As Opinioes e as Crencas - Gustave Le Bon

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As Opinies e as Crenas

Gustave Le Bon

ApresentaoGustave Le Bon (1841-1931) foi o fundador da Psicologia Social.

Escreveu inmeras obras, dentre as quais se destacam: A psicologia das multides. A psicologia do socialismo, A psicologia das revolues.

Apresentamos um dos grandes trabalhos: As opinies e as crenas. Dificilmente se poderia estudar temas como: teoria do conhecimento, ideologia, religies, supersties, comportamento das massas, propaganda, persuaso sem estudar e se apoiar em Le Bon.

Em As opinies e as crenas, depois de discutir os recursos metodolgicos de anlise da Psicologia, Le Bon explica o papel do prazer e da dor, para ento avaliar as caractersticas do consciente e inconsciente. De forma brilhante, apresenta as vrias formas de lgica: biolgica, afetiva, coletiva, mstica e racional.

Dai em diante, passa a analisar as opinies e crenas, sua gnese, desenvolvimento, transformao, propagao. No deixa de discutir a morte das crenas.

uma obra de incrvel atualidade; talvez tenham conseguido aprofund-la, superar ainda no.

Nlson Jahr Garcia

Livro I

Os Problemas da Crena e do Conhecimento

Captulo I Os Ciclos da Crena e do Conhecimento

1. As dificuldades do problema da crena

O problema da crena, por vezes confundido com o do conhecimento , entretanto, muito distinto dele. Saber e crer so coisas diferentes, que no tm a mesma gnese.

Das opinies e das crenas deriva, com a concepo da vida, o nosso modo de proceder, e por conseguinte a maior parte dos acontecimentos da histria. Elas so, como todos os fenmenos, regidas por certas leis, mas essas leis no esto ainda determinadas.

O domnio da crena sempre pareceu repleto de mistrios. por isso que os livros sobre as origens da crena so to pouco numerosos, ao passo que so inmeros os que se referem ao conhecimento.

As raras tentativas empreendidas no sentido de elucidar o problema da crena bastam, alis, para mostrar que ele tem sido pouco compreendido. Aceitando a velha opinio de Descartes, os autores repetem que a crena racional e voluntria. Um dos objetivos desta obra ser precisamente mostrar que ela no voluntria nem racional.

A dificuldade do problema da crena no havia passado despercebida ao grande Pascal. Em um captulo relativo arte de persuadir, ele justamente observa que os homens so quase sempre levados a crer, no pela prova, mas pelo agrado. Mas, acrescenta ele, a maneira de agradar incomparavelmente mais difcil, mais sutil, mais til e mais admirvel: assim, se disso no trato, porque no sou capaz de faz-lo; e sinto-me de tal modo incapaz que julgo ser inteiramente impossvel.

Graas s descobertas da cincia moderna, pareceu-me possvel o problema perante o qual Pascal recuara.

A sua soluo d-nos a chave de muitas questes importantes. Como, por exemplo, se estabelecem as opinies e as crenas religiosas ou polticas? Por que se observam, simultaneamente, em certos espritos, ao lado de elevadssima inteligncia, supersties muito ingnuas? Por que to fraca a razo para modificar as nossas convices sentimentais? Sem uma teoria da crena, essas questes e muitas outras ficam insolveis. Somente com o auxlio da razo, no poderiam ser explicadas.

Se o problema da crena tem sido to mal compreendido pelos psiclogos e pelos historiadores, porque eles tm tentado interpretar com os recursos da lgica racional fenmenos que ela jamais regeu. Veremos que todos os elementos da crena obedecem a regras lgicas muito seguras, porm inteiramente alheias s que so empregadas pelo sbio nas suas investigaes.

Esse problema atraiu-me constantemente a ateno desde que iniciei os meus estudos histricos. A crena se me afigura ser, na realidade, o principal fator da histria. Como, porm, poderiam ser explicados fatos to extraordinrios qual as fundaes de crenas, que determinam a criao ou o desaparecimento de civilizaes pujantes?

Tribos nmades, perdidas no fundo da Arbia, adotam uma religio que um iluminado lhes ensina, e graas a ela fundam, em menos de cinqenta anos, um imprio to vasto quanto o de Alexandre, ilustrado por uma esplndida manifestao de maravilhosos monumentos.

Poucos sculos antes, povos semibrbaros se convertiam f pregada por apstolos que vinham de obscuros lugares da Galilia, e sob a luz regeneradora dessa crena, o velho mundo desabava, substitudo por uma civilizao inteiramente nova, de que cada elemento permanece impregnado da lembrana do Deus que o originou.

Cerca de vinte sculos mais tarde, a antiga f abalada, estrelas luminosas surgem no cu do pensamento, um grande povo se subleva, pretendendo romper os elos do passado. A sua f destruidora, porm possante, confere-lhe, a despeito da anarquia em que essa grande Revoluo o submerge, a fora necessria para dominar a Europa armada e atravessar vitoriosamente todas as suas capitais.

Como se explica esse estranho poder das crenas? Por que se submete o homem, subitamente, a uma f que ignorava na vspera, e porque o eleva ela to prodigiosamente, acima de si mesmo? De que elementos psicolgicos surgem esses mistrios? o que procuraremos elucidar.

O problema do estabelecimento e da propagao das opinies, e sobretudo das crenas, apresenta aspectos to maravilhosos que os sectrios de cada religio invocam a sua origem e a sua difuso como provas de uma procedncia divina. Observam tambm que essas crenas so adotadas a despeito do mais evidente interesse daqueles que as aceitam. Compreende-se, por exemplo, sem dificuldade, que o Cristianismo se haja propagado facilmente entre os escravos e todos os deserdados, ao quais prometia uma felicidade eterna. Mas, que foras secretas podiam determinar um cavalheiro romano, um personagem consular, a despojar-se dos seus bens e afrontar vergonhosos suplcios, para adotar uma religio nova e vedada pelas leis?

Seria impossvel evocar a fraqueza intelectual dos homens que voluntariamente se submetiam a tal jugo, porquanto, desde a antigidade at aos nossos dias, se tm observado os mesmos fenmenos nos espritos mais cultos.

Uma teoria da crena pode unicamente ser vivel quando fornece a explicao de todas essas coisas. Deve, sobretudo, fazer compreender como sbios ilustres e reputados pelo seu esprito crtico aceitam lendas cuja infantil ingenuidade desperta o sorriso. Facilmente concebemos que Newton, Pascal, Descartes, vivendo num meio social saturado de certas convices, sem discusso a tenham admitido, como admitiam as leis inelutveis da natureza. Mas como, nos nossos dias, em meios sobre os quais a cincia projeta tanta luz, no se acham essas mesmas crenas inteiramente desagregadas? Por que as vemos ns, quando por acaso se desagregam, originar outras fices, maravilhosas, como prova a propagao das doutrinas ocultas, espirituais etc., entre sbios eminentes? A todas essas perguntas deveremos, igualmente, responder.

2. Em que a crena difere do conhecimento Procuremos primeiramente precisar o que constitui crena e em que ela se distingue do conhecimento. Uma crena um ato de f de origem inconsciente, que nos fora a admitir em bloco uma idia, uma opinio, uma explicao, uma doutrina. A razo alheia, como veremos, sua formao. Quando ela tenta justificar a crena, esta j se acha formada.

Tudo quanto aceito por um simples ato de f deve ser qualificado de crena. Se a exatido da crena verificada mais tarde pela observao e a experincia, cessa de ser uma crena e torna-se um conhecimento.

Crena e conhecimento constituem dois modos de atividade mental muito distintos e de origem muito diferentes: A primeira uma intuio inconsciente provada por certas causas independentes da nossa vontade; a segunda representa uma aquisio consciente, edificada por mtodos exclusivamente racionais, tais como a experincia e a observao Foi somente numa poca adiantada da sua histria que a humanidade, imersa no mundo da crena, descobriu o conhecimento. Quando a se penetra, reconhece-se que todos os fenmenos atribudos outrora s vontades de seres superiores se apresentavam sob a influncia de leis inflexveis.

Pela simples circunstncia de que o homem se iniciava no ciclo do conhecimento, todas as suas concepes do universo se transformaram.

Mas, nessa nova esfera, no foi ainda possvel penetrar muito longe. A cincia reconhece cada dia que nas suas descobertas h muitas coisas desconhecidas. As realidades mais precisas ocultam mistrios. Um mistrio a alma ignorada das coisas.

A cincia se acha ainda envolta nessas trevas e, atrs dos horizontes que ela atinge, outros aparecem, perdidos num infinito que parece recuar sempre.

Nesse grande domnio, que nenhuma filosofia pode ainda elucidar, jaz o reino dos sonhos, repleto de esperanas que nenhum, raciocnio poderia destruir. Crenas religiosas, crenas polticas, crenas de toda espcie a haurem uma fora ilimitada. Os fantasmas-temidos que o habitam, so criados pela f.

Saber e crer permanecero sempre como coisas distintas. Ao passo que a aquisio da menor verdade cientfica exige enorme labor, a posse de uma certeza baseada unicamente na f no pede nenhum trabalho. Todos os homens possuem crenas; muito poucos se elevam at ao conhecimento.

O mundo da crena possui a sua lgica e as suas leis. O sbio tem sempre tentado em vo penetrar nessa esfera com os seus mtodos. Ver-se- nesta obra porque perde ele todo o esprito crtico, quando se insinua no ciclo da crena e a se v somente perante as mais falazes iluses.

3. Papis respectivos de crena e do conhecimento O conhecimento constitui um elemento essencial da civilizao, o grande fator dos seus progressos materiais. A crena orienta os pensamentos, as opinies e, por conseguinte, a maneira de proceder.

Supostas, outrora, de origem divina, as crenas eram aceitas sem discusso. Sabemos hoje que provem delas mesmas, e isso no obsta que ainda se imponham. O raciocnio influi, em geral, tanto nas crenas como na fome ou na sede. Elaborada nas regies subconscientes a que a inteligncia no poderia chegar, uma crena se implanta no esprito, mas no se discute

Essa origem inconsciente e, portanto, involuntria das crenas torna-as muito fortes. Religiosas, polticas ou sociais, tm sempre desempenhado na histria um papel preponderante.

Quando se generalizam, constituem plos atrativos, em torno dos quais gravita a existncia dos povos de uma civilizao. Claramente se qualifica a civilizao, dando-lhe o nome da f que a inspirou. Civilizao bdica, civilizao muulmana, civilizao crist so designaes muito justas, porquanto, ao tornar-se um centro de atrao, a crena se transforma num centro de deformao. Os vrios elementos da vida social: filosofia, artes, literatura, modificam-se para que a ela se possam adaptar.

As nicas verdadeiras revolues so as que despertam as crenas fundamentais de um povo. Tm sido sempre muito raras. Ordinariamente, s o nome da convico se transforma; a f muda de objeto, mas nunca morre.

