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    JEAN BAUDRILLARD

    SOMBRA DAS MAIORIASSILENCIOSAS

    O fim do social e o surgimento das massas

    Editora Brasiliense1985

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    Jean Baudrillard

    sombra das maiorias silenciosas

    O fim do social e o surgimento das massasEditora Brasiliense

    1985

    Traduo: Suely Bastos

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    NDICE

    SOMBRA DAS MAIORIAS SILENCIOSAS

    O abismo do sentido. Grandeza e decadncia do poltico. Amaioria silenciosa. Nem sujeito nem objeto. Da resistncia aohiperconformismo. Massa e terrorismo. Sistemas implosivos,sistemas explosivos.

    ... OU O FIM DO SOCIAL

    O XTASE DO SOCIALISMO

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    SOMBRA DAS MAIORIAS SILENCIOSAS

    Todo o confuso amontoado do social se move em torno desse

    referente esponjoso, dessa realidade ao mesmo tempo opaca e translcida,desse nada: as massas. Bola de cristal das estatsticas, elas soatravessadas por correntes e fluxos, semelhana da matria e doselementos naturais. Pelo menos assim que elas nos so representadas.Elas podem ser magnetizadas, o social as rodeia como uma eletricidadeesttica, mas a maior parte do tempo se comportam precisamente como

    massa, o que quer dizer que elas absorvem toda a eletricidade do social edo poltico e as neutralizam, sem retorno. No so boas condutoras dopoltico, nem boas condutoras do social, nem boas condutoras do sentidoem geral. Tudo as atravessa, tudo as magnetiza, mas nelas se dilui semdeixar traos. E na realidade o apelo s massas sempre ficou sem resposta.Elas no irradiam, ao contrrio, absorvem toda a irradiao dasconstelaes perifricas do Estado, da Histria, da Cultura, do Sentido. Elasso a inrcia, a fora da inrcia, a fora do neutro.

    nesse sentido que a massa caracterstica da nossa modernidade,

    na qualidade de fenmeno altamente implosivo, irredutvel a qualquerprtica e teoria tradicionais, talvez mesmo irredutvel a qualquer prtica e aqualquer teoria simplesmente.

    Na representao imaginria, as massas flutuam em algum pontoentre a passividade e a espontaneidade selvagem, mas sempre como umaenergia potencial, como um estoque de social e de energia social, hojereferente mudo, amanh protagonista da histria, quando elas tomaro apalavra e deixaro de ser a maioria silenciosa - ora, justamente as massasno tm histria a escrever, nem passado, nem futuro, elas no tmenergias virtuais para liberar, nem desejo a realizar: sua fora atual, todaela est aqui, e a do seu silncio. Fora de absoro e de neutralizao,desde j superior a todas as que se exercem sobre elas. Fora de inrciaespecifica, cuja eficcia diferente da de todos os esquemas de produo,de irradiao e de expanso sobre os quais funciona nosso imaginrio,incluindo a vontade de destru-los. Figura inaceitvel e ininteligvel daimploso (trata-se ainda de um processo?), base de todos os nossos

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    sistemas de significaes e contra a qual eles se armam com todas as suasresistncias, ocultando o desabamento central do sentido com umarecrudescncia de todas as significaes e com uma dissipao de todos ossignificantes:

    O vcuo social atravessado por objetos intersticiais e acumulaescristalinas que rodopiam e se cruzam num claro-escuro cerebral. Tal amassa, um conjunto no vcuo de partculas individuais, de resduos dosocial e de impulsos indiretos: opaca nebulosa cuja densidade crescenteabsorve todas as energias e os feixes luminosos circundantes, parafinalmente desabar sob seu prprio peso. Buraco negro em que o social seprecipita.

    Exatamente o inverso, portanto, de uma acepo sociolgica. A

    sociologia s pode descrever a expanso do social e suas peripcias. Elavive apenas da hiptese positiva e definitiva do social. A assimilao, aimploso do social lhe escapam. A hiptese da morte do social tambm ada sua prpria morte.

    O termo massa no um conceito. Leitmotivda demagogia poltica, uma noo fluida, viscosa, lumpen-analtica. Uma boa sociologia procurarabarc-la em categorias mais finas: scio-profissionais, de classe, destatuscultural, etc. Erro: vagando em torno dessas noes fluidas eacrticas (como outrora a de mana) que se pode ir alm da sociologia

    critica inteligente. Alm do que, retrospectivamente, se poder observar queos prprios conceitos de classe, de relao social, de poder, destatus, todos .estes conceitos muito claros que fazem a glria das cinciaslegtimas, tambm nunca foram mais do que noes confusas, mas sobreas quais se conciliaram misteriosos objetivos, os de preservar umdeterminado cdigo de anlise.

    Querer especificar o termo massa justamente um contra-senso - procurar um sentido no que no o tem. Diz-se: a massa de trabalhadores.Mas a massa nunca a de trabalhadores, nem de qualquer outro sujeito ou

    objeto social. As massas camponesas de outrora no eram exatamentemassas: s se comportam como massa aqueles que esto liberados desuas obrigaes simblicas, anulados (presos nas infinitas redes) edestinados a serem apenas o inumervel terminal dos mesmos modelos,que no chegam a integr-los e que finalmente s os apresentam comoresduos estatsticos. A massa sem atributo, sem predicado, semqualidade, sem referncia. A est sua definio, ou sua indefinio radical.Ela no tem realidade sociolgica. Ela no tem nada a ver com algumapopulao real, com algum corpo, com algum agregado social especfico.

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    Qualquer tentativa de qualific-la somente um esforo para transferi-Iapara a sociologia e arranc-la dessa indistino que no sequer a daequivalncia (soma ilimitada de indivduos equivalentes: 1 + 1 + 1 + 1 - tal a definio sociolgica), mas a do neutro, isto , nem um nem outro(ne-

    uter).

    Na massa desaparece a polaridade do um e do outro. Essa a causadesse vcuo e da fora de desagregao que ela exerce sobre todos ossistemas, que vivem da disjuno e da distino dos plos (dois, oumltiplos, nos sistemas mais complexos). o que nela produz aimpossibilidade de circulao de sentido: na massa ele se dispersainstantaneamente, como os tomos no vcuo. tambm o que produz aimpossibilidade, para a massa, de ser alienada, visto que nela nem um nemooutroexistem mais.

    Massa sem palavra que existe para todos os porta-vozes semhistria. Admirvel conjuno dos que nada tm a dizer e das massas queno falam. Nada que contm todos os discursos. Nada de histeria nem defascismo potencial, mas simulao por precipitao de todos os referenciaisperdidos. Caixa preta de todos os referenciais, de todos os sentidos queno admitiu, da histria impossvel, dos sistemas de representaoinencontrveis, a massa o que resta quando se esqueceu tudo do social.

    Quanto impossibilidade de nela se fazer circular o sentido, o melhor

    exemplo o de Deus. As massas conservaram dele somente a imagem,nunca a Idia. Elas jamais foram atingidas pela Idia de Deus, quepermaneceu um assunto de padres, nem pelas angstias do pecado e dasalvao pessoal. O que elas conservaram foi o fascnio dos mrtires e dossantos, do juzo final, da dana dos mortos, foi o sortilgio, foi o espetculoe o cerimonial da Igreja, a imanncia do ritual - contra a transcendncia daIdia. Foram pags e permaneceram pags sua maneira, jamaisfreqentadas pela Instncia Suprema, mas vivendo das miudezas dasimagens, da superstio e do diabo. Prticas degradadas em relao aocompromisso espiritual da f? Pode ser. Esta a sua maneira, atravs da

    banalidade dos rituais e dos simulacros profanos, de minar o imperativocategrico da moral e da f, o imperativo sublime do sentido, que elasrepeliram. No porque no pudessem alcanar as luzes sublimes dareligio: elas as ignoraram. No recusam morrer por uma f, por uma causa,por um dolo. O que elas recusam a transcendncia, a interdio, adiferena, a espera, a ascese, que produzem o sublime triunfo da religio.Para as massas, o Reino de Deus sempre esteve sobre a terra, naimanncia pag das imagens, no espetculo que a Igreja lhes oferecia.

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    Desvio fantstico do princpio religioso. As massas absorveram a religio naprtica sortlega e espetacular que adotaram.

    Todos os grandes esquemas da razo sofreram o mesmo destino.Eles s descreveram sua trajetria, s seguiram o curso de sua histria nodiminuto topo da camada social detentora do sentido (e em particular dosentido social), mas no essencial somente penetraram nas massas ao preode um desvio, de uma distoro radical. Assim foi com a razo histrica, arazo poltica, a razo cultural e a razo revolucionria - assim foi com aprpria razo do social, a mais interessante pois a que parece inerente smassas, e por t-las produzido no curso de sua evoluo. As massas so oespelho do social? No, elas no refletem o social, nem se refletem no

    social - o espelho do social que nelas se despedaa.A imagem no exata, pois ainda evoca a idia de uma substncia

    plena, de uma resistncia opaca. Ora, as massas funcionam mais como umgigantesco buraco negro que inflete, submete e distorce inexoravelmentetodas as energias e radiaes luminosas que se aproximam. Esferaimplosiva, em que a curvatura dos espaos se acelera, em que todas asdimenses se encurvam sobre si mesmas e involuem at se anularem,deixando em seu lugar e espao somente uma esfera de absoropotencial.

    O abismo do sentido

    O mesmo ocorre com a informao.

    Seja qual for seu contedo, poltico, pedaggico, cultural, seupropsito sempre filtrar um sentido, manter as massas sob o sentido.

    Imperativo de produo de sentido que se traduz pelo imperativoincessantemente renovado de moralizao da informao: melhor informar,melhor socializar, elevar o nvel cultural das massas, etc. Bobagens: asmassas resistem escandalosamente a esse imperativo da comunicaoracional. O que se lhes d sentido e elas querem espetculo. Nenhumafora pde convert-las seriedade dos contedos, nem mesmo seriedade do cdigo. O que se lhes d so mensagens, elas queremapenas signos, elas idolatram o jogo de signos e de esteretipos, idolatramtodos os contedos desde que eles se transformem numa seqncia

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    espetacular. O que elas rejeitam a dialtica do sentido. E de nadaadianta alegar que elas so mistificadas. Hiptese sempre hipcrita quepermite salvaguardar o conforto intelectual dos produtores de sentido: asmassas aspirariam espontaneamente s luzes naturais da razo. Isso para

    conjurar o inverso, ou seja, que em plena liberdade que as massasopem ao ultimato do sentido a sua recusa e sua vontade de espetculo.Temem essa transparncia e essa vontade polticacomo temem a morte.Elas farejam o terror simplificador que est atrs da hegemonia ideal dosentido e reagem sua maneira, reduzindo todos os discursos articulados auma nica dimenso irracional e sem fundamento, onde os signos perdemseu sentido e se consomem na fascinao: o espetacular.

