingerência sobre o Judiciário reforça a ocupação de nossa nação, que depende em 60% do fi nanciamento internacional para pa-gar funcionários e 100% para realizar

eleições. Alguns analistas pensam que o atraso do pleito territorial, que devia ter acontecido antes do presidencial, de acor-do com o calendário do Conselho Eleitoral Provisório (CEP), decorre de a comunida-de internacional não querer aumentar o número de funcionários públicos. Haveria um acréscimo de 3 mil trabalhadores, ne-cessários para desenvolver a democracia, dispensáveis na perspectiva das potências.

BF – Qual a estratégia das instituições internacionais, como a ONU e o Banco Mundial?Fils-Aimé – É baseada em uma visão neoliberal. Defendem um ajuste estrutu-ral do Haiti, pregando medidas como a privatização de empresas estatais lucra-

tivas, a paralisação da produção nacional, o estímulo à abertura ao mercado internacional. Préval já se alinhou, anunciando a privati-zação da empresa de telecomunicações e do Banco Nacional de Cré-dito (BNC). Ele aceitou o Quadro de Cooperação Interina (CCI), que vai valer até o outono de 2007. A maioria de seus ministros defende o neoliberalismo.

BF – Qual sua avaliação sobre a atuação da Minustah, instalada desde 2004?Fils-Aimé – Não só a minha avaliação, como a dos que defendem a ocupação, é negativa. A Minustah não evitou uma onda de seqüestros, fenômeno que o Haiti jamais havia vivido. Se houve uma certa calmaria no período das eleições, não foi resultado da ação da Minustah, mas da convicção e da disciplina da população. O principal escândalo desse pleito foi o roubo de votos, encontrados em um lixão. A responsabilidade pela segurança dos postos eleitorais era da Missão. Atualmente, a violência ressurgiu – prova que nenhuma instituição nacional ou estrangeira tem o controle sobre as ruas. Para a maioria da população, a Mi-nustah age com indiferença em relação à violência; para a pequena parcela rica, o descontentamento em relação às tropas é porque não reprimem mais violentamente os grupos pobres. Os 500 milhões de dólares destinados anualmente à Missão são quase inúteis. Se fossem colocados a serviço da polícia e justiça haitianas, contribuiriam para melhorar as duas insti-tuições e ajudar a sociedade.

BF – Como está a campanha de desar-mamento do país, responsabilidade da Minustah?Fils-Aimé – O desarmamento da popula-ção é um fi asco total. Recuperou-se 250 armas, das 170 mil que se estima haver no Haiti. A comunidade internacional culpa a população, dizendo que o país é caótico e ingovernável. Mas há uma relação entre as potências e a instabilidade do país: a injus-tiça e a desigualdade social são resultado das políticas neoliberais que implementam. Os governos ricos não têm interesse algum em facilitar o desenvolvimento de um país, independentemente de seu tamanho. Tal esforço deve surgir do próprio povo.

BF – A situação dos direitos humanos é ca-lamitosa. A Minustah pretendia organizar encontros com entidades da sociedade civil para debater o tema. Isso ocorreu?Fils-Aimé – Os dirigentes das instituições internacionais têm o gatilho rápido para encontrar respostas que os desresponsabi-lizem. O mesmo ocorre quanto aos direitos humanos, sacrifi cados em nome de uma tal luta pela estabilidade do país. Não há melhoria, não há diálogo entre entidades e a ONU. Mandam e desmandam.

BF – Qual a estratégia das organizações populares?Fils-Aimé – O Haiti está cheio de orga-nizações. É preciso diferenciá-las. Há as organizações sociais, que reúnem setores diversos, com objetivos diversos. Há as organizações populares, que lutam pela transformação da sociedade, e acreditam que a educação das massas e a construção de um instrumento político autônomo são o desafi o estratégico atual. Fala-se em toma-da de poder, transformar o Estado e colo-cá-lo a serviço da maioria da população. Muitas forças de esquerda, fragmentadas, consideram que é o momento de criar uma força revolucionária capaz de tomar o po-der. A população não quer ser massa de manobra de personalidades conhecidas. Mas isso é um grande desafi o, pois, como aproximar as organizações, tão separadas umas das outras?

