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Artigos São Paulo / NOVEMBRO 2016 1 Texto para a “Revista do Advogado: Direito das Empresas em Crise”, São Paulo, n. 131, p.188-205, Outubro/2016. Autor: Ricardo Mariz de Oliveira Fernando Mariz Masagão O FENECIMENTO DO DIREITO DE DEFESA - REFLEXÕES EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA Considerações iniciais O título deste texto, embora pareça autoexplicativo, requer um breve esclarecimento a respeito do tema a ser abordado. É que o verbo fenecer comporta alguns sinônimos, todos relacionados de algum modo à sua ideia central de tornar-se extinto, acabar, terminar, e até mesmo o de falecer, sinonímias que o aproximam (por vezes até o identificam) com a definição de perecer, vocábulo a que o direito empresta o mesmo sentido usado em vernáculo, e isto poderia causar certa confusão quanto ao que será exposto. De fato, a palavra fenecimento comporta igualmente o sentido do próprio processo de extinção de algo, daquilo que caminha para seu fim lenta e gradativamente, de desbotamento, de perda de vitalidade, de algo que murcha, se esvai. Assim, não se vai abordar o direito de defesa referenciado às hipóteses da sua extinção, ou da extinção de qualquer outro direito, como nos caso de prescrição, ou no das causas de extinção da propriedade, conforme prevê o inciso IV do art. 1.275 do Código Civil, ou seja, pelo “perecimento da coisa".

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Texto para a “Revista do Advogado: Direito das Empresas em Crise”, São Paulo, n. 131, p.188-205, Outubro/2016.

Autor: Ricardo Mariz de Oliveira Fernando Mariz Masagão

O FENECIMENTO DO DIREITO DE DEFESA - REFLEXÕES EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

Considerações iniciais O título deste texto, embora pareça autoexplicativo, requer um

breve esclarecimento a respeito do tema a ser abordado. É que o verbo fenecer comporta alguns sinônimos, todos relacionados de algum modo à sua ideia central de tornar-se extinto, acabar, terminar, e até mesmo o de falecer, sinonímias que o aproximam (por vezes até o identificam) com a definição de perecer, vocábulo a que o direito empresta o mesmo sentido usado em vernáculo, e isto poderia causar certa confusão quanto ao que será exposto.

De fato, a palavra fenecimento comporta igualmente o sentido do

próprio processo de extinção de algo, daquilo que caminha para seu fim lenta e gradativamente, de desbotamento, de perda de vitalidade, de algo que murcha, se esvai. Assim, não se vai abordar o direito de defesa referenciado às hipóteses da sua extinção, ou da extinção de qualquer outro direito, como nos caso de prescrição, ou no das causas de extinção da propriedade, conforme prevê o inciso IV do art. 1.275 do Código Civil, ou seja, pelo “perecimento da coisa".

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Aqui vamos tratar da deterioração da efetividade e eficácia do direito de defesa, pois cremos que este ainda exista no Brasil, mesmo que esteja sendo aviltado e que esteja ameaçado de se tornar apenas uma expressão vazia de conteúdo, ceifado em sua eficácia jurídica, um “flatus vocis”.

Outrossim, numa publicação destinada a abordar “O DIREITO DAS

EMPRESAS EM CRISE”, o fenecimento do direito de defesa é muito apropriado, pois, embora ele atinja indistintamente a todos os cidadãos, manifesta-se com maior intensidade sob o prisma que abordaremos, do direito de defesa das pessoas jurídicas e das pessoas naturais relativamente ao direito tributário, pelas seguintes razões: (1) é no âmbito de empresas e empresários que ocorre a maior parte dos processos sobre tributos, em quantidade e em valores envolvidos; e (2) infelizmente para o nosso país, o exercício do poder de tributar talvez seja, entre as expressões atuais da soberania estatal, aquela que mais esteja sofrendo abusos e desvios de finalidade em sua condução pelo Poder Público

E, de maneira oblíqua ou direta, vêm sendo manietados os meios de

defesa garantidos pela Constituição para que os “contribuintes” possam reagir contra exações indevidas, ou duvidosas, sobre seus patrimônios.

Colocamos a palavra “contribuintes” entre aspas porque nem

sempre se trata efetivamente de contribuintes, eis que, quando alguma exação seja indevida, as pessoas não adentram nas relações jurídicas que se lhes atribui e da quais seriam sujeitos passivos tributários. A despeito disso, manteremos a expressão porque ela identifica a pessoa ou as pessoas a quem nos referimos.