    Uma vez mais, no se trata de mistificao: trata-se de sua exignciaprpria, de uma contra-estratgia expressa e positiva - trabalho de absoro

    e de aniquilamento da cultura, do saber, do poder, do social. Trabalhoimemorial, mas que hoje assume toda a sua envergadura. Um antagonismoprofundo, que obriga a uma inverso de todos os cenrios aceitos: o sentidono seria mais a linha de fora ideal de nossas sociedades, sendo o queescapa apenas um resduo destinado a ser reabsorvido qualquer dia - aocontrrio, o sentido que somente um acidente ambguo e semprolongamento, um efeito devido convergncia ideal de um espaoperspectivo num momento dado (a Histria, o Poder, etc), mas que narealidade nunca disse respeito seno a uma frao mnima e a uma camadasuperficial de nossas sociedades. E isso tambm verdadeiro para os

    indivduos: ns somos apenas episodicamente condutores de sentido, noessencial e em profundidade ns nos comportamos como massa, vivendo amaior parte do tempo num modo pnico ou aleatrio, aqum ou alm dosentido. Logo, tudo muda com essa hiptese inversa.

    Vejamos um exemplo entre mil desse menosprezo pelo sentido,folclore das passividades silenciosas. Na noite da extradio de KlausCroissant, a televiso transmitia um jogo de futebol em que a Franadisputava sua classificao para a Copa do Mundo. Algumas centenas depessoas se manifestam diante da Sant, alguns advogados correm na noite,

    vinte milhes de pessoas passam sua noite diante da televiso. Quando aFrana ganhou, exploso de alegria popular. Horror e indignao dosespritos esclarecidos diante dessa escandalosa indiferena. Le Monde: 21horas. Nesta hora o advogado alemo j foi retirado da priso da Sant.Daqui a pouco Rocheteau vai marcar o primeiro gol. Melodrama daindignao.1 Nenhuma nica interrogao sobre o mistrio dessa

    1 Que se assemelha amargura da extrema-esquerda, e a seu cinismo inteligente emrelao maioria silenciosa. Charlie-Hebdo, por exemplo: A maioria silenciosa no liga

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    indiferena. Uma nica razo sempre invocada: a manipulao das massaspelo poder, sua mistificao pelo futebol. De qualquer maneira, essaindiferena no deveriaexistir, ela no tem nada a nos dizer. Em outrostermos, a maioria silenciosa despossuda at de sua indiferena, ela no

    tem nem mesmo o direito de que esta lhe seja reconhecida e imputada, necessrio que tambm esta apatia lhe seja insuflada pelo poder.

    Que desprezo atrs dessa interpretao! Mistificadas, as massas nosaberiam ter comportamento prprio. De tempos em tempos se lhesconcede uma espontaneidade revolucionria atravs da qual elasvislumbram a racionalidade do seu prprio desejo, isso sim, mas Deus nosproteja de seu silncio e de sua inrcia. Ora, exatamente essa indiferenaque exigiria ser analisada na sua brutalidade positiva, em vez de sercreditada a uma magia branca, a uma alienao mgica que sempre

    desviaria as multides de sua vocao revolucionria.

    Mas, por outro lado, como que ela consegue desvi-las? Comrelao a este fato estranho, pode-se perguntar: por que aps inmerasrevolues e um sculo ou dois de aprendizagem poltica, apesar dosjornais, dos sindicatos, dos partidos, dos intelectuais e de todas as energiaspostas a educar e a mobilizar o povo, por que ainda se encontram (e seencontrar o mesmo em dez ou vinte anos) mil pessoas para se mobilizar evinte milhes para ficar passivas? - e no somente passivas, mas porfrancamente preferirem, com toda boa f e satisfao, e sem mesmo se

    perguntar por que, um jogo de futebol a um drama poltico e humano? curioso que essa constatao jamais tenha subvertido a anlise,reforando-a, ao contrrio, em sua fantasia de um poder todo-poderoso namanipulao, e de uma massa prostrada num coma ininteligvel. Pois nadadisso tudo verdadeiro, e os dois so um equvoco: o poder no manipulanada e as massas no so nem enganadas nem mistificadas. O poder estmuito satisfeito por colocar sobre o futebol uma responsabilidade fcil, ouseja, a de assumir a responsabilidade diablica pelo embrutecimento dasmassas. Isso o conforta em sua iluso de ser o poder, e desvia do fato bemmais perigoso de que essa indiferena das massas sua verdadeira, sua

    nica prtica, porque no h outro ideal para inventar, no h nada adeplorar, mas tudo a analisar a respeito disso como fato bruto de distoro

    para nada, desde que noite ronrone em suas pantufas... A maioria silenciosa, no seengane, se fecha sua boca porque ao final das contas ela faz a lei. Ela vive bem, comebem, trabalha somente o necessrio. O que ela reivindica aos seus patres serpaternalizada e tranqilizada no que preciso, alm da sua pequena dose inofensiva deimaginria cotidiano.

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    coletiva e de recusa de participar nos ideais todavia luminosos que lhes sopropostos.

    O problema das massas no est nisso. Melhor constatar e

    reconhecer que toda esperana de revoluo, toda a esperana do social eda mudana social s pde funcionar at aqui graas a essa escamoteao,a essa contestao fantstica. Como Freud o fez na ordem psicolgica,2 melhor partir deste resto, deste sedimento cego, deste resduo de sentido,deste no-analisado e talvez no-analisvel (h uma boa razo para queessa revoluo copernicana jamais tenha sido tentada no universo poltico -toda a ordem poltica que se arriscaria a pagar as contas).

    Grandeza e decadncia do poltico

    O poltico e o social nos parecem inseparveis, constelaes gmeassob o signo (determinante ou no) do econmico, pelo menos desde aRevoluo Francesa. Mas hoje, para ns, isso provavelmente s verdadepara o seu declnio simultneo. Exemplificando com Maquiavel, quando opoltico surge da esfera religiosa e eclesial na poca da Renascena, ele antes de tudo apenas um puro jogo de signos, uma pura estratgia que no

    2 A analogia com Freud cessa nesse ponto, porque seu ato radical resulta numa hiptese,a da represso e do inconsciente, que ainda leva possibilidade, depois amplamenteexplorada, de produo de sentido, de uma reintegrao do desejo e do inconsciente napartitura do sentido. Sinfonia concertante, em que a irredutvel alterao do sentido entrano cenrio bem temperado do desejo, sombra de uma represso que abre para apossibilidade inversa de liberao. De onde o fato de a liberao do desejo ter podidoassumir to facilmente o lugar da revoluo poltica, acabando por esconder aincapacidade de sentido, ao invs de aprofund-la. Ora, no se trata de maneira algumade encontrar uma nova interpretao das massas em termos da economia libidinal(remeter o conformismo ou o fascismo das massas a uma estrutura latente, a um

    obscuro desejo de poder e de represso que eventualmente se alimentaria de umarepresso primria ou de uma pulso de morte). Esta hoje a nica alternativa para adeclinante anlise marxista. Mas a mesma, com uma deformao a mais. Outrora seatribula s massas um destino revolucionrio contrariado pela servido sexual (Reich),hoje se lhes atribui um desejo de alienao e servido, ou ainda uma espcie demicrofascismo cotidiano to incompreensvel quanto sua virtual pulso de liberao. Ora,no h nem desejo de fascismo e de poder nem desejo de revoluo. ltima esperana:que as massas tenham um inconsciente ou um desejo, o que permitiria reinvesti-las comosuporte ou suposto de sentido. 0 desejo, reinventado em toda parte, no seno oreferencial do desespero poltico. E a estratgia do desejo, aps ter sido envolvida nomarketingempresarial, hoje se purificou na promoo revolucionria das massas.

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    se preocupa com nenhuma verdade social ou histrica, mas, ao contrrio,joga com a ausncia de verdade (como, mais tarde, a estratgia mundanados jesutas sobre a ausncia de Deus). O espao poltico inicialmente damesma natureza do teatro de intriga da Renascena, ou do espao

    perspectivo da pintura, que so inventadas no mesmo momento. A forma a de um jogo, no de um sistema de representao - semiurgia e estratgia,no ideologia -, e a sua utilizao depende de virtuosismo e no de verdade(como o jogo sutil e corolrio deste, de Balthazar Gracian em Homme deCour). O cinismo e a imoralidade da poltica maquiaveliana esto nisso: nono uso sem escrpulos dos meios com que se o confundiu na concepovulgar, mas na desenvoltura com relao aos fins. Pois, Nietzsche o viubem, nesse menosprezo por uma verdade social, psicolgica, histrica,nesse exerccio dos simulacros enquanto tais, que se encontra o mximo deenergia poltica, nesse momento em que o poltico um jogo e ainda no sedeu uma razo.

    a partir do sculo XVIII, e particularmente depois da Revoluo, queo poltico se infletiu de uma maneira decisiva. Ele se encarrega de umareferncia social, o social se apodera dele. No mesmo momento comea aser representao, seu jogo dominado pelos mecanismos representativos(o teatro segue um destino paralelo: torna-se um teatro representativo - omesmo acontece com o espao perspectivo: de instrumental que era noincio, torna-se o lugar de inscrio de uma verdade do espao e darepresentao). A cena poltica se torna a cena da evocao de um

    significado fundamental: o povo, a vontade do povo, etc. Ela no trabalhamais s sobre signos, mas sobre sentidos, de repente eis que obrigada asignificar o melhor possvel esse real que ela exprime, intimada a se tornartransparente, a se mobilizar e a responder ao ideal social de uma boarepresentao. Mas durante muito tempo ainda haver um equilbrio entre aesfera prpria do poltico e as foras que nele se refletem: o social, ohistrico e o econmico. Este equilbrio sem dvida corresponde idade deouro dos sistemas representativos burgueses (a constitucionalidade: aInglaterra do sculo XVIII, os Estados Unidos da Amrica, a Frana dasrevolues burguesas, a Europa de 1848).

    com o pensamento marxista em seus desenvolvimentos sucessivosque se inaugura o fim do poltico e de sua energia prpria. Nesse momentocomea a hegemonia definitiva do social e do econmico, e a coao, parao poltico, de ser o espelho, legislativo, institucional, executivo, do social. Aautonomia do poltico inversamente proporcional crescente hegemoniado social.