No poderia morrer, pois a necessidade de crer constitui um elemento psicolgico to irredutvel quanto o prazer ou a dor. A alma humana tem averso duvida e incerteza. O homem atravessa, por vezes fases de ceticismo, mas nelas no se detm longamente; sente a nsia de ser guiado por um credo religioso, poltico ou moral que o domine e lhe evite o esforo de pensar. Os dogmas, que se dissipam, so sempre substitudos. A razo nada pode contra essas indestrutveis necessidades.

A idade moderna contm tanta f quanto tiveram os sculos precedentes. Nos novos templos pregam-se dogmas, to despticos quanto os do passado, e eles contam fiis igualmente numerosos. Os velhos credos religiosos que outrora escravizavam a multido, so substitudos por credos socialistas ou anarquistas, to imperiosos e to pouco racionais como aqueles, mas no dominam menos as almas. A igreja substituda muitas vezes pela taverna, mas aos sermes dos agitadores msticos que a so ouvidos, atribui-se a mesma f.

Se a mentalidade dos fieis no tem evoludo muito desde a poca remota em que, s margens do Nilo, Isis e Hathor atraam aos seus templos milhares de fervorosos peregrinos, porque, no decurso das idades, os sentimentos, verdadeiros alicerces da alma, mantm a sua fixidez. A inteligncia progride, mas os sentimentos no mudam.

A f num dogma qualquer , sem dvida, de um modo geral, apenas uma iluso. Cumpre, contudo, no a desdenhar. Graas sua mgica pujana, o irreal torna-se mais forte do que o real. Uma crena aceita d a um povo uma comunho de pensamentos de que se originam a sua unidade e a sua fora.

Sendo o domnio do conhecimento muito diverso do terreno da crena, op-los um ao outro intil tarefa, embora diariamente tentada.

Desprendida cada vez mais da crena, a cincia mantm-se, no entanto, ainda impregnada dela. Em todos os assuntos mal conhecidos, como, por exemplo, os mistrios da vida ou da origem das espcies, ela lhe submissa, as teorias que nesses assuntos se aceitam, so meros artigos de f, que s tm em seu favor a autoridade dos mestres que as formularam.

As leis que regem a psicologia da crena no se aplicam somente s grandes convices fundamentais, que deixam uma marca indelvel na trama da histria. So tambm aplicveis maior parte das nossas opinies quotidianas relativamente aos seres e s coisas que nos cercam.

A observao mostra que, na sua maioria, essas opinies no tm por sustentculos elementos racionais, porm elementos afetivos ou msticos, em geral de origem inconsciente. Se ns as vemos discutidas com tanto ardor, precisamente porque elas pertencem ao domnio da crena e so formadas do mesmo modo. As opinies representam geralmente pequenas crenas, mais ou menos transitrias.

Seria, pois, um erro supor que se sai do terreno da crena, quando se renuncia s convices ancestrais. Teremos ensejo de mostrar que, as mais das vezes, ainda mais se aprofundou nesse domnio.

Sendo as questes suscitadas pela gnese das opinies da mesma natureza que as relativas crena, devem ser estudadas de modo anlogo. Muitas vezes distintas nos seus esforos, crenas e opinies pertencem, no entanto, mesma famlia, ao passo que o conhecimento faz parte de um mundo inteiramente diverso.

Vemos a grandeza e a dificuldade dos problemas tratados nesta obra. Neles pensei, durante anos, em vrios pontos da terra, ora contemplando esses milhares de esttuas erigidas, h 80 sculos, gloria de todos os deuses que encarnaram os nossos sonhos; ora, perdido entre as gigantescas pilastras dos templos de estranhas arquiteturas, refletidos nas guas majestosas do Nilo ou edificados s margens tortuosas do Ganges. Como se admirariam essas maravilhas, sem pensar nas foras secretas que as fizeram, surgir do nada, donde nenhum pensamento racional as teria podido originar?

Como os acasos da vida me levaram a explorar ramos bastante variados da cincia pura, da psicologia e da histria, pude estudar os mtodos cientficos que determinam o conhecimento e os fatores psicolgicos geradores das crenas. O conhecimento e a crena, eis toda a nossa civilizao e toda a nossa histria.

Captulo II Os Mtodos de Estudo da Psicologia Para constituir-se, a psicologia recorreu, sucessivamente a vrios mtodos. No teremos ocasio de utiliz-los no estudo das opinies e das crenas. O seu simples resumo mostrar que eles somente podiam fornecer muito poucos elementos de informao s nossas pesquisas.

Mtodo de introspeco O mais antigo mtodo psicolgico, o nico praticado durante muito tempo, foi o que se denomina de introspeco. Encerrado no seu gabinete de estudos e ignorando voluntariamente o mundo exterior, o pensador refletia em si mesmo e com os resultados das suas meditaes fabricava grossos volumes. Hoje, j no acham leitores.

O ultimo sculo assistiu ao despertar de mtodos mais cientficos, sem dvida, porm no mais fecundos. Eis a sua enumerao:Mtodo psicofsico No seu incio, esse mtodo todo, que introduzia medidas fsicas em psicologia, parecia possuir um grande futuro: descobriu-se, porm, rapidamente, que o seu domnio era limitado. Essas medidas s se aplicavam a fenmenos elementares: velocidade do agente nervoso, tempo necessrio para os movimentos reflexos, relao logartmica entre a excitao e a sensao, etc. Tratava-se, na realidade, de operaes psicolgicas, da qual a psicologia pode tirar apenas um partido diminuto.

Mtodo das localizaes cerebrais Consistia em procurar a alterao das locues psicolgicas correspondentes a certas leses nervosas artificialmente provocadas. Julgou-se poder assim estabelecer uma multido de localizaes. Elas esto quase inteiramente abandonadas hoje, mesmo as que, ao princpio, pareciam mais bem estabelecidas, como os centros da linguagem e da escrita.

Mtodo das provas e dos questionrios Este mtodo obteve, durante muito tempo, grande sucesso, e os laboratrios, denominados de psicologia, ainda se acham repletos de instrumentos destinados a medir todas as operaes que se supem em relao com a inteligncia. Editaram-se mesmo numerosos questionrios, aos quais alguns homens ilustres se dignaram submeter-se. O que foi publicado a respeito de Henri Poincar, por um dos ltimos adeptos desse mtodo, bastaria para mostrar quo diminuta a vantagem que a psicologia da pode retirar.

Esse mtodo est hoje inteiramente abandonado.

Mtodo baseado no estudo das alteraes patolgicas da inteligncia Este mtodo, o ltimo, certamente o que tem fornecido maior quantidade de documentos sobre a atividade psicolgica inconsciente, o misticismo, a imitao, as desagregaes da personalidade, etc. Conquanto muito restrito, ele foi fecundo.

Embora nova na sua aplicao, a psicologia patolgica no permanece ignorada pelos grandes dramaturgos como Shakespeare. Os seus possantes gnios de observao os levaram a descobrir fenmenos que s mais tarde a cincia devia indicar com preciso. Lady Macbeth uma alucinada, Otelo um histero-epiltico, Hamlet um alcolico perseguido por fobias, o rei Lear um manaco melanclico, vtima de loucura intermitente. Cumpre, alis, reconhecer que, se todos esses ilustres personagens tivessem sido individualidades normais, ao invs de possurem uma patologia alterada e instvel, a literatura e a arte no teriam tido necessidade de ocupar-se deles.

Mtodo baseado na psicologia comparada Ainda muito recente, este mtodo tem-se limitado at aqui ao estudo dos instintos e de certas reaes elementares qualificadas de tropismos. Parece, entretanto, dever constituir um dos mtodos do futuro.Para compreender os fenmenos psquicos dos seres superiores, cumpre estudar, primeiramente, os fenmenos relativos s criaturas inferiores. Essa evidncia no se revela, contudo, ainda aos psiclogos que pretendem estabelecer uma distino irredutvel entre a razo do homem e a dos entes colocados abaixo dele. A natureza desconhece tais descontinuidades, e j passou a poca em que Descartes considerava os animais como meros autmatos.

Esse estudo apresenta, alis, inmeras dificuldades. Cada dia mais se reconhece que os sentidos dos animais e, por conseguinte, as suas sensaes, diferem das nossas. Os elementos que eles associam, a maneira pela qual eles os associam, deve tambm, sem dvida, ser distintos.

A psicologia dos animais, mesmo superiores, est ainda no comeo. Para compreend-los, cumpre examin-los de muito perto, e a essa tarefa ningum se entrega.

Facilmente aprenderamos a adivinh-los, contudo, mediante um exame atento. Consagrei outrora muitos anos observao dos animais. Os resultados que colhi foram expostos numa memria sobre a psicologia do cavalo, publicada na Revue Philosophique. Dali deduzi regras novas para a educao desse animal. Essas pesquisas foram-me teis quando redigi o meu livro atinente Psicologia da Educao.

Mtodo adotado nesta obra para o estudo das opinies e das crenas A enumerao precedente permite pressentir que nenhum dos mtodos psicolgicos clssicos, nem os inquritos, nem a psicofsica, nem as localizaes, nem a prpria psicopatologia podem revelar a gnese e a evoluo das opinies e das crenas. Devemos, pois, recorrer a outros mtodos.

Depois de termos estudado o terreno receptivo das crenas: inteligncia, sentimentos, sub-conscincia, etc., analisamos as diversas crenas religiosas, polticas, morais etc., e examinamos o papel de cada um dos seus fatores dominantes. A histria, no tocante ao passado, os fatores dirios, quanto ao presente, fornecem os elementos deste estudo.

Mas as grandes crenas, na sua generalidade, pertencem ao passado. O ponto mais curioso da sua histria o evidente absurdo dos dogmas no ponto de vista da razo pura. Explicaremos a sua adoo, mostrando que, no domnio da crena, o homem mais esclarecido, o sbio mais familiarizado com os rigorosos mtodos de laboratrio, perde inteiramente o esprito crtico e sem dificuldade admite maravilhosos milagres. O estudo dos fenmenos ocultistas fornecer nesse ponto categricas demonstraes. Veremos ilustres fsicos afirmarem que desdobraram seres vivos e viveram com fantasmas materializados; um clebre professor de filosofia, evocar os mortos e conversar com eles; outro, no menos eminente, declarar que viu um guerreiro, armado de capacete, sair do corpo de uma mulher, com os seus rgos completos, como provava o estado da sua circulao e o exame dos produtos da sua respirao.

Todos esses fenmenos e outros da mesma ordem nos provaro que nenhum poder tem a razo contra as crenas mais errneas.

Mas porque manifesta no campo da crena uma credulidade ilimitada o esprito que a penetra, qualquer que seja a sua cultura?

Para descobri-lo, fomos levados a dilatar o problema e a pesquisar a origem dos atos dos diversos seres vivos, desde o nfimo animal at ao homem.

