As Eras Do Mundo

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As eras do mundo - Schelling Introdução O passado é conhecido, o presente discernido e o futuro intimado. O conhecido é narrado, o discernido é apresentado e o intimado é profetizado. A idéia de que o conhecimento seja uma simples consequência e desenvolvimento de seus próprios conceitos e representações foi válida até agora. Mas sua verdadeira representação é a do desenvolvimento de um ser vivo e atual, que se apresenta a si mesmo nele. É uma vantagem de nosso tempo que esse ser tenha sido devolvido à ciência e que se possa de fato dizer que foi de tal modo que não será facilmente perdido. Não é muito severo julgar que, diante do novo espírito dinâmico, toda a filosofia que não sorva seu poder dele só pode ser considerada como um desperdício do nobre dom da fala e do pensamento. O que há de mais vivo na ciência mais elevada só pode ser a vida primordial, o ser antes do qual não há outro e é, portanto, o mais antigo dos seres. Logo, nada que dela procede ou é exterior a ela pode ter determinado essa vida primordial. Ela só pode se desenvolver na medida em que se desenvolve a si mesma, em plena liberdade, a partir de sua própria força e desejo e puramente a partir de si. Mas ela não se desenvolve caoticamente e sim de acordo com uma lei, pois nada tem de arbitrário. É uma natureza no sentido mais complexo da palavra, assim como a pessoa é uma natureza a despeito da liberdade, e não devido a ela. Depois que a ciência atinge a objetividade em relação a seu objeto, decorre como consequência natural que ela busque o mesmo em relação a sua forma. Mas por que isso foi impossível até hoje? Por que aquilo que é conhecido como a mais elevada sabedoria não pode ser narrado com a retidão e a simplicidade de tudo o mais que é conhecido? O que nos veda o acesso àquela sonhada era de ouro em que a verdade novamente se torna fábula e a fábula a própria verdade? Um princípio transcendente é o elemento essencial da pessoa. De outro modo como poderia uma pessoa ser a única criatura capaz de traçar o longo desenvolvimento do presente até mais profunda treva do passado? Como poderia ela , sozinha, sondar o princípio das eras se não fosse ela mesma um princípio de toda e qualquer era? Criada a partir da fonte de todos os seres , à sua imagem e perfeição, a alma humana tem consciência da criação. Na alma reside a mais elevada luz; ela não é simplesmente a capacidade de conhecer mas o próprio conhecimento. Mas o princípio transcendente, ainda em sua pureza primordial, não se encontra livre na pessoa; está aferrado a um outro, a um princípio inferior. Este outro princípio é ele mesmo algo que se realizou, e que é, por sua própria natureza, obscuro e inconsciente. Ele também obscurece necessariamente o princípio mais elevado com o qual se combina. Nele reside a memória de todos os seres, de suas relações originais, de seu vir a ser e seu sentido. Mas esse arquétipo de todas as coisas adormece na alma

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As eras do mundo - Schelling Introdução O passado é conhecido, o presente discernido e o futuro intimado. O conhecido é narrado, o discernido é apresentado e o intimado é profetizado. A idéia de que o conhecimento seja uma simples consequência e desenvolvimento de seus próprios conceitos e representações foi válida até agora. Mas sua verdadeira representação é a do desenvolvimento de um ser vivo e atual, que se apresenta a si mesmo nele. É uma vantagem de nosso tempo que esse ser tenha sido devolvido à ciência e que se possa de fato dizer que foi de tal modo que não será facilmente perdido. Não é muito severo julgar que, diante do novo espírito dinâmico, toda a filosofia que não sorva seu poder dele só pode ser considerada como um desperdício do nobre dom da fala e do pensamento. O que há de mais vivo na ciência mais elevada só pode ser a vida primordial, o ser antes do qual não há outro e é, portanto, o mais antigo dos seres. Logo, nada que dela procede ou é exterior a ela pode ter determinado essa vida primordial. Ela só pode se desenvolver na medida em que se desenvolve a si mesma, em plena liberdade, a partir de sua própria força e desejo e puramente a partir de si. Mas ela não se desenvolve caoticamente e sim de acordo com uma lei, pois nada tem de arbitrário. É uma natureza no sentido mais complexo da palavra, assim como a pessoa é uma natureza a despeito da liberdade, e não devido a ela. Depois que a ciência atinge a objetividade em relação a seu objeto, decorre como consequência natural que ela busque o mesmo em relação a sua forma. Mas por que isso foi impossível até hoje? Por que aquilo que é conhecido como