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    O pensamento liberal sempre viveu de uma espcie de dialticanostlgica entre os dois, mas o pensamento socialista, o pensamentorevolucionrio postula abertamente uma dissoluo do poltico no fim dahistria, na transparncia definitiva do social.

    O social triunfou. Mas a esse nvel de generalizao, de saturao,em que s h o grau zero do poltico, a esse nvel de referncia absoluta, deonipresena e de difrao em todos os interstcios do espao fsico emental, o que se torna o prprio social? o sinal de seu fim: a energia dosocial se inverte, sua especificidade se perde, sua qualidade histrica e suaidealidade desaparecem em benefcio de uma configurao em que no so poltico se volatilizou, mas em que o prprio social no tem mais nome.Annimo. A MASSA. AS MASSAS.

    A maioria silenciosa

    Enfraquecimento do poltico de uma pura ordenao estratgica a umsistema de representao, depois ao cenrio atual de neofigurao, isto ,em que o sistema se perpetua sob os mesmos signos multiplicados masque no representam mais nada e no tm seu equivalente numarealidade ou numa substncia social real: no h mais investidura polticaporque tambm no h mais referente social de definio clssica (umpovo, uma classe, um proletariado, condies objetivas) para atribuir umafora a signos polticos eficazes. Simplesmente no h significado socialpara dar fora a um significante poltico.

    O nico referente que ainda funciona o da maioria silenciosa. Todosos sistemas atuais funcionam sobre essa entidade nebulosa, sobre essasubstncia flutuante cuja existncia no mais social mas estatstica, e cujonico modo de apario o da sondagem. Simulao no horizonte dosocial, ou melhor, no horizonte em que o social j desapareceu.

    O fato de a maioria silenciosa (ou as massas) ser um referenteimaginrio no quer dizer que ela no existe. Isso quer dizer que no hmais representao possvel. As massas no so mais um referente porqueno tm mais natureza representativa. Elas no se expressam, sosondadas. Elas no se refletem, so testadas. O referendo (e as mdiasso um referendo perptuo de perguntas/respostas dirigidas) substituiu oreferente poltico. Ora, sondagens, testes, mdias so dispositivos que no

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    desde j no sabe que espcie de poder exerce sobre ela, a massa aomesmo tempo a morte, o fim desse processo poltico que supostamente agoverna. Na massa o poltico se deteriora como vontade e representao.

    Durante muito tempo a estratgia do poder pde parecer se basearna apatia das massas. Quanto mais elas eram passivas, mais ele estavaseguro. Mas essa lgica s caracterstica da fase burocrtica e centralistado poder. E ela que hoje se volta contra ele: a inrcia que fomentou setornou o signo de sua prpria morte. por isso que o poder procura inverteras estratgias: da passividade participao, do silncio palavra. Mas muito tarde. O limite da massa crtica, o da involuo do social por inrcia,foi transposto.3

    Em toda parte se procura fazer as massas falarem, se as pressiona a

    existir de forma social eleitoralmente, sindicalmente, sexualmente, naparticipao, nas festas, na livre expresso, etc. preciso conjurar oespectro, preciso que ele diga seu nome. Nada demonstra com maisclareza que hoje o nico problema verdadeiro o silncio da massa, osilncio da maioria silenciosa.

    Todas as energias so consumidas para manter essa massa ememulso dirigida e para impedi-Ia de cair em sua inrcia pnica e em seusilncio. Como no mais do reino da vontade nem do da representao,ela cai sob o golpe do diagnstico, da adivinhao pura e simples - de onde

    o reino universal da informao e da estatstica: preciso auscult-la, senti-Ia, retirar-lhe algum orculo. Da o furor de seduo, de solicitude e desolicitao em torno dela. Da a predio por ressonncia, os efeitos deantecipao e de futuro da multido em miragens como: O povo francspensa... A maioria dos alemes reprova... Toda a Inglaterra vibra com onascimento do Prncipe..., etc. - espelho que tende a um reconhecimentosempre cego, sempre ausente.

    Da esse bombardeio de signos, que a massa supostamenterepercute. Ela interrogada por ondas convergentes, por estmulos

    luminosos ou lingsticos, exatamente como as estrelas distantes ou osncleos que so bombardeados com partculas num ciclotron. Isso ainformao. No um modo de comunicao nem de sentido, mas um modode emulso incessante, de input-outpute de reaes em cadeia dirigidas,

    3 A noo de massa crtica, habitualmente relativa ao processo de explosonuclear, aqui retomada no sentido de implosonuclear. Isso a que assistimos no domnio do sociale do poltico, com o fenmeno involucionriodas massas e das maiorias silenciosas, uma espcie de exploso inversa da fora de inrcia - esta tambm conhece seu ponto deno-retorno.

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    amplamente a produo do prprio social).4 Assim, durante muito tempobastou que o poder produzisse sentido (poltico, ideolgico, cultural, sexual),e a demanda acompanhava, absorvia a oferta e ainda a excedia. Sefaltasse sentido, todos os revolucionrios se ofereciam para produzi-lo mais

    ainda. Hoje tudo mudou: o sentido no falta, ele produzido em toda parte,e sempre mais - a demanda que est declinante. E a produo dessademanda de sentidoque se tornou crucial para o sistema. Sem essademanda, sem essa receptividade, sem essa participao mnima nosentido, o poder s o simulacro vazio e o efeito solitrio de perspectiva.Ora, ai tambm a produo da demanda infinitamente mais custosa que aproduo do prprio sentido. No limite ela impossvel, todas s energiasreunidas do sistema no sero suficientes. A demanda de objetos e deservios sempre pode ser produzida artificialmente, a um preo elevadomas acessvel, o sistema j o demonstrou. O desejo de sentido, quandofalta, o desejo de realidade, quando se faz ausente em todas as partes, nopodem ser plenamente satisfeitos e so um abismo definitivo.

    A massa absorve toda a energia social, mas no a refrata mais.Absorve todos os signos e todos os sentidos, mas no os repercute.Absorve todas as mensagens e as digere.5 Ela d a todas as questes quelhe so postas uma resposta tautolgica e circular. Nunca participa.Perpassada pelos fluxos e pelos testes, ela se comporta como massa, selimita a ser boa condutora dos fluxos, mas de todos os fluxos, boacondutora da informao, mas de qualquer informao, boa condutora de

    normas, mas de todas as normas; com isso, se limita a remeter o social sua transparncia absoluta, a s dar lugar aos efeitos do social e do poder,constelaes flutuantes em torno desse ncleo imperceptvel.

    4 No se trata tambm de produo do social, porque seno o socialismo bastaria, atmesmo o prprio capitalismo. De fato, tudo muda com a precedncia da produo dademanda sobre a das mercadorias. A relao lgica Ida produo ao consumo) se desfaz,e estamos numa ordem inteiramente diferente, que no mais nem de produo nem deconsumo, mas de simulao de ambas graas inverso do processo. De repente, nose trata mais de uma crise real do capital, como o supe Attali, crise que depende de um

    pouco mais de social e de socialismo, mas de um dispositivo absolutamente diferente,hiper-real, que no tem mais nada a ver nem com o capital nem com o social.5 A configurao idntica dos buracos negros. Verdadeiros sepulcros estelares, seucampo de gravidade to monstruoso que a prpria luz agarrada, satelitizada e depoisabsorvida. So, portanto, regies do espao das quais no pode chegar nenhumainformao. Sua descoberta e exame implicam, ento, uma espcie de revoluo de todaa cincia ou do processo de conhecimento tradicional. Este sempre se fundamenta nainformao, na mensagem, no sinal positivo Ido sentido) veiculado por um meio (ondasou luz), aqui aparece outra coisa, cujo sentido ou mistrio gira em torno de ausncia deinformao. Esta coisa no emite, no responde. Ao se considerar as massas, entra emjogo uma revoluo da mesma natureza.

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    A massa se cala como os animais e seu silncio comparvel aosilncio dos animais. Embora examinada at a morte (e a solicitaoincessante a que submetida, a informao, equivale ao suplcioexperimental dos animais nos laboratrios), ela no diz nem onde est a

    verdade: direita, esquerda? Nem o que prefere: a revoluo, arepresso? Ela no tem verdade nem razo. Embora lhe emprestem todasas palavras artificiais. Ela no tem conscincia nem inconsciente.

    Esse silncio insuportvel. Ela a incgnita da equao poltica, aincgnita que anula todas as equaes polticas. Todo o mundo a interroga,mas nunca enquanto silncio, sempre para faz-la falar. Ora, a fora deinrcia das massas insondvel: literalmente nenhuma sondagem a faraparecer, pois elas existem para eclips-la. Silncio que balana o poltico eo social na hiper-realidade que conhecemos. Porque se o poltico procura

    captar as massas numa cmara de eco e de simulao social (os meios decomunicao, a informao), em compensao so as massas que setornam a cmara de eco e de simulao gigantesca do social. Nunca houvemanipulao. A partida foi jogada pelos dois, com as mesmas armas, eningum hoje poderia dizer quem a venceu: a simulao exercida pelopoder sobre as massas ou a simulao inversa, dirigida pelas massas aopoder que nelas se afunda.

    Nem sujeito nem objeto

    A massa realiza esse paradoxo de ser ao mesmo tempo um objeto desimulao (ela s existe no ponto de convergncia de todas as ondasmdias que a descrevem) e um sujeito de simulao, capaz de refratartodos os modelos e de revert-los por hiper-simulao (seuhiperconformismo, forma imanente de humor).

    A massa realiza esse paradoxo de no ser um sujeito, um grupo-sujeito, mas de tambm no ser um objeto. Todas as tentativas para fazerdela um sujeito (real ou mtico) deparam com uma espantosaimpossibilidade de tomada de conscincia autnoma. Todas as tentativaspara fazer dela um objeto deparam com a evidncia inversa daimpossibilidade de uma manipulao determinada das massas ou de umaapreenso em termos de elementos, de relaes, de estruturas e deconjuntos. Qualquer manipulao imerge, volteia na massa, absorvida,revirada, revertida. Impossvel saber onde ela leva, o mais verossmil que

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    ela se consome num ciclo sem fim, frustrando todas as intenes dosmanipuladores. Nenhuma anlise saberia abarcar essa realidade difusa,descentrada, brouniana, molecular: a noo de objeto a se perde, como ocampo da microfsica se perde na anlise ltima da matria - impossvel

    capt-la como objeto neste limite infinitesimal em que o prprio sujeito daobservao se acha subitamente anulado. Nem objeto de saber, nemsujeito de saber.

