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AS CIDADES BURGUESAS DA AMÉRICA LATINA: ou a história de (quase) todos nós Claudete Gebara José Callegaro Comentários gerais sobre o livro América Latina: As cidades e as idéias. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. - Resenha do Capítulo 6: “As cidades burguesas” - Reflexões pessoais Este trabalho foi elaborado como exercício da disciplina de pós-graduação Teoria do Conhecimento: História e Cultura, liderada pelos professores doutores Cândido Malta Campos Neto e José Geraldo Simões Junior, no programa de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo oferecido pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, outubro de 2012

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AS CIDADES BURGUESAS DA AMÉRICA LATINA:

ou a história de (quase) todos nós

Claudete Gebara José Callegaro

Comentários gerais sobre o livro América Latina: As cidades e as idéias. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

-

Resenha do Capítulo 6: “As cidades burguesas” -

Reflexões pessoais

Este trabalho foi elaborado como exercício da disciplina de pós-graduação Teoria do Conhecimento: História e Cultura,

liderada pelos professores doutores Cândido Malta Campos Neto e José Geraldo Simões Junior,

no programa de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo oferecido pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

São Paulo, outubro de 2012

ROMERO, José Luis. As cidades burguesas. América Latina: As cidades e as idéias. Capítulo 6. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

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Figura 1 – Capa e Ficha Técnica da publicação consultada.1

Figura 2 – Sumário da edição consultada.

1 O livro em questão não apresenta ilustrações de tipo algum, nem fotos ou tabelas, assim como notas

explicativas (as poucas existentes foram introduzidas pelo tradutor). As imagens inseridas no presente documento são iniciativa desta aluna, visando condensar informações extensivamente descritas por Romero.

capítulo resumido

ROMERO, José Luis. As cidades burguesas. América Latina: As cidades e as idéias. Capítulo 6. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

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PARTE I

COMENTÁRIOS GERAIS

(elaborado a partir de Apresentação, Prefácio e Introdução do livro e complementado

com base em fontes informadas no final deste documento)

1 - O AUTOR

J. L.Romero estudou História na Universidade de La Plata, identificando-se pouco com a

linha documentarista erudita, mas apaixonando-se pelos ensinamentos de ordem mais

orientalista, humanista e um pouco anarquista. Dedicou-se à história antiga e doutorou-se

em 1939 com uma tese sobre os irmãos Graco e a crise da República Romana, sendo que a

temática em torno das crises na história permaneceu sendo seu foco de estudo até sua

morte. (Ver item 2 adiante.)

Tinha múltiplos interesses, como boxe, música moderna, literatura, ópera, pintura. Em 1929,

editou a revista Clave de Sol, de humanidades, arte e literatura. Em 1953, fundou a Imago

Mundi, revista de história da cultura. Era extremamente culto e na obra em análise cita

inúmeras referências literárias que ilustram cada fase estudada, representando um rico

material para aprofundamento e ampliação das questões sob ponto de vista antropológico,

sociológico, psicológico e mesmo sobre a estética em cada época.

Figura 3 – Ficha Cadastral com foto obtida em

http://es.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Luis_Romero_(historiador), acessado em 23/09/2012.

José Luis Romero nasceu em Buenos Aires,

Argentina, em 1909, filho de espanhóis

recém-chegados ao país.

Boa parte de sua vida foi orientada pelo irmão

mais velho, Francisco Romero, militar,

engenheiro e um dos mais destacados

filósofos da Argentina.

Casou-se em 1933 com uma platense

formada em filosofia.

Seu filho Luis Alberto Romero prosseguiu o

caminho acadêmico em história, é

reconhecido como autoridade no assunto e

assina o Prefácio deste livro.

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Foi ativo socialista, acreditando que, por meio desse sistema, os valores da cultura ocidental

de liberdade, igualdade e humanismo2 alcançariam realização plena, deixando claro que não

se identificava nem com o stalinismo, nem com os movimentos anticomunistas. Na década

de 1960, Romero representava o equilíbrio instável entre modernização científico-cultural e

radicalismo político. Promoveu a renovação da universidade, mas se recolheu em seu

gabinete particular por volta de 1965, quando percebeu a exacerbação dos ânimos políticos

de ativistas e reacionários, que levaria à ruptura daquele equilíbrio.

Intensificou, então, suas pesquisas e editou muitos livros, sendo que a obra em análise foi

publicada em junho de 1976, dois meses depois do golpe militar que elevou Jorge Videla à

presidência da república, após o vácuo político deixado pela morte de Juan Domingo Perón

em 1974. A editora Siglo Veintiuno foi arrasada pelos militares e fechada logo após a

publicação da obra aqui tratada.

Figura 4 – Lista de Publicações, obtidas em http://es.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Luis_Romero_(historiador),

acessado em 23/09/2012. (Realces nossos.)

Para alguns, Romero era mais filósofo do que historicista e nem sempre foi incluído dentre

os acadêmicos reconhecidos na Argentina e no mundo, talvez por não seguir os cânones

formais3. Assumiu, contudo, cargos de chefia e liderança em várias épocas, influenciando

muitos pensadores; seus livros também foram adotados como referência para leitura em

muitas universidades. Faleceu subitamente em 1977, em Tóquio, onde integrava o Conselho

Diretor da Universidade das Nações Unidas.

2 O termo “humanismo” consta desta edição, mas creio que, para nós, a tradução mais comum seja

“fraternidade”. 3 Seus livros não têm notas de rodapé e ele raramente tratava das questões-foco dos debates, especialmente no

auge desses.

Publicaciones Los Gracos y la formación de la idea imperial (tesis doctoral, 1937) El Estado y las facciones en la antigüedad (1938) Maquiavelo historiador (1943) Mitre, un historiador frente al destino nacional (1943) Sobre la biografía y la historia (1945) Las ideas políticas en la Argentina (1946) El ciclo de la Revolución Contemporánea (1948) La Edad Media (1949) De Heródoto a Polibio (1952) La cultura occidental (1953) Argentina: imágenes y perspectivas (1956) Breve historia de la Argentina (1965) El desarrollo de las ideas políticas de la sociedad argentina en el siglo XX (1965, ampliación de Las ideas políticas en la Argentina) La revolución burguesa en el mundo feudal (1967) Crisis y orden en el mundo feudo-burgués (1967) Latinoamérica: situaciones y ideologías (1968) El pensamiento político de la derecha latinoamericana (1970) La gran historia de Latinoamérica (dir., 1972)

Latinoamérica: las ciudades y las ideas (1976) texto em análise

La estructura histórica del mundo (inconclusa) Buenos Aires, historia de cuatro siglos (1980)

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2 – SEU PENSAMENTO

José Luis Romero não se ateve a processos específicos, como Gilberto Freyre e Celso

Furtado, por exemplo, que demonstravam tendências bem nítidas para antropologia-

sociologia e para economia, respectivamente. Buscou entender a história total, o cotidiano, o

que fica oculto, identificando-se muito com linha mais recente dos Annales4, sendo, mesmo,

considerado um pioneiro da antropologia histórica, hoje bastante associada a Jacques Le

Goff.

Sua concepção de história abrange o real e o imaginário, incluindo suas próprias vivências,

inúmeras visitas a diferentes regiões, mapas, guias, filmes, literatura variada, diálogos. Com

isso, conseguia fazer transparecer em seu texto a perpétua mudança e dentro dessa as

etapas principais do processo histórico, resumidas em: surgimento da novidade,

desenvolvimento da crise, revolução. Isso ocorre em escalas diversas, desde os assuntos

do cotidiano até os grandes processos mundiais.

Segundo essa dinâmica, é possível se entender os dias de hoje como parte de um processo

que tem suas origens no passado da civilização ocidental (ou até antes):

a) O Império Romano recolhia e reelaborava os legados do mundo clássico, do

germânico e do cristão, dando início a algo novo: o mundo ocidental.

b) Após longo processo de conformação, estabilização e ordenação do mundo feudal

durante a Idade Média, algo de novo surge novamente: o mundo burguês, profano,

dissidente daquela ordem cristã.

c) No momento inicial dessa novidade emergente, houve um processo de acomodação

do velho e do novo no quadro da sociedade feudo-burguesa, permanecendo latente e

velada essa nova mentalidade.

d) A crise implícita explode em revolução no século XVIII e culmina com o triunfo do

mundo burguês e capitalista, amparado pelo pensamento iluminista e liberal, em que

humanismo, sociedade contratual, vontade popular, ciência empírica e legal

convergiam para novas experiências.

e) Tal fase teve seu desfecho com o término da Primeira Guerra Mundial, com a

caducidade de vários valores burgueses e o surgimento do pensamento socialista

como uma alternativa de renovação.

4 Refere-se ao movimento historiográfico francês que criou o periódico Annales d'histoire économique et sociale.

Essa escola de pensamento propunha-se ir além da visão positivista da história (eventos lineares, ação e reação em relação direta), incluindo na análise a maneira de pensar em cada época e as atividades humanas até então pouco investigadas. Sendo assim, substitui o estudo dos eventos (tempo breve da história) pelo estudo dos processos (longa duração). Para tanto, amplia e integra o quadro das pesquisas isoladas em História, Sociologia, Psicologia, Economia, Geografia humana, entre outras, por meio de métodos pluridisciplinares. A escola dos Annales passou por quatro fases. A primeira geração, a partir de 1929 (um pouco antes da crise sistêmica mundial conhecida como “Grande Depressão”), liderada por Marc Bloch (morto pela Gestapo na II Guerra Mundial) e por Lucien Febvre, que atuou até o final da década de 1940, formando seus sucessores. A segunda geração, do final dos anos 1940 até a década de 1970, liderada por Fernand Braudel. A terceira geração, nos anos 1980, com participação de muitos pesquisadores e liderança de Jacques Le Goff, quando ocorreu certa disseminação do conceito de "Nova História", segundo a qual, toda atividade humana é considerada história, o que significou para alguns uma ruptura com a linha anterior constituindo-se, para esses, um novo movimento. A quarta geração, a partir de 1989 até hoje, tendo alterado seu título em 1994 para Annales. Histoire, Sciences Sociales.

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Para Romero, o conflito é que torna dinâmica uma sociedade e deve ser buscado nas

fronteiras culturais que se formam quando diferentes universos entram em colisão. Essa

dinâmica decorre em grande parte de dois tipos de movimentos de desenvolvimento:

a) heterônomo, decorrente do impacto exercido pela introdução de um elemento

externo, culturalmente estranho ao grupo em análise;

b) autônomo, em que a novidade introduzida naquela realidade específica é ideológica

e tecnicamente avaliada, adaptada e absorvida (ou não).