Claramente vimos, ento, que as explicaes clssicas s eram to insuficientes ou to nulas em conseqncia da obstinao dos autores em querer aplicar os mtodos da lgica racional a fenmenos que ela no rege. Nas operaes complexas da vida, como os reflexos inconscientes, verdadeira fonte da nossa atividade, revelam-se encadeamentos particulares, independentes da razo, e que termos to imprecisos quanto o do instinto no poderiam definir.

Continuando a sondar essas questes, fomos levados a reconhecer diversas formas de lgicas, inferiores ou superiores, conforme os casos, lgica racional, mas sempre diferentes dela.

E assim que lgica racional, conhecida em todos os tempos, lgica afetiva, estudada desde alguns anos, ajuntamos vrias novas formas de lgicas, que se podem sobrepor ou entrar em conflito e dar nossa mentalidade impulses diferentes. A que rege o domnio do conhecimento no tem relao alguma com a que suscita as crenas. por isso que o sbio mais esclarecido poder manifestar opinies contraditrias, racionais ou irracionais, conforme o ciclo em que se achar: do conhecimento ou da crena.

No psicologia clssica que seria possvel pedir explicaes sobre todas essas questes. Os mais eminentes psiclogos modernos, principalmente William James, viram-se forados a reconhecer a fragilidade de uma cincia que poreja a crtica metafsica por todas as suas articulaes... Ainda esperamos, escreve ele, o primeiro claro que deve penetrar na obscuridade das realidades psicolgicas fundamentais. Sem admitir inteiramente, como o ilustre pensador, que os livros de psicologia encerram unicamente uma srie de fatos grosseiramente observados, algumas discusses bulhentas e tagarelas de teorias, cumpre reconhecer, com ele, que a psicologia clssica no contm uma nica lei, uma s frmula de que possamos deduzir uma conseqncia, como se deduz um efeito da sua causa. , pois, num terreno muito atravancado na aparncia, muito virgem na realidade, que vamos tentar construir uma teoria da formao e da evoluo das opinies e das crenas.

Livro IIO Terreno Psicolgico das Opinies e das CrenasCaptulo I Os Grandes Fatores da Atividade dos Seres: o Prazer e a Dor1. Papel do prazer e da dor

O prazer e a dor so a linguagem da vida orgnica e afetiva, a expresso de equilbrios satisfeitos ou perturbados do organismo. Representam os meios empregados pela natureza para obrigar os entes a certos atos, sem os quais a manuteno da existncia se tornaria impossvel. Prazer e dor so, pois, os indcios de um estado afetivo anterior. So efeitos, como os sintomas patolgicos so as conseqncias de uma molstia.

A faculdade de sentir prazer ou dor constitui a sensibilidade. A vida afetiva e psquica dos seres depende inteiramente dessa sensibilidade.

A linguagem dos rgos, traduzida pelo prazer e a dor, mais ou menos imperiosa, conforme as necessidades a que deve satisfazer. Algumas h, por exemplo, a fome, que no esperam.

A fome a dor mais temida; o amor, o prazer mais procurado, e pode-se repetir o que disse o grande poeta Schiller, isto , que a mquina do mundo se sustenta pela fome e pelo amor.

As outras variedades do prazer e da dor so mveis menos possantes, porque so menos intensos. Erroneamente Schopenhauer sustentava que se podem resumir em trs todos os princpios que fazem agir o homem: o egosmo, a maldade e a compaixo.

Nestes ltimos anos, alguns filsofos, notavelmente William Jones, contestaram o papel do prazer e da dor como mveis da nossa atividade. Eles no intervm absolutamente, por exemplo, diz esse ltimo, na manifestao das nossas emoes. Quem franze o sobrolho pelo prazer de franzir o sobrolho? No se respira por prazer.

Essa argumentao no feliz. Ningum, certamente, respira por prazer, mas a dor que acarretaria a cessao de respirar rigorosamente nos obriga a essa funo. No se franze o sobrolho por prazer, mas em conseqncia de um descontentamento, o que j constitui uma frmula da dor.

2. Caracteres descontnuos do prazer e da dor O prazer e a dor no conhecem a durao. A sua natureza dissiparem-se rapidamente e, por conseguinte, s existirem sob a condio de ser intermitente. Um prazer prolongado cessa logo de ser um prazer e uma dor continua logo se atenua. A sua diminuio pode mesmo, por confronto, tornar-se um prazer.

O prazer s , pois, um prazer sob a condio de ser descontnuo. O nico prazer um pouco durvel o prazer no realizado, ou desejo.

O prazer somente avalivel pela sua comparao com a dor. Falar de prazer eterno um contra-senso, como justamente observou Plato. Ignorando a dor, os deuses no podem, segundo Plato, ter prazer.

A descontinuidade do prazer e da dor representa a conseqncia dessa lei fisiolgica: A mudana a condio da sensao. No percebemos os estados contnuos, porm as diferenas entre estados simultneos ou sucessivos. O tique-taque do relgio mais ruidoso acaba, no fim de algum tempo, por no ser mais ouvido, e o moleiro no ser despertado pelo rudo das rodas do seu moinho, mas pela sua parada.

em virtude dessa descontinuidade necessria que o prazer prolongado cessa logo de ser um prazer, porm uma coisa neutra, que s se pode tornar novamente vivaz depois de ter sido perdida. A felicidade paradisaca sonhada pelos crentes deixaria logo de possuir atrativos do paraso para o inferno.

O prazer sempre relativo e ligado s circunstncias. A dor de hoje torna-se o prazer de amanh e inversamente. Dor, para um homem que abundantemente jantou, ser condenado a comer cdeas de po seco; prazer, para o mesmo indivduo abandonado durante muitos dias, sem alimentos, numa ilha deserta.

Diz com razo a sabedoria popular que cada qual tem o seu prazer onde o encontra. O prazer do operrio que bebe e vocifera na taverna, sensivelmente difere do prazer do artista, do sbio, do inventor, do poeta, ao comporem as suas obras. O prazer de Newton, ao descobrir as leis da gravitao, foi, sem dvida, mais vivo do que se ele houvesse herdado as numerosas mulheres do rei Salomo.

A importncia do papel da sensibilidade ao prazer e dor nitidamente se manifesta, quando procuramos imaginar o que poderia ser a existncia de um desses puros espritos, tais como os sectrios de muitas religies os supem.

Desprovidos de sentidos e, portanto, de sensaes e de sentimentos, eles permaneceriam indiferentes ao prazer e dor e no conheceriam nenhum dos nossos mveis de ao. Os mais angustiosos sofrimentos de indivduos outrora queridos por eles no os poderiam comover. No teriam, pois, nenhuma necessidade de comunicar com eles. No se concebe sequer a existncia de tais seres.

3. O desejo como conseqncia do prazer e da dor O prazer e a dor suscitam o desejo. Desejo de alcanar o prazer e de evitar a dor. O desejo o mvel principal da nossa vontade e, portanto, dos nossos atos. Do plipo aos homens, todos os seres so movidos pelo desejo.

Inspira a vontade, que no pode existir sem ele, e depende da sua intensidade. O desejo fraco suscita, naturalmente, uma vontade fraca.

Cumpre, no entanto, no confundir vontade e desejo, como fizeram muitos filsofos, tais como Condillac e Schopenhauer. Tudo quanto querido , evidentemente, desejado; mas desejamos muitas coisas que, sabemos, no podamos querer.

A vontade traduz deliberao, determinao e execuo, estados de conscincia que no se observam no desejo.

O desejo estabelece a escala dos nossos valores, varivel, alis, com o tempo e as raas. O ideal de cada povo a frmula do seu desejo.

Um desejo que invade todo o entendimento, transforma a nossa concepo das coisas, as nossas opinies e as nossas crenas. Spinoza muito bem disse julgamos uma coisa boa, no por julgamento, mas porque a desejamos.

No existindo em si mesmo o valor das coisas, ele apenas determinado pelo desejo e proporcionalmente intensidade desse desejo.A varivel apreciao dos objetos de arte fornece desse fato uma prova diria.

Origem de todo o esforo, soberano senhor dos homens, gerador dos deuses, criador de todo o ideal, o desejo no figura, contudo, nos Pantees antigos. Somente o grande reformador Buda compreendeu que o desejo o verdadeiro dominador das coisas, o fator da atividade dos seres. Para libertar a humanidade das suas misrias e conduzi-la ao perptuo repouso ele tentou suprimir esse grande mvel das nossas aes. A sua lei submeteu milhes de homens, mas no subjugou o desejo.

que, de fato, o homem no poderia viver sem ele. O mundo das idias puras de Plato poderia possuir a serena beleza que ele sonhava, conter eternos modelos das coisas, se no fosse vivificado pelo sopro do desejo, no nos interessaria.

4. O prazer em perspectiva: a esperana A esperana filha do desejo, mas no o desejo. Constitui uma aptido mental, que nos fez crer na realizao de um desejo. Podemos desejar uma coisa sem que a esperemos. Toda gente deseja a fortuna, muito poucos a esperam. Os sbios desejam descobrir a causa primitiva dos fenmenos; eles no tm nenhuma esperana de consegui-lo.

O desejo aproxima-se algumas vezes da esperana, a ponto de confundir-se com ela. Na roleta, eu desejo e espero ganhar.

A esperana uma forma de prazer em expectativa que, na sua atual fase de espera, constitui uma satisfao freqentemente maior do que o contentamento produzido pela sua realizao.

A razo evidente. O prazer realizado limita-se em quantidade e em durao, ao passo que nada limita a grandeza do sonho criado pela esperana. A fora e o encanto da esperana consistem em conter todas as possibilidades de prazer.

Ela constitui uma espcie de vara mgica que transforma tudo. Os reformadores nunca fizeram mais do que substituir uma esperana por outra.

5. O regulador do prazer e da dor: o hbito O hbito o grande regulador da sensibilidade; ele determina a continuidade dos nossos atos, embota o prazer e a dor e nos familiariza com as fadigas e com os mais penosos esforos. O mineiro habitua-se to bem sua dura existncia que dela se recorda saudoso quando a idade o obriga a abandon-la e o condena a viver ao sol.

O hbito, regulador da vida habitual, tambm o verdadeiro sustentculo da vida social. Pode-se compar-lo inrcia, que se ope, em mecnica, s variaes de movimento. A dificuldade para um povo consiste, primeiramente, em criar hbitos sociais, depois em no permanecer muito tempo neles. Quando o jugo dos hbitos pesou muito tempo num povo, ele s se liberta desse jugo por meio de revolues violentas. O repouso na adaptao, que o hbito consiste, no se deve prolongar. Povos envelhecidos, civilizaes adiantadas, indivduos idosos tendem a sofrer demasiado o jugo do costume, isto , do hbito.