Não nos interessa, para os fins do presente artigo, investigar as

motivações para os atos que serão objeto de comentário, até porque estaríamos adentrando no campo das adivinhações. Importa ver que, de boa ou má fé, algumas atitudes reiteradas das esferas do Poder Público vêm produzindo o efeito de esvaziar paulatinamente os meios de defesa postos pela Constituição à disposição dos cidadãos, e sequer imaginamos possível haver algum indivíduo que não reconheça a razão de existir e a importância desse direito.

O grave é que o instrumento usado para esse estrangulamento dos

meios de reação ao arbítrio fiscal ou a meras cobranças indevidas manifesta-se

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por meio das leis, e amiúde através da própria “hermenêutica jurídica”, seja na edição de normas infralegais manifestando a interpretação oficial e vinculante dos agentes da administração tributária, seja no exercício da atividade judicante, principalmente na esfera administrativa, na qual há sérias agressões a direitos e garantias fundamentais, travestidas de acórdãos.

De fato, quantas vezes o Supremo Tribunal Federal julgou algum

tributo inconstitucional e a própria Constituição foi alterada para contornar suas decisões! Em outras tantas vezes o Superior Tribunal de Justiça firmou jurisprudência sobre determinado assunto e leis complementares ou ordinárias foram baixadas para afastá-la! O Código Tributário Nacional (CTN) não acobertava determinadas pretensões fiscais e muitas vezes foi alterado por um Poder Legislativo não atento aos verdadeiros propósitos arrecadatórios de propostas vindas do Poder Executivo sem adequadas explicações! Tantas foram as outras vezes em que simples atos normativos das repartições públicas implantaram modos de aplicar a lei não acobertados por esta! 1

Em todos esses casos só havia a busca de mais tributação, às custas

do ordenamento jurídico, e nem sempre – lamentavelmente não na intensidade cabível – o Poder Judiciário manifestou-se no sentido do excesso do poder de legislar, ou mesmo da simples inconstitucionalidade ou ilegalidade de determinados atos.

E cabe acrescentar, ao que já dissemos, porque resolvemos adentrar

em assunto tão delicado, permitindo-nos, por escassez de espaço e ante o objetivo desta publicação, reduzir nossas observações ao plano federal, muito embora situação igual seja encontrada nos Estados e nos Municípios.

É que na condição de advogados que militam na área, um de nós há

mais de cinquenta anos e o outro há quinze, dedicamos nossos melhores esforços ao estudo jurídico dos tributos e sentimos consternação em relação ao atual estado de coisas. Não se trata de revolta por processos perdidos, porque ganhar ou perder este ou aquele caso faz parte da advocacia2, mas, sim, da 1 Não há espaço aqui para relacionar os fatos referentes a estas situações, mas elas são de conhecimento público. 2 Na advocacia, o sentimento do melhor esforço desenvolvido na defesa da causa ultrapassa a frustração de derrota.

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preocupação sobre como as decisões são tomadas, mesmo quando foi ganho um processo, ao que se alia as demais ações já referidas em torno da emissão de normas legais ou não.

De fato, quem teve o privilégio de atuar perante os antigos

Conselhos de Contribuintes e a sua Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), esta criada em fins dos anos 70, quando suas câmaras e turmas eram órgãos técnicos, imparciais e independentes, compostos por profissionais de alto gabarito, vindos dos quadros públicos e privados e cônscios da importância social da sua função; ou quando se recorda o grau de excelência e cultura jurídicas que revelavam pareceres normativos da antiga Coordenação do Sistema de Tributação, a ponto de até hoje servirem de referência a determinados assuntos; quem, enfim, também dedicou a sua vida ao Direito pelo fato de acreditar na Justiça, não pode deixar de experimentar um misto de espanto e indignação ao testemunhar os dias presentes, onde há, sim, exceções3, mas rarefeitas.

E também jamais será esquecida a soberba atuação do Poder

Judiciário na defesa da ordem constitucional e legal tributária nos chamados “anos de chumbo”!