    A massa atualiza a mesma situao limite e insolvel no campo dosocial. Ela no objetivvel (em termos polticos: ela no representvel)e anula todos os sujeitos que pretenderiam capt-la (em termos polticos:anula todos aqueles que pretenderiam represent-la). S as sondagens eas estatsticas podem dar conta dela (como na fsica matemtica a lei dosgrandes nmeros e o clculo de probabilidades), mas sabe-se que esse

    encantamento, que esse ritual meterico das estatsticas e das sondagensno tm objeto real, sobretudo no nas massas que elas supostamenteexprimem. Ele simplesmente simula um objeto que escapa, mas cujaausncia intolervel. Ele o produz sob forma de respostas antecipadas,de assinalamentos circulares que parecem circunscrever sua existncia etestemunhar sua vontade. Signos flutuantes - assim so as sondagens -,signos instantneos, destinados manipulao, e cujas concluses podemser trocadas. Todo o mundo conhece a profunda indeterminao que reinasobre as estatsticas (o clculo de probabilidades ou os grandes nmerostambm correspondem a uma indeterminao, a uma flutuao do

    conceito de matria, a que pouco corresponde uma insignificante noo delei objetiva).

    Alis, no seguro que os procedimentos de experimentaocientfica nas cincias ditas exatas tenham muito mais verdade que assondagens e as estatsticas. A forma de interrogao codificada, dirigida,objetiva, em qualquer disciplina que seja, s d lugar a esse tipo circularde verdade, de onde o prprio objeto que ela visa excludo. Em todo caso,

    possvel pensar que a incerteza deste projeto de determinao objetiva domundo continua total e que mesmo a matria e o inanimado, intimados aresponder (nos mesmos termos e segundo os mesmos procedimentos queas massas e o ser social nas estatsticas e nas sondagens), tambm sdo os mesmos sinais adequados, as mesmas respostas codificadas, com omesmo conformismo exasperante, incessante, para em ltima instncia,exatamente como as massas, escapar a qualquer definio enquantoobjeto.

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    Haveria uma ironia fantstica da matria e de qualquer objeto decincia, como h uma ironia fantstica das massas em seu mutismo, ou emseu discurso estatstico to adequado s questes que lhes so postas,parecendo a eterna ironia da feminilidade de que fala Hegel - a ironia de

    uma falsa fidelidade, de um excesso de fidelidade lei, simulao depassividade e de obedincia definitivamente impenetrveis, mas que aocontrrio anula a lei que os governa, segundo o imortal exemplo do soldadoSchweik.

    Da partiria, no sentido literal, uma patafsicaou a cincia dassolues imaginrias, cincia da simulao e da hiper-simulao de ummundo exato, verdadeiro, objetivo, com suas leis universais, incluindo odelrio daqueles que o interpretam segundo estas leis. As massas e seuhumor involuntrio nos introduziriam a uma patafsica do social que

    finalmente nos desembaraaria de toda esta metafsica do social que nosatravanca.

    Isso contradiz toda a concepo aceita do processo de verdade, masesta talvez no seja mais do que uma iluso dos sentidos. O cientista nopode acredi tar que a matria ou o ser no respondem objetivamente squestes que ele lhes formula, ou que respondem muito objetivamente paraque suas questes sejam as boas. S esta hiptese lhe parece absurda e

    imprensvel. Nunca a far. Ele jamais sair do crculo encantado e simuladode sua interrogao.

    A mesma hiptese vale para todas as coisas, o mesmo axioma decredibilidade. O publicitrio no pode deixar de crer que as pessoasacreditam - por pouco que seja, isso quer dizer que existe umaprobabilidade mnima de que a mensagem alcance seu objetivo e sejadecodificada segundo seu sentido. Qualquer princpio de incerteza estexcludo do assunto. Se ele verificasse que o ndice de refrao damensagem sobre o destinatrio nulo, a publicidade desapareceria num

    instante. Ela s vive deste crdito que postula para si mesma ( a mesmaaposta que a cincia faz acerca da objetividade do mundo) e que noprocura verificar a fundo, no terror de que a hiptese inversa tambm sejaverdadeira, a saber, que a imensa maioria das mensagens publicitriasnunca chega ao seu destino, que os leitores no vem mais a diferenaentre os contedos que se refratam no vcuo - s o meio funcionando comoefeito ambiente e se apresentando como espetculo e fascinao. O MEIO A MENSAGEM, profetizava Mac Luhan: frmula caracterstica da faseatual, a fase coolde qualquer cultura mass-media, de um resfriamento, de

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    uma neutralizao de todas as mensagens num ter vazio. Fase de umaglaciao do sentido. O pensamento critico julga e escolhe, produzdiferenas, e pela seleo que ele vigia o sentido. As massas, elas noescolhem, no produzem diferenas, mas indiferenciao - elas mantm a

    fascinao do meio, que preferem exigncia crtica da mensagem. Pois afascinao no depende do sentido, ela proporcional insatisfao com osentido. Obtm-se a fascinao ao neutralizar a mensagem em benefcio domeio, ao neutralizar a idia em proveito do dolo, ao neutralizar a verdadeem benefcio do simulacro. Pois neste nvel que os meios de comunicaofuncionam. A fascinao sua lei, e sua violncia especfica, violnciamassiva sobre o sentido, violncia negadora da comunicao pelo sentidoem benefcio de um outro modo de comunicao. Qual?

    Para ns uma hiptese insustentvel: que seja possvel comunicar

    fora do meio do sentido, que a prpria intensidade da comunicao sejaproporcional supresso do sentido e sua runa. Porque no o sentidonem o excesso de sentido que so violentamente agradveis, suaneutralizao que fascina (cf. le Witz, a operao da palavra espirituosa, inLEchange Symbolique et ta Mort). E no por alguma pulso de morte, oque subentenderia que a vida ainda est perto do sentido, massimplesmente por provocao, por alergia referncia, mensagem, aocdigo e a todas as categorias da operao lingstica, por recusa de tudoisso unicamente em benefcio da imploso do signo na fascinao (nemsignificante, nem significado: supresso dos plos da significao). Nenhum

    dos guardies do sentido pode entender isso: toda a moral do sentido selevanta contra a fascinao.

    Tambm a esfera poltica s vive de uma hiptese de credibilidade, asaber, que as massas so permeveis ao e ao discurso, que elas tmuma opinio, que elas esto presentes atrs das sondagens e dasestatsticas. somente a este preo que a classe poltica ainda podeacreditar que fala e ouvida politicamente. Enquanto o poltico h muito

    tempo considerado s como espetculo no interior da vida privada,digerido como divertimento semi-esportivo, semildico (veja-se o votovencedor das eleies americanas, ou as tardes de eleies no rdio ou natev), e na forma ao mesmo tempo fascinada e maliciosa das velhascomdias de costumes. O jogo eleitoral se identifica h muito tempo aosjogos televisados na conscincia do povo. Este, que sempre serviu de libie de figurante para a representao poltica, se vinga entregando-se representao teatralda cena poltica e de seus atores. O povo tornou-sepblico. o jogo, o filme ou os desenhos animados que servem de modelos

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    de percepo da esfera poltica. O povo tambm aprecia dia-a-dia, comonum cinema a domiclio, as flutuaes de sua prpria opinio na leituracotidiana das sondagens. Nada disso tudo incita a uma responsabilidadequalquer. Em momento algum as massas so engajadas de modo

    consciente poltica ou historicamente. Elas nunca o foram, s para se matar,com total irresponsabilidade. E isso no uma fuga diante do poltico, maso efeito de uma antagonismo inexpivel entre a classe (casta?) portadora dosocial, do poltico, da cultura, senhora do tempo e da histria, e a massainforme, residual, despojada de sentido. A primeira sempre procuraaperfeioar o reino do sentido, investir, saturar o campo do social, asegunda sempre desvia todos os efeitos do sentido, neutraliza-os e osrebate. Nesse enfrentamento, aquela que o venceu no absolutamente aque se pensa.

    Isso pode ser visualizado na inverso de valor entre histria ecotidianidade, entre esfera pblica e esfera privada. At os anos 60, ahistria se impe como tempo forte: o privado e o cotidiano no so mais doque o avesso obscuro da esfera poltica. No melhor dos casos, intervmuma dialtica entre os dois e pode-se pensar que um dia o cotidiano, comoo individual, resplandecer alm da histria, no universal. Mas at l s sepode deplorar o recuo das massas a sua esfera domstica, sua recusa dahistria, da poltica e do universal, e sua absoro na cotidianidadeembrutecida do consumo (felizmente elas trabalham, o que lhes garante umestatuto histrico objetivo at o momento da tomada de conscincia).

    Hoje, inverso do tempo fraco e do tempo forte: comea-se a vislumbrarque o cotidiano, que os homens em sua banalidade at que poderiam noser o reverso insignificante da histria - melhor: que o recuo para o privadoat poderia ser um desafio direto ao poltico, uma forma de resistncia ativa manipulao poltica. Os papis se invertem: a banalidade da vida, avida corrente, tudo o que se estigmatizara como pequeno-burgus, abjeto eapoltico (inclusive o sexo) .que se torna o tempo forte; e a histria e opoltico que desenvolvem sua acontecimentalidade abstrata algures.

    Hiptese vertiginosa. As massas despolitizadas no estariam aqum

    mas alm da poltica. O privado, o inominvel, o cotidiano, o insignificante,os pequenos ardis, as pequenas perverses, etc., no estariam aqum masalm da representao. As massas executariam em sua prtica ingnua (esem ter esperado as anlises sobre o fim do poltico) a sentena daanulao do poltico, seriam espontaneamente transpolticas, como sotranslingsticas em sua linguagem.

