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RBPAE - v. 29, n.2, p. 243-262, mai/ago. 2013 243 As mutações na oferta da educação pública no período pós-Constituição Federal e suas implicações na consolidação da gestão democrática Mutations on the offer of public education in the post-Federal Constitution and its implications on the consolidation of democratic management Las mutaciones en la oferta de la educación pública en el período post- Constitución Federal y sus implicaciones en la consolidación de la gestión democrática MARIA VIEIRA SILVA VERA MARIA PERONI Resumo: Tendo como referência o quadro de mutações ocorrido no papel do Estado no período pós-Constituição Federal, analisaremos as redefinições das relações entre a esfera pública e privada e suas implicações na gestão escolar. Enfocaremos o movimento em prol da democratização da gestão da educação; as conquistas ensejadas no período posterior à Constituição Federal e as contradições derivadas de alguns fatores díspares à gestão democrática: a inserção da lógica mercantil na escola pública e as condições de trabalho dos profissionais da educação, as quais permanecem adversas à participação e à democracia. Palavras chave: Constituição Federal; público e privado; gestão democrática. Abstract: Using as reference the framework of mutations occurred on the role of the state in the post-Constitution, we will analyze the redefinitions of relations between the public and private sphere and its implications for school management. We will focus on the movement for the democratization of education management; the achievements occasioned in the period after the Federal Constitution and the contradictions derived from some disparate factors for democratic management: the insertion of the commercial logic in public school and working conditions of education professionals, which remain adverse for participation and for democracy. Keywords: Federal Constitution; public and private; democratic management. Resumen: Teniendo como referencia el cuadro de las mutaciones que ocurrieron en el papel del Estado en el período post-Constitución Federal, analizaremos las redefiniciones de las relaciones dentro de la esfera pública y privada y sus implicaciones para la gestión escolar. Nos centraremos en el movimiento a favor de la democratización de la gestión de la educación; los logros conquistados en el período posterior a la Constitución Federal y a las contradicciones derivadas de algunos factores dispares a la gestión democrática: la inserción de la lógica mercantil en la escuela pública y las condiciones de trabajo de los profesionales de la educación, que permanecen adversas a la participación y a la democracia. Palabras clave: Constitución Federal; público y privado; gestión democrática.

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As mutações na oferta da educação pública no período pós-Constituição Federal e suas implicações na consolidação

da gestão democráticaMutations on the offer of public education in the post-Federal Constitution and

its implications on the consolidation of democratic management

Las mutaciones en la oferta de la educación pública en el período post- Constitución Federal y sus implicaciones en la consolidación

de la gestión democrática

MARIA VIEIRA SILVA VERA MARIA PERONI

Resumo: Tendo como referência o quadro de mutações ocorrido no papel do Estado no período pós-Constituição Federal, analisaremos as redefinições das relações entre a esfera pública e privada e suas implicações na gestão escolar. Enfocaremos o movimento em prol da democratização da gestão da educação; as conquistas ensejadas no período posterior à Constituição Federal e as contradições derivadas de alguns fatores díspares à gestão democrática: a inserção da lógica mercantil na escola pública e as condições de trabalho dos profissionais da educação, as quais permanecem adversas à participação e à democracia.

Palavras chave: Constituição Federal; público e privado; gestão democrática.

Abstract: Using as reference the framework of mutations occurred on the role of the state in the post-Constitution, we will analyze the redefinitions of relations between the public and private sphere and its implications for school management. We will focus on the movement for the democratization of education management; the achievements occasioned in the period after the Federal Constitution and the contradictions derived from some disparate factors for democratic management: the insertion of the commercial logic in public school and working conditions of education professionals, which remain adverse for participation and for democracy.

Keywords: Federal Constitution; public and private; democratic management.

Resumen: Teniendo como referencia el cuadro de las mutaciones que ocurrieron en el papel del Estado en el período post-Constitución Federal, analizaremos las redefiniciones de las relaciones dentro de la esfera pública y privada y sus implicaciones para la gestión escolar. Nos centraremos en el movimiento a favor de la democratización de la gestión de la educación; los logros conquistados en el período posterior a la Constitución Federal y a las contradicciones derivadas de algunos factores dispares a la gestión democrática: la inserción de la lógica mercantil en la escuela pública y las condiciones de trabajo de los profesionales de la educación, que permanecen adversas a la participación y a la democracia.

Palabras clave: Constitución Federal; público y privado; gestión democrática.

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INTrodUção

A atual Constituição, apesar de suas notórias deficiências na parte relativa à educação, contém alguns dos pontos ou eixos que servirão de roteiro para a elaboração da lei de diretrizes e bases da educação nacional. Além disso, hoje existem várias organizações que podem contribuir, com a experiência acumulada, para o aprimoramento do conteúdo da lei. (Florestan Fernandes)

A Constituição Federal completa, este ano, 25 anos de sua promulgação. Este marco temporal poderia passar despercebido, não fosse nossa cultura de dividir fluxos de tempo, ciclos e movimentos temporais como simbologias sociais, criadas pelos homens com finalidades diversas. Sem querer substancializar o tempo e atribuir-lhe a função de um dado natural, independente das relações humanas, referenciamo-nos neste recorte temporal, com a intenção de buscar uma conexão entre o presente e o passado, para desenvolvermos balanços analíticos das conquistas alcançadas no campo da educação e suas intermitências e contradições. Sob um olhar retrospectivo, desenvolveremos análises que se fundamentarão em dois flancos que se interrelacionam: num primeiro momento, apresentaremos um histórico das conquistas em prol do sentido público da educação pública e da democratização da gestão. No segundo momento, problematizaremos as ambiguidades, omissões e contradições que degeneram e corrompem estas conquistas, mediante a inserção das políticas e práticas do setor mercantil no interior da escola e das condições adversas que limitam os processos de sua consolidação.

