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PERCURSOS ATÉ O UBUNTU DA EMANCIPAÇÃO PERCURSOS ATÉ O UBUNTU DA EMANCIPAÇÃO AS MARGENS DO AMARELO AS MARGENS DO AMARELO AS MARGENS DO AMARELO

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PERCURSOS ATÉ O UBUNTU DA EMANCIPAÇÃOPERCURSOS ATÉ O UBUNTU DA EMANCIPAÇÃOAS MARGENS DO AMARELO AS MARGENS DO AMARELO AS MARGENS DO AMARELO

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23 de maio de 1958 23 de maio de 1958

Quando puis a comida o João sorriu. Quando puis a comida o João sorriu.

Comeram e não aludiram a cor negra do feijão. Comeram e não aludiram a cor negra do feijão.

Porque negra é a nossa vida. Porque negra é a nossa vida.

Negro é tudo que nos rodeia.Negro é tudo que nos rodeia.

Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, p.43

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Carolina, espero que meu pequeno trabalho, que provavelmente em nada irá ajudar a diminuir os sofrimentos que você passou e tantos passam hoje, incida pelo Carolina, espero que meu pequeno trabalho, que provavelmente em nada irá ajudar a diminuir os sofrimentos que você passou e tantos passam hoje, incida pelo menos sobre mim e meus próximos, com o fim de mudar milimetricamente toda essa sociedade que foi responsável pelo seu sucesso e depois, esquecimento. menos sobre mim e meus próximos, com o fim de mudar milimetricamente toda essa sociedade que foi responsável pelo seu sucesso e depois, esquecimento.

A fome é amarela, e ela dói, você dizia. Hoje, 60 anos depois, o amarelo ganhou novos significados, como o amarelo para Emicida. Ele é um artista, como você, e A fome é amarela, e ela dói, você dizia. Hoje, 60 anos depois, o amarelo ganhou novos significados, como o amarelo para Emicida. Ele é um artista, como você, e a carrega tatuada no braço. Você se tornou referência para muita gente. Você se transformou em uma simbólica canalização de forças, que propulsiona os que a carrega tatuada no braço. Você se tornou referência para muita gente. Você se transformou em uma simbólica canalização de forças, que propulsiona os que tentam mudar as raízes que foram fincadas há tantos séculos, mas que os frutos, podres, perseguem até hoje os que correm pelo certo. tentam mudar as raízes que foram fincadas há tantos séculos, mas que os frutos, podres, perseguem até hoje os que correm pelo certo.

Vou te contar um pouco mais sobre o presente. O Emicida transformou o amarelo em um símbolo de amor. Queria que você estivesse viva para poder ter esse Vou te contar um pouco mais sobre o presente. O Emicida transformou o amarelo em um símbolo de amor. Queria que você estivesse viva para poder ter esse significado em mente também. Você, que dizia que o país só mudaria quando fosse governado por alguém que conhecesse a fome... Bom, aconteceu. E o Brasil significado em mente também. Você, que dizia que o país só mudaria quando fosse governado por alguém que conhecesse a fome... Bom, aconteceu. E o Brasil saiu do Mapa da Fome... Acho então que essas pessoas puderam começar a enxergar a beleza nas flores amarelas, nas casas amarelas, no pôr do sol amarelo... saiu do Mapa da Fome... Acho então que essas pessoas puderam começar a enxergar a beleza nas flores amarelas, nas casas amarelas, no pôr do sol amarelo...

Ah Carolina, mas ainda tem gente que passa fome. E que sofre. E que é violentado apenas por causa de sua cor. Se olhar por esse lado, passo a preferir que você Ah Carolina, mas ainda tem gente que passa fome. E que sofre. E que é violentado apenas por causa de sua cor. Se olhar por esse lado, passo a preferir que você descanse em paz onde estiver. Como disse Gabriela, uma arquiteta e urbanista da Bahia que fez uma tese inteira de doutorado sobre você, ser jovem, negro, pobre descanse em paz onde estiver. Como disse Gabriela, uma arquiteta e urbanista da Bahia que fez uma tese inteira de doutorado sobre você, ser jovem, negro, pobre e morar na periferia, é estar ali, colado com a morte. Não é fácil. Há dois anos tivemos uma vereadora do Rio de Janeiro que foi assassinada por defender apenas e morar na periferia, é estar ali, colado com a morte. Não é fácil. Há dois anos tivemos uma vereadora do Rio de Janeiro que foi assassinada por defender apenas os direitos dos favelados! O nome dela era Marielle Franco.os direitos dos favelados! O nome dela era Marielle Franco.