    Mas, ateno! Esse universo privado e a-social, que no entra numadialtica de representao e de ultrapassamento para o universal, dessa

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    esfera involutiva que se ope a toda revoluo pelo alto e se recusa a jogaro jogo, alguns desejariam que se tratasse (em particular em sua versosexual e de desejo) de uma nova fonte de energia revolucionria,desejariam lhe dar um sentido e o reconstituir como negatividade histrica

    em sua prpria banalidade. Exaltao de microdesejos, de pequenasdiferenas, de prticas cegas, de marginalidades annimas. ltimosobressalto dos intelectuais para exaltar a insignificncia, para promover ono-sentido na ordem do sentido. E revert-lo razo poltica. Abanalidade, a inrcia, o apoliticismo eram fascistas, agora se tornamrevolucionrios - sem mudar de sentido, isto , sem deixar de ter sentido.Micro-revoluo da banalidade, transpoltica do desejo - mais um truque doslibertadores. A negao do sentido no tem sentido.

    Da resistncia ao hiperconformismo

    A emergncia das maiorias silenciosas se integra no ciclo completoda resistncia histrica ao social. Resistncia ao trabalho, evidentemente,mas tambm resistncia medicina, resistncia escola, resistncia segurana, resistncia informao. A histria oficial s registra oprogresso ininterrupto do social, relegando s trevas, como culturas

    passadas, como vestgios brbaros, tudo que no concorreria para esseglorioso acontecimento. Ora, contrariamente ao que se poderia pensar (queo social definitivamente ganhou, que o movimento irreversvel, que oconsenso sobreo social total), a resistncia ao social sob todas as suasformas progrediu mais rapidamente ainda do que o social. Ela simplesmentetomou outras formas que no as primitivas e violentas, que foramreabsorvidas pela seguinte (o social vai bem, obrigado, s restam unsloucos para escapar ao registro, vacinao e s vantagens da segurana).Essas resistncias frontais ainda corresponderiam a uma fase tambmfrontal e violenta da socializao, e viriam mais de grupos tradicionais,

    procurando preservar sua cultura prpria, suas estruturas originais. No eraa massa que resistia neles, mas sim as estruturas diferenciadas, contra omodelo homogneo e abstrato do social.

    tambm esse tipo de resistncia que se encontra nos two steps flowof communication(duplo fluxo de comunicao) que a sociologia americanaanalisou: a massa absolutamente constitui uma estrutura passiva derecepo das mensagens dos meios de comunicao, sejam elas polticas,culturais ou publicitrias. Os microgrupos e os indivduos, longe de se

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    alinharem em uma decodificao uniforme e imposta, decodificam asmensagens sua maneira, as interceptam (atravs de lderes) e astranspem (segundo nvel), opondo ao cdigo dominante seus sub-cdigosparticulares, e terminam por reciclar tudo o que os atinge em seus prprio

    ciclo, exatamente como os primitivos reciclavam a moeda ocidental em suacirculao simblica (os Sians da Nova Guin) ou como os corsos reciclamo sufrgio universal e as eleies em sua estratgia de rivalidades entrecls. Esta maneira de desvio, de absoro, de recuperao vitoriosa pelossubgrupos do material difundido pela cultura dominante, este ardiluniversal. tambm ele que conduz ao uso mgico do mdico e damedicina nas massas subdesenvolvidas. Creditado normalmente a umamentalidade arcaica e irracional, preciso ler ai, ao contrrio, uma prticaofensiva, um desvio por excesso, uma recusa no-analisada, mas sem osaber profundamente consciente das devastaes da medicina racional.

    Mas esta ainda a ao de grupos estruturados, pertencentes e deorigem tradicionais. Outra coisa o fracasso da socializao imposto pelamassa, isto , por um grupo inumervel, inominvel e annimo, e cuja forareside na sua prpria desestruturao e inrcia. Assim, no caso dos meiosde comunicao, a resistncia tradicional consiste em reintegrar asmensagens segundo o cdigo prprio ao grupo e em torno de seus prpriosobjetivos. As massas, estas aceitam tudo e desviam tudo em bloco noespetacular, sem exigncia de um outro cdigo, sem exigncia de sentido,na realidade sem resistncia, mas fazendo com que tudo passe para uma

    esfera indeterminada que no nem mesmo a do no-sentido, mas a dafascinao/manipulao de todos os azimutes.

    Sempre se acreditou que so os meios de comunicao que enredamas massas - o que a prpria ideologia dos mass media. Procurou-se osegredo da manipulao numa semiologia que combate os mass media.Mas se esqueceu, nessa lgica ingnua da comunicao, que as massasso um meio muito mais forte que todos os meios de comunicao, que soelas que os enredam e os absorvem - ou que pelo menos no h nenhumaprioridade de um sobre o outro. O processo da massa e o dos meios de

    comunicao so um processo nico. Mass(age) mensagem.

    O mesmo aconteceu com o cinema, cujos inventores no incioimaginaram como um meio racional, documental, informativo, social, e quecaiu muito rpido e definitivamente no imaginrio.

    O mesmo aconteceu com a tcnica, com a cincia e com o saber.Destinados a uma prtica mgica e a um consumo espetacular. Aconteceuo mesmo com o prprio consumo. Levando em conta a seriedade de sua

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    teoria das necessidades e o consenso geral sobre o discurso da utilidade,para seu prprio estupor os economistas nunca conseguiram racionalizar oconsumo. Mas isso porque a prtica das massas nunca teve imediatamentenenhuma relao (talvez nunca tenha) com as necessidades. Elas fizeram

    do consumo uma dimenso de statuse de prestgio, de promessa intil oude simulao, de potlatchque de qualquer maneira excederia o valor deuso. Na verdade, trata-se de lhes inculcar de todos os lados (propagandaoficial, associao de consumidores, eclogos, socilogos) a boa prtica e oclculo funcional em matria de consumo, mas sem esperana. Porque pelo valor/signo e pelo jogo desenfreado do valor/signo (onde oseconomistas, mesmo quando tentaram integr-lo como varivel, nodeixaram de ver uma inclinao da razo econmica), por isso que asmassas pem prova a economia, resistem ao imperativo objetivo dasnecessidades e ponderao racional dos comportamentos e dos fins.Valor/signo em vez de valor de uso j um desvio da economia poltica. Eque no se diga que tudo isso afinal serve ao valor de troca, isto , aosistema. Porque se o sistema se sai muito bem com esse jogo e at mesmoo favorece (as massas alienadas nos gadgets, etc.) isso no o essenciale o que esse deslize, essa derrapagem inaugura a longo prazo - inauguradesde agora - o fim do econmico, isolado de todas as suas definiesracionais pelo uso excessivo, mgico, espetacular, indireto e quasepardico que as massas fazem dele. Uso a-social, resistente a todas aspedagogias socialistas - uso aberrante atravs do qual as massas (ns,vocs, todo o mundo) inverteram a economia poltica desde agora. Noesperaram as revolues futuras nem as teorias que pretendem libert-lasde um movimento dialtico. Elas sabem que no se liberta de nada e ques se abole um sistema obrigando-o ao hiperlgico, impelindo-o a um usoexcessivo que equivale a um amortecimento brutal. Vocs querem que seconsuma - pois bem, consumamos sempre mais, e no importa o qu; paratodos os fins inteis e absurdos.

    O mesmo aconteceu com a medicina: resistncia frontal (que alisno desapareceu) se substituiu uma forma mais sutil de subverso, umconsumo excessivo, irrefrevel, da medicina, um conformismo pnico s

    injunes da sade. Escalada fantstica do consumo mdico que desviacompletamente os objetivos e as finalidades sociais da medicina. Quemelhor meio de aboli-Ia? Desde ento os mdicos no sabem mais o quefazem, o que so, muito mais manipulados do que manipuladores.Queremos mais cuidados, mais mdicos, mais medicamentos, maissegurana, mais sade, sempre mais, sem limites! As massas soalienadas na medicina? De modo algum: ao exigirem sempre mais, comomercadoria, esto prestes a arruinar sua instituio, a explodir a segurana

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    social, a colocar o prprio social em perigo. Que maior ironia pode haver doque nesta exigncia do socialcomo bem de consumo individual, submetidoao excesso da oferta e da procura? Pardia e paradoxo: por sua inrcianos caminhos do social que lhes foram traados que as massas lhes

    ultrapassam a lgica e os limites, e destroem todo o edifcio. Hipersimulaodestrutiva, hiperconformismo destruidor (como no caso de Beaubourg,analisado em outra perspectiva)6 que tem todas as aparncias de umdesafio vitorioso - ningum avaliar a fora desse desafio, da reverso queele exerce sobre todo o sistema. a que est o verdadeiro problema hoje,nesse afrontamento surdo e inelutvel das maiorias silenciosas contra osocial que lhes imposto, nessa hiper-simulao que redobra a simulao eque a extermina a partir de sua prpria lgica - no em alguma luta declasse nem no caos molecular das minorias em ruptura de desejo.

    Massa e terrorismo

    Estamos portanto no ponto paradoxal em que as massas se recusamao batismo do social, que ao mesmo tempo o do sentido e da liberdade.No faze mos delas uma nova e gloriosa referncia. Porque elas noexistem. Mas constatamos que todos os poderes acabam por se arruinar

    silenciosamente nessa maioria silenciosa, que no nem uma entidadenem uma realidade sociolgica, mas a sombra projetada pelo poder, seuabismo no vcuo, sua forma de absoro. Nebulosa fluida, movente,conforme, excessivamente, conforme a todas as solicitaes e de umconformismo hiper-real que a forma extrema da no-participao: tal odesastre atual do poder. Tal tambm o desastre da revoluo. Porqueessa massa implosiva jamais explodir por definio, e qualquer palavrarevolucionria tambm implodir a. Em conseqncia, o que fazer comessas massas? Elas so o leitmotivde todos os discursos. So a obsessode todo projeto social, mas todos malogram nelas, porque todos

    permanecem enraizados na definio clssica de massas, a de umaesperana escatolgica do social e de sua realizao. Ora, as massas nosoo social, so a reverso de todo social e de todo socialismo. Muitostericos, entretanto, condenaram o sentido, denunciaram as armadilhas daliberdade e as mistificaes do poltico, criticaram radicalmente aracionalidade de qualquer forma de representao - quando as massasatravessavam o sentido, o poltico, a representao, a histria, a ideologia,

    6L'Effet et Beaubourg. Paris, Ed. Galile, 1977.

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    com uma forma sonamblica de negao, quando realizam aqui e agoratudo o que a critica mais radical pde vislumbrar, nesse momento esta nosabe o que fazer disso e se obstina em sonhar com uma revoluo futura -revoluo crtica, revoluo de prestgio, a do social, a do desejo. Esta

    revoluo por involuo no a sua: no explosiva-crtica, implosiva ecega. Procede por inrcia e no por uma negatividade franca e jovial. Ela silenciosa e involutiva - exatamente o inverso de todas as tomadas depalavra e tomadas de conscincia. No tem sentido. No tem nada a nosdizer.