a mais elevada sabedoria não pode ser narrado com a retidão e a simplicidade de tudo o mais que é conhecido? O que nos veda o acesso àquela sonhada era de ouro em que a verdade novamente se torna fábula e a fábula a própria verdade? Um princípio transcendente é o elemento essencial da pessoa. De outro modo como poderia uma pessoa ser a única criatura capaz de traçar o longo desenvolvimento do presente até mais profunda treva do passado? Como poderia ela , sozinha, sondar o princípio das eras se não fosse ela mesma um princípio de toda e qualquer era? Criada a partir da fonte de todos os seres , à sua imagem e perfeição, a alma humana tem consciência da criação. Na alma reside a mais elevada luz; ela não é simplesmente a capacidade de conhecer mas o próprio conhecimento. Mas o princípio transcendente, ainda em sua pureza primordial, não se encontra livre na pessoa; está aferrado a um outro, a um princípio inferior. Este outro princípio é ele mesmo algo que se realizou, e que é, por sua própria natureza, obscuro e inconsciente. Ele também obscurece necessariamente o princípio mais elevado com o qual se combina. Nele reside a memória de todos os seres, de suas relações originais, de seu vir a ser e seu sentido. Mas esse arquétipo de todas as coisas adormece na alma

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como aquilo que foi esquecido e relegado as trevas, mesmo que não seja uma imagem completamente dissolvida. Talvez ele nunca despertasse novamente se não existisse em toda escuridão uma intimação e um desejo ardente pelo conhecimento. O princípio superior é incessantemente conclamado a se enobrecer a partir dessa posição e sente que não se uniu ao princípio inferior para permanecer preso a ele. Está com ele para que tenha um Outro através do qual possa contemplar-se, apresentar-se e se tornar inteligível a si mesmo. No princípio elevado tudo permanece indiferenciado e unificado. [Daí que exista na pessoa aquilo que novamente deve ser trazido à memória, e um Outro que o devolve a memória; é aí que reside a resposta a toda pergunta e o Outro que traz a resposta. Esse Outro é de todo livre e é capaz de tudo pensar, mas permanece limitado pela testemunha interior e nada pode afirmar como verdadeiro sem o assentimento da testemunha. Por outro lado, o que há de mais interior está originalmente preso e não pode desdobrar a si mesmo; mas através do Outro se torna livre e se revela a si .] Portanto, ambos anseiam com igual intensidade pela cisão dentro da qual o primeiro retornaria ao lar de sua liberdade original, revelando-se de si a si mesmo, e o Outro passaria a ser capaz de receber essa luz do primeiro, mas em uma modalidade completamente distinta. Essa cisão, esta dualidade em nós mesmos, essa secreta circulação em que há dois seres, um que pergunta e outro que responde, um ser inconsciente que busca o conhecimento e outro também inconsciente que não conhece sua própria sabedoria, esse diálogo silencioso, essa arte interior do verbo, é o mistério autêntico do filósofo. Desde o exterior esse diálogo é chamado de dialética e toda dialética que se forma é uma cópia do diálogo. Mas quando a dialética se torna uma formalidade, ela é doravante tão somente a aparência vazia, a sombra do diálogo. Portanto, tudo que é conhecido é narrado de acordo com sua natureza. Mas o conhecido não é aqui algo pronto e dado desde o princípio. É sim aquilo que sempre emerge da interioridade através de um processo específico. A luz do conhecimento deve se erguer através de uma cisão e libertação interna antes de poder iluminar. O que chamamos de conhecimento é somente a aspiração rumo a anamnesis e não o próprio conhecimento. Por essa razão o nome de Filosofia foi dado a ele pelos grandes homens da antiguidade. Daí que a visão, mantida de era em era, de que a filosofia pode finalmente ser transformada em conhecimento atual através da dialética e a tendência de considerar a mais consumada dialética como o próprio conhecimento traem mais do que um pouco de estreiteza. A própria existência e necessidade da dialética prova que ela ainda não é conhecimento pleno. A esse respeito, o filósofo não está numa situação diferente a do historiador. Para saber o que deseja, o historiador também deve questionar os testemunhos dos antigos documentos ou as memórias das testemunhas vivas. Precisa de ampla discriminação, de uma atividade crítica capaz de separar o verdadeiro do falso nas tradições recebidas. Também precisa de discriminação em si mesmo, de onde deriva o dito popular de que deve buscar se libertar dos conceitos e peculiaridades de seu tempo. Há ainda muitas outras similaridades, que demandariam muito tempo para serem aqui narradas.