Partimos do pressuposto que, a partir da Constituição Federal de 1988, avançamos substancialmente nas conquistas em prol do direito à educação, uma vez que a “Carta Magna” reconhece, expressamente, a educação como um direito público subjetivo, aspecto que traz consequências importantes e que não devem ser subestimadas. dentre vários aspectos expressos no texto constitucional, ressaltamos também o inciso VI do artigo 206, o qual põe em foco a gestão democrática no ensino público. Entretanto, malgrado os avanços conquistados com o conteúdo desses preceitos constitucionais, presenciamos, paradoxalmente, um refluxo das conquistas destes princípios, mediante processos crescentes e diversificados de privatização da gestão da educação, aspectos que impactam tanto no sentido da dimensão pública da escola pública, quanto nos preceitos da democratização da educação.

Sem embargo, esses paradoxos da democratização da educação escolar são análogos às fragilidades evidenciadas na democratização da sociedade mais ampla.

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destarte, a análise da participação e da democracia requer, em primeira instância, o reconhecimento de que não há unanimidade no trato das mesmas e, portanto, vale ressaltar o caráter polissêmico que as permeia. Autores como Bóron (1999) e Chomsky (1996) afirmam que a sociedade capitalista é intrinsecamente antidemocrática. Compartilhamos dos pressupostos destes autores, uma vez que o atual ciclo de produção da mais-valia, em termos estruturais, degrada e corrompe a soberania popular, mediante intensos processos excludentes nos planos sociais, econômicos e políticos e, de fato, a exclusão, em suas múltiplas manifestações, é incongruente e adversa à democracia.

Em âmbito nacional oliveira (1999) retoma diferentes fases de formação da sociedade brasileira, reconstituindo-a pela interpretação de alguns de seus intelectuais brasileiros, como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Machado de Assis, Celso Furtado e Florestan Fernandes, para sustentar sua tese da incompatibilidade radical entre a dominação burguesa e a democracia.

Para o autor, a contribuição destes “intelectuais demiúrgicos” retrata a instauração, na sociedade brasileira, de um processo complexo de violência, de proibição da fala e, mais modernamente, de privatização do público, o que é interpretado por alguns como a categoria de patrimonialismo, revolução pelo alto e incompatibilidade radical entre dominação burguesa e democracia. Em resumo, trata-se de um processo de anulação da política, do dissenso, do desentendimento (SIlVA, 2009).

oliveira retoma, ainda, diferentes momentos das cenas políticas no Brasil, lembrando-nos que, desde a Revolução de 1930, contamos com duas ditaduras: a de Vargas, entre 1937 e 1945, e a que se seguiu ao golpe militar de 1964 até 1984, “perfazendo 35 anos de ditaduras, em 60 anos de história da mudança da dominação de classe”. Este autor ressalta também que, se considerarmos as tentativas de golpes falhados, chegaremos à média de um golpe ou de uma tentativa de golpe a cada três anos, desde 1930 até 1990.

Esta situação é emblemática da fragilidade da democracia, na história da política brasileira. Para oliveira, todo o esforço de democratização, de criação de uma esfera pública de fazer política, no Brasil, decorreu quase que por inteiro da ação das classes dominadas, mediante a “reivindicação da parcela dos que não têm parcela, a da reivindicação da fala”, que representa um “dissenso em relação aos que têm direito às parcelas, que é, portanto, desentendimento em relação a como se reparte o todo, entre os que têm parcelas ou partes do todo e os que não têm nada” (SIlVA, 2009, p. 61).

Assim, ao recuperarmos os percursos das lutas democráticas e antidemocráticas desde a ditadura de Vargas até o tempo presente, é possível visualizar movimentos pendulares entre a organização e a mobilização popular e sua negação, mediante uma operação do silêncio, de roubo da fala, de anulação dos dissensos, que se sintetiza na busca de cortes da contra hegemonia, para legitimar as determinações da compulsão

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econômica. restringir-nos-emos, nas seções que seguem, a abordar as intermitências das conquistas democráticas a partir do contexto que precedeu a promulgação da Constituição Federal, desenvolvendo um panorama até o tempo presente.

DA REIVINDICAÇÃO DA FAlA ÀS CONQUISTAS DOS DIREITOS

Apesar de você amanhã há de ser outro dia (...) como vai abafar nosso coro a cantar na sua frente? (Chico Buarque)

Após 21 anos de Regime Militar no Brasil, em 1987, foi instalada a Assembleia Nacional Constituinte, a partir das eleições de novembro de 1986. Anteriormente a este acontecimento, no final da década de 1970 e início da década de 1980, a sociedade brasileira já vivia o “sopro” da redemocratização, em decorrência da amenização da supremacia do Poder Executivo – representado pelos militares – e da rearticulação dos movimentos sociais da sociedade civil, que se contrapunham à ordem social vigente. A mobilização dos vários segmentos da população em prol de uma maior participação política culminou, inicialmente, no direito às Emendas Populares. Previstas no regimento da Assembleia Constituinte, cada Emenda deveria ter, no mínimo, 30 mil assinaturas de eleitores. Assim, diferentes entidades se mobilizaram e saíram às ruas para recolher assinaturas e encaminhar as emendas populares, as quais, por sua vez, versavam sobre temas variados. registrou-se o recebimento de 122 emendas populares, somando-se 12.277.423 assinaturas, sendo que cada eleitor só podia subscrever, no máximo, três propostas. Esta mobilização envolveu mais de quatro milhões de cidadãos e, no dia 12 de agosto de 1987, caravanas oriundas de todos os estados da federação participaram de um ato público para entregar, de forma simbólica, ao Senado Federal, as emendas populares. Este processo, a nosso ver, imprime um caráter singular à elaboração da Constituição Federal, mediante a participação sem precedentes da sociedade civil, e materializa as reivindicações e lutas pela participação popular e pela democratização, mesmo nos limites de um Estado liberal. Com efeito, das emendas populares apresentadas, 83 foram aceitas, por atenderem aos requisitos regimentais. Elas versavam sobre os temas mais diversos, como reforma agrária, direitos trabalhistas, direitos da criança e do adolescente, direitos indígenas, criação de novos Estados, saúde, educação, participação popular, eleições diretas para presidência em 1988, comunicação social e família.