BF – Organizações camponesas preten-diam criar uma frente ampla.Fils-Aimé – Foi criada. Chama-se Pla-taforma Nacional das Organizações Camponesas (Panopla). O objetivo era reunir os dois principais movimentos do país: Tèt Kole Ti Peyizan Haïtien (TK, Ca-beças Juntas de Pequenos Camponeses Haitianos) e Mouvman Peyizan de Papay (MPP, Movimento Camponeses de Papay). Tèt Kole, após o apoio de Chavannes Jean-Baptiste, do MPP, à candidatura de Baker à Presidência, saiu da Panopla. A Plataforma ainda existe, mas perdeu sua dimensão nacional, com a saída do TK. Atualmente, outra organização está sen-do criada, a Coordenação Nacional de Reivindicação dos Camponeses Haitianos (Conarepa), que reúne TK, a Federação de Agrupamentos Camponeses de Bel-le-Fontaine, entre outras. Está em pleno processo de formação.

A concretização da ingerência sobre o Judiciário reforça

a ocupação de nossa nação

Para a maioria da população, a Minustah age com indiferença em

relação à violência

Quadro de Coope-ração Interina (CCI) – Elaborado em 2004, sob orien-tação do Banco Mundial, defi ne as linhas políticas do governo do Haiti, geralmente neolibe-rais. Foi escrito por técnicos estrangei-ros, sem participa-ção da sociedade haitiana. Prega a privatização de em-presas e recursos naturais, além de priorizar o cresci-mento econômico em vez das neces-sidades sociais.

Marc-Arthur Fils-Aimé é diretor do Instituto Cultural Karl Lévêque (ICKL), centro de educação popular haitiano. Suas análises de conjuntura são publica-das por diversos meios de comunicação do país caribenho. Ele assessora o movimento Tèt Kole Ti Peyizan Haïtien (TK, em português, Cabeças Juntas de Pequenos Camponeses Haitianos).

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Governos ricos não têm interesse em facilitar o desenvolvimento de outros países

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O povo nas ruas, contra as fraudes

De 20 a 26 de julho de 2006 7

Milhares de simpatizantes de López Obrador se mobilizam pela recontagem dos votos na eleição presidencial

MÉXICOMÉXICO

AMÉRICA LATINA

Daniel Cassolde Porto Alegre (RS)

Um milhão e meio de pessoas, segundo os organizadores. Cerca de um milhão e cem

mil, na contagem da polícia. E pouco menos de 900 mil pessoas, de acordo com a imprensa con-servadora, incluindo a brasileira. De qualquer forma, o número de simpatizantes do Partido Revolu-cionário Democrático (PRD) que estiveram no centro da Cidade do México, domingo, 16 – para denunciar a fraude nas eleições presidenciais mexicanas do dia 2 de julho e exigir a recontagem de votos, como defende o candidato derrotado Andrés Manoel López Obrador, do PRD – é mais que o tri-plo da primeira mobilização, reali-zada no mesmo local, dia 8.

A manifestação foi convocada por Obrador. No resultado ofi cial, ele fi cou a menos de 1% de Felipe Calderón, candidato do Partido da Ação Nacional (PAN), do atual

Igor Ojedade Assunção (Paraguai)

A presença de tropas estaduni-denses, a crescente militarização da zona rural e a criminalização dos movimentos camponeses, fe-nômenos que vêm se acentuando há dois anos, no Paraguai, gera-ram a convocação de uma Visita de Observacão Internacional ao país, por parte da Campaña por la Desmilitarización de las Américas (Cada), rede hemisférica de orga-nizações contra a militarização do continente. A missão, que iniciou atividades no dia 16 e deve en-cerrar a visita dia 20, conta com a presença de diversas entidades de países como Argentina, Brasil, Bo-lívia, Colômbia, Equador, França, México e Uruguai. Entre elas, a Rede Social de Direitos Humanos, o Observatorio Latinoamericano de Geopolítica e o Servicio Paz y Justicia América Latina.

Decidida durante o 6º Fórum Social Mundial, em janeiro de 2006, em Caracas (Venezuela), a visita faz parte da campanha “Desmilitarizemos nossas consci-ências, as instituições e a socieda-de”, da Cada. Seu objetivo funda-mental é “observar o processo de militarização do país, com a cri-minalização dos protestos sociais, a utilização das Forças Armadas

no campo como uma forma de re-pressão e controle social e tudo o que tem signifi cado a mobilização de tropas paraguaias ao interior”, segundo Orlando Castillo, do Ser-vicio Paz y Justicia de Paraguay (Serpaj-Py), principal entidade organizadora da visita.