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Tudo, absolutamente tudo, mesmo aquilo que é por natureza eterno, já deve ter se interiorizado em nós antes que possamos apresenta-lo de forma exterior ou objetiva. Se o escritor da história não despertar em si mesmo a era passada cuja imagem deseja projetar para nós, então nunca a apresentará de forma verdadeira e viva. O que seria toda a história se um senso interior não estivesse a nossa disposição? Seria o que é para muitos que sabem tudo que aconteceu, mas que nada sabem sobre a história real. Tanto os eventos humanos quanto a história da natureza tem seus monumentos e podemos ter certeza que eles não prosseguem seu amplo caminho criativo sem antes deixar algo para indicar seus passos. Esses monumentos da natureza, em sua maior parte, residem a céu aberto, e são explorados de múltiplas formas , sendo até parcialmente decifrados. E no entanto eles nada dizem a nós e permanecem mortos a não ser que essa sucessão de ações e produções se torne interior aos seres humanos. Logo, tudo permanece incompreensível para os seres humanos até se tornar algo de interior, isto é, até ter atingido o centro do seu ser, onde reside a testemunha viva de toda a verdade. Alguns sempre pensaram que seria possível ignorar esse Outro completamente, sublimando toda dualidade de tal forma que nós só vejamos através da interioridade e vivamos inteiramente na transcendência, tudo conhecendo imediatamente. E quem pode absolutamente negar a possibilidade dessa transposição do ser humano em seu princípio transcendente e portanto uma elevação dos poderes de sua mente até a visão direta? De tempos em tempos, todo ser físico e moral precisa, para sua preservação, se reduzir ao seu princípio mais interior. Os seres humanos estão sempre se rejuvenescendo e se alegrando novamente através do sentimento da unidade de seu ser. É daí precisamente que aqueles que buscam o conhecimento continuamente sorvem um novo poder. Os filósofos também tem seus êxtases, assim como os poetas. Eles precisam disso para terem segurança, através do sentimento da indescritível realidade daquela representação mais elevada, contra os conceitos forçados de uma dialética vazia que carece de entusiasmo. Mas é outra coisa que a constância desse estado de intuição que luta contra a natureza e a determinação atual da vida. Pois não importa como consideremos a relação desse estado com o outro, trata-se sempre do seguinte: o que estava unido de forma indivisível nesse estado, se desdobra no outro e nele se fragmenta. Não vivemos na visão direta. Nosso conhecimento é parcial, isto é, deve-se produzir parte por parte, de acordo com seções e gradações, e tal não pode se dar sem a reflexão. Portanto, o objetivo não pode ser atingido por uma simples visão. Pois não há compreensão na visão em si mesma. No mundo exterior todos vêem aproximadamente a mesma coisa, mas nem todos podem expressá-la. Toda coisa, para chegar a sua perfeição, passa por certos momentos. Uma série de processos consecutivos, onde o posterior sempre se funde com o anterior, traz toda coisa até sua maturidade. O fazendeiro, por exemplo, vê o progresso da planta assim como o estudioso, mas não é capaz de verdadeiramente contemplar a planta, já que não pode reter os seus momentos separados em sua oposição recíproca. Todavia resta que o ser humano pode deixar correr em si, e imediatamente experimentar aquela sucessão de processos através da qual a multiplicidade indefinida é produzida a partir da mais elevada simplicidade do ser; e para falar de forma mais precisa, o ser humano deve