Era otimista, acreditando na possibilidade de conciliação pelo surgimento de uma “cultura

comum”, e que é na cidade que isso pode acontecer, talvez não como cenário para essa

nova cultura comum, mas como motor imprescindível para sua produção.

3 - SOBRE A AMÉRICA LATINA

“Qual é o papel das cidades no processo histórico latino-americano?” Essa é a pergunta-

chave deste livro e Romero acreditava que, no caso da latino-américa, a compreensão das

tramas mais profundas ocultas nas relações citadinas era o caminho para o entendimento

dos fatos gerais e até da sociedade global.

Romero observou que as estratégias de dominação hispânica e portuguesa diferenciaram-se

entre si, o que levou a um início de relação cidade-campo e de urbanização também

diferente entre Brasil e demais países latino-americanos. Porém, a Latino-América se

constituiu, desde o início do descobrimento, em projeção do mundo europeu mercantil e

burguês e, sendo assim, apesar das diferenças de conduta e estratégia entre portugueses e

espanhóis, as semelhanças e contemporaneidades dos fatos ocorridos a leste e oeste do

Meridiano de Tordesilhas5 possibilita que as cidades sejam classificadas em conjunto.

5 Os reinos de Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Tordesilhas em 1494, dividindo entre si as terras

novas. O Meridiano ficaria a 370 léguas a oeste da Ilha de Santo Antão, no Arquipélago de Cabo Verde, mas seu posicionamento levou a discordâncias técnicas ao longo dos anos, suscitando e justificando inúmeras disputas.

Figura 5 – Meridiano de Tordesilhas. Fonte:

Revista “Isto É“ mencionada em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Tordo.jpg, acessado em 15/10/2012.

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Romero classifica as cidades latino-americanas por períodos, em função do grau de

dependência cultural, política e econômica em relação aos países dominantes:

a) Cidades fidalgas – crescimento do comércio e do poder das cidades (desde o

descobrimento, o século XVI, até metade do século XVIII);

b) Cidades criollas6 – a partir da independência das colônias em relação às matrizes

europeias (de modo geral da segunda metade do século XVIII até o início do século

XIX);

c) Cidades patrícias – formação da identidade de cada lugar, desenvolvimento das

cidades como centros administrativos inclusive do campo (desde o final do século

XVIII até a segunda metade do século XIX)

d) Cidades burguesas – crescimento do comércio internacional e intensificação do

interno, crescimento e concentração do poder nas cidades, implantação do sistema

republicano, intensificação das imigrações europeias em função da industrialização lá

ocorrida (de modo geral do final do século XIX até 1930 (Grande Recessão);

e) Cidades massificadas – movimentos de massa, alta industrialização (a partir de 1930

até pelo menos o final dos anos 1970, quando Romero faleceu);

f) (Romero faleceu em 1977 e não sabemos como ele classificaria anos atuais).

A dualidade às vezes hostil entre campo e cidade, que muitas vezes pareceu decorrer de

ideologias opostas, na Latino-América de fato resultou num mecanismo de mútua influência

que, pela alternância de processos heterônomos e autônomos, forjou sua história social e

política e, em decorrência disso, sua arquitetura e urbanização.

Tomando-se as cidades fidalgas como ponto de partida, pode-se perceber a dinâmica de

que Romero falava7:

a) Em função da economia de dependência entre a América Latina e a Europa, as

cidades fidalgas buscaram se definir como uma Nova Europa (desenvolvimento

heterônomo).

b) Em seu seio surge a sociedade burguesa criolla com suas peculiaridades de região

para região, de país para país.

c) De outro lado, a sociedade formada no campo, que circunda a cidade e com a qual

tem estabelecidas relações de interdependência, ganha personalidade e reforça a

sociedade fidalga rural tradicional (desenvolvimento autônomo).

d) Esta, por sua vez, entra em conflito com a nova burguesia urbana em ascensão,

frustrando seus propósitos de imitação. Em função disso, a burguesia criolla tem uma

aparição fugaz no quadro social latino-americano.

e) Diferentemente da Europa, o conflito entre cidade e campo não leva ao confronto,

mas a uma mescla dessa burguesia com as velhas e novas elites de base rural,

dando o tom das novas cidades.

f) Decorre, porém, que nesse amálgama cultural o conflito rural-urbano permanece

latente e não bem resolvido, resultando em reflexos da cultura rural na cidade e

contribuindo para a vitória dos modelos europeus e norte-americanos sobre a cultura

latino-americana, traduzidos em industrialização.

6 Criollo se refere à geração já nascida na colônia.

7 Relações comentadas por Adrián Gorelik (arquiteto e historiador argentino) e Tulio Halperin Donghi (historiador

argentino) sobre a obra em questão, constantes na Introdução, p. 15.

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g) Embora pareça um paradoxo, as mazelas (autonomia) das cidades latino-americanas

pós 1950 se expandem, em decorrência de políticas de desenvolvimento e

modernização, necessárias à implantação dos modelos estrangeiros (heteronomia).

3.1 – AMÉRICA ESPANHOLA

A América Latina, antes da chegada dos europeus, era predominantemente rural, com

pequenas concentrações humanas em aldeias. Havia algumas culturas superiores

organizadas em cidades como Tenochtitlán (Império Asteca – figura 6) e Cuzco (Império

Inca), mas em geral localizadas no interior do continente e sem função de defesa contra

invasores (figura 7).

Figura 6 – Cidade de Technotitlán, representante do Império Asteca. Imagem obtida em

t.wikipedia.org/wiki/Ficheiro: Murales_Rivera_-_Markt_in_Tlatelolco_3.jpg em 14/10/2012.

TENOCHTITLÁN (Cidade do México)

CUZCO

Figura 7 - Centros pré-

hispânicos na América Latina (estrelas amarelas)

transformados em capitais coloniais. Elaboração da autora

sobre base obtida em https://maps.google.com.br/.

Descrição Mexico City - Palacio Nacional. Mural by Diego Rivera showing the life in Aztec times, i.e., the city of Tenochtitlan.

Data 09.04.2008

Origem Obra do próprio

Autor Wolfgang Sauber

Permissão (Reutilizar este

ficheiro)

COM:FOP#Mexico

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Se em muitas regiões os conquistadores só encontraram culturas primitivas – como na costa brasileira ou no rio da Prata -, em outras depararam com culturas de alto nível que os surpreenderam. Entretanto, em todos os casos, um inabalável preconceito levou-os a operar como se a terra conquistada estivesse vazia – culturalmente vazia – e povoada apenas por indivíduos que podiam e deviam ser arrancados de sua trama cultural para serem incorporados ao sistema cultural dos colonizadores por meio da catequese religiosa, mas mantidos fora do sistema econômico por eles implantado. O aniquilamento das velhas culturas – primitivas ou desenvolvidas – e o deliberado desconhecimento de seu significado constituíam o passo imprescindível para o propósito fundamental da conquista: instaurar sobre uma natureza vazia uma nova Europa, a cujos montes, rios e províncias uma cédula real ditava que lhes fossem dados novos nomes como se nunca os houvessem tido. p.43-44

Romero chamou de “cidade ideológica” ao núcleo urbano original, criado pelos

conquistadores com o propósito de domínio de um território que consideravam culturalmente

vazio. O campo, constituído pela “realidade que circunda a cidade”, com o tempo também

comparece como lugar de ideologia, ou seja, de formas sociais diferenciadas, com corpo de

crenças, ideias, valores e estilos de vida conforme os grupos sociais e sua localização.

É interessante lembrar que os descobrimentos se relacionam com um movimento maior

(Renascimento), segundo o qual a sociedade urbana era a forma mais elevada que a

vida humana podia alcançar, nos moldes do que Aristóteles denominava a forma “perfeita”.

A Europa, das cidades muradas preparadas para defesa, fazia, pois, uma releitura do

pensamento clássico em busca de soluções para as novas demandas burguesas em

ascensão havia pelo menos 3 séculos, abafadas nesse tempo todo principalmente pela

atuação da Igreja Católica.

A cidade ideológica, assim, deveria ter um sistema político rigidamente hierárquico e apoiado

na sólida estrutura da monarquia cristã, de modo a moldar o caráter inerte e amorfo da

realidade preexistente, levando desenvolvimento à região, sem permitir, contudo, um

desenvolvimento autônomo e espontâneo da mesma. Dessa maneira, a rede de cidades

hispânicas constituiria um império colonial efetivo, periférico e dependente do mundo

metropolitano, que não poderia abrigar expressões próprias; pelo contrário, deveria ser

homogêneo quanto à religião, idioma, legislação e política, e, além de tudo, fazer com que a

nova sociedade reconhecesse sua dependência e vetasse, ela mesma, movimentos de

diferenciação. Embora homogêneas, as cidades hispânicas na América tinham cada qual

uma função específica dentro do sistema: portos, redutos militares, centros de mineração,

empórios mercantis.

Com o tempo, esse experimento se mostrou puro delírio, pois a realidade social e cultural da

América Latina era caótica e as reações a tais imposições desde o início se tornaram

incontroláveis. De fato, as cidades serviram ao seu propósito ideológico, mas não como o

esperado; aos poucos foram surgindo combinações diferentes de atividades além daquelas

básicas que lhes haviam sido impostas inicialmente, dando espaço a respostas espontâneas

adequadas a cada região, a estilos de vida peculiares, deixando de ser arremedos das

cidades espanholas genéricas. A diferenciação das cidades hispano-americanas e seus

projetos de futuro contribuíram para a remodelação do império originário.

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A cidade formal da época das fundações – a da ata e do escrivão, da espada e da cruz – começou a descobrir que era uma cidade real, pequena e quase sempre miserável, com poucos habitantes e muitos riscos e incertezas. Começou a descobrir que estava nem um lugar real, rodeada de uma região real, ligada por caminhos que levavam a outras cidades reais através de zonas rurais reais, tudo com características singulares que escapavam de qualquer generalização curial. Começou, então, a descobrir que de tudo isso advinham seus verdadeiros problemas e dependiam suas possibilidades futuras. Assim, as cidades tornaram-se reais, tomando consciência da região em que estavam inseridas. Entretanto, a cidade real tomou também consciência de que constituía uma sociedade real, não a dos primeiros habitantes, mas, sim, a dos que, afinal, permaneceram nela, ergueram sua casa ou se instalaram em casa alheia ou, não podendo, resignaram-se à mísera moradia que consagrava a sua marginalidade, os que viveram de seu trabalho na cidade e povoaram suas ruas e suas praças, os que lutaram pelos pequenos problemas cotidianos ou pelos mais graves, que encerravam decisões acerca do destino da cidade, e depois os herdeiros daqueles e os que lentamente foram-se agregando até se incorporarem. A cidade real tomou consciência de que era uma sociedade urbana composta por seus integrantes reais: os espanhóis e os criollos, os índios, os mestiços, os negros, os mulatos, os cafuzos, todos unidos inexoravelmente apesar da sua organização hierárquica, todos unidos em um processo que conduzia, também inexoravelmente, à sua interpenetração e à incerta aventura desencadeada pelos imprevistos da mobilidade social. [...] Tomar consciência da peculiaridade de cada sociedade urbana foi, para cada uma delas, esboçar uma definição concreta que se integrava no quadro de sua ideologia. p.47-48

3.2 – AMÉRICA PORTUGUESA

Quanto ao Brasil, diferentemente da América espanhola, a tônica foi manter o território como

uma extensão da área rural portuguesa, tática idêntica à utilizada nas demais colônias pelo

mundo, visando exploração máxima de insumos, os quais estavam no campo. As cidades,

portanto, nasceram como apoio para os portos marítimos necessários para a exportação

desses insumos e as regras eram ditadas pela aristocracia dona dos latifúndios de onde

provinham os principais insumos.