Seria intil dissertar longamente sobre o seu papel, que mereceu a ateno de todos os filsofos e se tornou um dogma da sabedoria popular.Que so os nossos princpios naturais, diz Pascal, seno os nossos princpios acostumados. E nas crianas, os princpios que elas receberam dos costumes dos pais... Um costume diferente dar outros princpios naturais. O costume uma segunda natureza, que destri a primeira. O costume explica os nossos atos mais fortes e mais violentos; torna autmato o homem, cujo esprito involuntariamente acarretado... Foi o costume que fez tantos cristos; foi ele que fez os turcos, os pagos, os oficiais, os soldados, etc. Enfim, cumpre recorrer a ele, quando o esprito consegue ver o que a verdade... preciso adquirir uma crena mais fcil, que a do hbito, o qual, sem violncia, sem arte, sem argumento, nos fez admitir as coisas e conduz todas as nossas foras a essa crena, de modo que a nossa alma a naturalmente imerge. Quando s se cr pela fora da convico... no bastante.

A existncia de um indivduo ou de um povo ficaria instantaneamente paralisada se, por um poder sobrenatural, ele se visse subtrado influncia do hbito. ele que diariamente nos dita o que devemos dizer, fazer e pensar.6. O prazer e a dor considerados como as certezas psicolgicas fundamentais Os filsofos tm tentado abalar todas as nossas certezas e mostrar que do mundo conhecemos apenas aparncias. Possuiremos sempre, porm, duas grandes certezas, que nada poderia destruir: o prazer e a dor. Toda a nossa atividade deriva delas. As recompensas sociais, os parasos e os infernos criados pelos cdigos religiosos ou civis baseiam-se na ao dessas certezas, cuja evidente realidade no pode ser contestada.

Desde que a vida se manifesta, surgem o prazer e a dor. No o pensamento, mas a sensibilidade, que nos revela o nosso eu. Se dissesse: Sinto, logo existo ao invs de: Penso, logo existo, Descartes estaria muito perto da verdade.

Assim modificada, a sua frmula aplica-se a todos os seres e no a uma frao apenas da humanidade.

Dessas duas certezas poder-se-ia deduzir a completa filosofia prtica da vida. Fornecem uma resposta segura eterna pergunta to repetida desde o Eclesiastes: por que tanto trabalho e tantos esforos, j que a morte nos espera e o nosso planeta se resfriar um dia?

Por que? Porque o presente ignora o futuro e no presente a Natureza nos condena a procurar o prazer e evitar a dor.

O operrio, curvado sob o peso do trabalho, a irm de caridade, a quem no repugna nenhuma chaga, o missionrio torturado pelos selvagens, o sbio que procura a soluo de um problema, o obscuro micrbio que se agita no fundo de uma gota d'gua, todos obedecem aos mesmos estimulantes de atividade: o atrativo do prazer, o receio da dor.

Nenhuma atividade tem outro mvel. No poderamos mesmo imaginar mveis diferentes desses. S os nomes podem variar. Prazeres estticos, guerreiros, religiosos, sexuais, etc., so formas diversas do mesmo aspecto fisiolgico A atividade dos seres se dissiparia se desaparecessem as duas certezas que so os seus grandes mveis: o prazer e a dor.

Captulo II As Variaes da Sensibilidade como Elementos da Vida Individual e Social1. Limites das variaes da sensibilidade ao prazer e dor

A introduo do quantitativo no estudo dos fenmenos fsicos a primeira fase dos seus progressos. Enquanto no tnhamos termmetro para medir a temperatura, era preciso que nos contentssemos com apreciaes individuais, variveis de uma pessoa para outra.

Os progressos realizados no domnio do racional ainda no o foram no do afetivo. Ignoramos o termmetro capaz de medir exatamente as variaes da sensibilidade ou a grandeza de um sentimento.

Parece, entretanto, a despeito das aparncias, que a nossa sensibilidade ao prazer e dor pode oscilar apenas dentro de limites bastante estreitos. Essa assero no , alis, uma simples hiptese destituda de provas.

Ela se apia, no s em observaes psicolgicas fracamente contestveis, como tambm nas experincias do fisiologista. Estas ltimas mostraram que as sensaes no podem aumentar indefinidamente, e possuem um limite superior, acima do qual o acrscimo de uma excitao permanece sem efeito. H tambm um limite inferior, abaixo do qual a excitao j no se produz.

No campo em que as excitaes so perceptveis, a sensao no cresce proporcionalmente intensidade da excitao que a provoca. Para que a sensao aumente em progresso aritmtica, cumpre que a excitao cresa em proporo geomtrica.

Segundo Techner, a sensao cresce segundo o logaritmo da excitao. Assim, para dobrar a sensao produzida, por uma excitao, a de um instrumento de msica, por exemplo, seria necessrio decuplar o nmero dos instrumentos; para triplic-la, dever-se-ia centuplicar esse nmero.

Suponhamos uma orquestra de dez executantes, que toquem o mesmo instrumento. Para duplicar a intensidade sonora, ser preciso elevar a cem (algarismo cujo logaritmo 2) o nmero dos instrumentos. Para triplicar a mesma sensao, seria preciso elev-lo a mil (cujo logaritmo 3).

Aplicadas ao prazer e a dor, essas noes mostram que a excitao deve ser consideravelmente aumentada para desenvolver um pouco o efeito produzido.

Os algarismos precedentes no poderiam, evidentemente, apresentar um carter absoluto; indicam apenas o sentido geral do fenmeno. Num sentimento entram elementos muito mais complexos do que numa sensao. O nosso nico objetivo foi mostrar quanto limitada a extenso das oscilaes possveis da nossa sensibilidade ao prazer e dor.

E como poderia ser de outro modo? Os organismos sofrem lentamente todas as adaptaes, porm so incapazes de suportar variaes sbitas. Possuem, por isso, agentes reguladores, destinados a evitar essas variaes. No estado normal, a temperatura do corpo s varia de alguns dcimos de grau, por mais intenso que seja o frio ou o calor exterior. Oscilaes que cheguem a 2 ou 3 graus apenas se observam em molstias graves e jamais se mantm muito tempo sem acarretar a morte. Cada organismo possui um nvel de equilbrio de que no se pode absolutamente afastar.

H tambm outra lei, a da no-acumulao das sensaes, que desempenha, na nossa vida sensitiva, um papel considervel, embora muitas vezes esquecido.

Sabe-se que certos corpos, tal como uma placa fotogrfica, gozam da propriedade de acumular as pequenas impresses sucessivas que nelas se refletem. Impresses fracas, mas suficientemente repetidas, produzem neles, ao cabo de algum tempo, o mesmo resultado que uma impresso forte, porm curta. A placa fotogrfica pode, com uma pose suficiente, reproduzir estrelas sempre invisveis vista desarmada, precisamente porque a retina no possui a propriedade de acumular as pequenas impresses.

O que se diz no tocante vista, igualmente se aplica s diversas formas da nossa sensibilidade. De um modo geral, comportando, no entanto, casos excepcionais, ela no pode acumular as impresses. Estas ltimas, disseminadas no tempo, no se adicionam.

Suponhamos, para fixar as idias, que um acidente de estrada de ferro faa perecer trezentas pessoas. A nossa sensibilidade se comover vivamente. As colunas dos jornais traro abundantes e terrveis pormenores. Os soberanos trocaro entre si telegramas de condolncias.

Imaginemos, ao contrrio, a morte de trezentas pessoas determinada por uma srie de pequenos acidentes sobrevividos no espao de um ano. No tendo a nossa sensibilidade acumulado as leves emoes produzidas por cada acidente, o efeito final ser aproximadamente nulo.

vantajoso que assim seja. Se o organismo se achasse constitudo de modo a acumular as pequenas dores, a vida tornar-se-ia logo insuportvel.

2. As oscilaes de sensibilidade individual e o seu papel na vida social Acabamos de ver que as variaes possveis da sensibilidade no tm grande extenso nem durao prolongada. Mas a observao quotidiana mostra que, nesses limites restritos, ela oscila perpetuamente. Sade, molstia, meio, acontecimento, etc., incessantemente a modificam. Ela pode ser comparada ao lago cuja superfcie um vento leve encrespa, sem provocar vagas muito elevadas.

Essas variaes constantes explicam porque os nossos gostos, as nossas idias e as nossas opinies freqentemente mudam. Elas se exageram ainda, quando os costumes e as crenas ancestrais, que limitam as oscilaes da sensibilidade, tendem a dissipar-se. A instabilidade torna-se, ento, a regra.

Certos fatores das opinies podem igualmente limitar as oscilaes da sensibilidade. Tal o contgio mental, criador de maneiras susceptveis de estabilizar um pouco a nossa mobilidade. As sensibilidades coletivas, momentaneamente fixas, traduzem-se, ento, em obras diversas, que so o espelho de uma poca.

Muito apurada por certas excitaes repetidas, a sensibilidade acaba por adquirir um pouco o carter intelectual. O esprito completa o que devia outrora precisar de uma acumulao de pormenores. Comparai, por exemplo, os pesados desenhos de Daumier com esses sbrios esboos modernos, em que s se guardou o trao saliente dos personagens, deixando vista o cuidado de complet-los. Do mesmo modo, em literatura, as longas descries de paisagens so hoje substitudas por algumas linhas breves, porm evocadoras.

Apurando-se, a sensibilidade se embota tambm. A msica simples de Lulli, que encantava nossos pais, nos enfastia. As operaes de h cinqenta anos nos parecem, na maioria, muito envelhecidas. A harmonia tem cada vez mais dominado a melodia, e agora necessrio, para excitar sensibilidades fatigadas, o emprego de certas dissonncias que os antigos compositores teriam considerado como erros.

S as obras de uma poca, sobretudo, artsticas e literrias, permitem conhecer a sensibilidade dessa poca e as suas variaes.

precisamente porque elas so a verdadeira expresso da sensibilidade de uma poca que as obras de arte so facilmente datadas. Pela mesma razo, so muito mais instrutivas do que metdicos livros de histria. O historiador julga o passado com a sua sensibilidade moderna. A sua interpretao, forosamente falsa, pouco nos ensina. O menor conto, romance, quadro, monumento da poca considerada, encerra um ensinamento mais exato e interessante.

As sensibilidades no se transportam no espao nem no tempo. Uma obra arquitetnica formada de uma mescla de elementos de pocas afastadas ou procedentes de raas diversas nos causar, necessariamente, m impresso, porque se origina de sensibilidades dissemelhantes da nossa.

Se, em virtude da evoluo da nossa espcie, a nossa sensibilidade se transformasse, todas as obras do passado, as que so mais admiradas hoje: o Partenon, as catedrais gticas, os grandes poemas, as pinturas clebres, seriam consideradas como produes indignas de atrair a ateno.

No se trata de uma hiptese v. Desde o reinado de Luis XIII at ao comeo do ltimo sculo, no foi o gtico das maldies dos escritores e dos artistas, principalmente de Jean Jacques Rousseau?