Presentemente, talvez o momento mais alarmante tenha sido aquele

em que o então Ministro da Fazenda, durante seu discurso na cerimônia de reabertura do CARF – após passar um ano sem funcionar, como é notório, por conta do envolvimento de alguns dos seus quadros em denúncias de corrupção – conclamou a ajuda do órgão para a tarefa de realizar o ajuste fiscal que então tentava desesperada e inocuamente implantar4.

3 Inclusive bons pronunciamentos da atual Coordenação-Geral do Sistema de Tributação (COSIT). 4 Apesar de um dos subscritores deste artigo ter comparecido à cerimônia de reabertura do CARF, realizada em 28.7.2015, e, portanto, poder relatar como testemunha presencial, há no site do CARF notícia acerca dessa cerimônia, em que se pode ler o seguinte: “Por fim, o Ministro destacou que o CARF terá papel fundamental para reforçar o caixa do governo federal em momento de queda na arrecadação, pois o órgão julga litígios que superam R$ 560 bilhões, resumindo: temos de fazer valer as decisões, a favor do fisco ou a favor do contribuinte, da sociedade como um todo”. In

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Pode-se argumentar que o ministro apenas pedia celeridade e

também mencionou ser necessário fazer valer decisões a favor dos contribuintes, mas o resultado foi uma derrota para os direitos fundamentais, não apenas porque a “pressa é inimiga da perfeição”, como também porque, desde então, se viu uma guinada inimaginável no rumo da jurisprudência do CARF e da CSRF.

Essa jurisprudência, até o início do século, resultava a grosso modo

em metade dos casos ser decidida a favor da manutenção dos autos de infração, portanto, demonstrando que o direito de defesa se manifestava amplamente a ponto de os contribuintes conseguirem cancelar a outra metade, e isto era expressivo ao se saber que naquela época a maior parte dos processos era julgada sem a presença de advogados.

Pois essa jurisprudência mudou brutalmente a partir de dezembro

de 2015, e já havia começado a mudar paulatinamente nos anos anteriores. Paralelamente, a Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) tem

publicado relatórios em que afirma um inacreditável sucesso nas cobranças fiscais. No “Plano Anual da Fiscalização da Receita Federal do Brasil” para o ano-calendário de 2016 constam metas e parâmetros de atuação dos agentes da RFB e são divulgados os resultados do ano-calendário anterior5.

O tópico 3 do documento trata do que ele próprio batiza de “Grau de

Aderência das Autuações” e nele se lê que “o grau de aderência mede a manutenção dos lançamentos efetuados pela Fiscalização. Considera-se mantido e definitivamente constituído o lançamento quando o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda (CARF) decide pela procedência do lançamento ou quando o contribuinte não impugna o lançamento efetuado”.

Pois bem, segundo esse mesmo item 3, em 2010, o “grau de

aderência das autuações” que foram confirmadas pelo CARF teria sido de http://idg.carf.fazenda.gov.br/noticias/2015/ministro-joaquim-levy-conduz-cerimonia-de-reabertura-do-carf - acessado em 30.7.2016. 5 Vide http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/resultados/fiscalizacao/arquivos-e-imagens/plano-anual-fiscalizacao-2016-e-resultados-2015.pdf

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95,25% do total de exigências fiscais lavradas contra os contribuintes. Em 2015, o “grau de aderência” do CARF às autuações lavradas pela RFB teria alcançado 99,60%.

Sobre estes dados, conclui a administração tributária federal que “o

aperfeiçoamento do grau de aderência é alcançado primordialmente pela qualidade crescente dos lançamentos efetuados pelos Auditores-Fiscais da Receita Federal, que se comprometem com o crédito tributário até a fase final do contencioso, preparando subsídios para atuação da Procuradoria da Fazenda Nacional junto ao CARF, e pelo acompanhamento dos julgados efetuado pela Subsecretaria de Tributação e Contencioso”.

Sem adentrar nos critérios adotados para tal estatística, é de se ver

que “a qualidade crescente dos lançamentos efetuados pelos Auditores-Fiscais da Receita Federal” beira à perfeição, dado que apenas 0,40% dos contribuintes autuados teria conseguido demonstrar, no CARF o desacerto da fiscalização quanto aos lançamentos fiscais contra eles lavrados.