Tais regras, aqui, eram bem mais flexíveis do que as hispânicas. Permitiam que uma nova

sociedade se delineasse de forma espontânea, o que levou à grande miscigenação e à

aculturação que caracterizam ainda o país.8

Os senhores das terras, no Brasil, eram amantes da vida rural e residentes em suas

propriedades; usavam as cidades apenas como entreposto para importações e exportações,

tratando-as como simples feitorias, pouco valorizando as demandas e as ideias de artesãos

e pequenos funcionários, clérigos e pequenos comerciantes. Até o século XVIII, somente

algumas cidades insinuavam sua influência, como Salvador e Recife. A partir de então, o

desenvolvimento econômico e a diferenciação social provocaram uma crescente autonomia

das cidades e a ascensão das burguesias locais, e a sociedade urbana ganhou significação.

8 Em algumas regiões da hispano-América essa condição de primazia do rural sobre o urbano também

aconteceu, com as haciendas e a exploração legal do trabalho indígena, embora em menor escala e sem tantas

mesclas culturais e étnicas quanto no Brasil. Hacienda: grande propriedade proveniente da divisão das terras americanas conquistadas pela Espanha.

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3.3 – CONTEMPORANEIDADE DE EVENTOS

A partir do século XVIII, fatos e processos ocorridos nas duas colonizações, portuguesa e

espanhola, passaram a ser semelhantes. O impacto mercantilista ocorrido na Europa,

refletido nas colônias hispânicas e portuguesas, fez com que cidades fidalgas

diversificassem sua linha de desenvolvimento; algumas mantiveram seu sistema tradicional

marchando para a estagnação e outras aceitaram a ideologia burguesa inserindo-se na rede

mercantil internacional, dando lugar a novas burguesias.

Essa adaptação das ex-colônias ao mundo capitalista mobilizou as áreas rurais e repercutiu

especialmente nas cidades. Dentre as cidades fidalgas e burguesas, algumas mantiveram

sua relação com Espanha e Portugal e outras buscaram independência. Setores rurais que

ficaram para trás durante a época colonial irromperam na vida pública exigindo sua parte no

poder e buscando sua ascensão social.

As burguesias, que aceitaram o desafio de produzir uma mudança profunda na estrutura da área que as cidades controlavam, submeteram de alguma forma seus próprios interesses aos interesses comuns. Somaram-se às suas fileiras as novíssimas elites criadas pela ascensão dos grupos rurais e, juntas, assumiram a missão de dar um projeto político e uma orientação ao conjunto social. Assim se constituiu a nova aristocracia, profundamente comprometida com o destino nacional, embora seus membros tenham misturado indistintamente os interesses públicos com seus interesses particulares. p.50

Restabelecidas as forças internas (desenvolvimento autônomo), no final do século XIX novos

impactos externos alteram o sistema. A sociedade industrial (desenvolvimento heterônomo)

força a inclusão das cidades ativas à política imperialista, primeiro europeia e em seguida

norte-americana. Para tanto, foi necessário que a burguesia contivesse o desenvolvimento

autônomo mediante um poder forte, de maneira a fazer valer a ideologia do progresso. Tal

postura alterou o equilíbrio com o mundo rural, gerando migrações para as cidades,

crescimento demográfico, exacerbação das diferenças sociais e ideológicas.

A partir da crise financeira mundial de 1929, as mudanças se precipitaram. O processo de

metropolização das mais importantes cidades ativas latino-americanas passou a ser

diretamente proporcional à crise do mundo rural. A adesão das altas burguesias à ideologia

da sociedade de consumo reforçou a característica heterônoma desse desenvolvimento e

trouxe para o cenário urbano uma vasta multidão de marginais alojados em favelas

(desenvolvimento autônomo), transformando as metrópoles em ilhas de riqueza rodeadas de

pobreza.

Nesse jogo fica clara a tese de Romero, quanto à alternância entre desenvolvimento

autônomo e heterônomo, e quanto à dialética entre o urbano e o rural, mostrando a

unicidade dessa rede de relações e sua interdependência sistêmica.

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PARTE II

CAPÍTULO 6 - AS CIDADES BURGUESAS

(p.283-352)

Este capítulo se constitui de 6 tópicos, cada qual com um aspecto do cenário em análise,

basicamente entre 1880 e 1930, com certa variação de país para país, ou mesmo segundo a

hierarquia de grandeza das cidades e de importância das áreas rurais. São eles:

1. Transformação ou estagnação

2. A mobilidade das sociedades urbanas

3. O exemplo de Haussmann

4. A cotidiana imitação da Europa

5. Tensões e enfrentamentos

6. O apogeu da mentalidade burguesa

Romero às vezes se torna um pouco repetitivo, redescrevendo o contexto em cada um

desses sub-títulos para então expor o(s) aspecto(s) específico(s) em análise, mas isso é

compreensível visto sua lógica não ser linear. De fato, em cada um desses momentos ele

acrescenta novas informações e interpretações sob os vários pontos de vista da sociedade,

tanto quanto a aspectos macro, como sobre a vivência das pessoas, ilustrando com nomes

de livros e outras fontes artísticas para quem desejar se aprofundar.

Faz uma breve introdução antes de iniciar os tópicos, relembrando que, a partir de 1880, as

cidades latino-americanas, especialmente as capitais portuárias e os entrepostos entre a

área rural e o exterior, começaram a sofrer mudanças velozes e nítidas em função da

percepção de progresso dos vários grupos humanos. As categorias de análise de que mais

trata são: estrutura social, fisionomia das cidades, atividades, paisagem, formas de pensar e

costumes.

Essa dinâmica exacerbada do comércio e das cidades imprimiu uma imagem de “aventura”9

à América Latina, fazendo com que estrangeiros sem muita ética viessem com o intuito de

enriquecer, sem preocupação com o modo de realização e suas consequências; atraiu,

também, outros empreendedores que contribuíram com método, tecnologia, conhecimento e

capital para o desenvolvimento industrial e de outros setores da economia.

Nas matrizes, esse crescimento urbano vertiginoso acontecia, porém em função da

industrialização, resultando em maior necessidade de alimentos e vestuário, que

demandavam insumos que muitas vezes a produção europeia não conseguia suprir. Assim,

as relações econômicas das ex-matrizes (centros) com as ex-colônias (periferia)

permaneceram, às vezes com ações imperialistas diretas10, mas, em geral, com ações

9 Romero repete várias vezes os termos “aventura”, “sorte” e “risco”. Acentua que esse traço aventureiro foi um

grande influenciador da migração de estrangeiros para a América, de pessoas do campo para as cidades, das pequenas para as grandes cidades; essa conotação de “aventura” também influenciou significativamente na mudança de comportamento em geral, dando força à mobilidade social. 10

Em 1898, os Estados Unidos conseguiram, à força, o desligamento do território do Panamá em relação à

Colômbia, dominando, assim, o Canal entre os oceanos Atlântico e Pacífico. Em 1902, a Alemanha atacou Puerto Cabello, na Venezuela, a tiros de canhão, para cobrança de contas.

ROMERO, José Luis. As cidades burguesas. América Latina: As cidades e as idéias. Capítulo 6. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

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indiretas, induzindo as áreas rurais periféricas a fornecer alimento e matéria prima para as

centrais, segundo critérios empresariais planejados por estas últimas. Esses critérios

levaram à especialização de produção e à dependência em relação ao escoamento da

produção e ao retorno financeiro. (Ver coluna de Atividades na Figura 08.)

Esse processo se deu com a introdução de capital estrangeiro nos países produtores,

intermediado por empresas e bancos encabeçados por estrangeiros (gerentes, engenheiros,

administradores, capatazes). A mão de obra braçal, contudo, era nacional, assim como os

intermediários entre a produção e a comercialização (agentes comerciais e financeiros de

importação e exportação, despachantes de compra e venda, intermediários em

investimentos de capitais, comerciantes do atacado e do varejo). Esses intermediários

ganharam aos poucos força econômica, social e política, emergindo assim, de cada velho

núcleo urbano colonial, uma nova burguesia.

1 – TRANSFORMAÇÃO OU ESTAGNAÇÃO

Enquanto essas transformações vertiginosas aconteciam nas cidades, no campo, das

antigas famílias, aquelas mais identificadas com o passado se mantiveram em suas

fazendas, preservando seu poder sobre as pequenas cidades provincianas.

As demais famílias antigas, as que se sentiram atraídas pelo novo clima de aventura ou

capazes de acompanhar o frenético ritmo de progresso, essas se concentraram nas cidades

maiores e aceitaram agregados de outros segmentos que ansiavam ascender ao patriciado,

surgindo, assim, novos círculos sociais. Tinham como modelo a forma de vida das grandes

cidades europeias, e, com o intuito de apagar o passado, aderiram ao modo francês de

transformar a fisionomia das cidades (à la Haussmann11). Surgiram, assim, parques, praças,

avenidas, teatros luxuosos, passeios de coche, infra-estrutura, embora não pujantes e nem

tão completos e eficientes quanto os parisienses.

As burguesias, por sua vez, criaram clubes fechados e restaurantes de luxo onde se

socializar, alimentando suas ilusões de ascensão econômica e cultural, e de transformação

da aldeia em moderna metrópole.

Esse agitado clima de aventura preocupava os grandes investidores e os pequenos

poupadores. Romero dá vários exemplos de romances literários que mencionam essa fase,

assim como comentários elogiosos e críticos sobre o significado disso tudo, desde odes à

magnificência de Buenos Aires, até sua comparação com a prostituta de um romance ou à

Babilônia em queda. No Brasil não foi diferente.