No que tange ao campo da educação, o Fórum Nacional de Entidades em Defesa do Ensino Público exerceu um especial papel nas mediações da participação

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da sociedade civil na Constituição Federal. o processo de constituição do Fórum ocorreu no interior das Conferências Brasileiras de Educação, as quais agregaram profissionais da educação de diferentes regiões do país, sendo, pois, uma das grandes bandeiras de luta a democratização da educação. Sob tal perspectiva, merece destaque a IV Conferência Brasileira de Educação, realizada em 1986, em Goiânia, a qual foi um marco referencial dos processos organizativos em prol da participação da sociedade civil na Constituinte. A IV Conferência Brasileira de Educação foi intitulada “Educação e Constituinte”, e a temática que tangenciou os debates foi “escola pública”. Ocuparam também lugar de destaque os debates em prol da democratização da educação.

A referida Conferência foi organizada pelas seguintes entidades: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd), Associação Nacional de Educação (ANdE) e Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) e culminou com a aprovação de uma Carta em sua plenária final, que, dentre vários aspectos, preconizava mecanismos de democratização da educação, nos itens 12, 19, 20, 21:

[...] as Universidades e demais instituições de ensino superior terão funcionamento autônomo e democrático. o Estado deverá garantir à sociedade civil o controle da execução da política educacional em todos os níveis (federal, estadual e municipal), através de organismos colegiados, democraticamente constituídos; o Estado assegurará formas democráticas de participação e mecanismos que garantam o cumprimento e o controle social efetivo de suas obrigações referentes à educação pública, gratuita e de boa qualidade, em todos os níveis de ensino (CONFERêNCIA BRASIlEIRA DE EDUCAÇÃO, 1986).

Quase um ano após a realização da IV CBE, foi lançado oficialmente em Brasília a 9 de abril de 1987 através da Campanha Nacional pela Escola Pública e Gratuita, o Fórum Nacional em defesa da Educação Pública. Inicialmente, o Fórum foi composto por 13 entidades1 e suas principais formas de pressão pautavam-se em manifestos dirigidos aos parlamentares, tentando assegurar suas propostas e posteriormente, uma plataforma para a educação na Constituinte. As aspirações e princípios em prol da escola pública e da gestão democrática aparecem, também de forma enfática, nas reivindicações desta entidade. O Fórum ao defender a reestruturação do Sistema Nacional de Educação, tendo como pressuposto o conceito de Estado Ampliado, que inclui a sociedade política e a sociedade civil nas tarefas de elaboração, implementação e avaliação

1 No momento da Constituinte o Fórum era composto pelas seguintes entidades: ANDES, ANPED; ANDE, ANPAE; ANDE, SBPC; CPB;CEDES;CGT;CUT;FENOE; FASUBRA; OAB; SEAF;UBES e UNE. A com-posição do Fórum se ampliou durante o processo de elaboração da nova lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, incluindo instituições como a UNDIME, o CONSED, o CRUB, etc.

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de políticas públicas, entre as quais a política educacional (DOCUMENTO VII, s/d) e reivindica a democratização da gestão dos sistemas escolares, pela defesa da participação colegiada da sociedade civil via Conselhos. Assim, postula que o mecanismo privilegiado para sistematizar e coordenar esta prática são os Fóruns Educacionais: nacional, estaduais e municipais – articulados com os respectivos Conselhos (SIlVA, 2012).

Foram significativas as incorporações das reivindicações dos movimentos sociais pela Carta Magna de 1988. No que tange à educação, e em específico, à gestão dos sistemas escolares, a Constituição contemplou no artigo 206 o anseio dos referidos movimentos pela democratização da educação, mediante o inciso VI: “gestão democrática do ensino público, na forma da lei”.

No entanto, a regulamentação desse dispositivo constitucional ficou sob responsabilidade da lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lDBEN) que foi aprovada em 20 de dezembro de 1996. Após oito anos de tramitação2 no Congresso Nacional, a nova lei foi fruto de muita polêmica e descontentamentos por parte da sociedade civil, sobretudo pelas entidades que compunham o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública.

o Fórum acreditava que o Projeto do Senador Cid Sabóia contemplava seus princípios defendidos - em termos gerais - por uma escola pública, democrática, gratuita e de qualidade. Em contrapartida, tece críticas ao Projeto do Senador Darcy Ribeiro: “Descaracterizando o processo democrático que originou o Projeto de lDB-PlC 101/93, oriundo da Câmara, que recebeu parecer no Senado do Senador Cid Sabóia de Carvalho, o Senador Darcy Ribeiro assumiu um novo substitutivo ao Projeto de lDB, profundamente nefasto à educação nacional”3. Nesta perspectiva, critica veementemente o conteúdo do Projeto de ribeiro, assinalando, dentre outras alterações feitas por este, a questão da gestão democrática. Assim, de acordo com o Fórum “Estabelece uma concepção fragmentada do Sistema Nacional de Educação, pois, além de não estabelecer diretrizes, prioridades e normas comuns a serem respeitadas por todos os sistemas, omite mecanismos de construção de um Plano Nacional de Educação” (Idem). Ainda no que concerne à temática “gestão democrática”, afirma que o referido projeto “Concentra poderes no Governo Federal, por omitir o tratamento da gestão democrática do Ensino (Art 3º, inciso VII), abrindo espaços para o governo legislar sobre a Educação em geral através de MPs [Medidas Provisórias],