A missão internacional pretende obter a maior quantidade de dados possível sobre essas questões e sobre outras, como a assinatura do Convênio de Imunidade para as tropas dos EUA, promulgado como lei em maio de 2005; a assessoria aos militares paraguaios conduzida

pelos estadunidenses; a instalacão ofi cial de escritórios de segurança do governo dos EUA – Escritório Federal de Investigaçao (FBI), Agência antidrogas (DEA) e Agên-cia Central de inteligência (CIA).

Para facilitar o trabalho e a abrangência da visita, a missão intenacional se dividiu em três grupos. Um, com foco na cidade de Concepción, região onde há a maior presença militar estadu-nidense e onde ocorre a maior parte dos exercícios militares. O segundo grupo vai a Mariscal Estigarribia, cidade do chaco

paraguaio onde está localizado o aeroporto que supostamente pode ser utilizado como pista de pouso de aviões de guerra de grande por-te dos EUA. O terceiro permanece em Assunção, onde estão se reuni-do com organizações camponesas, sindicais e autoridades.

Para Ana Esther Ceceña, da Cada, um convênio como o assi-nado entre os governos paraguaio e estadunidense signifi ca, na reali-dade, que o Estado não pode fazer nada frente à presença estrangeira: “Ou seja, caso tropas presentes no país matem alguém, isso será con-siderado como dano colateral do trabalho que eles estão realizando na região, e não se poderá sequer levar o caso à Justiça”. O convê-nio prevê, entre outras coisas, a re-alização, entre julho de 2005 e de-zembro de 2006, de 11 exercícios militares bilaterais em qualquer parte do território paraguaio e a formação de militares do Paraguai por parte do Pentágono.

Segundo Castillo, a presença militar de tropas paraguaias asses-soradas por militares dos EUA no interior do país, em vez de repre-sentar maior segurança, representa maior insegurança. “Os índices de mortes de camponeses aumenta-ram, assim como os índices de despejos violentos, de repressões. A tensão e o medo da população é

PARAGUAIPARAGUAI

Militarização e terror no campomuito maior desde que os coman-dos móveis das Forças Armadas foram para a região rural”, diz. Existem, inclusive, relatos de casos de torturas e de estupro – “justifi cdos” pelo combate ao terrorismo e à guerrilha. Para isso, o Estado paraguaio busca vincular organizações camponesas às For-ças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e utiliza como prova qualquer documentos com informações sobre Che Guevara, a revolução cubana, Lenin, Stalin etc. A identifi cação de campo-neses com grupos terroristas e guerrilheiros tem infl uência di-reta dos escritórios de segurança e militares dos EUA, segundo o Serpaj-Py.

“Recebemos denúncias infor-mais de que em toda a parte Sul do Paraguai começaram hostilizações contra grupos e organizações cam-ponesas e de que estaria se criando um ambiente de terror. Nos inte-ressa muito observar isso, falar com as pessoas, ver realmente o que estão percebendo dessa pre-sença militar”, alerta Ana Esther, para quem há antecedentes desse tipo de ação com o Plano Colôm-bia, no país andino. De acordo o Serpaj-Py, mais de dois mil cam-poneses paraguaios sem terra estão sendo processados por realizar ocupações.

presidente, Vicente Fox. Em seu discurso, dia 16, Obrador defen-deu uma “resistência civil pacífi -ca” e a recontagem voto por voto. O resultado defi nitivo da eleição será confi rmado pelo Tribunal Eleitoral do Poder Judiciário da Federação no dia 6 de setembro.

Obrador, durante a mobi-lização, enumerou os desvios do processo eleitoral: a atitude tendenciosa do Instituto Federal Eleitoral durante a campanha, a manipulação dos sistemas de computação (questionados pela oposição), a falta de eqüidade na compra de espaços publicitários nos meios de comunicação, a pro-cedência desconhecida do dinheiro usado “por nossos adversários”, o ativismo ilegal dos grupos de inte-resse criados, a guerra suja, o uso de programas e recursos públicos ao candidato da direita e a forte ingerência do presidente da Re-pública. “E posso dizer que, além de tudo isso, os resultados das atas da votação e a contagem foram

falsifi cadas”, resumiu o candidato do PRD.