[...] Olavo Bilac pode dizer em 1908 que o Rio já era “uma aglomeração de várias cidades que pouco a pouco vão-se distinguindo ao adquirir cada uma especial aspecto e determinada autonomia de vida material e espiritual.” [,,,] p.287

11

Georges-Eugène Haussmann, Barão de Haussmann, prefeito do antigo departamento de Sena 1, centro de Paris. Com o apoio de Napoleão III, entre 1857 e 1870 transformou a Paris medieval em capital da modernidade, com intervenções urbanísticas impactantes sobre o antigo conjunto de ruelas, guetos e cortiços, por meio de grandes avenidas, bulevares e parques, acompanhados de infra-estrutura – água, esgoto, drenagem, iluminação, energia, pavimentação.

ROMERO, José Luis. As cidades burguesas. América Latina: As cidades e as idéias. Capítulo 6. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

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Qualquer que fosse o regime institucional, o poder econômico e o poder político

permaneciam em conjunção, cada vez mais, em função do volume de operações comerciais

e financeiras e dos impostos que geravam. À pequena burguesia juntou-se novo grupo

economicamente mais poderoso, ligado ao capital em si, que se concentrou nas capitais:

banqueiros, exportadores, financiadores, magnatas da bolsa, grandes intermediários. Esses

incentivaram e bancaram a mudança da fisionomia das grandes cidades, de maneira a lhes

dar uma imagem de prosperidade e modernidade, tendo como referência as matrizes

europeias e depois norte-americanas.

As cidades portuárias se transformaram em grandes empórios mercantis; suas vias de

transporte com o interior se ampliaram, fossem de rodagem, férreas ou fluviais.

Figura 8 – Quadro com algumas informações do capítulo 6, especialmente as constantes entre as páginas 286 e

295, sobre o vertiginoso crescimento das cidades latino-americanas desde o final do século XIX até 1930. Elaboração da autora.

ROMERO, José Luis. As cidades burguesas. América Latina: As cidades e as idéias. Capítulo 6. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

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2 – A MOBILIDADE DAS SOCIEDADES URBANAS

As cidades que ficaram à margem da modernização mantiveram seu ar provinciano, com

ruas e praças calmas, arquitetura tradicional, convivência segundo os costumes; a aparência

de estagnação preservava velhas linhagens, grupos populares da época colonial e da era

patrícia, a hierarquia de poder. Eram avessas à vontade de aventura em busca de fortuna

fácil e de ascensão social, que preponderava no meio social ligado ao comércio.

Romero cita várias obras literárias que tratam dessas discrepâncias entre esses ritmos de

vida e das mudanças que ocorriam sob a aparência de calmaria e nostalgia. Porém, a

melhoria dos meios de comunicação em função da economia fez com que várias das

cidades provincianas entrassem no novo sistema. Essas passaram a desejar o brilho das

luzes, o luxo ostensivo, o gênero de vida mundano, certo tipo de anonimato que dava a

ilusão de liberdade e de aventura, a possibilidade de mobilidade social, tendo como espelho

as sociedades burguesas estrangeiras e nacionais.

Aos círculos tradicionais começaram a se incorporar aventureiros estrangeiros, pessoas

antes marginais, mas que encontraram o momento de demonstrar suas habilidades

especiais, surgindo assim um grupo de “novos-ricos” especialmente vinculado ao setor

terciário: pequenos comerciantes prósperos, empregados empreendedores, artesãos

habilidosos, operários eficazes. Esses tinham como objetivo se transformar em membros da

sociedade tradicional secular; paradoxalmente, porém, transformavam a “grande aldeia” em

conglomerado heterogêneo e confuso, no qual a relação direta entre membros se perdia,

perdendo-se com isso o controle sobre a sociedade, e consequentemente sobre o poder

almejado.

Houve entre os patrícios, desde o final do século XIX, aqueles aptos a acompanhar as novas

perspectivas econômicas; esses aliaram seu poderio social e econômico ao de outros,

nacionais e estrangeiros, impulsionando a modernização em geral; permaneceram, assim,

no alto da nova pirâmide que se formava.

Outros patrícios, porém, deram um passo atrás, passivos; as novas gerações dessas velhas

classes, contudo, mesmo sem aderirem à nova estrutura produtiva, permaneceram nos

círculos sociais com máscaras diversas de:

“indolência estetizante” – dedicação ao estudo, à leitura, a admiração à beleza de

objetos de arte ou de cenários naturais (à moda de Oscar Wilde);

afirmação da autoridade – circundando-se de clientela de parasitas;

ociosidade vulgar – imersos em vício e depravação;

conservação da riqueza e do poder por meio de títulos e cargos – senador, alto cargo

judiciário;

conservação de prestígio no raio de ação das propriedades rurais (à moda “feudal”).

As novas burguesias tinham uma maleabilidade que se adequava às novas exigências dos

controladores do mercado internacional, tanto nos sistemas de produção quanto na criação

de infra-estrutura.

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[...] Em todos os lugares comprava-se e vendia-se, mas além disso apostava-se na

obtenção de grandes lucros com pequenos investimentos ou com o dinheiro alheio e,

sobretudo, especulava-se com audácia e com uma fé cega acerca de um indefinido

crescimento do volume da riqueza e dos negócios, sem o tradicional sistema de

arrecadações financeiras em que as explorações e os empreendimentos se haviam

baseado até então e sem as preocupações de caráter moral que diziam respeito tanto à

honra fidalga quanto à honra burguesa. [...]

As novas burguesias constituíram-se daqueles que se mostraram possuidores das

aptidões requeridas para enfrentar as novas circunstâncias, deixando decididamente de

lado as limitações impostas pelos hábitos tradicionais e optando por outras formas de

comportamento. Porém, quem eram e de onde surgiam? p.300

Essas novas burguesias constituíam-se de:

a) Membros do velho patriciado, herdeiros de uma fortuna e de um nome, que se

separaram das atitudes de seu grupo social – serviram de modelo do novo

comportamento e respaldados pelo prestígio de sua tradição lideraram processos

concretos de modernização na área de suas atividades particulares (extração

mineral, agricultura, pecuária), com renovação de métodos e tecnologia de produção,

com ou sem associação com capital estrangeiro.

b) Nova burguesia não comprometida com o passado e capaz de descobrir

oportunidades – especulação na bolsa de valores, intermediações, especulação de

terras, empreendimentos industriais, negociações feitas em clubes, festas de

sociedade, ante-salas de um ministro, corredores do congresso. Eram em geral

pessoas simpáticas e comunicativas com polimento suficiente para se inserirem nos

círculos sociais tradicionais. Buscavam concessões e privilégios, negociando

investimentos e cobrando as comissões correspondentes, ou apenas informações a

repassar

c) Estrangeiros falidos ou com passado duvidoso e conhecedores do funcionamento

dos negócios internacionais, que atuavam da mesma maneira que o grupo anterior

segundo o seguinte princípio: [...] eu não vim para a América para cumprir com o meu

dever, mas sim para fazer fortuna. Quem me conhece aqui? [...] p.301

d) Estrangeiros talentosos com capacidade empresarial, ligados ou não aos grupos

capitalistas de seus países de origem. Romero cita vários exemplos de

personalidades que investiram em transportes marítimos, indústria salitreira,

ferrovias, indústria têxtil, entre outros. Especialmente esses davam às cidades um ar

cosmopolita e imprimiam um novo ritmo de viver. p. 302

e) Classe média urbana: comerciantes atacadistas ou varejistas, profissionais ou

médios poupadores. Esses tinham uma veia aventureira, pois se arriscavam com

seus recursos restritos a ganhar ou a perder muito.

f) Classe média de trabalhadores especializados, que viam na modernização

oportunidade de aplicação de seus conhecimentos e habilidades construtivas.

[...] A aventura estava na base do sistema que mudava, de fato, porque despertava novas possibilidades que requeriam imaginação para identificá-las e, às vezes, certa falta de preconceitos para empreendê-las mediante os apoios que se fizessem necessários. Estas habilidades combinadas configuraram em conjunto as características desse segmento social que, com conhecimento de causa ou não, modifica o perfil de sua cidade e de seu país.

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[...] A sociedade urbana em conjunto tornou-se mais fluida e os canais, para passar de um estamento a outro, mais variados e transitáveis. Exigia-se apenas eficácia – e, sem dúvida, sorte – para vencer os obstáculos e alcançar o pequeno Olimpo do tout Mexico, do tout Rio de Janeiro ou do tout Buenos Aires. Uma vez nele desfrutavam-se as delícias que a fácil multiplicação dos bens e o exercício de um poder difuso podiam propiciar.

12 p.

303

O poder político era exercido também pelos novos burguesas ou por seus procuradores. As

ideias que os inspiravam eram defendidas pelos partidos políticos das rodas oficiais

governamentais – tradicionais ou circunstanciais. Essa unidade de ação coerente

testemunhava uma coesão interior da nova burguesia, que, mesmo fundada com grupos de

origens diversas, se unia na aventura, para responder aos desafios dos grandes centros

econômicos e financeiros da Europa e dos EUA, com interesse basicamente particular de

cada participante. Contudo, não havia um sentido público desse desenvolvimento; o

compartilhamento dos riscos e dos custos sociais não acompanhava esse movimento,

diferentemente da ideologia liberal mais consistente, que orientava as ações em países mais

desenvolvidos.

A esperança e a possibilidade de ascensão social promoveram a migração: do estrangeiro

para a latino-América, das regiões pobres para as regiões ricas, dos campos para as

cidades. Sobre isso Romero menciona vários romances que ilustram o processo. O

surgimento de novos tipos de trabalho nas cidades atendeu a todos os níveis de pessoas,

desde as qualificadas até, e especialmente, as sem qualificação profissional: construção

civil, setor terciário, manufaturas, indústrias em geral.

[...] Uma geração depois, havia na família do honesto comerciante um filho bacharel ou doutor. [...] O aparecimento de novos bairros criava uma mentalidade de fronteira, porque neles todos começavam uma espécie de vida nova e ali não valiam os preconceitos nem tinham sentido as perguntas a respeito do passado de cada um. p.306

Os trabalhadores de indústria aprenderam a se disciplinar em função das exigências das

empresas e, organizando-se, começaram a definir uma nova classe proletária industrial.

A velha relação ambígua entre senhor e criado, ou entre cliente e serviçal de um restaurante,

foi substituída por relações despersonalizadas, tensas, rudes, que foram transferidas para as

cidades:

mendigos sem madrinhas;

delinquência organizada com conivência internacional: tráfico de mulheres brancas,

de drogas, jogo, prostituição;

salários insuficientes;

bairros miseráveis, cortiços, becos.