Existe muita gente hoje que luta pra melhorar essa vida. Mas é difícil, porque são muitos pesos para carregar, e forças contrárias que fazem de tudo para as Existe muita gente hoje que luta pra melhorar essa vida. Mas é difícil, porque são muitos pesos para carregar, e forças contrárias que fazem de tudo para as coisas não mudarem. Como você pode ver, várias “Carolinas”, sejam homens ou mulheres, conseguiram ter uma casa de alvenaria no Brasil até agora, como Dona coisas não mudarem. Como você pode ver, várias “Carolinas”, sejam homens ou mulheres, conseguiram ter uma casa de alvenaria no Brasil até agora, como Dona Jacira, mãe de Emicida. E são eles, os que puderam ver o amarelo de outra forma, que estão pelas ruas tentando mudar as coisas, junto à outros, que mesmo Jacira, mãe de Emicida. E são eles, os que puderam ver o amarelo de outra forma, que estão pelas ruas tentando mudar as coisas, junto à outros, que mesmo nunca tendo visto o amarelo da fome tentam lutar pelo que é justo e direito... Mas é preciso mais, sabemos. Estamos nas margens do amarelo, sendo esse, um nunca tendo visto o amarelo da fome tentam lutar pelo que é justo e direito... Mas é preciso mais, sabemos. Estamos nas margens do amarelo, sendo esse, um longo caminho até o ubuntu da emancipação. longo caminho até o ubuntu da emancipação.

Até um dia , LarissaAté um dia , Larissa

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às Carolinas, Emicidas e às Carolinas, Emicidas e Donas Jaciras desse BrasilDonas Jaciras desse Brasil

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PARTE 0: INTRO PARTE 0: INTRO (É NECESSÁRIO (É NECESSÁRIO

VOLTAR AO COMEÇO) VOLTAR AO COMEÇO)

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Pra quem já mordeu um cachorro por Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe...comida, até que eu cheguei longe...

[...][...]

Século XXI, progresso, olha de novo irmão Século XXI, progresso, olha de novo irmão

Cê vai ver que os preto ainda tão, na rua, Cê vai ver que os preto ainda tão, na rua, no gueto e na prisão no gueto e na prisão

Sem saber se são, regra ou exceçãoSem saber se são, regra ou exceção

Todo mundo é igual, e ainda assim, nóiz tá Todo mundo é igual, e ainda assim, nóiz tá fora do padrãofora do padrão

Emicida - Intro (É necessário voltar ao começo)8 9

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O encerramento da história de O encerramento da história de Carolina Maria de Jesus e o início Carolina Maria de Jesus e o início da de Leandro Roque de Oliveira é da de Leandro Roque de Oliveira é separada por oito anos. A escritora separada por oito anos. A escritora

e poetisa faleceu em 1977, em seu e poetisa faleceu em 1977, em seu sítio em Parelheiros, extremo Sul de sítio em Parelheiros, extremo Sul de

São Paulo. Já Emicida, nasceu e foi São Paulo. Já Emicida, nasceu e foi criado no Jardim Fontalis, norte da criado no Jardim Fontalis, norte da

cidade. Cerca de 52km separam seus cidade. Cerca de 52km separam seus lugares finais e iniciais de vivência. Um percurso que lugares finais e iniciais de vivência. Um percurso que hoje equivale a 11h40min a pé - meio de transporte hoje equivale a 11h40min a pé - meio de transporte tão “natural” para Carolina - ou 3h15 de transporte tão “natural” para Carolina - ou 3h15 de transporte público meio tão conhecido pra Emicida, depois de público meio tão conhecido pra Emicida, depois de tantos corres, desde o início da carreira em busca do tantos corres, desde o início da carreira em busca do reconhecimento, vendendo sua mixtape à R$2,00 pelas reconhecimento, vendendo sua mixtape à R$2,00 pelas ruas de São Paulo, participando da Rinha de MC’s e das ruas de São Paulo, participando da Rinha de MC’s e das Batalhas da Santa Cruz. Batalhas da Santa Cruz.