Como não se conhece os critérios estatísticos empregados, não se

pode contestá-los, mas a vivência no CARF mostra que, mesmo perante o assustador novo rumo das suas decisões, o desequilíbrio não chegou a esses níveis6, mesmo porque, a despeito da reconhecida e desejada melhora de qualidade dos trabalhos de fiscalização, há autos de infração absurdamente improcedentes, outros maculados por excessos na graduação de multas e, ademais, também sofrem autuações contribuintes que se esforçam para cumprir as leis e agem conforme rigorosos critérios de interpretação das normas e de tomada de decisões.

Quem milita na assessoria consultiva e preventiva bem o sabe. De qualquer modo, é fato público e notório que o pêndulo da justiça

administrativa caiu pesadamente a favor do fisco, e para isto contribuem os casos, em número nunca antes visto, decididos por voto de desempate, que, na

6 Certamente não se chegou a esses níveis até 2015. A partir do final desse ano, é possível que ao menos tenha se aproximado, face aos fatos aqui apresentados e comentados.

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esfera federal, é sempre proferido por conselheiro representante da Fazenda Nacional, depois de já ter votado com os demais pares.7

Neste cenário, é justo indagar: será que estariam erradas tantas

empresas, que são bem assessoradas internamente e, externamente, por diversos escritórios de advocacia, são rigorosamente auditadas por grandes firmas de auditoria independente, muitas dessas empresas tendo capital aberto e demonstrações financeiras submetidas à CVM?

A verdade é que os resultados dos processos administrativos assim

julgados comprometem seriamente a validade da presunção de certeza e liquidez dos créditos tributários que foram mantidos, assim como compromete a presunção de certeza e liquidez das respectivas certidões de inscrição em dívida ativa, transferindo para o Poder Judiciário uma carga e um encargo que, face à maneira equânime como a justiça administrativa se pronunciava no passado, os tribunais não tinham.

E é um enorme engano, e inaceitável desvio de conduta, pensar que

agentes do fisco e tribunais administrativos devam produzir aumento de arrecadação. A eles cabe apenas vigiar e assegurar a arrecadação que esteja prevista nas leis orçamentárias, às quais compete, juntamente com as de diretrizes orçamentárias, prever e estabelecer o “quantum” do que se pretende seja arrecadado, e desde que haja leis sobre tributação que permitam atingir os patamares traçados.

Mesmos tais leis têm que estar em consonância com o restante do

ordenamento jurídico, na parte em que este estabelece as possíveis obrigações

7 Há um lamentável desvio da função de julgar quando conselheiros indicados pela Fazenda Nacional sintam que devam votar a favor desta, do mesmo modo que conselheiros indicados por contribuintes não podem ter esta postura, mas em sentido contrário. Não é esta a razão que levou os conselhos a serem paritários, isto é, não cabe aos conselheiros defender qualquer das partes do processo, que isto é tarefa da Procuradoria da Fazenda Nacional e dos advogados constituídos para defesa dos contribuintes. Em grande parte, as decisões por voto de desempate decorrem dos “votos de bancada”, e não de ter havido grande divergência sobre teses jurídicas ou análise dos fatos.

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tributárias que, por sua vez, estão ditadas exclusivamente por normas legais cujo cumprimento é exigido de todos, contribuintes, fiscais e julgadores.

Ademais, como a tributação repousa sobre capacidades

contributivas reais, o conjunto desses atos, desde a lei de diretrizes, passando pelas leis de incidência e pela sua aplicação, não pode deixar de observar a realidade econômica em que atua. O poder de tributar não pode chegar à desmedida do poder de destruir, isto é, “the power to tax is the power to keep alive”, como afirmou o Ministro Orosimbo Nonato no Recurso Extraordinário n. 18331-SP.

Qualquer mentalidade diferente é profundamente lamentável e

nefasta, e nos faz lembrar a irrepreensível lição do Ministro CELSO DE MELLO no Habeas corpus n. 82.788-8-RJ:

“— Não são absolutos os poderes de que se acham investidos os órgãos e agentes da administração tributária, pois o Estado, em tema de tributação, inclusive em matéria de fiscalização tributária, está sujeito à observância de um complexo de direitos e prerrogativas que assistem, constitucionalmente, aos contribuintes e aos cidadãos em geral. Na realidade, os poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode caracterizar ilícito constitucional. — A administração tributária, por isso mesmo, embora podendo muito, não pode tudo. É que, ao Estado, é somente lícito atuar, ‘respeitados os direitos individuais e nos termos da lei’ (CF, art. 145, § 1º), consideradas, sobretudo, e para esse específico efeito, as limitações jurídicas decorrentes do próprio sistema instituído pela Lei Fundamental, cuja eficácia — que prepondera sobre todos os órgãos e agentes fazendários — restringe-lhes o alcance do poder de que se acham investidos, especialmente quando exercido em face do contribuinte e dos cidadãos da República, que são titulares de garantias impregnadas de estatura constitucional e que, por tal razão, não podem ser transgredidas por aqueles que exercem a autoridade em nome do Estado”. (os destaques estão no original)