    Alis o nico fenmeno que est em relao de afinidade com elas,com as massas, exatamente como se a se desenrolasse a ltima peripciado social, e de sua morte, o terrorismo. Nada mais afastado das massasdo que o terrorismo, e o poder tem tentado levantar um contra o outro. Mas

    nada mais estranho, nada mais familiar tambm, do que sua convergnciana negao do social e na recusa do sentido. Porque o terrorismo naverdade pretende visar o capital (o imperialismo mundial, etc.) mas seengana de inimigo, e ao fazer isso visa seu verdadeiro inimigo, que osocial. O terrorismo atual visa o social em resposta ao terrorismo dosocial.Ele visa o social tal como produzido hoje - rede orbital, intersticial, nuclear,textural, de controle e de segurana, que nos investe de todas as partes enos produz, a ns todos, como maioria silenciosa. Socialidade hiper-real,imperceptvel, que no opera mais pela lei e pela represso, mas pelainfiltrao de modelos, no pela violncia, mas pela persuaso/dissuao. A

    isso o terrorismo responde com um ato ele mesmo hiper-real,imediatamente destinado s ondas concntricas dos meios de comunicaoe da fascinao, imediatamente destinado no a alguma representao nemconscincia, mas desacelerao mental por contingidade, fascinao epnico, no reflexo nem lgica das causas e dos efeitos, mas reaoem cadeia por contgio. Desprovido de sentido, portanto, e indeterminadocomo o sistema que ele combate, em que ele se insere mais como umponto de imploso mxima e infinitesimal - terrorismo no-explosivo, no-histrico, no-poltico; implosivo, cristalizante, siderante - e por issoprofundamente homlogo ao silncio e inrcia das massas.

    O terrorismo no visa fazer falar, ressuscitar ou mobilizar quem querque seja; no tem prolongamento revolucionrio (a esse respeito, seria maisuma contra-performancetotal, o que se lhe censura violentamente, mas seuproblema no est nisso), visa as massas em seu silncio, silnciomagnetizado pela informao; ele visa, para precipitar sua morte aoacentu-la, esta magia branca do social que nos envolve, a da informao,da simulao, da dissuaso, do controle annimo e aleatrio, essa magia

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    branca da abstrao social pela magia negra de uma abstrao maiorainda, mais annima, mais arbitrria e mais aleatria ainda: a do atoterrorista.

    Ele o nico ato no-representativo. nisso que ele tem afinidadecom as massas, que so a nica realidade no-representvel. Sobretudoisso no quer dizer que novamente o terrorismo representariao silncio e ono-dito das massas, que exprimiria violentamente sua resistncia passiva.Isso quer dizer simplesmente: no h equivalente ao carter cego, no-representativo, desprovido de sentido, do ato terrorista, seno ocomportamento cego, desprovido de sentido e alm da representao que o das massas. Eles tm isso de comum porque so a forma atual maisradical, mais exacerbada, de negao de qualquer sistema representativo. tudo. Ningum sabe na realidade que relao pode se estabelecer entre

    dois elementos que esto alm da representao, um problema quenossa epistemologia do conhecimento no permite resolver pois ela postulasempre a mediao de um sujeito e de uma linguagem, a mediao de umarepresentao. S conhecemos bem os encadeamentos representativos,no sabemos grande coisa dos encadeamentos analgicos, afinitrios,imediatizados, irreferenciais e outros sistemas. Sem dvida, alguma coisade muito forte passa entre eles (massas e terrorismo) que procuraramosem vo nos precedentes histricos dos sistemas representativos(povo/assemblia, proletariado/partido, marginais-minorias/grupelhos, etc.).E assim como uma energia social passa entre dois plos de um sistema

    representativo qualquer, energia positiva, assim se poderia dizer que entreas massas e o terrorismo, entre esses dois no-plos de um sistema no-representativo, tambm passa uma energia, mas uma energia inversa,energia no de acumulao social e de transformao, mas de disperso dosocial, de absoro e anulao do poltico.

    No se pode dizer que a era das maiorias silenciosas que produzo terrorismo. a simultaneidade dos dois que assombrosa e causaestranheza. nico acontecimento, aceite-se ou no sua brutalidade, queverdadeiramente marca o fim do poltico e do social. O nico que traduz

    essa realidade de uma imploso violenta de todos os nossos sistemas derepresentao.

    O terrorismo no visa de modo algum desmascarar o carterrepressivo do Estado (essa a negatividade provocadora dos grupelhos,que a encontram uma ltima oportunidade de serem representativos aosolhos das massas). Ele propaga, por sua prpria no-representatividade e

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    por reao em cadeia (no por demonstrao e tomada de conscincia), aevidncia da no-representatividade de todos os poderes. A est suasubverso: ele precipita a no-representatividade injetando-a em dosesinfinitesimais mas bastante concentradas.

    Sua violncia fundamental de negao de todas as instituies derepresentao (sindicatos, movimentos organizados, luta polticaconsciente, etc.). Inclusive daqueles que professam solidariedade a ele,porque a solidariedade ainda a maneira de constitu-lo como modelo,como emblema, e, portanto, de lhe atribuir representao (Eles estomortos para ns, sua ao no foi intil...). Todos os meios so bons paraviolentar o sentido, para desconhecer quanto o terrorismo semlegitimidade social, sem prolongamento poltico, sem continuidade emhistria alguma. Seu nico reflexo no exatamente um prolongamento

    histrico: sua narrao, sua onda de choque nos meios de comunicao.Ora, essa narrao no de natureza objetiva e informativa, tanto como oterrorismo no de natureza poltica. Todos os dois esto em outro lugar,numa ordem que no nem de sentido nem de representao - talvezmtica, sem dvida simulacro.

    O outro aspecto da violncia terrorista a negao de todadeterminao e de toda qualidade. Nesse sentido, preciso distinguir o

    terrorismo do banditismo e da ao de comando. Esta um ato de guerraque visa um inimigo determinado (explodir um trem, ataque a bomba sededo partido adversrio, etc.). O outro depende da violncia criminaltradicional (hold-upnum banco, seqestro em troca de resgaste, etc.).Todas essas aes tm um objetivo econmico ou militar. O terrorismoatual, inaugurado com a tomada de refns e o jogo adiado da morte, notem objetivo (se ele pretende t-los, so irrisrios ou inacessveis, e, dequalquer maneira, exatamente o mtodo mais ineficaz de atingi-los) neminimigo determinado. Os palestinos visam Israel por intermdio dos refns?No, atravs da intermediao de Israel que eles visam um inimigo mtico,

    mesmo no-mtico, annimo, indiferenciado, uma espcie de ordem socialmundial presente em toda parte, no importa quando, no importa quem,at o ltimo dos inocentes. Assim o terrorismo, original e insolvelsomente porque ataca no importa onde, quando e quem, seno seriasomente ato de resgate ou de comando militar. Sua cegueira a rplicaexata da indiferenciao absoluta do sistema, que h muito tempo nodistingue os fins dos meios, os carrascos das vitimas. Seu ato visa, naindistino assassina da tomada de refns, exatamente o produto maiscaracterstico de todo o sistema: o indivduo annimo e perfeitamente

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    indiferenciado, o termo substituvel por qualquer outro. preciso dizerparadoxalmente; os inocentes pagam o crime de no serem nada, de seremsem destino, de terem sido despossudos de seu nome por um sistematambm annimo, de que eles se tornaram, ento, a mais pura encarnao.

    So os produtos acabados do social, de uma sociabilidade abstratadoravante mundializada. nesse sentido, exatamente no sentido em queeles so qualquer pessoa, que so as vtimas predestinadas peloterrorismo.

    nesse sentido, ou melhor, nesse desafio ao sentido, que o atoterrorista se assemelha catstrofe natural. No h diferena alguma entreum terremoto na Guatemala e a queda de um Boeing da Lufthansa com

    trezentos passageiros a bordo, entre a interveno natural e a intervenohumana terrorista. A natureza terrorista, como o a interrupo abruptade todo o sistema tecnolgico: os grandes black-outsde Nova Iorque (1965e 1977) criam situaes terroristas melhores que as verdadeiras, situaessonhadas. Melhor: esses grandes acidentes tecnolgicos, como os grandesacidentes naturais, exemplificam a possibilidade de uma subverso radicalsem sujeito. A pane de 1977 em Nova Iorque poderia ser fomentada por umgrupo terrorista muito organizado e isso no mudaria nada no resultadoobjetivo. Teriam sucedido os mesmos atos de violncia, de pilhagem, delevante, a mesma suspenso da ordem social. Isso significa que o

    terrorismo no est na deciso de violncia, mas em toda parte nanormalidade do social, de modo que ela pode de um momento para o outrose transfigurar numa realidade inversa, absurda, incontrolvel. A catstrofenatural funciona dessa maneira e assim que, paradoxalmente, ela se tornaa expresso mtica da catstrofe do social. Ou melhor, sendo a catstrofenatural por excelncia um incidente desprovido de sentido, no-representativo (seno de Deus, eis por que o responsvel pela ContinentalEdison pde falar de Deus e de sua interveno no episdio do ltimoblack-outde Nova Iorque), torna-se uma espcie de sintoma ou deencarnao violenta do estado do social, a saber, de sua catstrofe e da

    runa de todas as representaes que o sustentavam.

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    Sistemas implosivos, sistemas explosivos

    Massas, meios de comunicao e terrorismo, em sua afinidade,triangular, descrevem o processo de imploso hoje dominante. Todo oprocesso afetado por uma violncia que somente comea, violncia orbitale nuclear, de aspirao e fascinao, violncia do vazio (a fascinao aintensidade extrema do neutro). A imploso, para ns e hoje, s pode serviolenta e catastrfica, porque ela resulta do fracasso do sistema deexploso e de expanso dirigida que foi o nosso no Ocidente h algunssculos.