As pessoas que antes formavam a classe média – comerciantes, profissionais liberais,

burocratas, militares, clérigos, servidores públicos – avolumaram-se em função das

12

[...] Diz-se le Tout-Paris para designar o conjunto das personalidades literárias, artísticas, políticas, financeiras,

etc., que figuram em todos os acontecimentos mundanos da capital: le Tout-Paris des premières; le Tout-Paris du Grand-Prix. [...] DUTHOY E ROUSÉ, 1952.

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necessidades das cidades que cresciam com a função principal de centros intermediários.

Os mais antigos e originários das cidades tinham mais facilidade de ascensão, com

tenacidade e humilhações, eficiência, poupança. Isso lhes permitia mostrar essa modesta

dignidade que a classe média exigia. E, de hábito, só depois podiam fazer fortuna, ou

incorporar-se à clientela política de uma pessoa influente, ou talvez somar-se à corrente de

um grupo de poder. ... ou serem aceito num contrato matrimonial vantajoso. p.208

3 – O EXEMPLO DE HAUSSMANN

A nova classe média era ilustrada, trazia as novidades de fora, relacionava-se com as

demais classes, permitia que o novo se estabelecesse; novos partidos políticos surgiram

para desafiar as velhas oligarquias em busca de ampla democracia; novos comportamentos

que exigiam um novo habitat.

Indústrias e bairros se instalam nos arredores da cidade, ao longo dos caminhos ou nas

proximidades de algum núcleo pré-existente (estações, áreas fabris, antigos comércios).

Caminhos, água, transporte, drenagem, iluminação pública acompanham a expansão. O

pequeno comércio de vizinhança transforma-se em centro do novo distrito.

Os velhos centros mantiveram o setor administrativo e comercial (exceto Rio de Janeiro e

Buenos Aires); com a saída do centro das famílias de alta classe (“as da praça”), esses se

desvalorizaram e em muitos casos se deterioraram, provocando certo constrangimento dos

mais poderosos, pela discrepância em relação à imagem de progresso que se desejava

imprimir.

Por influência das transformações urbanísticas ocorridas em Paris na segunda metade do

século XIX, concebidas por Napoleão III e executadas pelo barão de Haussmann, os centros

envelhecidos tiveram centenas de casas demolidas e sua trama rasgada por avenidas. Isso

aconteceu no Rio de Janeiro, em Montevideo, em Buenos Aires, e de um modo um pouco

diferente em São Paulo, que preservou o triângulo original. Além da ideia de renovação e

melhoria do panorama urbano consonante com o novo tempo de pujança e tecnologia, tais

providências visavam facilitar o acesso entre centro (em geral administrativo) e a periferia

em crescimento.

[...] Porém, dentro desse esquema se introduzia uma vocação barroca – um barroco burguês – que se manifestava na preferência pelos edifícios públicos monumentais com uma ampla perspectiva, pelos monumentos erguidos em lugares destacados e também por uma edificação privada suntuosa e com ar senhorial. Extensos parques, grandes avenidas, serviços públicos modernos e eficazes deviam “impressionar o viajante”, segundo uma reiterada frase do começo do século XX. p. 310

O livro não apresenta ilustrações, mas sim algumas referências sobre tais transformações, a

partir das quais foram elaboradas as figuras de 9 a 13.

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Figura 9 - Centro do Rio de Janeiro, Brasil. Indicação dos eixos criados sobre a malha antiga. Fonte: Elaboração

da autora sobre mapa obtido em http://maps.google.com.br, em 16/10/2012.

Figura 10 - Centro de São Paulo, Brasil. Triângulo central preservado e novas avenidas radiais. Fonte:

Elaboração da autora sobre mapa obtido em http://maps.google.com.br, em 16/10/2012.

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Figura 11 - Centro de Montevideo, Uruguai. Fonte: Elaboração da autora sobre mapa obtido em

http://maps.google.com.br, em 16/10/2012.

Figura 12 - Centro de Buenos Aires, Argentina. Indicação dos eixos criados sobre a malha antiga. Fonte:

Elaboração da autora sobre mapa obtido em http://maps.google.com.br/maps?hl=en&tab=wl, em 16/10/2012.

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RENOVAÇÃO DAS CIDADES LATINO-AMERICANAS ENTRE 1880 E 1930 - p.311-315

CIDADES DEMOLIÇÕES CONSTRUÇÕES CENTRAIS

PASSEIOS DE CHARRETE

BAIRROS RICOS

AFASTADOS

Buenos Aires Recova Vieja - cortava a

atual Plaza de Mayo (onde

ficava o antigo Forte)

Avenida de Mayo - liga Plaza de Mayo e outra praça

onde depois foi construído o "monumental Palacio del

Congresso"

Bairro Norte

antigo Cabildo colonial Edifícios modernos de vários estilos e "ousados

exemplos de art nouveau" ao longo da Av. Mayo

centenas de casas Trem subterrâneo sob a Av. Mayo e R. Rivadavia.

2 grandes diagonais a partir da Plaza de Mayo

Av. 9 de Julio (norte-sul)

Teatro Colón

Rio de Janeiro setecentas casas Avenida Rio Branco - liga Praça Mauá e Obelisco Catete, Laranjeiras

2 morros "amplas esplanadas"

Largo da Carioca = centro nevrálgico

novas construções ao longo da nova avenida, com

vistas para o Pão de Açúcar.

Expansão da Av. Treze de Maio

Abertura das avenidas Beira-Mar e Rodrigues Alves,

Francisco Bicalho, Mem de Sá, Salvador de Sá.

Teatro Municipal do Rio de Janeiro

São Paulo Triângulo central antigo foi

mantido

Av. São João Higienópolis

Av. Rangel Pestana

Av. Tiradentes

edificações luxuosas ao longo da Av. Higienópolis e

da Av. Paulista

Montevideo normalização das vias de saída da cidade Prado, Ramirez,

Pocitos

início da Rambla - entre o porto e Pocitos

Av. Agraciada - a partir da Av. 18 de Julio e o Palacio

Legislativo

passeio do Prado

Lima Av. Arequipa Miraflores

passeio de Colón

Caracas Av. Bolívar Sabana Grande,

Country Club, Paraiso

Bogotá Av. Colón Chapinero

México passeio da Reforma colônia marítima Roma

e Juárez, Lomas em

Chapultepec

bosque de Chapultepec

Santiago alamedas Providencia

Figura 13 – Quadro com referências de Romero sobre as transformações nas principais cidades latino-

americanas entre 1880 e 1930. Elaboração da autora.

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Novos bairros de alta classe se desenvolveram na periferia, às vezes em torno de um núcleo

antigo capaz de suprir as necessidades primárias do novo agrupamento, ou pelo loteamento

de alguma fazenda, preservando-se então o arvoredo existente. Arquitetura elegante,

recantos residenciais, hipódromo, clube de tenis, golfe.

[...] A categoria presumia consultar um arquiteto – estrangeiro, se fosse possível -, discutir o projeto e, antes dele, o estilo, mas sabendo que se acabaria preferindo o estilo francês, a menos que o proprietário tivesse sucumbido à influência esteticista de um revival: o gótico, o mourisco ou talvez outro mais exótico ainda. Havia ainda os que optavam pelo art nouveau, certo luxo rebuscado, decoração supérflua que despertava admiração dos demais. p.315

As fotos adiante foram conseguidas no website oficial de Buenos Aires, Argentina, e visam

ilustrar obras arquitetônicas e urbanísticas representativas dos poderes da época: clubes de

classe ou de origem, edifícios em altura, instituições públicas, obras de arte, homenagens a

heróis, amplitude de espaços e grandiosidade e rebuscamento das construções. Essas

obras ocorrem de forma semelhante, talvez menos rica, em várias outras grandes cidades

latino-americanas, na mesma época.

Figuras 14 e 15 - Fotos atuais de Buenos Aires, com obras representativas da fase burguesa de que Romero

trata neste capítulo: Club Español (1911 – no eixo Av. 9 de Julio), Palácio Barolo (1923 – Av. de Mayo). Fonte: http://www.buenosaires.gov.ar/areas/com_social/fotogaleria/ acessada em 17/10/2012.

Figuras 16 e 17 - Fotos atuais de Buenos Aires, com obras representativas da fase burguesa de que Romero

trata neste capítulo: Edificio de Obras Sanitárias, Fuente de las Nereidas (1903 – próximo ao Parque Ecológico). Fonte: http://www.buenosaires.gov.ar/areas/com_social/fotogaleria/ acessada em 17/10/2012.

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Figuras 18 e 19 – Fotos atuais de Buenos Aires, com obras representativas da fase burguesa de que Romero

trata neste capítulo: Monumento a Juan de Garaí (1915 – Plaza de Mayo) , Obelisco (1936 - Av. 9 de Julio x Av. Corrientes). Fonte: http://www.buenosaires.gov.ar/areas/com_social/fotogaleria/ acessada em 17/10/2012.

Enquanto a arquitetura francesa e a italiana influenciavam o estilo das residências e edifícios

em geral, a tecnologia inglesa era aplicada nos Palácios das Exposições, nas estações

ferroviárias, nas obras de arte da construção civil, com estruturas de ferro à semelhança da

Victoria Station londrina, representando o progresso e a pujança industrial.

Figura 20 – Foto atual do Viaduto Santa Ifigênia, no Centro de São Paulo. Fonte:

http://www.saopaulo.sp.gov.br/conhecasp/turismo_pontos-turisticos_viaduto-santa-ifigenia, acessada em

24/10/2012.

Como contraponto, surgiram também loteamentos populares explorando o desejo de “casa

própria”. Lançamentos eram muitas vezes feitos em “leilões”, em ocasiões tornadas festas

populares. Os planos, elaborados por urbanistas e empresários e negociados por corretores

comissionados, normalmente incluíam: lotes pequenos com possibilidade de subdivisão,

local para escola, igreja e delegacia. Os compradores executavam o embrião com as

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primeiras 4 paredes e o teto com o conhecimento que tinham (em geral do rancho rural),

apostando em poupança futura para prosseguimento com arquitetura mais sofisticada:

fachada feita por mestre-de-obras, papel de parede, bibelôs, cortinados.

Investiu-se em remodelação de portos, ampliação dos cais e armazéns, instalação de

guindastes e vias férreas. A infra-estrutura urbana foi implantada ou melhorada:

esgoto,

abastecimento de água corrente,

canalização de rios e riachos (alguns receberam avenidas sobre eles),

serviços sanitários preventivos (Osvaldo Cruz – RJ – febre amarela).

As inovações técnicas europeias ocorreram quase instantaneamente lá e na América Latina:

iluminação pública a óleo foi substituída por gás e logo em seguida pela eletricidade,

bondes com tração animal foram substituídos pelos elétricos e em seguida pelos

ônibus,

aeródromo,

difusão de telégrafo e telefone e em seguida radiotelefonia.