TREMEMBÉ, onde fica o Jd Fontalis

PARELHEIROS, onde fica o sítio de Carolina

JD FONTALIS ZONA NORTE DE SP

JD FONTALIS ZONA NORTE DE SP

PARE LHEIROS ZONA SUL DE SP

PARE LHEIROS ZONA SUL DE SP

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As diversas marcas da estrutura escravocrata, As diversas marcas da estrutura escravocrata, racista e colonialista da sociedade brasileira racista e colonialista da sociedade brasileira são transversais à história de Carolina, que são transversais à história de Carolina, que nasceu apenas algumas décadas após nasceu apenas algumas décadas após a abolição da escravidão. Assim como a abolição da escravidão. Assim como sua adolescência é marcada pelos sua adolescência é marcada pelos latentes movimentos migratórios latentes movimentos migratórios em busca de melhores condições em busca de melhores condições econômicas para sobrevivência, econômicas para sobrevivência, a idade adulta da autora é a idade adulta da autora é transpassada pelo movimento transpassada pelo movimento modernizador do país, onde modernizador do país, onde crescimento exponencial da crescimento exponencial da pobreza e de concentração pobreza e de concentração de renda estão de de renda estão de encontro com o encontro com o surgimento das surgimento das primeiras favelas, primeiras favelas, e movimentos e movimentos de espoliação de espoliação e segregação e segregação cada vez cada vez maiores nas maiores nas cidades.cidades.

SACRAMENTO, MINAS GERAIS onde Carolina nasceu, por volta de 1914

Já Emicida, tem sua trajetória marcada Já Emicida, tem sua trajetória marcada por outro momento da história brasileira, por outro momento da história brasileira, já marcado pela redemocratização, e a já marcado pela redemocratização, e a partir dos anos 2000, fomento à cultura partir dos anos 2000, fomento à cultura popular, saída do Brasil do mapa da popular, saída do Brasil do mapa da fome elaborado pela ONU, e diminuição fome elaborado pela ONU, e diminuição

dos níveis de pobreza. Entretanto, não é dos níveis de pobreza. Entretanto, não é possível falar que não existe mais fome, racismo, segregação possível falar que não existe mais fome, racismo, segregação e diversos outros tipos de marginalização dos corpos negros. e diversos outros tipos de marginalização dos corpos negros. “Ser jovem, negro, pobre e morar na periferia, “Ser jovem, negro, pobre e morar na periferia,

é estar ali, colado com a morte” é estar ali, colado com a morte” (Pereira, p.20). Todos (Pereira, p.20). Todos esses problemas esses problemas continuam.continuam.

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PARTE 1: O PARTE 1: O PRIMEIRO TOM DE PRIMEIRO TOM DE

AMARELOAMARELO

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Favela do CanindéFavela do Canindé0 25 500 25 50

casa de carolinacasa de carolinarua A, número 9rua A, número 9

CASA DE CAROLINA, RUA A, 9

CASA DE CAROLINA, RUA A, 9

21 de maio de 195821 de maio de 1958 Passei uma noite horrível. Sonhei que eu residia numa casa Passei uma noite horrível. Sonhei que eu residia numa casa residivel, tinha banheiro, cozinha, copa, e até quarto de criada. Eu ia festejar o residivel, tinha banheiro, cozinha, copa, e até quarto de criada. Eu ia festejar o aniversario de minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas panelinhas que há muito aniversario de minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas panelinhas que há muito ela vive pedindo. Porque eu estava em condições de comprar. Sentei na mesa para ela vive pedindo. Porque eu estava em condições de comprar. Sentei na mesa para comer. A tolha era alva ao lírio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e comer. A tolha era alva ao lírio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife despertei. Que realidade amarga! Eu não residia na salada. Quando fui pegar outro bife despertei. Que realidade amarga! Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama, as margens do Tietê. E com 9 cruzeiros apenas. cidade. Estava na favela. Na lama, as margens do Tietê. E com 9 cruzeiros apenas.

Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, p.39 1616 17

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SOU NEGRA, A F

OME

É

SOU NEGRA, A F

OME

É AM

ARELA

AM

ARELA,

E DÓI MUITO. ..

, E DÓI MUITO. ..

v

20 de julho de 195520 de julho de 1955[...] [...]

Já que não posso dar aos meus filhos uma casa Já que não posso dar aos meus filhos uma casa decente para residir, procuro lhe dar uma refeição decente para residir, procuro lhe dar uma refeição condigna. condigna.

13 de maio de 195813 de maio de 1958[...][...]Que deus ilumine os brancos para que Que deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz.os pretos sejam feliz.

Continua chovendo. E eu tenho só Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos Mesmo assim, mandei os meninos para a escola. Estou escrevendo para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros vou comprar o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou um arroz e linguiça. A chuva passou um pouco. Vou sair. pouco. Vou sair. ... Eu tenho tanta dó dos meus ... Eu tenho tanta dó dos meus filhos. Quando eles vê as coisas de filhos. Quando eles vê as coisas de comer eles brada:comer eles brada:

- Viva a mamãe!- Viva a mamãe! A manifestação agrada-me. Mas já perdi o A manifestação agrada-me. Mas já perdi o hábito de sorrir. hábito de sorrir. Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, p. 22 e 30

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- Minha mãe trabalhava de empregada - Minha mãe trabalhava de empregada doméstica, a gente não tinha grana pra doméstica, a gente não tinha grana pra

nada. À tarde, o que tinha pra comer nada. À tarde, o que tinha pra comer eram dois pães, que a gente cortava eram dois pães, que a gente cortava

no meio e cada irmão comia metade. no meio e cada irmão comia metade. Um dia eu tava comendo e vendo TV, Um dia eu tava comendo e vendo TV, e e a Afrodite veio e comeu num bocado a Afrodite veio e comeu num bocado

só. Fiquei puto, puxei ela aqui e dei uma só. Fiquei puto, puxei ela aqui e dei uma mordida nela. Aí comecei a refletir: mordida nela. Aí comecei a refletir:

caralho, que situação foda, você morder caralho, que situação foda, você morder um cachorro porque ele comeu o único um cachorro porque ele comeu o único pedaço de pão que você tinha. Graças pedaço de pão que você tinha. Graças

a Deus virou piada, mas foi foda. Por isso a Deus virou piada, mas foi foda. Por isso eu coloquei na capa do disco.eu coloquei na capa do disco.

Emicida em entrevista para Trip, 2011

Emicida, Katiane, Afrodite (cachorra),

Evandro e Dona Jacira

[...] tive que penar pra aprender[...] tive que penar pra aprenderQue minha mãe não ia poder tá lá pra me ver crescerQue minha mãe não ia poder tá lá pra me ver crescer

Tinha que trabalhar pra ter o que comerTinha que trabalhar pra ter o que comerNão ver seu filho aprende a falar, essa porra deve doerNão ver seu filho aprende a falar, essa porra deve doer

Aguentar madame mandar e ter que acatarAguentar madame mandar e ter que acatarAinda ouvindo o bairro sussurrar: Você sabe, mãe solteira é o que?Ainda ouvindo o bairro sussurrar: Você sabe, mãe solteira é o que?

[...][...]Eu vi minha mãe, me jogar dentro do guarda-roupa trancadoEu vi minha mãe, me jogar dentro do guarda-roupa trancadoEra o lugar mais seguro, quando a chuva levou os telhadoEra o lugar mais seguro, quando a chuva levou os telhadoE dizia: Não se preocupa, chuva é normalE dizia: Não se preocupa, chuva é normalJá vi o pior disso aqui, ver o bom hoje é naturalJá vi o pior disso aqui, ver o bom hoje é natural

Emicida - Ooorra

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PARTE 2: A FAMA E PARTE 2: A FAMA E A FOMEA FOME

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Com a fé de quem olha do banco a cenaCom a fé de quem olha do banco a cenaDo gol que nós mais precisava na traveDo gol que nós mais precisava na trave

A felicidade do branco é plenaA felicidade do branco é plena

A pé, trilha em brasa e barranco, que A pé, trilha em brasa e barranco, que penapenaSe até pra sonhar tem entraveSe até pra sonhar tem entrave

A felicidade do branco é plenaA felicidade do branco é plenaA felicidade do preto é quase...A felicidade do preto é quase...