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experimentar isto em si mesmo. Mas toda experiência, sentimento e visão é em si mesmo mudo e precisa de um órgão mediador para que se expresse. Se o visionário carece desse órgão ou intencionalmente o afasta para falar diretamente a partir da visão, ele logo perde o seu fundamento necessário e se torna indistinto de seu objeto ( obscuro para todos os outros seres humanos). Por esse motivo, ele não é dono de sua razão e se esforça em vão para exprimir o inexprimível. O que descobre não possui qualquer firmeza, pois não pode fixar o objeto diante de si, olhando intelectualmente para ele como em um espelho. Portanto, esse princípio da exteriorização não deve ser desprezado de forma alguma. Tudo deve ser trazido até uma reflexão actual onde possa atingir a mais elevada presença. Eis aí a fronteira entre a teosofia e a filosofia, a qual o amante do conhecimento busca castamente proteger. A teosofia supera a filosofia em profundidade, plenitude e vitalidade da mesma forma que objeto presente supera sua imagem e a natureza sua representação. E essa diferença se aproxima da incomensurabilidade se a compararmos a uma filosofia morta que busca o ser em formas e conceitos. Daí que seja fácil explicar a predileção daqueles que tem uma tendência à interioridade pela teosofia, assim como também preferem a natureza a arte. Os sistemas teosóficos tem a vantagem sobre tudo o que hoje se divaga: eles pelo menos tem um poder, mesmo que indomado, enquanto nos outros sistemas só existe uma arte artificial e pedante. Mas assim como pouco da natureza resta inacessível quando se possui a verdadeira arte, também pouco da plenitude e da profundidade da vida se esconde quando se tem o conhecimento verdadeiro. Ele só é atingido gradualmente, em um processo no qual o conhecedor sempre se encontra distante do objeto, mas também o objeto permanece separado do conhecedor, em uma contemplação pacífica e matizada. Todo conhecimento deve, portanto, passar pela dialética. Mas é outra questão saber se algum dia o conhecimento se tornará tão livre e vivaz quanto a imagem das eras para o historiador que não se lembra de suas investigações ao apresentá-la. Pode a lembrança do começo primordial de todas as coisas ser novamente tão preenchida de vida a ponto de fazer com que o conhecimento, que em seu conteúdo e significado é história, também se torne história em sua forma exterior? E poderia então o filósofo se voltar para simplicidade do histórico, como o divino Platão, que, durante toda a sua obra segue o caminho da dialética, mas em seu ponto culminante tudo transfigura em história? Parece caber a nossa era abrir o caminho para essa objetividade da ciência. Enquanto nossa era se restringir à interioridade e ao Ideal, sempre carecerá dos meios naturais para uma plena apresentação exterior. Mas, depois de longo tempo perdida, ela parece ter novamente desenvolvido a lembrança da natureza e da anterior unidade entre ela e a ciência. Mas não se parou aí. Mal foram dados os primeiros passos do reencontro da filosofia com a natureza e já se tornou forçoso reconhecer o antigo império do mundo físico ( do cosmos) e como ele, longe de ser o último, esteve no princípio de tudo, mesmo da vida divina. Desde então a ciência não parte mais de remotos pensamentos abstratos para chegar até a natureza. Muito pelo contrário. Partindo da existência inconsciente do eterno, a ciência se guia até a mais elevada transfiguração e

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a consciência divina. Os pensamentos mais transcendentes agora recebem um poder físico e a própria vida, enquanto a natureza se torna cada vez mais a marca visível dos conceitos mais elevados. Logo o desprezo com que somente os ignorantes ainda olham para a realidade física desparecerá e novamente resplandecerá a afirmação: " A pedra rejeitada pelos construtores se tornou a pedra angular". Não haverá mais espaço para uma distinção entre o mundo do pensamento e o da actualidade. Haverá somente um mundo e a paz da era de ouro se manifestará na reunião de todas as ciências. Com tais intenções, que o presente escrito tentará justificar canhestramente, começa a preparação para que essa futura apresentação objetiva da ciência ouse se manifestar. Talvez ainda esteja por vir aquele que cantará o maior dos poemas épicos, tendo em seu espírito aquilo que fez a fama dos visionários de outrora: o que foi, o que é e o que será. Mas este tempo ainda não é chegado. Não devemos julgar erroneamente nosso próprio tempo: ainda é um tempo de luta e conflito. O objetivo ainda não foi atingido. Não podemos ser narradores, mas tão somente exploradores, pesando os prós e contras de todas as visões até que a verdade finalmente se afirme por toda a eternidade.