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As próprias instâncias de julgamento administrativo existem para cumprir a tarefa de revisão da legalidade dos lançamentos fiscais, e perdem sua razão de ser quando não a executam efetivamente, limitando-se a verdadeiramente apenas chancelar aqueles lançamentos. Poderiam até ser extintas, se não houvesse a garantia constitucional do processo administrativo.

Outrossim, a própria atividade de lançamento tributário é

estritamente vinculada à lei (art. 142 do CTN), e o art. 194 do mesmo estatuto é comedido ao delegar às administrações tributárias a função de legislar sobre “a competência e os poderes das autoridades administrativas em matéria de fiscalização da sua aplicação”. E, examinando-se o art. 1º da Portaria MF n. 203/12, que instituiu o Regimento Interno da RFB, verifica-se que nos vinte e cinco incisos que determinam a “finalidade” da RFB não se vê qualquer autorização para implantar medidas que visem ao “aumento da arrecadação”.

Não nos cabe ingerir nas diretrizes para o exercício das funções da

fiscalização, mas nos é possível verificar que elas estão voltadas precipuamente para o aumento da arrecadação, e com critérios no mínimo juridicamente duvidosos.

Neste sentido, no tópico 7 do referido Plano Anual da RFB encontra-

se uma análise da “Evolução da Qualidade de Seleção da Fiscalização”, que começa explicando que “área de seleção de contribuintes da Sufis busca o aumento da percepção de risco e da presença fiscal para elevar o cumprimento espontâneo das obrigações tributárias. Para tanto, orienta seu trabalho na busca de indícios consistentes que permitam um número maior de procedimentos fiscais encerrados com resultado”.

No mesmo item está dito o seguinte: “A partir dos extraordinários

resultados obtidos desde 2010 em relação aos grandes contribuintes, em 2015, iniciou-se o processo de regionalização da seleção para os demais segmentos de contribuintes. O objetivo é potencializar resultados decorrentes da especialização dos Auditores-Fiscais que detêm a prerrogativa de decidirem quem serão os sujeitos passivos que serão fiscalizados, quais os indícios de infração devem ser objeto de verificação no procedimento de fiscalização e o valor esperado de lançamento”.

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É válido procurar localizar áreas de infração, mas é discutível se o trabalho deve ser orientado pela busca de um resultado que é medido em quantidade e montante de cobranças, pois o trabalho fiscal é igualmente meritório quando constata que as obrigações tributárias foram devidamente cumpridas pelas pessoas fiscalizadas.

O tópico 5 do Plano Anual revela quais foram os segmentos em que

se concentrou a fiscalização tributária federal entre os anos-calendário de 2014 e 2015. Esse tópico 5 traz o sugestivo título de “Crédito Tributário por Segmento ou Ocupação Profissional”, onde se pode ler a informação de que, “nas pessoas jurídicas, as autuações concentraram-se no segmento industrial, com lançamento de R$ 39,3 bilhões”, enquanto “no segmento das pessoas físicas fiscalizadas, as autuações se concentraram nos contribuintes cuja principal ocupação declarada foi o de proprietário ou dirigentes de sociedades empresárias (R$ 1,4 bilhão)”.

E consta nos tópicos 10.1 e 10.2 que “os grandes contribuintes,

embora sejam menos de 0,01% do total de contribuintes cadastrados no Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas (CNPJ), responderam em 2015, por 61% da arrecadação total”, parcela que corresponde em números totais a 17,9 bilhões de reais.

Assim, o enfoque da fiscalização concentra-se em 0,01% das pessoas

jurídicas cadastradas no CNPJ, o que também guarda pertinência com o objetivo de aumentar a arrecadação, porque é aí que se encontra a possibilidade de trazer mais recursos ao erário. Mas as pessoas físicas também são atingidas no segmento preferencial de fiscalização, pois amiúde contra elas resvalam autuações a título de devedoras solidárias com as pessoas jurídicas para as quais trabalham.