2 Tramitação na Câmara dos Deputados: Projeto Otávio Elíseo – 1988; Projeto Substitutivo Jorge Hage – 1989; Projeto Substitutivo Sandra Cavalcanti – 1990; Projeto Substitutivo Ângela Amim – 1991; Aprovação do Projeto na Câmara – 1993. Tramitação no Senado: Projeto Substitutivo Cid Sabóia – 1993; Projeto Substitutivo Darcy Ribeiro – 1994: aprovado no Senado em 1996.3 Fórum Nacional de Defesa da Escola Pública, Manifesto em forma de panfleto: Porque somos contra o substitutivo do Senador Darcy Ribeiro (S/d).

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como já vem fazendo”.De fato, a nova lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, também

apelidada por lei Darcy Ribeiro, entra em vigor em 1996 após 25 anos de vigência da lDB (lei 4.024, de 20/12/1961). O Fórum em Defesa da Escola Pública avalia que não houve uma incorporação a contento do conteúdo das reivindicações dos segmentos da sociedade civil em seu corpo. destarte, os textos foram progressivamente deixando à margem as proposições populares e o texto final da lDB omite os princípios básicos de tais proposições.

No âmbito legal, após as reivindicações do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, a lDB (lei n. 9.394/1996) incorpora, em seus artigos 12, 13 e 14, algumas dimensões importantes da democratização da gestão, ao prever a participação docente e das famílias na elaboração e execução da proposta pedagógica das escolas, conforme os seguintes trechos:

art. 12: os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de:elaborar e executar sua proposta pedagógica;administrar seu pessoal e seus recursos materiais e financeiros; [...] VI - articular-se com as famílias e a comunidade, criando um processo de integração da sociedade com a escola;VII - informar os pais e responsáveis sobre a frequência e rendimento dos alunos, bem como sobre a execução de sua proposta pedagógica.

art. 13: os docentes incumbir-se-ão de:[...]VI - colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade.(BRASIl, lDB, 1996).

A integração entre famílias e escola é, de fato, uma das novidades da lei 9.394/1996. Contudo, ainda são tênues os avanços nesta área por motivos de natureza diversa. A menção à legislação visa apenas ilustrar que a integração família-escola é uma conquista histórica da gestão democrática, alcançando um patamar de direito das famílias na participação do projeto pedagógico das escolas. Mesmo reconhecendo a positividade desse artigo, não podemos ignorar também seu caráter ambíguo, pois, se, por um lado, o inciso VI do artigo 12 garante a articulação entre as famílias e comunidades nas atividades escolares, possibilitando maior legitimidade na aproximação entre essas duas esferas, por outro lado, tal dispositivo serve também para regularizar uma fenomenal tarefa da hegemonia ideológica do Terceiro Setor no âmbito escolar, por meio do ato de delegar as clássicas responsabilidades do Estado para a sociedade civil. No artigo 14, desta mesma lei, também é possível localizar algumas ambiguidades no que

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tange à democratização da gestão:

Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:I - participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes [...] (BRASIl,lDB,1996).

Paro destaca, como um dos aspectos lacunares deste artigo, o fato de ele restringir a “gestão democrática” ao ensino público. Segundo o autor, é possível perceber, por esta via, os “disparates” de nossos legisladores quando, “cedendo à ânsia do lucro representada nos lobbies dos interesses privados, permitem que a lógica do mercado se sobreponha à razão e aos interesses da sociedade” (PAro, 2001, p. 80). Um outro aspecto que merece reflexões, pelo seu caráter ambíguo, é que as normas da gestão democrática do ensino público serão definidas pelos sistemas de ensino, cujos governos poderão ou não estar articulados com a gestão democrática. Além disto, não estabelece o caráter deliberativo que deve orientar a participação das comunidades nos Conselhos Escolares e local.

Em que pesem as omissões e ambiguidades presentes nos artigos 12, 13 e 14, evidenciadas no decorrer desta seção, há também aspectos importantes para a democratização da gestão que foram incorporados por este dispositivo legal. Um deles é o direito da garantia da participação docente na elaboração e execução da proposta pedagógica da escola. Tal direito possibilita, pelo menos no plano legal, romper com a clássica divisão social do trabalho em que, convencionalmente, é garantida apenas aos gestores a tarefa de planejar, pensar e elaborar as diretrizes educacionais da escola, cabendo aos docentes a tarefa de operacionalizar tais diretrizes.

Concomitantemente às elaborações legais que impactam na construção de diretrizes para o sentido público da educação pública e às dimensões para a democratização da sociedade e da escola, são formulados também, na esfera acadêmica e dos movimentos sociais, sentidos e proposições que se cruzam, negam ou complementam a perspectiva jurídico-normativa. Que elementos teórico-conceituais nos possibilitam compreender as potencialidades e fragilidades da democracia e da gestão democrática? Quais os limites que o Estado liberal impõe às históricas conquistas da democracia e da esfera pública? Que descontinuidades e oscilações têm ensejado estagnações e retrocessos dessas dimensões?