RECONTAGEMDe acordo com o PRD, 60%

das mais de 130 mil atas eleitorais contêm “erros aritméticos”. Seriam mais de um milhão e meio de votos não computados, de acordo com as denúncias do partido de Obrador. O candidato foi supostamente derro-tado por uma diferença de 220 mil votos (35,88% a 35,31%). “Tenho a certeza absoluta de que, se a re-contagem de votos for feita, será demonstrado que nós vencemos limpa, legal e legitimamente as eleições de 2 de julho”, afi rmou.

Na estratégia do PRD para pres-sionar pela recontagem de votos – ou simplesmente deslegitimar um futuro governo Calderón –, estão previstos acampamentos cidadãos nos 300 Conselhos Distritais do México, ações de resistência pací-fi ca, cujo caráter não foi divulgado, e uma nova mobilização para o dia 30, também na capital do país.

Para os dirigentes do PAN, que qualifi caram a mobilização como “irrelevante”, as manifestações de Obrador fazem parte de uma estra-tégia de chantagem. Acrescentam que a recontagem não é um meca-nismo previsto em lei e acusam o político do PRD de promover um clima de “intranquilidade” para o futuro governo de Calderón.

IMPÉRIO DA FRAUDEA possível fraude ocorrida nas

eleições de 2 de julho não é no-vidade em um país em que a elite sempre soube, trampa (fraude) atrás de trampa, perpetuar-se no poder. “O México é um país que viveu, durante décadas, sob o império da fraude”, escreveu, dia 15, Víctor To-ledo, articulista do jornal mexicano La Jornada. “Depois de tantos anos de luta para termos o privilégio de contar com um instrumento como o Instituto Federal Eleitoral, este foi destroçado em poucos dias e, agora, estamos como em 1970, quando Gustavo Díaz Ordaz nos impôs

como presidente Luis Echeverría Alvarez. Ou talvez pior, como em 1988, quando apesar da vitória de Cuauhtémoc Cárdenas, Miguel de la Madrid nos impôs Carlos Salina”, escreveu o jornalista Jaime Avilés, também do La Jornada.

E é justamente esse histórico que difi culta qualquer previsão sobre uma eventual crise institucional no México ou de legitimidade do governo Calderón. O que se pode afi rmar é que Obrador está con-seguindo despontar como líder da esquerda partidária mexicana e que o PRI, que no século passado man-teve-se no poder por sete décadas, sofreu um impacto negativo. Foi denunciando fraudes eleitorais que Obrador tornou-se conhecido na política nacional, em 1994, quando incendiou uma polêmica sobre a manipulação dos resultados que o impediram de chegar ao governo do Estado de Tabasco, na vitória de Ro-berto Madrazo (PRI), que concorreu a presidente no dia 2 de julho e fi cou com um esquecido terceiro lugar.

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Para Obrador, os resultados das atas da votação e a contagem foram falsifi cados

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Nova mobilização está marcada para o dia 30

Missão internacional se encontra com líderes camponeses

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Cia. Ocamorana retoma invasões holandesas no Nordeste, a partir de leitura crítica do

capital internacional

Globalização nos tempos de

Nassau

Cristiane Gomesde São Paulo (SP)

O s conceitos de globalização e de capital internacional parecem recentes, na histó-

ria da humanidade. Esses termos começaram a ser usados em grande escala no começo da década de 1990. É nessa época também que as questões de mercado se trans-formam em prioridade na chamada aldeia global. Mas sabemos que as aparências enganam, principalmen-te quando se olha para a história com olhos críticos.

É o que mostra o espetáculo teatral A guerra dos caloteiros, da Companhia Ocamorana de Pesquisas Teatrais, em cartaz na cidade de São Paulo. A peça tra-ta da chegada dos holandeses ao Nordeste brasileiro, no século 17, quando a Companhia das Índias Ocidentais resolve investir em um lucrativo produto, o açúcar. Para isso, necessita de terras e mão-de-obra: solo brasileiro e traba-lho dos africanos escravizados. “A globalização é um rótulo, um equívoco cultivado por ideólogos estadunidenses. O capitalismo sempre foi global e uma das suas primeiras fi guras foi o holandês, que já veio com um sentido de industrialização e uso de mão-de-obra escrava. Por isso, o único jeito decente de tratar essa inva-são é lembrando a primeira fi gura do capitalismo na história. Esta-mos contando uma aventura do capital. A Companhia das Índias Ocidental, de propriedade dos ho-landeses, ocupou o Nordeste bra-sileiro por uma questão de negó-cios”, afi rma Iná Camargo Costa, autora do texto teatral, juntamen-te com Márcio Bonaro, diretor do espetáculo.