    Ora, a imploso no necessariamente um processo catastrfico. Elafoi, sob uma forma controlada e dirigida, o segredo dominante dassociedades primitivas e tradicionais. Configuraes no-expansivas, no-centrifugas: centrpetas - pluralidades singulares que nunca visam ouniversal, centradas num processo cclico, o ritual, e que tendem a involuirnesse processo no-representativo, sem instncia superior, sem polaridade,disjuntiva, sem entretanto se arruinar a si mesmas (salvo, sem dvida,determinados processos implosivos inexplicveis para ns, como o colapsodas culturas tolteca, olmeca, maia, que de que no se soube nada, cujos

    imprios piramidais desapareceram sem deixar traos, sem catstrofevisvel, como se desinvestidos brutalmente, sem causa aparente, semviolncia externa). As sociedades primitivas viveram portanto de umaimploso dirigida- morreram quando deixaram de controlar esse processo,e oscilaram ento para o da exploso (demogrfica, ou excedentes deproduo irredutveis, processo de expanso incontrolvel, ou simplesmentequando a colonizao as iniciou violentamente na norma expansiva ecentrfuga dos sistemas ocidentais).

    Inversamente, nossas civilizaes modernas viveram sobre umabase de expanso e de exploso em todos os nveis, sob o signo dauniversalizao do mercado, dos valores econmicos e filosficos, sob osigno da universalidade da lei e das conquistas. Sem dvida mesmo elassouberam viver, pelo menos num momento, de uma exploso dirigida, deuma liberao de energia controlada e progressiva, e foi a idade de ouro desua cultura. Mas, conforme um processo de arroubamento e de acelerao,esse processo explosivo se tornou incontrolvel, atingiu uma rapidez ouuma amplitude mortal, ou melhor, atingiu os limites do universal, saturou ocampo de expanso possvel e, assim como as sociedades primitivas foram

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    devastadas pela exploso por no terem sabido controlar durante maistempo o processo implosivo, assim nossas culturas comeam a serdevastadas pela imploso por no terem sabido controlar e equilibrar oprocesso explosivo.

    A imploso inelutvel, e todos os esforos para salvar os princpiosde realidade, de acumulao, de universalidade, os princpios de evoluoque dependem dos sistemas em expanso so arcaicos, regressivos,nostlgicos. Inclusive todos aqueles que querem liberar as energiaslibidinais, as energias plurais, as intensidades fragmentrias, etc. Arevoluo molecular s traduz a ltima fase de liberao de energias (oude proliferao de segmentos, etc.) at os limites infinitesimais do campo deexpanso que foi o de nossa cultura. Tentativa infinitesimal do desejo quesucede do infinito do capital. Soluo molecular que sucede ao ataque

    molar dos espaos e do social. ltimos clares do sistema explosivo, ltimatentativa de ainda controlar uma energia dos confins, ou de ampliar osconfins da energia (nosso leitmotivfundamental) para salvar o principio deexpanso e de liberao.

    Mas nada travar o processo implosivo, e a nica alternativa queresta a de uma imploso violenta e catastrfica, ou de uma imploso lentae progressiva. H traos disso, de diversas tentativas de controlar os novosimpulsos anti-universais, anti-representativos, tribais, centrpetos, etc.: ascomunidades, a ecologia, o crescimento zero, as drogas - tudo isso sem

    dvida dessa natureza. Mas preciso no se iludir sobre a imploso lenta.Ela est destinada efemeridade e ao fracasso. No houve transioequilibrada de sistemas implosivos aos sistemas explosivos: isso sempreaconteceu violentamente, e h toda a possibilidade de que nossa passagempara a imploso tambm seja violenta e catastrfica.

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    ... Ou o fim do social

    O social no um processo claro e unvoco. As sociedades modernas

    correspondem a um processo de socializao ou de dessocializaoprogressiva? Tudo depende da acepo do termo, ora, nenhuma segura etodas so reversveis. O mesmo ocorre com as instituies que marcaramos progressos do social (urbanizao, concentrao, produo, trabalho,medicina, escolarizao, segurana social, seguros, etc), inclusive o capital,que sem dvida foi o meio de socializao mais eficaz de todos, pode-se

    dizer que elas produzem e destroem o social no mesmo movimento.Se o social feito de instncias abstratas que, umas aps as outras,

    se edificam sobre as runas do edifcio simblico e ritual das sociedadesanteriores, ento essas instituies o produzem cada vez mais. Mas, aomesmo tempo, elas sancionam essa abstrao devorante, talvezdevoradora exatamente do mago substantivo do social. A partir desseponto de vista, pode-se dizer que o social regride na prpria medida ddesenvolvimento das instituies.

    O processo acelera e atinge sua extenso mxima com os meios decomunicao de massa e com a informao. Os mdia, todosos mdia, e ainformao, qualquer informao, funcionam nos dois sentidos:aparentemente produzem mais social e neutralizam profundamente asrelaes sociais e o prprio social.

    Mas, ento, se o social ao mesmo tempo destrudo por aquele queo produz (os mdia, a informao) e reabsorvido pelo que produz (asmassas), segue-se que a definio nula, e que esse termo que serve delibi universal para todos os discursos no analisa nada, no designa nada.Ele no somente suprfluo e intil - em toda a parte em que apareceesconde outra coisa: desafio, morte, seduo, ritual, repetio -, escondeque abstrao e resduo, ou mesmo simplesmente efeitode social,simulao e miragem.

    O prprio termo contato social enigmtico. O que um contatosocial, uma relao social, o que a produo de contatos sociais? Aquitudo falsa evidncia. O social imediatamente, e como por definio, umcontato ou uma relao? - o que j supe uma sria abstrao e uma

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    lgebra racional do social -, ou na verdade outra coisa que o termocontato racionaliza demais? Talvez o contato social exista para outracoisa, por exemplo, para que o destri? Talvez ele confirme, talvez inaugureo fim do social?

    As cincias sociais vieram consagrar essa evidncia e essaeternidade do social. Mas preciso desencantar. Houve sociedades semsocial, assim como houve sociedades sem histria. As redes de obrigaessimblicas no eram exatamente nem contato nem social. No outroextremo, nossa sociedade talvez esteja prestes a pr fim ao social, aenterrar o social sob a simulao do social. Para este h diversas maneirasde morrer - assim como definies. O social talvez s ter tido umaexistncia efmera, numa estreita bifurcao entre as formaes simblicase a nossa sociedade, onde morre. Antes, no existe ainda. Aps, no

    existe mais. S a sociologia pode parecer testemunhar sua eternidade, e asoberana algaravia das cincias sociais ainda o divulgar muito tempoaps ele ter desaparecido.

    A energia ininterrupta do social surgiu h dois sculos com adesterritorializao e a concentrao sob instncias cada vez maisunificadas. Espao perspectivo centralizado que d um sentido a tudo o quenele se insere por simples convergncia numa linha de fuga ao infinito

    (como o espao e o tempo, o social efetivamente abre uma perspectiva aoinfinito). No h definio do social seno nessa perspectiva pantica.

    Mas no esqueamos que este espao perspectivo (em pintura e emarquitetura, assim como em poltica ou em economia) s um modelo desimulao entre outros, e que s tem por caracterstica o fato de quepermite efeitos de verdade, de objetividade, inauditos e desconhecidos aosoutros modelos. Ele no talvez um equvoco? Em qualquer caso, tudo oque se tramou e se colocou nessa cena italiana do social jamais teveimportncia profunda. As coisas, profundamente, jamais funcionaram de

    modo social, mas sim simbolicamente, magicamente, irracionalmente, etc.O que subentende a frmula: o capital um desafio sociedade. O quequer dizer que essa mquina perspectiva, pantica, que esta mquina deverdade, de nacionalidade, de produtividade que o capital, no temfinalidade objetiva, no tem razo: ela antes de mais nada uma violncia,e esta violncia se exerce pelo social sobre o social, mas na realidade elano uma mquina social, ela despreza o capital e o social em suadefinio ao mesmo tempo solidria e antagnica. Isso quer dizer ainda queno h contrato, que jamais houve contrato passado entre as distintas

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    instncias segundo a lei - tudo isso vento -, s h questes, desafios, isto, algo que no passa por uma relao social.

    O desafio no uma dialtica, nem uma oposio respectiva de um

    plo ao outro, de um termo ao outro, numa estrutura plena. Ele umprocesso de exterminaoda posio estrutural de cada termo, da posiode sujeito de cada um dos antagonistas e em particular daquele que lana odesafio: por isso mesmo ele abandona qualquer posio contratual quepossa dar lugar a uma ligao. A lgica no mais a da troca de valor. ado abandono de posies de valor e de sentido. O protagonista do desafiosempre est em posio suicida, mas um suicdio triunfal: pela destruiodo valor, pela destruio do sentido (a sua, o seu) que ele fora o outro auma resposta nunca equivalente, sempre superada. O desafio sempre doque no tem sentido, no tem nome, no tem identidade, para o que se

    prevalece de um sentido, de um nome, de uma identidade - o desafio aosentido, ao poder, verdade, de existirem enquanto tais, de pretenderemexistir como tais. S esta reversopode dar fim ao poder, ao sentido, aovalor, e nunca alguma relaode foras, por mais favorvel que seja, poisesta se reproduz numa relao polar, binria, estrutural, que recria pordefinio um novo espao de sentido e de poder.7

    Aqui so possveis vrias hipteses:

    1. Na realidade o social nunca existiu. Nunca houve ligao social.

    Nunca nada funcionou socialmente. Nessa base inelutvel de desafio, deseduo e de morte, sempre houve somente simulaodo social e deligao social. De nada adianta, nesse caso, sonhar com uma sociedadereal, com uma socialidade escondida, com uma socialidade ideal. Seriahipostasiar o simulacro. Se o social uma simulao, o nico incidenteprovvel o de uma dessimulaobrutal - o prprio social deixando de seafirmar como espao de referncia e de jogar o jogo, pondo imediatamentefim ao poder, ao efeito de poder e ao espelho do social que o eterniza.Dessimulao que assume ela mesma o comportamento de um desafio(desafio inverso ao do capital ao social e sociedade): desafio ao capital e

    ao poder de existirem segundo sua lgica prpria - eles no a tm, eles sedesvanecem como ordenao desde que a simulao do espao social se

    7 A mesma coisa vale para a seduo. Se o sexo e a sexualidade, dado que a revoluosexual os muda em si mesmos, so verdadeiramente um modo de troca e de produo derelaes sexuais, j a seduo o inverso da troca, e prxima ao desafio. A sexualidaderealmente s se tornou relao sexual, s pde ser falada nesses termos jracionalizados de valor e de troca, ao se esquecer qualquer forma de seduo - assimcomo o social s se torna relao social quando perdeu toda a dimenso simblica.