No seria mesmo necessria uma longa evoluo para que os povos desdenhassem o que hoje admiram. Bastaria que a educao persistisse na sua tendncia atual especialista e tcnica, e continuasse a rpida ascenso ao poder das multides. Todas as formas da arte representam para elas apenas um luxo desprezvel. A Comuna, expresso bastante fiel da alma popular, no hesitou em incendiar os mais belos monumentos de Paris, como a Municipalidade e as Thulherias. Unicamente por acaso o Louvre, com as suas colees, escapou a esse vandalismo.

Qualquer que seja o seu futuro, as obras do passado subsistem ainda e s elas nos fazem conhecer a sua verdadeira histria.

Sem esses elementos de informao, fornecidos pela literatura e pela arte, a sensibilidade de uma poca permaneceria to ignorada quanto a dos habitantes de Jpiter. Poderamos determinar somente a sua intelectualidade, pelo estudo dos livros de cincia. Estes ltimos so, com efeito, em geral, independentes da sensibilidade dos seus autores. Um romance sempre datado; um tratado de geometria pura no o . A velha geometria de Euclides, ensinada ainda, poderia ser assinada por um matemtico moderno. O seu autor redigiu-a, de fato, com elementos meramente racionais e em que a sua sensibilidade no interveio absolutamente. A inteligncia sabe por em evidncia verdades gerais e eternas. A sensibilidade cria verdades particulares e momentneas.

3. As variaes de ideal e de crenas criadas pelas oscilaes da sensibilidade coletiva Qualquer que seja a raa ou o tempo considerado, o objetivo constante da atividade humana foi sempre a pesquisa da felicidade, a qual consiste, em ltima anlise, ainda o repito, em procurar o prazer e evitar a dor.

Sobre essa concepo fundamental os homens estiveram constantemente de acordo; as suas divergncias se aplicam somente idia que se concebe da felicidade e aos meios de conquist-la.

As suas formas so diversas, mas o termo que se tem em mira idntico. Sonhos de amor, de riqueza, de ambio ou de f so os possantes fatores de iluses que a natureza emprega para conduzir-nos aos seus fins.

Realizao de um desejo presente ou simples esperana, a felicidade sempre um fenmeno subjetivo. Desde que os contornos do sonho se implantam um pouco no esprito, com ardor ns tentamos obt-lo.

Mudar a concepo da felicidade de um indivduo ou de um povo, isto , o seu ideal, mudar, ao mesmo tempo, a sua concepo da vida e, por conseguinte, o seu destino. A histria no mais do que a narrao dos esforos empregados pelo homem para edificar um ideal e destru-lo em seguida, quando, tendo-o atingido, descobre a sua fragilidade.

A esperana de felicidade concebida por cada povo e as crenas que constituem a sua frmula representam sempre o fator da sua pujana. O seu ideal nasce, cresce e morre com ele, e, qualquer que seja, dota de grande fora o povo que o aceita. Essa fora tal que o ideal atua, mesmo quando promete pouca coisa. Compreende-se o mrtir, para quem a fogueira simbolizava a porta do cu; mas, que proveito podiam retirar das suas cavalgadas atravs do mundo um legionrio romano e um soldado de Napoleo? A morte ou ferimentos. O seu ideal coletivo era, entretanto, bastante forte para velar todos os sofrimentos. Considerarem-se heris dessas grandes epopias era para eles um ideal de felicidade, um paraso, presente divinamente encantador. Uma nao sem ideal desaparece rapidamente da histria.

Captulo III As Esferas das Atividades Vitais e Psicolgicas: a vida Consciente e a Vida Inconsciente1. As esferas das atividades vitais e psicolgicas Sendo o objetivo desta obra estudar a formao das opinies e das crenas, necessrio conhecer, primeiramente, o terreno no qual elas podem germinar. Esse conhecimento tanto mais til quanto com os progressos da cincia atual; as explicaes dos antigos livros de psicologia se tornaram muito ilusrias.

Os fenmenos manifestados pelos seres vivos se podem reduzir a vrias categorias sobrepostas hoje, mas que, lentamente, se sucederam no tempo: 1. fenmenos vitais (nutrio, respirao, etc.), 2. fenmenos afetivos (sentimentos, paixes, etc.); 3o. fenmenos intelectuais (reflexo, raciocnio, etc.). Estes ltimos surgiram muito tarde na histria da humanidade.

A vida orgnica, a vida afetiva e a vida intelectual constituem, assim, trs esferas de atividade muito distintas; mas, embora separadas umas das outras, incessantemente atuam umas nas outras. impossvel, por esse motivo, compreender as ltimas sem estudar a primeira. , portanto, errneo deixar de lado o exame dos fenmenos vitais como fazem os psiclogos, que o abandonam aos fisiologistas.

Mostraremos o seu papel fundamental quando estudarmos em outra parte desta obra os fenmenos regidos pela lgica biolgica. S ser tratada no presente captulo esta fase primitiva da vida fsica: a atividade inconsciente do esprito. A sua importncia preponderante, pois nesse terreno se acham as razes das nossas opinies e da nossa conduta.

2. A psicologia inconsciente e as fontes da intuio Os sentimentos s entram na conscincia aps uma elaborao automtica praticada nessa obscurssima zona do inconsciente, qualificada hoje de subconsciente e cuja explorao apenas se acha iniciada.

Sendo os estados intelectuais os nicos facilmente acessveis, a psicologia, ao comeo, no conheceu outros. Por vias indiretas, porm bastante seguras, a cincia moderna provou que os fenmenos inconscientes desempenham na vida mental um papel muitas vezes mais importante que os fenmenos intelectuais. Os primeiros so o substratum dos segundos. Pode-se comparar a vida intelectual a essas ilhotas, vrtices de imensas montanhas submarinas invisveis. As imensas montanhas representam o inconsciente. O inconsciente em grande parte um resduo ancestral. A sua fora devida circunstncia de ser o inconsciente a herana de uma longa srie de geraes, a que cada uma juntou alguma coisa.

O seu papel, outrora ignorado, tornou-se to preponderante hoje que certos filsofos, principalmente W. James e Bergson, nele procuraram a explicao da maior parte dos fenmenos psicolgicos.

Sob a influncia desses filsofos, originou-se um movimento antiintelectualista muito acentuado. Os adeptos da nova escola acabam mesmo por esquecer um pouco que s a lgica racional permite edificar os progressos cientficos e industriais, geradores das nossas civilizaes.

As pesquisas que chegaram a dotar de tal importncia o subconsciente no derivam de especulaes puras, porm de certas experincias, praticadas, alis, num intuito alheio idia de sustentar argumentaes filosficas. Mencionarei, entre elas, os estudos atinentes ao hipnotismo, desagregao mrbida das personalidades, ao sonambulismo, aos atos dos mdiuns, etc. O mecanismo dos efeitos observados permanece, alis, desconhecido. Em matria de psicologia inconsciente, tanto como na de psicologia consciente, cumpre as mais das vezes limitar-se a simples comprovaes.

O inconsciente nos guia na imensa maioria dos atos da vida quotidiana. nosso soberano, mas um soberano que se pode tornar submisso quando devidamente orientado. A prtica de um ofcio ou de uma arte facilmente se exerce, desde que os dirija o inconsciente, educado de um modo satisfatrio. Uma moral slida o inconsciente bem educado.

O inconsciente representa um vasto depsito de estados afetivos e intelectuais, que constitui um capital fsico suscetvel de enfraquecer-se, mas que nunca inteiramente se dissipa.

Se mesmo levssemos em conta a observao de certos estados patolgicos, poder-se-ia dizer que os elementos introduzidos no domnio do inconsciente a se mantm muito tempo, seno sempre. , pelo menos, apenas desse modo que se explicam certos fenmenos observados em mdiuns ou em doentes que se exprimem em lnguas jamais aprendidas, mas que ouviram falar na sua mocidade.

A intuio, origem das inspiraes que, num nvel excepcional, constituem o gnio, surge de uma maneira integral de um inconsciente preparado pela hereditariedade e por uma cultura conveniente. As inspiraes do grande capito que alcana vitrias e domina o destino, as do pujante artista que nos revela o esplendor das cousas, do sbio ilustre que penetra os seus mistrios, aparecem sob a forma de manifestaes espontneas, mas o inconsciente de que elas nascem havia lentamente elaborado a sua florescncia.

Conquanto eles possam ser provados por certas representaes mentais de origem puramente intelectual, os sentimentos se formam no domnio do inconsciente. A sua lenta elaborao pode terminar por manifestaes sbitas, que rebentam como um raio, como acontece, por exemplo, com as converses religiosas ou polticas.

Os sentimentos elaborados no inconsciente no chegam sempre conscincia, ou ai chegam somente depois de diversas excitaes; por isso que, por vezes, ignoramos os nossos sentimentos reais no tocante a seres e coisas que nos cercam. Muitas vezes mesmo os sentimentos e, por conseguinte, as opinies e as crenas que deles resultam, diferem inteiramente daqueles que supnhamos. O amor ou o dio existem algumas vezes em nossa alma antes que sejam suspeitados. Revelam-se somente quando somos forados a agir. A ao constitui, com efeito, o nico critrio indiscutvel dos sentimentos. Agir aprender a conhecer a si mesmo. As opinies formuladas so palavras vs desde que no sejam sancionadas pelo ato.

3. As formas do inconsciente. O inconsciente intelectual e o inconsciente afetivo Pode-se, creio eu, estabelecer trs categorias distintas no domnio da atividade inconsciente. Em primeiro lugar, acha-se o inconsciente orgnico, que rege todos es fenmenos da vida: respirao, circulao, etc. Estabilizado desde muito tempo mediante acumulaes hereditrias, ele funciona com uma regularidade admirvel e completamente a despeito da nossa vontade, dirige a vida e faz-nos passar da infncia velhice e morte, sem que possamos compreender a sua ao.

Acima do inconsciente orgnico vemos o inconsciente afetivo. de formao mais recente, um pouco menos estvel, conquanto ainda o seja muito. Por isso, quando podemos mudar o assunto no qual se exercem os nossos sentimentos, a nossa ao nele influi de maneira muito fraca. No alto dessa escala acha-se o inconsciente intelectual, que muito tarde surgiu na histria do mundo e no possui profundas razes ancestrais. Ao passo que o inconsciente orgnico e o afetivo acabaram por criar instintos transmitidos pela hereditariedade, o inconsciente intelectual s se manifesta ainda sob a forma de predisposies e de tendncias, e a educao deve complet-lo em cada gerao.

A educao influi grandemente no inconsciente intelectual, precisamente porque ele menos fixo do que as outras formas do inconsciente. Ela exerce, ao contrrio, uma influncia diminuta nos sentimentos, que so os elementos fundamentais do nosso carter, fixos desde muito tempo. O inconsciente afetivo , freqentemente, um dominador imperioso, indiferente s decises da razo. por isso que tantos homens, muito sensatos nos seus escritos e nos seus discursos, tornam-se, na sua maneira de proceder, simples autmatos, dizendo o que no queriam dizer e fazendo o que no queriam fazer.