De 20 a 26 de julho de 2006

8

CULTURA

TEATROTEATRO

Marcos Soares

A atividade teatral paulistana tem produzido resultados surpreendentes nos últimos anos. As pessoas falam de um “renascimento” das experiên-cias interrompidas em 1968, quando a truculência militar ampliou seus alvos para incluir não apenas os mo-vimentos populares, mas também a atividade cultural e intelectual de esquerda. Trata-se de centenas de grupos de teatro empenhados numa pesquisa de linguagem exigente, mais ou menos ligada às experiên-cias do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. O objetivo mais amplo é fa-lar das agruras e realizar diagnósti-cos sobre as benesses do capitalismo mundial e suas conseqüências mais catastrófi cas.

Nosso renascimento, entretanto, pode contar pouco com políticas culturais interessadas. Ao contrá-rio de dramaturgos como William Shakespeare, cuja importância era inseparável dos investimentos da coroa inglesa, os artistas da periferia do capitalismo são obrigados a fazer um exercício constante de nadar contra a maré de políticas cada vez mais direcionadas pelas exigências do mercado e da indústria cultural. Nesse sentido, a mera existência das peças já constitui um pequeno milagre. A surpresa fi ca por conta da qualidade dos espetáculos: a decisão de atuar fora do cerco do in-vestimento – e da vigilância estética e temática – do apoio ofi cial levou a um desenvolvimento realmente espantoso. Está aí a boa notícia: não precisamos ser condescendentes.

CAPITALISMO E PROSTITUIÇÃODessa situação já nascem as res-

sonâncias iniciais do espetáculo A guerra dos caloteiros. As intenções se explicitam desde as primeiras ce-nas: trata-se de um espetáculo sobre o capitalismo mundial e, num certo sentido, sobre as próprias condições de possibilidade de existência da peça. No início, duas reações diante da situação de crise internacional: a primeira é a de Glete, futura dona do primeiro bordel globalizado do Recife, que dá ao capitalista holan-

dês uma lição sobre os movimentos e objetivos do capital utilizando justamente a linguagem que lhe é mais familiar – a da prostituição – que dá contornos sinistros à sua “fábula exemplar”.

A segunda é a do sermão, onde o bispo conclama a população reci-fense para a guerra de expulsão dos holandeses. O tom religioso passa rapidamente, e em crescendo, da de-fesa da moral e dos bons costumes para o elogio da propriedade privada e dos interesses dos senhores de en-genho. Estão dados aqui o início e o fi m de peça, o ponto de partida e de chegada justapostos para mostrar as diversas faces do mesmo processo: interesses escusos, mentiras des-lavadas, prostituição e exploração generalizadas sob diversas camadas mais ou menos bem-sucedidas de disfarce ideológico.

HISTÓRIA A CONTRAPELOÉ no bordel em Recife que

grande parte da peça se desenrola. Com a modernização trazida pela empreitada civilizadora holandesa, tudo se modifi ca rapidamente, aos trancos e barrancos, e a prostituição também é obrigada a se refi nar, passando da antiga dona portugue-sa, reduzida a gerente, para as mãos mais competentes da empreende-dora holandesa Glete. Os poucos habitantes que fi cam na cidade após a invasão, sem ter para onde ir, se viram como podem, passando “ma-landramente” do desejo de defender o solo nacional contra os invasores estrangeiros para uma situação de adaptação cômoda e amizade de cor bem brasileira com os “hereges calvinistas”.