Outros lugares também passaram por modificações, com praças e pracinhas bem cuidadas,

monumentos aos heróis, alamedas para passeios de coche, parques, mas especialmente

com o intuito de organização do espaço.

E houve as cidades que só se modificaram tardia e timidamente, ainda com a aspiração de

se parecerem com a metrópole parisiense haussmanniana, modelo esse que perdurou por

muitas décadas. Em geral essa vontade se traduziu em criação de uma imensa praça

desproporcional ao casario, em bulevar com pracinhas ligando o centro da cidade à nova

estação de trens.

4 – A COTIDIANA IMITAÇÃO DA EUROPA

Dois modelos europeus tiveram particular ressonância na América Latina entre 1880 e 1930:

da Inglaterra vitoriana e da França de Napoleão III. Logo após a 1ª Grande Guerra, também

os Estados Unidos passaram a servir de modelo, ganhando terreno nas décadas seguintes.

A preocupação das novas burguesias (aqui e no mundo) era deixar claro seu estilo de vida,

sua condição de classe superior, o que levou a um comportamento exagerado, “barroco”.

Essa Belle Époque durou do final do sec. XIX até pouco após a 1ª GG e se caracterizou pelo

exibicionismo da posse de bens, pela ostentação extravagante, o que, em muitos casos, era

visto como rastaquera, má educação.

Se de um lado as cidades ganharam belos jardins, amplas avenidas e passeios, vistosos

edifícios públicos, iluminação a gás ou elétrica, novidades do progresso, de outro o governo

nas capitais comportava-se, ainda, como corte, com palácios suntuosos, protocolos, peitos

cobertos de condecorações, criados de libré e calção curto, champanhe.

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Os hábitos dos novos burgueses inspiraram a poesia simbolista e parnasiana13 e

englobavam um conjunto de lugares, ícones e comportamentos bastante característicos:

Clubes de estilo inglês, com salas de leitura, jornais do mundo todo, luxuosos salões

de festas, restaurante até altas horas, garçons experientes, serviços personalizados;

restringiam-se a um círculo restrito de manipuladores da riqueza e ali ocorriam

reuniões para acordos informais, intrigas sociais, jogo;

Teatro, especialmente de ópera, onde se acompanhava as vibrações do jogo da

política;

Passeios de coche, batizados, missas, hipódromo, balneários, festas, quando se

observava a situação dos pares, por meio da toilette, do modelo dos veículos, das

companhias;

Quadros, esculturas, bibelôs;

Prática de esgrima, tênis, hóquei, automobilismo, esportes de equipe, em clubes

privados;

Libertinagem dos jovens e esbanjamento (“estróinas”).

Após a 1ª GG, o amadurecimento desse grupo e a influência norte-americana, em especial

através do cinema, alteraram um pouco esse quadro: a valsa foi substituída pelo charleston;

houve certo refinamento dos gostos, com relativo engajamento nos movimentos de literatura,

pintura, renovação do mundo de progresso; a percepção de questões sociológicas sob a

política passou a interferir nas decisões; houve certa rejeição à vulgaridade.

Quanto aos segmentos populares urbanos, seus costumes cotidianos mudaram aos poucos.

[...] Começaram a usufruir de algumas novas comodidades - a água corrente, o sistema de iluminação, as obras sanitárias -, mas nem sempre, já que o crescimento das cidades e o alto custo da terra urbana deslocavam sempre os segmentos de baixa renda para áreas que não se beneficiavam desses serviços. A educação das crianças se tornou mais fácil porque aumentou o número de escolas, assim como a atenção aos doentes, porque aumentou o número de hospitais e melhorou o atendimento prestado. O problema mais grave foi o da moradia. Os cortiços e os becos proliferaram e a promiscuidade se tornou tão deprimente que muitos resolveram se aventurar a levantar um quarto em um lote comprado à prestação. Esse quarto revelou os meandros da cultura popular: mostrou a figura da Virgem, a fotografia de um boxeador e casualmente flores, nas quais eram depositadas todas as esperanças sentimentais das classes populares. Em algumas cidades – Montevideo e Buenos Aires –, encontraram um jeito novo para expressá-las: o tango, entre imigratório e rural, e o conflito entre as duas influências ganhou voz no sainete, um gênero teatral que se encarregou de novos assuntos nas cidades rio-platenses. p.332

A manutenção do poder em poucas mãos, porém, demandava atitudes severas; ditaduras se

instalaram em muitos países, exercidas a partir das capitais: Rio de Janeiro, Buenos Aires,

Santiago, Assunção, La Paz, Bogotá, Lima.

Estranhas combinações de interesses, nas quais não se percebia bem quem servia a quem, modificaram aos poucos as formas e os conteúdos da política. As novas burguesias nem sempre conseguiram – ou não quiseram – exercer o poder por si próprias, talvez porque nem sempre contaram com o homem de mando que urgia em

13

Para os hispânicos, esse foi o movimento Moderno, diferentemente do Modernismo no Brasil, representativo da vanguarda pós 1ª GG. p.352

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sociedades tão inquietas. Mas foram o poder atrás do trono, ou melhor, o poder atrás do “senhor presidente”

14. p.325

[...] Assim começou uma estreita aliança de velhos caudilhos e generais afortunados com os vacilantes grupos de indefinida nacionalidade nos quais se misturavam os investidores e comerciantes estrangeiros com os representantes e agentes nacionais. Era inevitável. Diante do desafio da economia internacional e das necessidades do desenvolvimento interno, o poder político lançou-se à tarefa de modernizar o país e em uma exploração mais intensiva e organizada das riquezas naturais. [...] Estabeleceram-se privilégios e garantias em leis que gestores sugeriam, ministros e servidores públicos estudavam, deputados e senadores votavam, burocratas colocavam em funcionamento. O vínculo ficou estabelecido, e pouco a pouco o poder político encontrou-se aprisionado em uma rede, da qual, talvez, quem o exercesse não tinha interesse em libertá-lo. p.325-326

5 – TENSÕES E ENFRENTAMENTOS

Nas cidades, as novas classes médias e certos segmentos das classes populares

começaram a se organizar politicamente e a exigir o seu direito de intervir na vida política do

país: liberais avançados, radicais, socialistas. Promoviam comícios com milhares de pessoas

em praça pública, reações exaltadas, greves, anúncios de revolução, jornais. Os conflitos

eram às vezes evidentes e outras vezes ocultos, mas as regras do jogo eram conhecidas.

[...] Situações fluidas impunham exagerar a cautela para que não se rompessem as regras

do jogo, e era obrigação do perdedor saber perder. [...] p.337

A politização das cidades acentuou sua influência sobre as respectivas regiões e país em

que se inseriam, assegurando condições vantajosas do mundo rural para o sistema

econômico; mas, ao contrário das épocas precedentes, as decisões pareciam anônimas,

sombras de múltiplos interesses. [...] Foram interpostos todos os obstáculos e mecanismos

de um sistema sensato e bem montado que, operando a partir das cidades,

despersonalizava as relações e ocultava os centros de decisão. p.336

Esses fatos e comportamentos se deram em praticamente todos os países latino-

americanos, embora com anos de defasagem, como se pode observar nessa sequência de

movimentos radicais urbanos mencionados por Romero (p.338):

1854 Chile

1890 Argentina

1890 Peru

1895 Equador

1903 Uruguai

1910 México (Madero)

1920 Chile (Alessandri)

14

A obra “El Señor Presidente” foi escrita pelo guatemalteco Miguel Angel Asturias, em 1946, e retrata a vida do povo, o ambiente de medo e insegurança, no período de 1898 a 1920, do governo ditatorial de Manuel Estrada Cabrera, na Guatemala. A expressão “o senhor presidente” se popularizou pelos países latino-americanos nos anos seguintes, pela proximidade de sentimentos que as ditaduras nos muitos países suscitaram.

ROMERO, José Luis. As cidades burguesas. América Latina: As cidades e as idéias. Capítulo 6. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

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Cidades intermediárias começaram a sediar movimentos de resistência à introdução desse

novo sistema, gerando ações e reações belicosas em muitos países ou mesmo tentativas

separatistas, algumas organizadas na figura 21 a seguir.

REVOLTAS RURAIS

Peru 1886 Navio de guerra, regimentos, Guarda Municipal ("juventude seleta") contra sublevação dos

indígenas Huaraz

Argentina 1879 "Campanha do deserto" promovida pelo General Roca para expulsão dos indígenas

Grandes greves nas zonas têxteis de Veracruz, na Patagônia

México 1901 Campanha de Porfírio Dias contra os indígenas de Sonora e de Yucatán (1905)

1910 Francisco Madero, político liberal contra reeleição de Porfírio Dias; juntaram-se

manifestações populares rurais: em Chihuahua sob comando de Abraham González,

Pascual Orozco, José de la Luz Blanco, Francisco Villa; em Morelos, Torres Burgos e irmãos

Zapata. Sob a direção de Venustiano Carranza, o movimento agrário cresceu e ganhou

autonomia da política >> distribuição de terras com e sem doutrina social, banditismo. Dois

movimentos se enfrentaram em meio à revolução: linha institucional de Venustiano

Carranza contra Emiliano Zapata e Francisco Villa, que foram derrotados e mortos. Ocorreu

então certa acomodação, sanção de uma constituição, organização política em torno de

Venustiano Carranza e Álvaro Obregón para reconstrução do sistema econômico >>

presidente Plutarco Elías Calles.

Grandes greves nas regiões mineiras.

Brasil 1893 Revolta de Canudos, na Bahia, liderada por Antonio Conselheiro, movimentando "enorme

massa negra e mestiça, à qual se incorporavam velhos bandidos e antigos proprietários"

Brasil 1908 Movimento "João Maria - o Monge", em Santa Catarina, reprimido em 1916.

Uruguai 1897 Levante de Aparício Saravia, forte fazendeiro de Cerro Largo, e camponeses contra as

regras impostas pelo governo; vencido nessa ocasião, voltou à luta em 1904, onde morreu

na batalha de Masoller >>> modernização do país por José Batlle y Ordóñez

Venezuela 1899 Cipriano Castro, chefe dos "andinos", sediado nas montanhas ameaçava o presidente em

Caracas >> ao descerem sucumbiram ao jogo econômico e político, dele participando.

Nicarágua 1927 Conservadores e liberais, depois de anos de luta, haviam chegado a um acordo político, sob

pressão e garantia dos Estados Unidos, mas Augusto César Sandino, à frente de um

pequeno exército camponês, decidiu desconhecer o pacto e lançou-se à guerrilha na região

de San Rafael del Norte.