Olhei no espelho, Ícaro me encarouOlhei no espelho, Ícaro me encarou“Cuidado, não voa tão perto do sol“Cuidado, não voa tão perto do sol

Eles num ‘guenta te ver livre, Eles num ‘guenta te ver livre, imagina te ver rei”imagina te ver rei”O abutre quer te ver de algema O abutre quer te ver de algema pra dizerpra dizer“Ó, num falei?”“Ó, num falei?”

Emicida (feat. Larissa Luz e Fernanda Montenegro) - Ismália

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Enquanto mulher, negra, pobre, Enquanto mulher, negra, pobre, moradora de favela, a escritora moradora de favela, a escritora Carolina Maria de Jesus poderia ter Carolina Maria de Jesus poderia ter sido mais uma dentre os tantos sido mais uma dentre os tantos indivíduos invisibilizados que de indivíduos invisibilizados que de tão “desqualificados” pela tão “desqualificados” pela sociedade sequer poderiam ser sociedade sequer poderiam ser “considerados” cidadãos. Um “considerados” cidadãos. Um corpo-sujeito tão “ilegal”corpo-sujeito tão “ilegal”quanto o território que quanto o território que habitava. Pois Carolina habitava. Pois Carolina escapa e inventa umescapa e inventa umoutro lugar. Essa outro lugar. Essa invenção se expressa pela invenção se expressa pela

construção de um discursoconstrução de um discursoque, redigido como diário e que, redigido como diário e publicado em fragmentos publicado em fragmentos - ao qual se segue- ao qual se segueuma produção ainda uma produção ainda pouco conhecida [...].pouco conhecida [...].Uma narradora Uma narradora imprevista, de um lugar imprevista, de um lugar improvável, cujo discursoimprovável, cujo discurso

soa estranho. soa estranho.

Gabriela Leandro Pereira, 2019, p.25

[...][...]

E vou por aí, TalebanE vou por aí, Taleban

Vendo os boy beber Vendo os boy beber Dois mês de salário da minha irmã Dois mês de salário da minha irmã

Hennessys, avelãs, camarins, fãs, Hennessys, avelãs, camarins, fãs, globaisglobais Mano, onde eles tavam há dez Mano, onde eles tavam há dez anos atrás? (Pois é)anos atrás? (Pois é)

Showbiz como a regra diz, Showbiz como a regra diz, leklek A sociedade vende A sociedade vende Jesus, por que que não ia Jesus, por que que não ia vender rap?vender rap?26 27

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Apesar das tentativas de não sucumbir às críticas e Apesar das tentativas de não sucumbir às críticas e da insistência em publicar suas obras, Carolina veria os da insistência em publicar suas obras, Carolina veria os

críticos e o público condená-la ao esquecimento. Os críticos e o público condená-la ao esquecimento. Os desentendimentos com seu “descobridor” Audálio Dantas desentendimentos com seu “descobridor” Audálio Dantas (bem evidente no prefácio de seu segundo livro, Casa de (bem evidente no prefácio de seu segundo livro, Casa de Alvenaria 1961); a desqualificação de sua capacidade Alvenaria 1961); a desqualificação de sua capacidade literária pela imprensa; a falência e o endividamento literária pela imprensa; a falência e o endividamento de quem, em boa parte da vida, teve como de quem, em boa parte da vida, teve como referência comercial o escambo de mercadorias referência comercial o escambo de mercadorias catadas no lixo; a instauração da ditadura militar catadas no lixo; a instauração da ditadura militar e o consequente acirramento da censura com e o consequente acirramento da censura com o AI-5,foram fatores que contribuíram para o AI-5,foram fatores que contribuíram para o desfecho de sua história. Sem conseguir o desfecho de sua história. Sem conseguir se sustentar na “sala de visitas”, Carolina se sustentar na “sala de visitas”, Carolina falece em 1977, pobre, em uma chácara falece em 1977, pobre, em uma chácara na periferia de São Paulo. na periferia de São Paulo.