Resulta das precedentes explicaes que a inteligncia no , como durante muito tempo se sups, o mais importante fator da vida mental. O inconsciente elabora, e os resultados dessa elaborao chegam, inteiramente formados, inteligncia, como as palavras que se apresentam aos lbios do orador.

A grande fora do inconsciente consiste em indicar com particular preciso tudo o que ele executa. Deve-se, assim, confiar-lhe o maior nmero possvel de funes. A aprendizagem de um ofcio ou de uma arte s completa quando repetidos exerccios encarregaram o inconsciente do trabalho que cumpre executar. A educao, j disse em outro livro, a arte de fazer passar o consciente para o inconsciente.

Os nossos limites de ao no inconsciente no so, porm, muitos extensos. A biologia moderna baniu, h muito tempo, e com razo, a finalidade do universo; os fatos ocorrem, no entanto, como se ela dominasse o seu encadeamento. Todas as nossas explicaes racionais deixam a natureza repleta de manifestaes impenetrveis. A julgar pelos seus resultados, poderia parecer que o inconsciente forma moderna da finalidade abriga gnios sutis, desejosos de cegar-nos, fazendo-nos sacrificar, incessantemente, os nossos interesses em favor da espcie. Os gnios da finalidade inconsciente so, sem dvida, simples necessidades selecionadas, que o tempo fixou.

Qualquer que seja a razo, o inconsciente muitas vezes nos domina e sempre nos cega. No o lamentemos demasiado, porquanto uma clara viso da sorte futura tornaria a existncia muito triste. O boi no comeria tranqilamente a erva do caminho que o conduz ao matadouro, e os entes, na sua maioria, estremeceriam de horror perante o seu destino.

Captulo IV o Eu Afetivo e o eu Intelectual1. O eu afetivo e o eu intelectual

Pesquisando os motivos determinantes das nossas opinies e das nossas crenas, veremos que so regidas por formas de lgica muito distintas, conquanto confundidas at aqui. Antes de encetar o seu exame, insistirei numa diviso fundamental dos elementos psquicos que dominam todas as outras. Eles se apresentam, com efeito, sob duas formas muito diferentes: os elementos afetivos e os elementos intelectuais. Essa primeira classificao facilitar a compreenso dos captulos que forem consagrados s diversas formas de lgica.

A distino entre o sentimento e a razo s tarde se pde estabelecer na Histria. Os nossos remotos antepassados sentiam vivamente, agiam muito, mas raciocinavam muito pouco. Quando, tendo chegado a uma fase mais adiantada da sua evoluo, o homem tentou filosofar, a diferena entre os sentimentos e a razo se revelou ntida.

Mas s em poca muito recente tornou-se manifesto que os sentimentos, que supnhamos regidos pelos nossos caprichos, obedeciam a uma lgica racional.

A ignorncia dessa distino uma das origens dos erros mais freqentes nos nossos julgamentos. Legies de polticos quiseram assentar em raciocnios o que s se pode basear em sentimentos.

Historiadores igualmente pouco esclarecidos supuseram que podiam ser explicados pela lgica intelectual fatos completamente alheios a sua influncia. A gnese dos mais importantes fatores da Histria, tais como o nascimento e a propagao das crenas, permanece, por esse motivo, muito pouco conhecida.

Ilustres filsofos foram vtimas da mesma confuso entre a lgica afetiva e a lgica racional. Kant pretendia edificar a moral sobre a razo. Ora, entre as duas diversas origens, a razo quase nunca figura.

Na sua maioria, os psiclogos persistem ainda nos mesmos erros. Ribot justamente observa, quando fala dos incurveis preconceitos intelectualistas dos psiclogos, que querem submeter tudo inteligncia e tudo explicar por ela. Tese insustentvel, porquanto se, fisiologicamente, a vida vegetativa precede a vida animal, que nela se apia, a vida afetiva precede, psicologicamente, a vida intelectual, que se apia nela.

Era necessrio, para conseguir o objetivo desta obra, insistir muito nessa diferena entre o afetivo e o racional. Negligencia-la seria condenar-se a ignorar sempre a gnese das opinies e das crenas. , entretanto, uma tarefa difcil delimitar nitidamente a separao do racional e do afetivo. As classificaes indispensveis no estudo das cincias forosamente estabelecem, no encadeamento das coisas, lacunas que a natureza ignora, porm qualquer cincia seria impossvel se no tivssemos aprendido a criar uma parte descontnua no continuo.

A distino entre o afetivo e o intelectual pertence a um perodo adiantado da evoluo dos seres. Tendo os fenmenos afetivos precedido os fenmenos intelectuais, provvel que os segundos se tenham destacado em primeiro lugar.

Os animais possuem sentimentos muitas vezes to desenvolvidos quanto os nossos, mas a sua inteligncia muito fraca. sobretudo pelo desenvolvimento da inteligncia que o homem se separa deles.

Os sentimentos pertencem a essa categoria de coisas conhecidas por todos, conquanto dificilmente definveis. S se pode, com efeito, interpret-las em termos intelectuais. A inteligncia serve para conhecer; os sentimentos, para sentir; ora, sentir e conhecer so manifestaes que uma mesma linguagem no poderia exprimir bastante precisa, mas a dos sentimentos ainda muito vaga.

O eu afetivo e o eu racional, conquanto atuem incessantemente um no outro, possuem uma existncia independente. O eu afetivo, evolvendo a despeito da nossa vontade e muitas vezes contra ns, torna a vida cheia de contradies. possvel algumas vezes refrear os nossos sentimentos, mas no os podemos despertar ou eliminar.

Assim, no temos razo quando censuramos algum por ter mudado. Essa censura subentende a idia muito falsa de que a inteligncia pode modificar um sentimento. Erro completo. Quando o amor, por exemplo, se torna indiferena ou antipatia, a inteligncia assiste a essa mudana, mas no ela que a causa. As razes que so imaginadas para explicar tais transformaes no tm relao alguma com os seus verdadeiros motivos. Ns os ignoramos.

Muitas vezes mesmo no conhecemos mais os verdadeiros sentimentos do que os mveis que os provocam. Freqentemente, diz Ribot, imagina-se sentir por uma pessoa uma dedicao profunda e slida (amor, amizade); a ausncia ou a necessidade de uma ruptura demonstra a real fragilidade dessa dedicao. Inversamente, a ausncia ou a ruptura nos revelam uma afeio profunda, que parecia tpida e prxima da indiferena.

, pois, impossvel, como justamente observa o mesmo autor, julgar com o eu intelectual a maneira de agir do eu afetivo. Posto que a vida afetiva e a vida intelectual sejam demasiado heterogneas para que uma se reduza outra, procedemos sempre sem levar em conta a diferena que separa os sentimentos da inteligncia.

Todo o nosso sistema de educao latina uma prova dessa assero. A persuaso de que o desenvolvimento da inteligncia pela instruo desenvolve tambm os sentimentos, cuja associao constitui o carter, um dos mais perigosos preconceitos da nossa Universidade. Os educadores ingleses sabem h muito tempo que a educao do carter no se faz por meio dos livros.

Sendo distintos o eu afetivo e o eu intelectual, no pode surpreender que uma inteligncia muito elevada coexista com um carter muito baixo (1). Mostrando sem dvida a inteligncia e a instruo que certos atos desonestos custam mais do que rendem, raramente se ver um homem instrudo praticar furtos vulgares; mas, se possui uma alma de larpio, ele a ter sempre, a despeito de todos os seus diplomas, e a utilizar em operaes to pouco morais, porm menos perigosas e que ofeream mais seguro lucro.

Visvel na maior parte dos indivduos, a distino entre o eu afetivo e o eu intelectual igualmente o entre certos povos. Mme de Stael observava que entre os alemes o sentimento e a inteligncia no tm aparentemente relao alguma; uma no pode admitir limites, a outra se submete a todos os jugos.

Nas coletividades transitrias, a mesma distino entre o afetivo e o intelectual ainda mais facilmente observvel. Os elementos que elas pem em comum e que ditam os seus atos so os sentimentos e nunca a inteligncia. Em outra obra dei as razes disso. Bastar lembrar aqui que a inteligncia, variando consideravelmente de um assunto para outro e, no sendo contagiosa como os sentimentos, nunca pode revestir uma forma coletiva. Os indivduos de uma mesma raa possuem, ao contrrio, certos sentimentos comuns, que facilmente se fundem quando se acham grupados.

O eu afetivo constitui o elemento fundamental da personalidade. Mui lentamente elaborado por aquisies ancestrais, ele evolve nos indivduos e nos povos muito menos depressa que a inteligncia.

primeira vista, essa tese parece contrariada pela histria. Dir-se-ia que, em certos momentos, surgem sentimentos novos, muito diferentes dos que foram anteriormente observados. Belicosa numa poca, uma nao se revela pacfica mais tarde. A nsia de igualdade sucede aceitao da desigualdade. O ceticismo substitui a f ardente. Numerosos so os exemplos do mesmo gnero.

A sua anlise mostra que essas criaes de sentimentos novos so simples aparncias. Na realidade, existiam, sem se manifestar; as variaes de meios ou as circunstncias apenas modificaram o seu equilbrio. Um sentimento primeiramente refreado torna-se preponderante numa poca e domina de maneira mais ou menos durvel os outros estados afetivos. O homem em sociedade v-se certamente forado a submeter os seus sentimentos s sucessivas necessidades que lhe so impostas pelas circunstncias e, sobretudo, pelo ambiente social. Em prximo captulo daremos exemplos dessas transformaes aparentes.

Dir-se-ia que, por vezes, os sentimentos mudam ao passo que apenas se aplicaram a assuntos diferentes. A esperana mstica, que leva o operrio moderno s tavernas fumarentas onde apstolos de um evangelho novo lhe prometem um paraso prximo, o mesmo sentimento que conduzia seus pais s catedrais antigas onde, atrs dos vapores do incenso, se abriam as portas de ouro de luminosas regies repletas de eterna ventura.2. As diversas manifestaes da vida afetiva: emoes, sentimentos, paixes As manifestaes da vida afetiva so indiferentemente designadas pelos autores sob os nomes de emoes ou de sentimentos. Creio que mais cmodo para a sua descrio dividi-las em trs classes: emoes, sentimentos, paixes.

A emoo um sentimento espontneo, mais ou menos efmero. Nasce de um fenmeno sbito: acidente, anncio de uma catstrofe, ameaa, injria, etc. A clera, o medo, o terror so emoes.

O sentimento representa um estado afetivo durvel, como a bondade, a benevolncia, etc.

A paixo constituda por sentimentos que adquirem grande intensidade e podem momentaneamente anular outros: dio, amor, etc.

Todos esses estados afetivos correspondem a variaes fisiolgicas do nosso organismo. Ns conhecemos apenas certos efeitos gerais: rubor das faces, circulao alterada, etc.