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DAS CONQUISTAS ÀS DESCONTINUIDADES: NOTAS REFlEXIVAS SOBRE AS OSCIlAÇÕES DA

DEMOCRACIA SOB A ÉGIDE DO NEOlIBERAlISMO

os anos posteriores à Constituição Federal foram marcados pela redefinição no papel do Estado e das fronteiras entre o público e o privado, com consequências para a democracia enquanto coletivização das decisões (VIEIRA, 1998) e direitos sociais materializados em políticas. o conceito de democracia teve grandes modificações, principalmente com a hegemonia do neoliberalismo e da terceira via4.

o neoliberalismo tem profundas críticas à democracia, pois crê que ela atrapalha o livre andamento do mercado ao atender a demanda dos eleitores para se legitimar, provocando o déficit fiscal. Para Hayek, o cidadão, através do voto, decide sobre bens que não são seus, gerando conflitos com os proprietários, pois esta é uma forma de distribuição de renda. Hayek (1994) denuncia que a democracia faz um verdadeiro saque à propriedade alheia. Portanto, como em muitos casos não se pode suprimir totalmente a democracia (voto, partidos), o esforço é para esvaziar seu poder (PEroNI, 2003).

É neste contexto que ocorre a expansão das instituições do terceiro setor mercantil, tanto como parte do diagnóstico neoliberal de que o poder público é o culpado pela crise5, sendo ineficiente e ineficaz, quanto pela prescrição da terceira via, a atual social-democracia, no sentido de que, ao pactuar do mesmo diagnóstico de crise do Estado, propõe a sua reforma e não a sua minimização. Mas tal reforma deve ter os parâmetros de mercado, através da administração gerencial. Também o Estado não deve mais ser o executor das políticas sociais: deve repassar esta tarefa à sociedade civil, em nome da democratização da democracia, como argumenta Giddens (2001). Mas a democracia é concebida, pela Terceira Via, como a participação do terceiro setor na execução de tarefas que deveriam ser do Estado, principalmente as políticas sociais (PERONI, 2006).

É importante destacar que o conceito de sociedade civil modernizada, para a Terceira Via, quer dizer bem sucedida no mercado, já que defende o empreendedorismo. E é a esta parcela da sociedade civil que o Estado deve incentivar para que assuma as políticas sociais, passando a ser um mero financiador:

O empreendedorismo civil é qualidade de uma sociedade civil modernizada. Ele é necessário para que os grupos cívicos produzam estratégias criativas e

4 A Terceira Via, aqui entendida como a atual social democracia, é “uma Terceira Via no sentido de que é uma tenta-tiva de transcender tanto a social democracia do velho estilo quanto o Neoliberalismo” (GIDDENS, 2001, pp. 36).5 Crise aqui entendida como crise estrutural do capital, conforme Mészáros (2002).

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enérgicas para ajudar na lida com problemas sociais. O governo pode oferecer apoio financeiro ou proporcionar outros recursos a tais iniciativas (GIDDENS, 2007, p. 26)

Assim, o terceiro setor é uma das alternativas propostas pela Terceira Via, tanto para que o Estado não seja mais o principal executor das políticas sociais, quanto para que o conteúdo mercantil possa, através das parcerias, aprofundar a lógica de mercado nas políticas públicas, “qualificando-as”.

Assim, o contexto de crise redefiniu a atuação do Estado para com as políticas sociais em todas as suas estratégias de superação, globalização e reestruturação produtiva. No caso, aqui, enfatizamos mais o neoliberalismo e a Terceira Via, pela relação direta com a mudança no conceito de democracia e suas consequências para o fortalecimento do terceiro setor e pela presença do terceiro setor mercantil definindo o conteúdo das políticas públicas em todos os sentidos, principalmente o da gestão.

Nesta perspectiva, o contexto em que lutamos pela democracia, na década de 1980, período pós-ditadura, foi diferente do contexto dos anos 1990, de ajuste fiscal por parte das estratégias do capital, para a superação da crise. O conceito de democracia como a não separação entre o econômico e o político (Wood, 2001) e de direitos materializados em políticas esteve muito presente no período Constituinte e, em parte, foi materializado na Constituição. No período seguinte, contudo, este conceito foi-se tornando cada vez mais abstrato, acompanhando-se de perdas sociais e para a democracia, com uma naturalidade impressionante.

O grau de coletivização das decisões (VIEIRA, 1998) foi também se modificando e, na década de 1990, os principais interlocutores dos governos brasileiros foram os empresários e os Organismos internacionais. Os anos 2000 trazem novas contradições para o debate acerca da democracia, pois se, por um lado, com os governos do Partido dos Trabalhadores, voltam à pauta importantes reivindicações do período Constituinte, como o Sistema Nacional de Educação, as políticas de diversidade, a ampliação da obrigatoriedade e a maior participação da União na Educação Básica, por outro lado, ampliaram-se os processos de privatização da gestão de instituições públicas, mediante a instalação da lógica mercantil, de diversificadas formas.

Vale ressaltar que a CONAE (Conferência Nacional de Educação) trouxe avanços para o debate da gestão democrática, ao asseverar que este preceito constitucional deve se materializar tanto no âmbito das escolas públicas como no das escolas privadas, superando o dispositivo legal presente na lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lDB 9.394/1996), que preconiza a gestão democrática apenas nas escolas públicas. destarte, este embate, que fora derrotado em contextos anteriores, foi novamente enfatizado pela última CoNAE, quando

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reivindica a gestão democrática para escolas públicas e privadas:

[...] democratizar a gestão da educação e das instituições educativas (públicas e privadas), garantindo a participação de estudantes, profissionais da educação, pais/mães e/ou responsáveis e comunidade local na definição e realização das políticas educacionais, de modo a estabelecer o pleno funcionamento dos conselhos e órgãos colegiados de deliberação coletiva da área educacional, por meio da ampliação da participação da sociedade civil; instituir mecanismos democráticos – inclusive eleição direta de diretores/as e reitores/as, para todas as instituições educativas (públicas e privadas) e para os sistemas de ensino; e, ainda, implantar formas colegiadas de gestão da escola, mediante lei específica (BRASIl, 2010, p. 44).