É essa a base a partir da qual o espetáculo procura combinar duas linhas paralelas: de um lado, o bordel como metáfora do Brasil e do capitalismo local/mundial; de outro, as “notas de rodapé” na forma de comentários textuais e musicais que pontuam a histórias das prostitutas e contam um dos episódios “heróicos” da história nacional, do ponto de vista de seus perdedores: negros, mulheres e pobres. Entre o emaranhado de

pequenos enredos que se cruzam e se comentam, a história de Xica é uma das mais ilustrativas: negra, pobre e prostituta, ela revela a face mais cruel das vítimas do progresso modernizador. Mas é talvez do pon-to de vista da forma que os assuntos da peça mais se adensam. Pois o clima de “salve-se quem puder”, que, convenhamos, caracteriza não apenas a vida das personagens da peça, mas a de boa parte do povo brasileiro, leva a uma tentativa de encenar o caos com certo “exagero” do tom desabusado.

A mistura caótica de referências culturais – que vão dos temas musi-cais de E o vento levou e de Cinde-rela, passa pela bossa-nova e pelos clássicos da canção estadunidense e inclui uma hilária leitura do poema Navio Negreiro, de Castro Alves –, não apenas atualiza o argumento do espetáculo, mas dá a ver o lado gro-tesco da nossa mania de copiar os avanços e detritos da cultural mun-dial, meio sem respeitar contextos, num clima de liquidação cultural de dar pena.

Tudo isso embalado por uma gramática de gestos, que cobrem um leque amplo que vão da por-nografi a ao humor barato, e que complicam a ambição literária do texto. Ao mesmo tempo, nunca sentimos que o humor derrapa no tom celebratório que caracteriza o elogio pós-moderno ao “multicul-turalismo” do mundo globalizado. De certo modo, o movimento geral do espetáculo é o de subsumir o ca-os dentro de uma certa lógica, uma direção que organiza os conteúdos. É a procura desse equilíbrio entre a desfaçatez e a “aula de História”, entre a variedade caótica de proce-dimentos cênicos e a montagem de um teorema e de uma organização central que melhor demonstra o caráter do capitalismo mundial, que anda no fi o da navalha entre o caos e a inevitabilidade, entre a “liberda-de” e o cálculo. Esta, a maior con-quista da Guerra dos caloteiros.

Marcos Soares é professor de literatura da Universidade de São

Paulo (USP)

ANÁLISEANÁLISE

Retomada de experiências

Bonaro explica que a idéia de tra-tar esse tema surgiu quando o Oca-morana ocupava o Teatro de Arena Eugênio Kusnet. Infl uenciado pelas peças do Arena – como Arena conta Zumbi – o grupo decidiu que, em seu primeiro trabalho de dramatur-gia própria, falaria sobre questões históricas. “Em vários documentos ofi ciais, durante o período das inva-sões holandesas é mostrado o mo-mento em que a nação brasileira e o exército nacional surgiram. O lugar do encontro de índios, europeus e negros que deu origem ao povo brasileiro. Mas é preciso perceber o quanto essa versão é mentirosa”.

TRILOGIAA guerra dos caloteirosé a pri-

meira parte da trilogia A guerra da libertação divina. A segunda mon-tagem mostrará a guerra entre ho-landeses e brasileiros (em nome de Portugal). A última peça da trilogia vai dar o arremate na desconstrução da versão ofi cial da história, repleta de falsos heróis e histórias mal con-tadas. “Quem tiver a oportunidade de ver as três peças poderá fazer o enlace de tudo e perceber até onde somos atingidos por essa realidade do capital internacional. E este é o exercício do teatro: fazer pensar criticamente”, defende Clóvis Gon-çalves, integrante do elenco.

A busca, nas raízes históricas, das questões enfrentadas pelo ca-pitalismo atual também permeia a montagem. “É interessante pensar no dinheiro acumulado pelas ações vindas do tráfi co negreiro e do açú-car. Empresas como Shell e Philips têm hoje um dinheiro que, apesar de ser legalmente delas, têm origem no acúmulo dessas práticas históri-cas. Essas empresas estiveram liga-das ao tráfi co negreiro”, diz Benito Carmona, também do elenco.

PARA ASSISTIR

Teatro Fábrica – até 30 de julhoRua da Consolação, 1623Sextas e sábados às 21h30; domingos às 20h30

Engenho Teatral – 5 e 6 de agostoAo lado da estação Carrão do metrô

Teatro Paulo Eiró – a partir de 11 de agostoR. Adolfo Pinheiro, 76, Santo Amaro

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A guerra dos caloteiros é a primeira parte da trilogia A guerra da libertação divina

Montagem está em cartaz no Teatro Fábrica até dia 30