Uma modificao fsica ou qumica das clulas nervosas e os sentimentos que ela provoca representam uma relao de que somente os ltimos termos so conhecidos. A transformao em sentimento ou em pensamento de um processo qumico orgnico agora completamente inexplicvel.

Os sentimentos e as emoes variam conforme o estado fisiolgico da pessoa ou segundo a influncia de diversos excitantes: caf, lcool, etc.

O sentimento mais simples sempre muito complexo; desde, porm, que se torna irredutvel a outro pela anlise, devemos, para facilidade da linguagem, trat-lo como se fosse simples. Tambm o qumico denomina corpos simples aqueles que ele no sabe decompor.

Os psiclogos referem-se, por vezes, a sentimentos intelectuais. Esse termo, diz Ribot, designa estados afetivos agradveis ou mistos, que acompanham o exerccio das operaes da inteligncia.

Eu no poderia admitir essa teoria, que confunde uma causa com o seu efeito. Um sentimento pode ser produzido por influncias to diversas quanto a ao de um alimento agradvel ou a de uma descoberta cientfica, mas resta sempre um sentimento. Quando muito poder-se-ia dizer que as nossas idias tm um equivalente emocional. Os prprios algarismos teriam um, como justamente observa Bergson: Os negociantes diz ele, bem o sabem, ao invs de indicar o preo de um objeto por um nmero redondo de francos, marcaro o algarismo imediatamente inferior, ao qual ajuntaro, em seguida, um nmero suficiente de cntimos.

O sentimento que se tornou preponderante e persistente toma o nome de paixo, como j dissemos. Os psiclogos no conseguiram ainda definir nem classificar as paixes. Spinoza admitia trs: o desejo, a alegria e a tristeza, das quais deduzia todas as outras. Descartes admitia seis primitivas: a admirao, o amor, o dio, o desejo, a alegria e a tristeza. So, evidentemente, meras formas de linguagem que nada podem explicar e que no resistem discusso.

Uma paixo pode surgir subitamente como um raio ou por uma lenta incubao. Constituda, ela domina toda a vida afetiva e tambm a vida intelectual. A razo geralmente nenhuma influncia exerce nela e coloca-se inteiramente ao seu servio.

Sabe-se a que ponto as paixes transformam as nossas opinies e as nossas crenas; em breve insistiremos nesse particular.

As grandes paixes so, alis, raras. Efmeras as mais das vezes, desaparecem logo que obtido o objeto desejado. Na paixo amorosa, essa regra assaz constante. Os amores clebres tiveram, em geral, por heris seres cujo encontro as circunstncias impediam.

As paixes que duravam muito tempo so paixes que se reavivam, como, por exemplo, os dios polticos.

A paixo desaparece na maioria dos casos por simples extino, mas, algumas vezes, por transformao; modificam-se, nesta hiptese, ao mesmo tempo, as opinies que ela suscitou.

O amor humano, observa Ribot, pode transformar-se em amor divino ou inversamente... O amor desiludido tem povoado os claustros... O fanatismo religioso pode-se mudar em fanatismo poltico e social. Incio de Loyola era um paladino que se colocou ao servio de Jesus Cristo.

Quando a inteligncia consegue exercer uma influncia inibidora na paixo, esta ltima, pode-se dizer, no era forte. A inteligncia s influi numa paixo quando a representao mental de um sentimento oposta a outro. A luta existe, ento, no entre representaes intelectuais e representaes afetivas, mas unicamente entre representaes afetivas postas em presena pela inteligncia.

3. A memria afetiva A memria dos sentimentos existe como a da inteligncia, mas num grau muito menor. O tempo muito depressa a enfraquece.

A inferioridade habitual da memria afetiva relativamente memria intelectual geralmente considervel. A persistncia desta ltima tal, quando exercida, que, durante sculos, obras volumosas como os vedas ou os cantos de Homero foram transmitidas de gerao em gerao somente com o auxlio da memria. Na poca em que os livros eram raros e custosos, por exemplo, no sculo XIII, os estudantes sabiam reter os cursos que lhes eram ditados. Atkinson assegura que se os clssicos chineses viessem a ser hoje destrudos, mais de um milho de chineses poderiam reconstitu-los de memria.

Se a memria dos sentimentos fosse to tenaz quanto a memria intelectual, a persistente lembrana das nossas dores tornaria a vida insuportvel.

teoria da diminuta durao da memria afetiva poder-se-ia objetar a persistncia dos dios de classes e de raas, perpetuadas durante longas geraes. Essa durao aparente no mais do que a incessante renovao determinada por causas sempre repetidas. Um dio que no se entretm, no subsiste. O dio dos alemes contra os franceses teria desaparecido desde muito tempo se os jornais germnicos no o atiassem incessantemente. A averso que os holandeses votam aos ingleses, que outrora lhes tomaram as colnias, persiste somente porque fatos numerosos, principalmente a guerra contra os colonos holandeses do Transval, vm reaviv-la, e porque a Holanda se julga sempre ameaada.

A aliana russa e o acordo franco-ingls mostram com que rapidez povos, outrora inimigos, esquecem os dios que no so alimentados. Quando a Inglaterra se tornou a nossa amiga, ns no nos achvamos longe da terrvel humilhao de Fachoda.

Essa noo essencial da pequena durao da memria afetiva explica muitos fenmenos da vida dos povos. Cumpre no contar com o seu reconhecimento, mas no se deve tambm recear em demasia o seu dio.

4. As associaes afetivas e intelectuais Estudaremos alguns elementos caractersticos da inteligncia no captulo desta obra consagrado ao exame da lgica racional. Ns os mencionamos aqui apenas para mostrar como se associam e influenciam os elementos racionais e afetivos. A inteligncia , sobretudo, caracterizada pela faculdade de refletir, da qual decorre a de raciocinar, isto , de perceber, na obedincia a certas regras, as relaes visveis ou ocultas das coisas.

Os encadeamentos da lgica afetiva tm, igualmente, as suas leis. Exercendo-se numa regio inconsciente, elas s chegam ao consciente sob a forma de resultados.

Compondo-se a nossa vida fsica de uma parte afetiva e de uma parte intelectual, como atuam essas duas esferas uma na outra?

As nossas representaes mentais podem ser de ordem afetiva ou de ordem intelectual. , por vezes, possvel imaginar sentimentos desaparecidos, porm muito menos do que as idias intelectuais.

Sabe-se que, segundo a teoria associacionista, as idias podem se associar de acordo com dois processos diferentes: 1. associaes por semelhana; 2 . associaes por contigidade.

Nas associaes por semelhana, a impresso atual reaviva as impresses anteriores anlogas. Nas associaes por contigidade, a impresso nova faz reviver outras, ressentidas ao mesmo tempo, mas sem analogia entre elas.

Os estados afetivos parecem associar-se entre eles como os estados intelectuais. Eles se associam, igualmente, a estes ltimos, de modo que o aparecimento de um pode evocar o dos outros.

A diferena entre as associaes afetivas e as associaes intelectuais caracterizada pela circunstncia de que as associaes afetivas, estabelecendo-se as mais das vezes de um modo inconsciente, escapam nossa ao.

Veremos, dentro em pouco, como no obstante a sua distino da natureza, o eu afetivo e o eu intelectual podem, graas s associaes que acabam de ser indicadas, exercer uma ao recproca.

Captulo V Os Elementos da Personalidade: Combinaes de Sentimentos que Formam o Carter1. Os elementos do carter O carter constitudo por um agregado de elementos afetivos aos quais se sobrepem, mesclando-se muito pouco a eles, alguns elementos intelectuais. So sempre os primeiros que do ao indivduo a sua verdadeira personalidade. Sendo numerosos os elementos afetivos, a sua associao formar os elementos variados: ativos, contemplativos apticos, sensitivos, etc. Cada um deles atuar diferentemente sob a ao dos mesmos excitantes.

Os agregados constitutivos do carter podem ser fortemente ou, ao contrrio, fracamente cimentados. Aos agregados slidos correspondem s individualidades fortes, que se mantm no obstante as variaes de meio e de circunstncias. Aos agregados mal cimentados correspondem s mentalidades moles, incertas e mutveis. Elas se modificariam a cada instante sob as influncias mais insignificantes se certas necessidades da vida quotidiana no as orientassem, como as margens de um rio canalizam seu curso.

Por mais estvel que seja o carter, permanece sempre ligado, no entanto, ao estado dos nossos rgos. Uma nevralgia, um reumatismo, uma perturbao intestinal, transformam o jbilo em melancolia, a bondade em maldade, a vontade em indolncia. Napoleo, doente em Warteloo, j no era Napoleo. Csar, dispptico, no teria, sem dvida, transposto o Rubicon.

As causas morais atuam assim no carter ou, pelo menos, na sua orientao. Depois de uma converso, o amor profano se tornar amor divino. O clerical fantico e perseguidor acabar, por vezes, como livre-pensador, igualmente fantico e no menos perseguidor.

Sendo as opinies e as crenas moldadas no nosso carter, seguem naturalmente as suas variaes.

No existe, como j mostrei, nenhum paralelismo entre o desenvolvimento do carter e o da inteligncia. O primeiro parece, ao contrrio, tender a enfraquecer-se, medida que a ltima se desenvolve. Grandes civilizaes foram destrudas por elementos intelectualmente inferiores, dotados de uma forte vontade.

Os espritos ousados e decididos ignoram os obstculos assinalados pela inteligncia. A razo no funda as grandes religies e os possantes imprios. Nas sociedades brilhantes pela inteligncia, mas de carter fraco, o poder acaba muitas vezes por cair entre as mos de homens inferiores e audaciosos. Admito facilmente, com Faguet, que a Europa, ao tornar-se pacifista, ser conquistada pelo ltimo povo que permaneceu militar e ficou relativamente feudal. Esse povo reduzir os outros escravido e far trabalhar em seu proveito pacifistas muito inteligentes, mas destitudos da energia que a vontade proporciona.

2. Os caracteres coletivos dos povos Cada povo possui caracteres coletivos, comuns maioria dos seus membros, o que faz das diversas naes verdadeiras espcies psicolgicas. Esses caracteres criam entre elas, como veremos adiante, opinies semelhantes sobre certo nmero de assuntos essenciais.

Os caracteres fundamentais de um povo no tm necessidade de ser numerosos. Bem fixos, eles traam o seu destino. Consideremos os ingleses, por exemplo. Os elementos que orientam a sua histria podem ser resumidos em poucas linhas: culto do esforo persistente, que impede de recuar diante do obstculo e de considerar uma desgraa como irremedivel; respeito religioso dos costumes e de tudo o que validado pelo tempo; necessidade de ao e desdm das vs especulaes do pensamento; desprezo da fraqueza, muito intensa compreenso do dever, vigilncia de si mesmo julgada como qualidade essencial e entretida cuidadosamente por especial educao.