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    desfaz.8 Na verdade isso que assistimos hoje: desagregao dopensamento do social, ao definhamento e involuo do social, aoenfraquecimento do simulacro social, verdadeiro desafio ao pensamentoconstrutivo e produtivo do social que nos domina. E isso de repente, como

    se o social nunca tivesse existido. Enfraquecimento que tem todos os traosde uma catstrofe, no de uma evoluo ou de uma revoluo. No maisuma crise do social, mas a incorporao do seu ordenamento. Sem nada aver com as deseres marginais (loucos, mulheres, drogados,delinqentes), que servem, ao contrrio, de novas energias ao socialenfraquecido. Esse processo no pode mais ser ressocializado. Ele aevaporao, como a de um espectro ao canto do galo, do principio derealidade e de racionalidade social.

    2. O social realmente existiu, ele at existe cada vez mais, ele investe

    tudo, s h o social. Longe de se volatilizar, ele que triunfa, a realidadedo social que se impe em toda a parte. Mas pode-se considerar, contra opreconceito que faz do social um processo objetivo da espcie humana,tudo o que escapa sendo somente resduo, que o prprio social que resduo, e que, se triunfou no real, foi exatamente enquanto tal. Resduocrescente e logo universal da disperso da ordem simblica, foi o socialcomo resto que se fortaleceu do real.9 Eis a um tipo de morte mais sutil.

    Nesse caso, na verdade estamos sempre mais no social, isto , nadejeco pura, na obstaculizao fantstica do trabalho morto, das relaes

    mortas e instanciadas nas burocracias terroristas, das linguagens e dossintagmas mortos os prprios termos ligao e relao j tm algo demorto, e algo de morte.

    Ento evidentemente no se pode mais dizer que o social morre, poisele desde sempre acumulao do morto. Com efeito, estamos numacivilizao do super-social, e simultaneamente do resduo indegradvel,indestrutvel, que se expande na prpria medida da extenso do social.

    Desperdcio e reciclagem: tal seria o social imagem de uma

    produo cujo ciclo escapou h muito tempo s finalidades sociais paratornar-se uma nebulosa espiral completamente ex-inscrita, girando sobre simesma e se alargando cada revoluo que descreve. V-se assim o

    8 Mas o desafio ao social pode tomar a forma inversa da recrudescncia do simulacrosocial, da demanda social, da demanda dosocial. Hiperconformismo exacerbado,compulsivo, exigncia ainda mais formal do social como norma e como discurso.9 Ver, em L'Echange Simbolique et le Mort, a tripla residualidade: do valor na ordemeconmica, do fantasma na ordem psquica, da significao da ordem lingstica. preciso portanto acrescentar a a residualidade do social na ordem... social.

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    social crescer no decorrer da histria como gesto racional dos resduos, edentro em pouco produoracional de resduos.

    Em 1544 abriu-se o primeiro grande estabelecimento de pobres em

    Paris: vagabundos, dementes, doentes, todos aqueles que o grupo nointegrou e deixou como sobras sero adotados sob o signo nascente dosocial. Este se expandir s dimenses da assistncia pblica no sculo 19,depois Segurana Social no sculo 20. medida que se refora a razosocial, a coletividade toda que logo se torna residual e, portanto, comuma espiral mais, o social que se alarga. Quando a sobra atinge asdimenses da sociedade toda, tem-se uma socializao perfeita.10 Todo omundo est perfeitamente excludo e adotado, perfeitamente desintegrado esocializado.

    A integrao simblica substituda pela integrao funcional,instituies funcionais se ocupam dos resduos da desintegrao simblica -uma instnciasocial aparece onde no existia e no havia nem mesmonome para diz-la. Os contatos sociais se multiplicam, proliferam, seenriquecem proporcionalmente a esta desintegrao. E as cincias sociaisvm coroar o conjunto. De onde o sabor de uma expresso como: aresponsabilidade da sociedade em relao a seus membros deserdados,quando se sabe que o social, exatamente, s a instncia que resultadeste desamparo.

    De onde o interesse da rubrica Sociedade do Monte, em queparadoxalmente s aparecem os emigrados, os delinqentes, as mulheres,etc.: exatamente tudo o que no foi socializado, o caso social anlogo aocaso patolgico. Bolses para serem incorporados, segmentos que o socialisola pouco a pouco em sua extenso. Designados como residuaisnocampo do social, por isso mesmo eles entram em sua jurisdio e sodestinados a encontrar seu lugar numa socialidade ampliada. sobre essasobra que a mquina social se lana e encontra apoio para uma novaampliao. Mas o que acontece quando tudo est socializado? Ento amquina pra, a dinmica se inverte, e o sistema social todo que se torna

    resduo. medida que o social em sua progresso elimina todos osresduos, ele prprio se torna residual. Ao colocar sob a rubrica Sociedadeas categorias residuais, o prprio social se designa como resto.

    10 Vejam-se os Guaiaqui ou os Tupi-Guarani: quando um tal resduo aparece, drenadopelos lderes messinicos para o Atlntico, sob a forma de movimentos escatolgicos quepurgam o grupo dos resduos sociais. No s o poder poltico (Clastres) mas oprprio,social conjurado como instncia desintegrada/desintegrante.

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    Ora, o que se torna a racionalidade do social, do contrato e da ligaosocial, se esta, em vez de aparecer como estrutura original, aparece comoresduo e gesto de resduos? Se o social s resto, no mais o lugar deum processo ou de uma histria positiva, s o lugar da acumulao e da

    gesto usurria da morte. No tem mais sentido, pois existe para outracoisa, e em desespero de outra coisa: excremencial. Sem perspectivaideal. Porque o resto o nada ultrapassado, o que irreconcilivel namorte, e sobre ele s se pode fundar uma poltica da morte. Recluso ouexcluso. O social inicialmente foi, sob o signo da razo positiva, o espaoda grande Recluso tornou-se, sob o signo da simulao e da dissuaso,o espao da grande Excluso. Mas talvez j no seja mais um espaosocial.

    nessa perspectiva de gesto de resduos que o social pode

    aparecer hoje pelo que : um direito, uma necessidade, um servio, umpuro e simples valor de uso. Nem mesmo mais uma estrutura conflitiva epoltica: uma estrutura de acolhimento. O limite do valor economista dosocial como valor de uso na verdade o valor ecologista do social comoabrigo. O bom uso do social como uma das formas do equilbrio das trocasdo indivduo com seu meio, o social como ecossistema, homeostase esuperbiologia funcional da espcie - no mais uma estrutura: umasubstncia, o caloroso e protico anonimato de uma substncia alimentcia.Uma espcie de espao fetal de segurana que prov em toda parte dificuldade de viver, que fornece em toda a parte a qualidade da vida, isto ,

    para tal segurana todos os riscos, o equivalente da vida perdida - formadegradada da socialidade lubrificante, assistencial, pacificante e permissiva-, a forma mais baixa da energia social: a de uma utilidade ambiental,comportamental - essa a nossa imagem do social - forma entrpica -,outra imagem de sua morte.

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    EXCURSO

    O social ou a alocao funcional da sobra

    O social existe para cuidar de absorver o excedente de riqueza que,redistribudo sem outra forma de processo, arruinaria a ordem social, criariauma situao intolervel de utopia.

    Essa realocao da riqueza, de qualquer riqueza, que outrora seoperaria no sacrifcio sem dar lugar acumulao da sobra, intolervelpara nossas sociedades. mesmo nisso que so sociedades - nestesentido de que elas sempre produzem um excedente, uma sobra seja elademogrfica, econmica ou lingstica, e que essa sobra deve ser liquidada(nunca sacrificada, muito perigoso: pura e simplesmente liquidada).

    O social est nessa dupla qualidade: produzir a sobra e destru-la.

    Se toda a riqueza fosse sacrificada, as pessoas perderiam o sentidodo real. Se toda a riqueza se tornasse disponvel, as pessoas perderiam osentido do til e do intil. O social existe para garantir o consumo intil da

    sobra afim de que os indivduos se dediquem gesto til de suas vidas.O uso e o valor de uso constituem uma moral fundamental. Mas ela

    s existe numa simulao de penria e de clculo. Se toda a riqueza fosseredistribuda, ela aboliria de si prpria o valor de uso (como para a morte: sea morte fosse redistribuda, realocada, aboliria de si mesma a vida comovalor de uso). Sbita e brutalmente se tornaria claro que o valor de uso s uma conveno moral feroz e desencantada, que supe um clculofuncional em todas as coisas. Mas ela nos domina a todos, e, intoxicadoscomo o somos pelo fantasma do valor de uso, no suportaramos esta

    catstrofe da realocao das riquezas e da morte. No necessrio quetudo seja realocado. necessrio que a sobra seja. E o social que cuidada sobra.

    At aqui o carro, a casa e diversas comodidades conseguiram bemou mal absorver as disponibilidades fsicas e mentais dos indivduos. O queaconteceria se toda a riqueza disponvel lhes fosse redistribuda? Elessimplesmente a dissipariam - perdendo a linha correta e a medida exata deuma economia bem balanceada, perdendo o sentido do clculo e das

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    finalidades. Desequilbrio brutal do sistema de valores (o afluxo repentino dedivisas a maneira mais rpida e mais radical de arruinar uma moeda). Oubem seriam remetidos, como na sociedade de afluncia, a uma extensopatolgica do valor de uso (3, 4, ncarros), em que este de qualquer maneira

    se volatiliza num funcionamento hiper-real.

    Todo excedente prprio para arruinar o sistema de equivalncias se realocado sem medida, e tambm para desesperar de um s golpe nossosistema mentalde equivalncias.11 H, portanto, uma espcie de sabedoriana instituio do social como matriz preventiva da extenso e da realocaodas riquezas, como meio de sua dilapidao controlada.

    Numa sociedade incapaz de realocao total e dedicada ao valor deuso, h uma espcie de inteligncia e de sabedoria na instituio do social e

    de seu desperdicio objetivo: as operaes de prestgio, Concorde, a lua,os msseis, os satlites, at mesmo os trabalhos pblicos e a seguranasocial em sua promessa absurda. Inteligncia implcita da estupidez e doslimites do valor de uso. A verdadeira candura a dos socialistas ehumanistas de toda espcie, que querem que toda a riqueza sejaredistribuda, que no haja nenhuma despesa intil, etc. O socialismo,campeo do valor de uso social, revela um contrasenso total sobre o social.Ele acredita que o social possa se tornar a gesto coletiva tima do valor deuso dos homens e das coisas.

    Mas o social nunca isso. , apesar de toda esperana socialista,algo insensato, incontro