No entanto, a proposta de PNE não incorporou esta deliberação da CoNAE e a gestão democrática aparece apenas como princípio, respeitando a CF/1988, mas nas metas do Pl 8035/2010, a proposição de gestão democrática, tal como fora definida pela CONAE, não foi assimilada.

As reflexões desenvolvidas no decorrer deste texto enfocaram os avanços e recuos da gestão democrática no período constituinte, na Constituição Federal de 1988, na lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei 9.394/1996), na Conferência Nacional de Educação e na proposta do Plano Nacional de Educação. Contudo, para além dos determinantes jurídico-normativos, estão em curso outros elementos que também influenciam a proposta de gestão escolar, distanciando-se dos ideais e proposições preconizados no período constituinte. Trata-se das parcerias público-privadas e das condições materiais de trabalho do professor.

A proposta de gestão democrática, princípio da Constituição Federal de 1988, apesar de ter avançado muito em algumas localidades, mais do que em outras, dependendo do processo de correlação de forças local, atualmente tem sido modificada, com a entrada em cena de outras propostas de gestão, advindas de parcerias entre instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, e de sistemas públicos de educação. Muitas são as instituições que fazem parcerias com escolas ou sistemas. A maioria tem projetos para interferir na gestão, por considerá-la importante e, também, por acreditar que pode trazer princípios de produtividade do mercado para a instituição escolar.

A despeito desta tendência, é emblemática a atuação do Instituto Ayrton Senna (IAS)6, o qual iniciou o trabalho com programas complementares e, depois, em classes de aceleração, mas passou a influenciar a política educacional

6 A esse respeito ver: Análise das consequências de parcerias firmadas entre municípios brasileiros e o Instituto Ayrton Senna para a oferta educacional. Pesquisa Nacional que envolveu 10 estudos de caso (RS, SC, PR, SP, MT, MS, MG, PI, PA, RN). Ver relatório Adrião, Peroni, 2010, in: www. ufrgs.br/faced/peroni/.

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como um todo em vários municípios brasileiros, incidindo em intervenções que vão desde o currículo e da sala de aula até a gestão do sistema e da escola. O Instituto assegura que, para obter mudanças substantivas, não basta atuar apenas em questões focalizadas, mas na educação como um todo. Portanto, atualmente planeja, monitora e avalia os sistemas públicos (PERONI, 2013).

o Instituto tem como diagnóstico que a educação pública vai mal; assim, sua missão seria contribuir para superar os problemas do sistema público, partindo do pressuposto de que tem a fórmula para a qualidade e de que, se ela for adotada pelos sistemas, a educação superará os seus problemas. Verificamos que, como se fosse o poder público, o Instituto faz um diagnóstico e encaminha soluções para a educação pública:

Os Programas da Rede Vencer visam ser uma solução para a educação pública, pois partem do pressuposto da ineficiência do público, e por isso introduzem políticas de acompanhamento de resultados das aprendizagens dos alunos, objetivando o fortalecimento das lideranças e equipes de trabalho, tanto nas unidades escolares como nas Secretarias de Educação, a fim de qualificar o desempenho escolar de jovens e crianças (In http://senna.globo.com/institutoayrtonse. Acesso em 11/04/08).

O IAS possui um sistema próprio de cadastro das informações relativas à educação, o Sistema Instituto Ayrton Senna de Informações (SIASI). Os dados sobre o desempenho dos alunos, frequência e cumprimento das metas de alunos e professores são repassados mensalmente. As escolas enviam os dados para a Secretaria Municipal, que os repassa ao SIASI. O município paga uma taxa para colocar os dados neste sistema. Este dado é relevante, pois evidencia-se que o sistema público não recebe recursos do IAS, mas, ao contrário, o IAS recebe erários públicos para colocar os dados no SIASI.

A procura por estas parcerias muitas vezes parte de um diagnóstico de que os professores não são capazes de planejar suas tarefas e por isto, devem receber tudo pronto, como podemos verificar na argumentação de Viviane Senna:

os materiais são fortemente estruturados, de maneira a assegurar que um mesmo professor inexperiente, ou com preparação insuficiente – como é o caso de muitos professores no Brasil - seja capaz de proporcionar ao aluno um programa de qualidade, com elevado grau de participação dos alunos na sala de aula, na escola e na comunidade (SENNA 2000, p. 146).

O processo de construção da gestão democrática é prejudicado, pois o IAS define o que deve ser feito desde o Secretário de Educação até os professores e alunos. Questionamos o que significa o sistema público abrir mão de suas prerrogativas de ofertar educação pública de qualidade e comprar um produto

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pronto, desde o currículo escolar – já que as aulas vêm prontas e os professores não podem modificá-la – até a gestão escolar (monitorada por um agente externo), e transformar os sujeitos responsáveis pela educação em burocratas que preenchem muitos papéis (PEroNI, 2012b).

outros aspectos que se apresentam nefastos ao processo de democratização da gestão, dizem respeito às condições de trabalho dos profissionais da educação, as quais nestes 25 anos posteriores à promulgação da Constituição Federal, não apresentaram avanços substanciais. O aviltamento salarial dos profissionais da educação tem sido recorrentemente objeto de pesquisa de muitos surveys, pauta de movimentos sindicais e sociais e lugar comum no discurso da sociedade em geral, conferindo a esta temática um teor de obviedade. Contudo, acreditamos que o óbvio necessita, aos olhos do pesquisador, ser constantemente “estranhado” e problematizado para a produção de novas sínteses.