Certos defeitos de carter, insuportveis nos indivduos, tornam-se virtudes quando so coletivos; por exemplo, o orgulho. Esse sentimento muito diferente da vaidade, simples necessidade de brilhar em pblico, que exige testemunhas, ao passo que o orgulho no reclama nenhum. O orgulho coletivo foi um dos grandes estimulantes da atividade dos povos. Graas a ele, o legionrio romano achava uma recompensa suficiente em fazer parte de um povo que dominava o universo. A inquebrantvel coragem dos japoneses, na sua ltima guerra, provinha de um orgulho idntico.

Esse sentimento , alm disso, uma fonte de progresso. Desde que uma nao se convence da sua superioridade, ela leva ao mximo os esforos necessrios para mant-la.

O carter, e no a inteligncia, diferencia os povos e estabelece entre eles simpatias ou antipatias irredutveis. A inteligncia da mesma espcie para todos. O carter oferece, ao contrrio, grandes dissemelhanas. Povos distintos diversamente impressionados pelas mesmas coisas procedero, naturalmente, de maneiras diferentes em circunstncias que paream anlogas. Quer se trate, alis, de povos ou de indivduos, os homens so sempre mais divididos pelas oposies do carter do que pelas divergncias dos seus interesses ou da sua inteligncia.

3. Evoluo dos elementos do carter Os sentimentos fundamentais que formam a trama do carter evolvem lentamente no decurso dos tempos, como prova a persistncia dos caracteres nacionais. Os agregados psicolgicos que os constituem so to estveis quanto os agregados anatmicos.

Mas, em torno dos caracteres fundamentais, acham-se, como para todas as espcies vivas, caracteres secundrios, que podem variar conforme o momento, o meio, etc.

Mudam principalmente observei-o no precedente captulo os assuntos nos quais os sentimentos se exercem. O amor da famlia, depois da tribo, da cidade e, enfim, da ptria so adaptaes de um sentimento idntico a agrupamentos diferentes, e no a criao de sentimentos novos. O internacionalismo e o pacifismo representam as ltimas extenses desse mesmo sentimento.

H apenas um sculo, o patriotismo alemo era desconhecido, a Alemanha se achava dividida em provncias rivais. Se o pangermanismo atual constitui uma virtude, essa virtude unicamente a extenso de sentimentos antigos a categorias novas de indivduos.

Os estados afetivos so coisas to estveis que a sua simples adaptao a novos assuntos exige imensos esforos. Para adquirir, por exemplo, um pouco muito pouco essa forma de altrusmo, qualificada de tolerncia, foi preciso, disse justamente o Sr. Lavisse, que morressem mrtires por milhares em suplcios e o sangue corresse em ondas nos campos de batalha.

um grande perigo para um povo querer criar, por meio da razo, sentimentos contrrios aos que a natureza lhe fixou na alma. Semelhante erro pesa sobre o povo desde a Revoluo. Ele provocou o desenvolvimento do socialismo, que pretende mudar o curso natural das coisas e refazer a alma das naes.

No oponhamos fixidez dos sentimentos as sbitas transformaes de personalidade observadas por vezes. Assim, a prodigalidade que se torna avareza, o amor transformado em dio, o fanatismo religioso em fanatismo irreligioso, etc. Essas transformaes constituem simplesmente a adaptao dos mesmos sentimentos a assuntos diferentes.

Muitas coisas diversas, por exemplo, as necessidades econmicas, podem tambm deslocar os sentimentos, sem que, por isso, eles mudem.

So poderosas essas influncias econmicas. A difuso da propriedade, por exemplo, tem como conseqncia a diminuio da natalidade, pois surge o egosmo familiar do proprietrio, pouco desejoso de ver divididos os seus bens. Se todos os cidados de um pas se tornassem proprietrios, a populao diminuiria provavelmente em enormes propores.

Os sentimentos que constituem o carter no podem sofrer uma mudana de orientao sem que a vida social seja perturbada. Guerras de religio, cruzadas revolues etc., resultam de transformaes idnticas.

E se, atualmente, o futuro se apresenta muito sombrio, porque os sentimentos das classes populares tendem a sofrer uma nova orientao. Sob o impulso das iluses socialistas, cada qual, do operrio ao professor, se tornou descontente da sua sorte e persuadido de que merece outro destino. Todo o trabalhador julga-se explorado pelas classes dirigentes e ambiciona apoderar-se das suas riquezas por meio de um golpe de fora. No domnio do afetivo, as iluses tm uma fora que as torna muito perigosa, porque a razo no as influencia.

Captulo VI A Desagregao do Carter e as Oscilaes da Personalidade1. Os equilbrios dos elementos constitutivos do carter

Acabamos de dizer que a estabilidade dos agregados que formam o carter to grande quanto a dos agregados anatmicos. Os primeiros podem, contudo, como os segundos, sofrer diversas perturbaes mrbidas e mesmo uma completa desagregao.

Esses fenmenos, que no pertencem exclusivamente ao domnio da patologia, exercem, na formao das opinies e das crenas, uma influncia considervel. A gnese de certos fatos histricos mais ou menos incompreensvel sem o conhecimento das transformaes que o carter pode acidentalmente sofrer.

Veremos, em outro captulo, que os elementos criadores das nossas opinies, das nossas crenas e dos nossos atos so comparveis a pesos colocados nos dois pratos de uma balana. O mais carregado sempre desce.

Na realidade, as coisas no ocorrem com tanta simplicidade. Os pesos, representados pelos motivos, podem se alterar sob a influncia de perturbaes diversas, modificando as combinaes que formam o carter. A nossa sensibilidade ento se altera, as nossas escalas de valores se deslocam, a orientao da vida torna-se diferente. renovada a personalidade.

Tais variaes se observam principalmente quando, intervindo uma mudana sbita no meio social, o equilbrio estabelecido entre os elementos afetivos e esse meio sofre uma perturbao considervel.

A noo de equilbrio entre o meio em que vivemos e os elementos que nos compem capital. Sem que seja absolutamente especial psicologia, ela domina a qumica, a fsica e a biologia. Um ente qualquer, matria bruta ou matria viva, resulta de certo estado de equilbrio entre ele e o seu meio. O primeiro no poderia mudar sem que logo se transformasse o segundo. Uma barra de ao rgida pode, sob a influncia de uma modificao conveniente de meio, tornar-se um leve vapor.

O grau de aptido dissoluo dos agregados fsicos, que formam o carter, depende da estabilidade desses ltimos, como tambm da importncia das mudanas de meio s quais eles so submetidos. Essa importncia variar, igualmente, de conformidade com as impresses anteriormente sofridas. As observaes feitas nos agregados anatmicos tambm se aplicam aos agregados psicolgicos. A diminuio de sensibilidade dos primeiros, no tocante influncia de certas aes exteriores por diversos processos, tem o nome, como se sabe, de imunizao. O futuro estudo da patologia dos caracteres compreender tambm o da sua imunizao.

O verdadeiro homem de Estado possui a arte, ainda misteriosa, de saber modificar, se for necessrio, o equilbrio dos elementos do carter nacional, fazendo predominar os elementos teis nas necessidades do momento.

2. As oscilaes da personalidade As consideraes precedentes tendem a mostrar que a nossa personalidade se pode tornar bastante variada. Depende, com efeito, como acabamos de ver, de dois fatores inseparveis: o prprio ser e o seu meio. Pretender que a nossa personalidade seja mvel e suscetvel de grandes mudanas , por vezes, noo um pouco contrria s idias tradicionais atinentes estabilidade do eu. A sua unidade foi durante muito tempo um dogma indiscutvel. Fatos numerosos vieram provar quanto era fictcia.

O nosso eu um total. Compe-se da adio de inumerveis eu celulares. Cada clula concorre para a unidade de um exrcito. A homogeneidade dos milhares de indivduos que o compem resulta somente de uma comunidade de ao que numerosas coisas podem destruir.

intil objetar que a personalidade dos seres parece, em geral, bastante estvel. Se ela nunca varia, com efeito, porque o meio social permanece mais ou menos constante. Se subitamente esse meio se modifica, como em tempo de revoluo, a personalidade de um mesmo indivduo se poder transformar inteiramente. Foi assim que se viram, durante o Terror, bons burgueses reputados pela sua brandura tornarem-se fanticos sanguinrios. Passada a tormenta e, por conseguinte, representando o antigo meio e o seu imprio, eles readquiriram sua personalidade pacifica. Desenvolvi, h muito tempo, essa teoria e mostrei que a vida dos personagens da Revoluo era incompreensvel sem ela.

De que elementos se compe o eu, cuja sntese constitui a nossa personalidade? A psicologia muda nesse particular. Sem pretender precisar muito, diremos que os elementos do eu resultam de um resduo de personalidades ancestrais, isto , criadas pela srie completa das nossas existncias anteriores. O eu, repito, no uma unidade, mas o total dos milhes de vidas celulares das quais o organismo est formado. Elas podem provocar numerosas combinaes.

Excitaes emocionais violentas, certos estados patolgicos observveis nos mdiuns, nos extticos, nos indivduos hipnotizados, etc., fazem variar essas combinaes e, por conseguinte, determinam, pelo menos momentaneamente, no mesmo ente, uma personalidade diversa(2), inferior ou superior superioridade ordinria. Todos possumos possibilidades de ao que ultrapassam a nossa capacidade habitual e que certas circunstncias viro despertar.

3. Os elementos fixadores da personalidade Os resduos ancestrais formam a camada mais profunda e mais estvel do carter dos indivduos e dos povos. pelo seu eu ancestral que um ingls, um francs, um chins, diferem to profundamente.

Mas a esses remotos atavismos sobrepem-se elementos suscitados pelo meio social (casta, classe, profisso, etc.), pela educao e ainda por muitas outras influncias. Eles imprimem nossa personalidade uma orientao assaz constante. Ser o eu, um pouco artificial, assim formado, que exteriorizaremos cada dia. Entre todos os elementos formadores da personalidade, o mais ativo, depois da raa, o que determina o agrupamento social ao qual pertencemos. Fundidas no mesmo molde pelas idias, as opinies e as condutas semelhantes que lhes so impostas, as individualidades de um grupo: militares, magistrados, padres, operrios, marinheiros, etc., apresentam numerosos caracteres idnticos.

As suas opinies e os seus julgamentos so, em geral, vizinhos, porquanto sendo cada grupo social muito nivelador, a originalidade no nele tolerada. Aquele que se quer diferenciar do seu grupo tem-no inteiramente por inimigo.

Essa tirania dos grupos sociais, na qual insistiremos, no intil. Se os homens no tivessem por guia as opinies e a maneira de proceder daqueles que os cercam, onde achariam a direo mental necessria maior parte? Graas ao grupo que os enquadra, eles possuem um modo de agir e de reagir quase constante. Graas ainda a ele, naturezas um pouco amorfas so orientadas e sustentadas na vida.

Assim canalizados, os membros de um grupo social qualquer possuem, com uma personalidade momentnea ou durvel, porm bem definida, uma fora de ao que jamais sonharia qualquer dos indivduos qu