Gabriela Leandro Pereira, 2019, p. 35

O mundo vai se ocupar com seu cifrãoO mundo vai se ocupar com seu cifrãoDizendo que a miséria é quem carecia de atenção...Dizendo que a miséria é quem carecia de atenção...

Emicida (feat Pitty) - Hoje Cedo

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PARTE 3: O PARTE 3: O SEGUNDO TOM DE SEGUNDO TOM DE

AMARELOAMARELO

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A voz da minha bisavó ecoouA voz da minha bisavó ecooucriança nos porões do navio.criança nos porões do navio.Ecoou lamentosEcoou lamentosde uma infância perdida.de uma infância perdida.

A voz de minha avóA voz de minha avóecoou obediênciaecoou obediência

aos brancos-donos de tudo.aos brancos-donos de tudo.A voz de minha mãeA voz de minha mãeecoou baixinho revoltaecoou baixinho revoltano fundo das cozinhas alheiasno fundo das cozinhas alheiasdebaixo das trouxasdebaixo das trouxasroupagens sujas dos brancosroupagens sujas dos brancospelo caminho empoeiradopelo caminho empoeiradorumo à favela.rumo à favela.

A minha voz aindaA minha voz aindaecoa versos perplexosecoa versos perplexoscom rimas de sanguecom rimas de sangue

e fome.e fome.A voz de minha filhaA voz de minha filharecolhe todas as nossas vozesrecolhe todas as nossas vozesrecolhe em sirecolhe em sias vozes mudas caladasas vozes mudas caladasengasgadas nas gargantas.engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filhaA voz de minha filharecolhe em sirecolhe em si

a fala e o ato.a fala e o ato.Vozes-mulheres

Conceição Evaristo32 33

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Eu escrevia peças e apresentava para os diretores de Eu escrevia peças e apresentava para os diretores de circos. Eles respondia-me:circos. Eles respondia-me:

- É pena você ser preta.- É pena você ser preta.

Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o

cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento que cabelo de branco, é só dar um movimento que

já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.reincarnações, eu quero voltar sempre preta.

Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, p. 64

Há 10 anos, eu estava na Cachoeira, na Há 10 anos, eu estava na Cachoeira, na Associação, há um ano estudando diáspora africana, Associação, há um ano estudando diáspora africana,

entendendo a mim mesma, corrompendo o sistema. entendendo a mim mesma, corrompendo o sistema. 10.639, Gilberto Gil no Ministério da Cultura... Agora era lei: 10.639, Gilberto Gil no Ministério da Cultura... Agora era lei:

os professores teriam que respeitar e contr as histórias afro os professores teriam que respeitar e contr as histórias afro indígenas descendentes nas escolas. Era lei.indígenas descendentes nas escolas. Era lei.

Grandes questionamentos internos meus: “era preciso Grandes questionamentos internos meus: “era preciso alisar cabelo?”. Está pergunta saiu de mim quando vi os alisar cabelo?”. Está pergunta saiu de mim quando vi os cabelos lindos das mulheres negras, que eu conhecia, a todo cabelos lindos das mulheres negras, que eu conhecia, a todo momento. Não, não era, mas o cabelo era meu, eu que momento. Não, não era, mas o cabelo era meu, eu que fizesse do meu jeito, SOU LIVRE. E creiam, quando decidi fizesse do meu jeito, SOU LIVRE. E creiam, quando decidi largar pra lá escovas quentes e sodas cáusticas... Além de largar pra lá escovas quentes e sodas cáusticas... Além de me achar mais bonita, ganhei tempo e sobrou dinheiro pra eu me achar mais bonita, ganhei tempo e sobrou dinheiro pra eu

conseguir levantar o alicerce da casa em que vivo hoje. Na conseguir levantar o alicerce da casa em que vivo hoje. Na conta de noves fora, cada escova levava 4 sacos de cimento conta de noves fora, cada escova levava 4 sacos de cimento

e, junto, o sonho de ter uma casa de alvenaria. e, junto, o sonho de ter uma casa de alvenaria.