Quanto a esta temática, a imersão no campo empírico, durante a realização de algumas pesquisas, possibilitou-nos perceber uma tendência de precarização do trabalho docente plasmado no crônico estado de desvalorização profissional.

Com excedentes de trabalho, mediante processos de sobrecarga de suas atividades laborais, os professores têm apresentado alto grau de absenteísmo e deserção de fóruns participativos e democratizantes da gestão escolar, tais como: reuniões para elaboração do projeto político pedagógico, associação de pais e mestres, conselhos escolares, colegiados, dentre outras instâncias, fator que contribui para a crescente perda de autonomia e alienação nos processos de trabalho.

Entretanto, a perda de autonomia concerne especialmente ao fato do docente estar limitado ao “que ensinar”, extinguindo, mesmo que em partes, a possibilidade dele tomar decisões no desenvolvimento de sua atividade laboral. Desta forma, quando o docente é impedido de desenvolver os seus conhecimentos e sua capacidade em relação ao seu trabalho, gera-se a frustração e a angústia, deixando-o exausto emocionalmente e suscetível a fadigas e adoecimentos.

destarte, a precarização do trabalho docente tem efeitos expressivos sobre a consolidação da gestão democrática. Conforme destacamos no início de nossas reflexões, as trajetórias percorridas, em prol da construção da gestão democrática no âmbito da educação escolar, são coetâneas do processo de democratização política da sociedade brasileira e após 21 anos de regime militar, foram construídas pelo movimento de educadores mediante diferentes estratégias: elaboração do Projeto Político Pedagógico da Escola de forma coletiva e participativa; participação docente em diferentes Conselhos Escolares (APM, conselhos de classe, colegiados, Conselho Municipal de Educação, Conselho de Fiscalização do FUNdEB, dentre outros); a eleição para provimento de cargos de diretor,

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dentre outros (SIlVA, 2011).Com efeito, os anos que se sucederam ao regime militar tiveram muitas

tentativas de implementação de mecanismos de participação e democratização em diferentes instâncias da sociedade, como a educação. Contudo, é possível afirmar que os processos de democratização da gestão da escola ainda são tênues e frágeis, marcados por uma forte tendência autocrática de seus gestores, em detrimento de uma participação compartilhada com os diferentes segmentos escolares. Mas, que heranças as escolas portam da prática social mais ampla? Quais as marcas do desmantelamento da institucionalidade sob o signo do coletivo? Temos como pressuposto que a precarização do trabalho docente constitui-se em um aspecto fundamental da fragilidade do trabalho coletivo na escola. Vivenciamos uma crise de participação no tempo presente; os diferentes fóruns consultivos e deliberativos padecem de representatividade e, muitos até de legitimidade, devido ao esvaziamento ocasionado pelo absenteísmo ou pelo abandono.

As condições de trabalho do professor têm sido obstáculos significativos da não participação, assim como ocorre na prática social mais ampla. No entanto, para a compreensão do processo da ausência da participação nos fóruns de natureza democrática, é necessário voltar o olhar para a moldura mais ampla que retrata a sociedade contemporânea, buscando as conexões com os espaços de natureza “micro”, como a escola e as determinações sociais mais amplas, gestadas pela globalização da economia e o neoliberalismo.

Bourdieu, ao referir-se ao neoliberalismo assegura que,

em nome desse projeto científico de conhecimento, convertido em programa político de ação, se efetua o imenso trabalho político que visa a criar as condições para a realização e o funcionamento da “teoria”: um programa de destruição metódica da coletividade, pois visa a pôr em questão todas as estruturas coletivas capazes de levantar obstáculos à lógica do mercado puro: a nação, cujo espaço de manobra diminui a cada dia; grupos de trabalho, por meio, por exemplo, da individualização dos salários e das profissões em função das competências individuais e da atomização dos trabalhadores que dela resulta; coletividades para a defesa de direitos dos trabalhadores, sindicatos, associações, cooperativas; a própria família, que, por meio da constituição de mercados por faixas etárias, perde um pouco de seu controle sobre o consumo (BoUrdIEU, 1998, p.18).

Esses mecanismos de flexibilização, pelo fato de serem os grandes co-responsáveis pela abolição da “solidariedade coletiva”, são constituidores da lógica do “salve-se quem puder”, pois contribuem decisivamente para o acirramento do desemprego estrutural, a gradativa redução dos direitos sociais dos trabalhadores, o descrédito de tudo que é público e para a sacralização do mercado.

Este complexo panorama social, econômico e político incidem sobre a base de representação do Estado, pois essas novas dinâmicas expandem-se de

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forma crescente, sobretudo durante as últimas duas décadas do século passado, contribuindo para o arrefecimento dos espaços coletivos e participativos em todas as instâncias do tecido social. É nesta conjuntura que, paradoxalmente, a velha bandeira da democratização da gestão escolar tenta ser reerguida, e é nesta realidade, com todas as suas complexidades e contradições, que se ousam criar mecanismos em prol de espaços democráticos, coletivos e participativos no interior da escola.

obviamente, esses são princípios almejados por grande parte dos adeptos à gestão democrática, mas tais dimensões encontram-se vulneráveis na sociedade contemporânea, necessitando lastros de construção. Há hoje, de forma crescente, uma tendência em que a gestão democrática confunde-se com os processos de gestão compartilhada e que, sob a égide das políticas neoliberais, cada vez mais, transfere-se para a comunidade a responsabilidade pela viabilização de recursos fiscais e mesmo de ações pedagógicas pautadas no voluntarismo e na filantropia. Segundo Silva (2009), embora seja um discurso bastante sedutor, a participação do voluntariado, a filantropia e todo tipo de parceria, seja ela com ONG´s, empresas ou fundações, requer a agudização do senso crítico para que não sejamos envolvidos pelo “canto da sereia”, ou seja, não podemos nos permitir a uma atitude de ignorância ou de desatenção perante esses acontecimentos, os quais materializam-se de forma tácita e sutil. de acordo com Ball, a mágica do mercado funciona em diversos sentidos.