Chile Grandes greves nas regiões mineiras

Colômbia Grandes greves na zona frutífera

Figura 21 – Relação de movimentos rurais mencionados por Romero, p.334-337. Elaboração da autora.

Nas ditaduras, imperava a adulação e era nas ante-salas do poder que se dava a

conspiração. As revoluções em geral eram armadas, mas no Brasil, por exemplo, foi

pacífica.

Pacífica fora a revolução militar que dera fim ao império brasileiro: a população do RJ não se inteirou do que havia se passado, e a própria família imperial esteve alheia à tarefa pedagógica que o marechal Deodoro da Fonseca havia realizado nos quartéis. p.340

“O senhor presidente” era imperioso, mas dava as ordens que os donos do capital e do

poderio político esperavam e queriam cumprir. [...] O ditador emprestava sua autoridade, a

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sua capacidade para impor ordem na situação geral e ao mesmo tempo ordem no seio do

grupo que o apoiava. [...] E se o grupo começava a desintegrar-se, a ditadura estava

condenada a cair. p.337-338

6 – O APOGEU DA MENTALIDADE BURGUESA

Essas novas burguesias sabiam que representavam o processo fundamental da nova

sociedade, desdenhavam os grupos marginais, e sabiam que o poder lhes pertencia, [...]

mas estavam dispostas a delegá-lo se os enfrentamentos sociais implicassem uma luta

violenta. E costumavam apoiar o ditador que lhes oferecia ordem e estabilidade social. [...]

p.347

O problema se dava quando o ditador mudava de postura.

[...] O ditador deixava de se considerar procurador de uma classe e da política dessa classe para assumir o papel de representante de uma nova sociedade – de um novo avatar da sociedade em mudança – na qual começavam a ser cada vez mais importantes as massas urbanas, despolitizadas e de tal modo carentes que era possível convocá-las, protegê-las e utilizá-las sem pagar por isso um preço político. [...] p.348

Entre 1880 e 1930, prevaleceram alguns pensamentos centrais tanto na Europa como na

América Latina, decorrentes da concepção de progresso como conquista contínua e tenaz

da racionalidade, desenvolvida no período anterior, entre os séculos XVIII e início do século

XIX. Esses pensamentos centrais podem ser resumidos como:

a) Era necessário consumar a etapa de desenvolvimento pela qual o mundo passava,

especialmente a industrialização, a ciência e a técnica, conduzindo-a até os seus

últimos extremos.

b) Era necessário aceitar todo o sistema interpretativo e projetivo da mentalidade

burguesa vitoriosa para que essa consumação se efetivasse.

c) Era fundamental, correto, necessário e obrigatório, que, por razões morais, o “homem

branco”15, inventor da ciência e da técnica, levasse os benefícios desses novos

conhecimentos para todos, a qualquer preço.

O modo de vida novo-burguês, baseado na concorrência e ascensão social a qualquer

custo, muito semelhante ao que Darwin16 apresentava como processo de seleção natural,

não admitia a caridade. Quem não se encaixasse nesse perfil de acumulação de capital e de

aventura (risco e sorte) na busca do êxito era excluído. Esse ponto de vista conflitava com a

antiga moralidade do patriciado e das classes médias tradicionais. A Igreja tradicional teve

sua função contrapondo-se ao laicismo que se alastrava com o nome de ciência e

progresso, mas aos poucos foi perdendo seus fiéis, passando a exercer sua função social

nas áreas marginalizadas e no meio rural mais tradicional.

15

“Homem branco” era expressão usada independentemente da cor da pele, mas desde que o sujeito pertencesse às novas burguesias. p.342 16

Charles Darwin, naturalista britânico que viveu no século XIX e formulou a Teoria da Evolução, que ainda serve de paradigma para a ciência atual. Segundo essa teoria, a evolução se dá por processos sucessivos de seleção natural e sexual, em função da capacidade de adaptação dos seres à natureza, sob pena de extinção da espécie. A releitura dessa teoria aplicada à sociedade humana justificava o liberalismo econômico e o comportamento daqueles que lutavam pela riqueza e ascensão social como forma de adaptação ou de morte.

ROMERO, José Luis. As cidades burguesas. América Latina: As cidades e as idéias. Capítulo 6. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

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No final do século XIX, alguns grupos da própria burguesia adotaram nova postura,

entendendo que era necessário ampliar a participação daqueles que haviam alcançado certo

êxito econômico e ascensão social. [...] Tais “posturas democráticas” pareceram suicidas

para alguns, que temiam perder algo na divisão, e prudentes para outros, que preferiam

conceder de graça o que temiam perder pela força. [...] p.349

Após 1ª Grande Guerra, essa postura ganhou força e amplitude e, do sentimento

individualista que movia a nova burguesia até então, o foco passou às massas. Pessoas

esclarecidas e com percepção da tensão social passaram a liderar grupos heterogêneos,

formados em geral por integrantes da classe média, aos quais aderiram outros segmentos

com sentimento de minoria, inclusive os descendentes de fazendeiros. Esses grupos

buscavam a melhoria da formação educacional e cultural para as massas e, assim,

nasceram bibliotecas públicas em municípios, sociedades de fomento, sindicatos operários,

revistas de vanguarda, encontros (como o do movimento modernista em São Paulo),

cinemas, estádios esportivos, popularização do futebol, teatro com conteúdo e princípios.

Em 1904, nasceu o primeiro partido socialista da América Latina, em Buenos Aires, do qual

participavam intelectuais do liberalismo democrático e progressista, anarquistas e

sindicalistas. Como oposição, organizaram-se os católicos não revolucionários, com base na

encíclica Rerum Novarum17.

A classe média se caracterizava pela qualidade no decoro, sendo muito influenciada pela

publicidade a adquirir objetos e contratar serviços sempre um grau acima de suas

possibilidades, de modo a parecer ser mais do que era, como tática de engajamento em

outros meios e de ascensão social. A rua ganhou importância e se transformou com a

proliferação de cafés, restaurantes, teatros, cinemas, escritórios, clubes, centros políticos,

clubes de profissionais.

A baixa classe média, por sua vez, não conseguindo condições para ir além da busca de

sobrevivência, colocava sua esperança nos partidos políticos que ofereciam melhorias

imediatas e nova carreira. A concentração de trabalhadores nas cidades nas greves e

comícios assustava as classes média e alta; esta última logo entendeu que a cidade deixara

de ser sua, afastando-se, assim, dos centros.

Conflitos estudantis ocorriam às vezes concomitantes aos movimentos populares, mas havia

uma secreta advertência que distinguia os objetivos dos dois grupos.

Enfim, do individualismo passou-se ao grupo, da aventura à contestação do lucro e da livre

concorrência; as relações econômicas passaram a ser tratadas em conjunto com as relações

sociais; a moral vitoriana e sua aparência passaram a ser vítimas de preconceito,

valorizando-se o americanismo; o papel da mulher se alterou e a família como instituição foi

questionada, assim como a educação tradicional. Em 1930,

17

A encíclica Rerum Novarum (Das Coisas Novas), escrita pelo Papa Leão XIII em 1891, tratava da condição dos

operários industriais, incentivava a formação de sindicatos, defendia a propriedade privada e discutia relações entre governo, negócios, trabalho, Igreja.

ROMERO, José Luis. As cidades burguesas. América Latina: As cidades e as idéias. Capítulo 6. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

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[...] A cidade não era um conjunto integrado, e sim uma justaposição de grupos de diferentes mentalidades. [...] A sociedade urbana que começava a ser multitudinária provocava a quebra do velho sistema comum de normas e valores sem que nenhum outro o substituísse. [...] Era como o início de uma degradação da ideologia da ascensão social, que, por certo, continuou degradando-se. Em grandes grupos aparecia vagamente a certeza de que o conjunto social – ou talvez o Estado – estava obrigado a impulsionar e a apoiar o processo de ascensão dos marginalizados e dos recém-chegados, deixando de lado as regras tradicionais da competição. [...] Quase ninguém sabia pelo que se poderia substituí-la; mas poucos dos que percebiam a metamorfose das cidades latino-americanas duvidavam de que outras formas de interpretação da realidade e dos projetos de vida estavam sendo elaboradas surdamente nessas sociedades urbanas que se inflamavam. p.350-352

ROMERO, José Luis. As cidades burguesas. América Latina: As cidades e as idéias. Capítulo 6. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

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PARTE III

REFLEXÕES PESSOAIS

O texto me impressionou muito, especialmente pela mescla de informações macro, de

sensações micro e do raciocínio que as entrelaça. Reconheci em muitos detalhes a história

de minha família, minha própria história e o rumo que a geração de meus filhos está

tomando.

Sou neta de imigrantes chegados ao Brasil entre 1910 e 1920. Alguns de meus avós logo

encontraram seu lugar no comércio, estabelecendo-se “na praça” de cidades do interior do

estado de São Paulo; outros trabalharam em madeireiras no Paraná e em seguida na

indústria têxtil paulistana. Vida difícil, mas todos os filhos estudaram e foram reconhecidos

profissionalmente. Nasci nesta cidade no início dos anos 1950, e convivi com vários termos

e comportamentos expostos por Romero nesse capítulo sobre as cidades burguesas, uma

vez que o pensamento da classe média da época aqui estudada de certa forma se reflete na

sociedade até hoje.

Seguem algumas de minhas observações pessoais ocorridas durante a leitura, que tomo a

liberdade de compartilhar, mesmo sem fundamento bibliográfico ou outro suporte

academicamente reconhecido.

1 – ACULTURAÇÃO E MARKETING

Romero menciona que as monoculturas e a extração eram incentivadas pelas matrizes nas

colônias, em função das necessidades das primeiras e das características ecológicas de

cada polo produtor. Contudo, enquanto as colônias tinham um mercado restrito para sua

produção, as matrizes desenvolviam mais de um fornecedor para suprir sua demanda

(América, Ásia, África).

[...] A preferência do mercado mundial pelos países produtores de matérias-primas e consumidores virtuais de produtos manufaturados foi por certo o que estimulou a concentração, em diversas cidades, de uma crescente e variada população, o que nelas criou novas fontes de trabalho e suscitou novas formas de vida, o que desencadeou uma atividade até então em desuso e acelerou as tendências que procurariam apagar o passado colonial para instaurar as formas da vida moderna. p.283

Nesse trecho, Romero me fez pensar sobre o papel da propaganda nesse intercâmbio e

aculturação, desenvolvendo mercado interno para distribuição desses manufaturados

importados e, consequentemente, criando uma hierarquia dentre as cidades entre o porto e

o rural, nos dois sentidos. Veja-se que, assim como os colonizados queriam se parecer com

as matrizes, nestas a demonstração do contato com o exotismo também era um diferencial

positivo.