EMICIDA. Reflexão para Leandro (Só isso) - Dona Jacira. In: Antologia inspirada no universo da Mixtape Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe... Laboratório Fantasma, LiteraRUA. 2019, p.55-5634 35

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[...] entendemos que a urgência de Carolina [...] entendemos que a urgência de Carolina em escrever é a urgência de quem quer se em escrever é a urgência de quem quer se

inscrever no mundo, de quem quer deixar nele seu inscrever no mundo, de quem quer deixar nele seu legado de forma “oficial”. De quem quer acessar legado de forma “oficial”. De quem quer acessar os códigos e entrar na cidade pela porta da frente, os códigos e entrar na cidade pela porta da frente, não só pela porta dos fundos de um quarto de não só pela porta dos fundos de um quarto de despejo. despejo.

Gabriela Leandro Pereira, 2019, p. 38

Os meninos me disseram : “Mãe, a gente precisa se abraçar mais. Os meninos me disseram : “Mãe, a gente precisa se abraçar mais. A gente precisa se beijar mais. A gente precisa se amar mais e A gente precisa se beijar mais. A gente precisa se amar mais e

dizer que se ama”. “E você precisa continuar criando, precisa dizer que se ama”. “E você precisa continuar criando, precisa viajar pra ver que o mundo não é ruim como nos dizem, tirando viajar pra ver que o mundo não é ruim como nos dizem, tirando os fdps que tem em todo lugar, o mundo é bom”. “A senhora já os fdps que tem em todo lugar, o mundo é bom”. “A senhora já

ouviu falar numa escritora chamada ouviu falar numa escritora chamada Carolina Maria de Jesus?”Carolina Maria de Jesus?”

Eu disse: “Não ouvi, mas acho que é tarde Eu disse: “Não ouvi, mas acho que é tarde pra mim, não sei escrever!”. Hoje dou pra mim, não sei escrever!”. Hoje dou

risada da trava que meu subconsciente risada da trava que meu subconsciente me empunhava. Eu iria escrever meu me empunhava. Eu iria escrever meu livro, fazer exposições pelo Brasil e livro, fazer exposições pelo Brasil e ter a oportunidade de falar para ter a oportunidade de falar para o mundo parar de maltratar as o mundo parar de maltratar as

crianças. Eu iria escrever, enfim, crianças. Eu iria escrever, enfim, sobre a fumaça do Café da minha sobre a fumaça do Café da minha

mãe. mãe. EMICIDA. Reflexão para Leandro (Só isso) -

Dona Jacira. In: Antologia inspirada no universo da Mixtape Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe... Laboratório

Fantasma, LiteraRUA. 2019, p.5736 37

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Permita que eu fale, não as minhas cicatrizesPermita que eu fale, não as minhas cicatrizesSe isso é sobre vivência, me resumir a sobrevivênciaSe isso é sobre vivência, me resumir a sobrevivência

É roubar o pouco de bom que viviÉ roubar o pouco de bom que viviPor fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizesPor fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes

Achar que essas mazelas me definem, é o pior dos crimesAchar que essas mazelas me definem, é o pior dos crimesÉ dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóiz sumirÉ dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóiz sumir

Emicida- AmarElo

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[...] enquanto houver amor[...] enquanto houver amorEu mudarei o curso da vidaEu mudarei o curso da vida

Farei um altar para comunhãoFarei um altar para comunhãoNele eu serei um com o mundoNele eu serei um com o mundo

Até ver o ubuntu da emancipaçãoAté ver o ubuntu da emancipaçãoPorque eu descobri o segredo que me faz humanoPorque eu descobri o segredo que me faz humano

Já não está mais perdido o eloJá não está mais perdido o eloO amor é o segredo de tudoO amor é o segredo de tudoE eu pinto tudo em amareloE eu pinto tudo em amarelo

Emicida (feat Fabiana Cozza, Pastor Henrique Vieira, Pastoras do Rosário) - Principia

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Elaborado para a disciplina de Desenho Urbano e Projeto dos Espaços da Cidade e para a disciplina de Projeto da Paisagem, pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo

por Larissa Gabrille da Silva Hiratsuka

Julho de 2020

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