Por um lado, trata-se de uma reforma sem intervenção direta, uma intervenção não interventiva. Trata-se de um truque básico do feiticeiro: “agora você vê.... agora você não vê mais.” Ela distancia o reformador dos resultados da reforma. Culpa e responsabilidades são também devolvidas ou terceirizadas. E, contudo, pela utilização do estabelecimento de objetivos e das técnicas performativas, pode-se obter um controle à distância gerando um “novo paradigma de governo público” (BAll, 1998, p 130).

A nosso ver, o que há de nocivo nesses discursos e nessas práticas, dentre outros aspectos, é que a gestão escolar e a participação docente assumem uma perspectiva eminentemente gerencial, com uma regulação efetuada também pelos fornecedores privados. Assim, esvazia-se a dimensão política da oferta da educação e nessa processualidade há o deslocamento da esfera dos direitos para a esfera dos serviços. o homo pedagogicus é sujeitado e redefinido sob as mesmas referências empresariais e mercadológicas. A gestão escolar torna-se crescentemente permeável às atividades de gerenciamento, levando para as margens as perspectivas político-pedagógicas e alimentando e legitimando no interior da escola atitudes por parte de seus profissionais de crítica e de ridicularização à dimensão política do trabalho pedagógico. São os efeitos do neoliberalismo e da economia globalizada no “chão da escola”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer deste artigo, colocamos em relevo alguns aspectos que têm contribuído para potencializar as alianças e articulações entre entidades da esfera privada e a escola pública, no período posterior à promulgação da Constituição Federal. destarte, evidenciamos as implicações do estabelecimento de conexões entre a dinâmica escolar e a dinâmica empresarial para a gestão da escola pública, por meio de um processo multifacetado e diversificado, o qual promove mudanças nas diretrizes dos sistemas públicos de ensino, na organização do trabalho escolar, nas reformas curriculares, no material didático e na dinâmica de sala de aula, de forma sistematizada e orgânica. diferentemente de outros países, que viveram o Estado de Bem Estar Social e que na década de 1980 vivenciavam um processo de perda e comprometimento dos direitos sociais, no caso brasileiro, e de outros países latino-americanos, a sociedade civil se rearticulava em prol da democracia, após muitos anos de ditadura. Foi um processo muito rico e de grandes conquistas para o direito à educação, mas também de muitos enfrentamentos, já que os setores vinculados ao capital também se organizaram após este período, para disputar a proposta de educação, assim como seus recursos financeiros.

Assim, ao mesmo tempo em que lutamos pela ampliação da obrigatoriedade da educação, e pela ampliação de recursos para efetivá-la com qualidade, também setores vinculados ao mercado ampliaram sua participação para veicular suas concepções, tanto na elaboração das políticas quanto na sua execução, em todos os níveis: internacional7, nacional e local. Este processo de correlação de forças por projetos de educação é parte de um contexto maior de redefinições no papel do Estado, como consequência de uma crise estrutural do capital e de suas estratégias de superação: neoliberalismo, globalização, reestruturação produtiva e Terceira Via8. São estas estratégias que redefinem o papel do Estado e as fronteiras entre o público e o privado, tanto na alteração da propriedade, quanto em relação ao que permanece na propriedade estatal, mas passa a ter a lógica do mercado, reorganizando os processos educacionais.

Entendemos que essas estratégias se materializaram na educação através de diferentes processos. Na legislação, verificamos que, desde a incorporação da gestão democrática como um princípio constitucional até o novo PNE, o processo de correlação de forças por projetos societários, de educação e de gestão permanecem. A disputa histórica entre uma gestão democrática e outra vinculada ao parâmetro da fábrica, anteriormente ao toyotismo e fordismo, e atualmente aos

7 Sobre redes globais que interferem na educação pública ver Ball (2012).8 Ver Peroni 2003; Peroni 2006; Peroni; Vieira (2013); Silva (2009) e Silva (2011).

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princípios da reestruturação produtiva, seguem presentes. Assim, as redefinições do papel do Estado vinculadas à reestruturação

produtiva, ao neoliberalismo e à Terceira Via apresentam este ente como culpado pela crise e o mercado como parâmetro de qualidade. decorrentes deste processo, produzem-se novas paisagens criadas pelas políticas neoliberais, nas quais se desqualifica o papel do Estado como provedor e executor de bens sociais, e se fortalece o papel da sociedade civil como um espaço filantrópico, composto por empresários nacionais e de empresas multinacionais no Brasil. destarte, são medidas paliativas, as quais não incidem sobre aspectos estruturais, tais como a ampliação do financiamento e a melhoria das condições de trabalho do professor, aspectos que, via de regra, são condições sine qua non para a expansão da educação com qualidade e para a democratização da gestão, em sentido lato.

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MARIA VIEIRA SILVA é doutora em Educação e professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: [email protected]

VERA MARIA PERONI é doutora em História e Filosofia da Educação e professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]

Recebido em julho de 2013Aprovado em julho de 2013