Sendo assim, será que uma das maneiras de os mercadores intermediários garantirem a

negociação era incluir na oferta dos insumos das colônias a condição de aquisição da

produção excedente de manufaturados europeus, como um diferencial na concorrência com

as demais colônias produtoras?

ROMERO, José Luis. As cidades burguesas. América Latina: As cidades e as idéias. Capítulo 6. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

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O marketing e o turismo, pois, em sua forma primária, espontânea, talvez não consciente,

aproveitando-se de sentimentos humanos naturais (imitação, disputa, curiosidade), já

atuavam na formação das vontades e gostos. O comércio apenas ampliou e facilitou a

resposta à necessidade nata de intercâmbio de conhecimentos e sensações e à

necessidade criada de intercâmbio de insumos e riquezas.

2 – INDIVIDUALISMO E BAIRROS-JARDIM

Uma das questões preocupantes até o presente é a da importação de ideias e modos de

fazer. Até onde tem sentido? Dará certo?

Por que os bairros-jardim fracassaram no Brasil, apesar das imagens divulgadas pelo

cinema americano, dos folders convidativos a experiências mais ligadas à natureza e ao

convívio humano, ao ideal de fraternidade, e outros aspectos mais?

[...] Havia algo em sua [da nova burguesia] concepção de liberalismo econômico que debilitava o seu sentido público e, no fundo, o conjunto estava formado não tanto pelos que compartilhavam um risco, mas pelos que coincidiam na promissora aventura. Por isso, as novas burguesias – de forma diferente do velho patriciado – constituíam uma classe com escassa solidariedade interior, sem os vínculos que proporcionavam ao patriciado a relação de família e o estreito conhecimento mútuo. As novas burguesias, pelo contrário, constituíram-se como grupos de sócios comerciais, cada um deles arriscando tudo dentro de um quadro de relações competitivas intransigentes no qual a vitória ou a derrota – que era como dizer a fortuna ou a miséria – representavam o fim do drama. p.304

Haveria implícito, portanto, nesse comportamento certo medo de exposição da intimidade do

núcleo familiar ao concorrente? Isso explicaria a deturpação dos bairros-jardim (Cia.City – J.

América – 1915), em que os espaços de convívio interiores às quadras, ponto alto do

modelo, foram com o tempo subdivididos e os lotes cercados?

Esse receio também acontecia nas matrizes? Que suporte havia para amenizar esse drama?

Ou será que o cercamento vem do mimetismo de um modelo anterior, em que os palácios

reais e as grandes propriedades tinham seu núcleo circundado de lanças, fossos, guaritas?

3 – RELAÇÃO HOMEM – NATUREZA

Romero tem como característica abrandar o dualismo típico do raciocínio humano,

mostrando o papel dos aparentes opostos num mesmo sistema e sua relação simbiótica.

Civilização = cidade

x Barbárie = campo

Liberdade

público, política, cidade, ação

humana criadora para se sobrepor

x Necessidade

privado, economia, mundo

doméstico,

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às determinações da realidade

natureza + cultura

Cidade = único lugar em que a

liberdade pode se aninhar

x Campo = barbárie da necessidade

Nesse quadro, a reação humana frente ao paradoxo da natureza – de um lado o sofrimento

e a sobrevivência, de outro o éden e a harmonia – vem se alterando em nossa rota evolutiva.

Se no início não nos percebíamos como entes individualizados em relação ao todo, aos

poucos nos colocamos em perspectiva para observação do restante do mundo (outras

pessoas e natureza).

“Um dia li sua explicação sobre o modo em que a mentalidade burguesa elabora, nos séculos medievais, uma nova relação entre o homem e a natureza: o distanciamento do meio natural, sua transformação em paisagem ordenada e racional, a contemplação e o desfrute estético, de uma janela ou um terraço, sua fixação em um quadro de Giotto a Corot.” Luis Alberto Romero, p.34 (Prefácio)

Em seguida nos apoderamos daquilo que observávamos, dominando a natureza pela ciência

e tecnologia para criação de um novo éden (época de que trata o capítulo aqui estudado).

[O progresso era o] contínuo desenvolvimento da conquista da natureza para colocá-la a serviço do homem, da produção de bens, da produção de riquezas, da produção de bem-estar. [...] Porém, na AL nada daquilo havia acontecido. Foi um modelo, ou melhor, um espelho. E a partir de então pareceu imprescindível incorporar-se àquela corrente importando os produtos que eram fruto do progresso, primeiro, e organizando, depois, os sistemas para possibilitar essa incorporação de maneira sólida e definitiva. p.343

Finalmente, estamos num processo de retorno à unicidade, mas agora adquirindo

consciência dos inter-relacionamentos que nos garantem a vida nesta plataforma física.

4 – SOBRE A EVOLUÇÃO DA HUMANIDADE

Romero não diz com estas palavras, mas, para mim, seu entendimento é de que a roda da

sorte gira sem muita preocupação com dominantes e dominados. Inferno e paraíso se

sucedem no cotidiano humano independentemente da geografia e da época.

A arte de viver talvez seja, pois, sentir esse movimento da roda e descobrir (ou inventar)

meios de acompanhar seu giro e se manter no topo. A tarefa que hoje se nos apresenta

como educadores, profissionais, cidadãos é chamar atenção para as consequências sobre

os atos de cada um nessa luta.18

O texto a seguir é um segmento de uma publicação minha em página que mantenho na web

(embora não atualizada), de 22/08/2011, e, segundo minha compreensão, reflete o

sentimento que está por trás da obra de Romero aqui em análise.

18

Em aula, foi mencionado o filme “O Leopardo”, sob direção de Luchino Visconti, de 1963, com base no livro homônimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, escrito no início do século XX. A obra aborda as tensões e a mobilidade social na Itália entre os séculos XIX e XX, na época da revolução liderada por Giuseppe Garibaldi sob influência do ideal iluminista de Igualdade, Liberdade e Fraternidade, e ilustra esplendidamente muitos dos processos de mobilidade social descritos por Romero.

ROMERO, José Luis. As cidades burguesas. América Latina: As cidades e as idéias. Capítulo 6. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

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A des-construção dos modelos dominantes, a re-volução, embora pareça decorrer de conflito entre sentidos de desenvolvimento opostos, de fato é, apenas, ajuste dos pontos de tangência, levando à mudança de direção de todos os atores. Reflete-se num processo de aculturação mais agressivo pela velocidade com que se dá e por isso resulta em sofrimento. Será que, de fato, estamos caminhando ou isso tudo é cíclico, como na Roda da Fortuna, e nossa sensação de conforto ou sofrimento decorra apenas de nosso ponto de vista?

Ó Fortuna, variável como a

lua, sempre cresces

ou mínguas; vida detestável,

hora frustra ora satisfaz,

brincas com os nossos sentidos,

a miséria o poder

fundem como gelo em ti.

Sorte (Destino) cruel e vã

tu, roda que giras, a tua natureza é

perversa, a tua felicidade vã, sempre a dissipar-

se pela sombra

e em segredo aproximas-te de

mim, apresento o meu

dorso nu ao jogo da tua perversidade.

Sorte, senhora do bem-estar e da

virtude, estás agora contra

mim; afecções e derrotas

estão sempre presentes. Nesta hora

sem demora pulsai as cordas; pois que a sorte esmaga o forte

chorai todos comigo.

(“Roda da Fortuna”, da cantata Carmina Burana de Carl Orff, 1937)

Roda da Fortuna é uma imagem que representa bem a alternância entre forças sociais e naturais.

Está presente em nossa memória parece que desde sempre, e se manifesta materialmente como

figura de sorte - azar no globo giratório que centraliza as atenções em sorteios e bingos, e

provavelmente de outras formas.

A Roda da Fortuna está muito bem representada em Carmina Burana. (Carmina = Canções;

Burana = proveniente da região de Beuern, Baviera, Alemanha). São textos poéticos musicados do

século XIII, coletados por clérigos vagantes junto à população de cidades e vilas da região que

atendiam espiritualmente. Embora tenha sido registrado por religiosos, o conjunto da obra Carmina

Burana trata de aspectos da vida comum, às vezes de maneira delicada e às vezes mundana,

nossas fraquezas e desejos, tristezas e alegrias.

A coleção original de textos encontrava-se no Benediktbeuern, mosteiro beneditino, e restaura para

nós todo um cosmo onde o Bem não existe sem o Mal, o sacro sem o profano e a fé sem

maldições e dúvidas: a oscilação onde se encontra a grandeza da Humanidade. Esse humanismo

medieval, também apresentado nos contos de fadas mais antigos (ainda sem o abrandamento

dado por Disney), pode mesmo ser considerado bárbaro e cruel; possibilitou, no entanto, a

sobrevivência ao sofrimento da guerra, ao mundo infestado pela praga, à injustiça, à instabilidade,

na escuridão da ignorância de tudo que não fosse santificado pelo dogma.

Esses e outros textos foram reencontrados em 1803 e apresentados a Carl Orff (compositor

alemão, 1895-1982) por volta de 1936; esse, percebendo a atualidade do tema, selecionou alguns

para uma alegoria moderna. Carmina Burana, como obra de Carl Orff, foi apresentada pela

primeira vez em 1937, em Frankfurt, iniciando a trilogia intitulada Trionfi - Trittico Teatrale, que

inclui Catulli Carmina (1943) e Trionfi dell'Afrodite (1952), levando à compreensão de que só o

Desejo e o Amor podem capacitar o Homem a viver, lutar e crer. 19

19

Com base em vários textos colhidos na Internet e no folder escrito pelo Maestro Sérgio Assunção, por ocasião

da apresentação da obra em 2011 no Teatro Paulo Machado de Carvalho, em São Caetano do Sul - SP.

ROMERO, José Luis. As cidades burguesas. América Latina: As cidades e as idéias. Capítulo 6. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

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FONTES CONSULTADAS

DUTHOY, J. –J.; ROUSÉ, J. (revisão e atualização). Grande Dicionário Francês-Português

de Domingos de Azevedo. 4ª edição. Lisboa: Livraria Bertrand, 1952.

HALPERIN DONGHI, Tulio. José Luis Romero y su lugar en la historiografía argentina. In

ROMERO, José Luis. Las ideologías de la cultura nacional y otros ensayos. Buenos

Aires: Centro Editor de América Latina, 1982, pags. 187-236. Obtido em

http://es.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Luis_Romero_(historiador) acessado em

23/09/2012.

ROMERO, José Luis. As cidades burguesas. América Latina: As cidades e as idéias. 2ª

ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

http://www.buenosaires.gov.ar

http://claucallegaro.wordpress.com

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http://pt.wikipedia.org (páginas diversas acessadas em várias datas de outubro de 2012).