Mesmo que o direcionamento precípuo da fiscalização às empresas

e empresários fosse justificado pela existência de um critério baseado num racional econômico vinculado estritamente à própria função institucional da RFB, ainda restaria perguntar se o ganho na arrecadação, daí decorrente, seria justificativa suficiente para tratar desigualmente os contribuintes a serem fiscalizados e sendo fiscalizados, inclusive de certo modo afastando o inciso II do art. 150 da Constituição, o qual veda à União (e aos demais entes políticos) “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação

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equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida”.

E o que não escapa à observação é a permanente desconfiança de

que tais possíveis contribuintes sejam mais infratores da lei do que os outros. Por fim, não pode deixar de ser mencionado que a pressão colocada

sobre os contribuintes preferenciais para a fiscalização é reforçada por multas qualificadas que a lei reserva exclusivamente para as situações de dolo comprovado, pois com elas, além do aumento brutal do risco econômico, vem a representação para fins penais, no caso de pessoas jurídicas contra seus dirigentes e funcionários, o que compromete gravemente a liberdade no exercício da atividade privada e das profissões.

É verdade que o CARF tem vem mantendo grande reserva quanto à

qualificação das multas, mas ela é mantida em muitos processos. Não bastasse, a prática indiscriminada de tornar tais pessoas

responsáveis solidárias das entidades para as quais trabalham, contrariando o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre solidariedade, e as situações em que o Superior Tribunal de Justiça admite a responsabilização pessoal, não passa de outro meio ilegítimo de pressão, pois é evidente que em geral são indivíduos sem a menor possibilidade de acrescentar garantia ao crédito tributário pretendido.

Neste quadro, de ânsia arrecadatória para satisfazer aumentos

incontroláveis dos gastos públicos, ou por quaisquer outros motivos, é que o direito de defesa adquire um valor específico mais acentuado, dado que se torna mais necessário do que se poderia supor numa situação em que os preceitos constitucionais e legais fossem devidamente observados.

Do direito de defesa Neste artigo, e até também a destacar a importância do tema sobre o

qual estamos falando, deixemos anotadas algumas considerações acerca do direito fundamental à defesa, garantido por nossa Constituição porque peça essencial à construção do Estado Democrático de Direito.

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Reiteramos nossa colocação inicial de que não nos interessam as

razões que levam o Poder Público a tratar com licenciosidade os princípios e as regras informadores do nosso Sistema Tributário Nacional estampado na Constituição Republicana de 1988 e no CTN. Importa, entretanto, ver que as consequências desses atos injurídicos são sempre danosas, porque vão minando os alicerces em que se apoia toda a estrutura do Estado brasileiro, e também importa ver que, paradoxalmente, são atos injurídicos realizados por quem deveria garantir a ordem jurídica.

É, portanto, à luz da sua função institucional que abordaremos a

figura do direito de defesa, prescindindo de maiores considerações acerca da sua evolução histórica, da sua substância axiológica ou de particulares aspectos funcionais na sistemática processual. Partiremos da premissa de que o direito de defesa, no ordenamento brasileiro, encontra-se consubstanciado em diversas regras e princípios cujas aplicação prática e interpretação de suas normas seguem uma mesma orientação valorativa que não pode jamais ser olvidada.

Assim como a segurança jurídica não se refere propriamente a um

direito formulado em regra expressa, mas a um desejável estado de coisas a ser obtido pelo funcionamento regular do Estado8, também o conceito de Estado Democrático de Direito não traz em si a formulação de uma regra jurídica específica, mas resulta do funcionamento íntegro e harmônico, portanto sadio, das regras que estruturam o Estado e materializam os valores perseguidos pelo constituinte originário, positivando-os em leis e em atitudes dos agentes públicos.

Existem, isto sim, normas jurídicas extraídas do sistema,

consubstanciadas pelos valores informadores de um determinado estado de coisas que é desejado, e erigidas na conjugação de diversas regras positivas que visam garantir e materializar a segurança jurídica e a manutenção do Estado de Direito.

Essa vinculação a determinados imperativos de valor, especialmente

queridos pelo legislador originário, revelam a manifestação de “juízos

8 ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 114/15.

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prescritivos” que impõem à atuação estatal estrita submissão a eles9, tanto na órbita do Legislativo, como na esfera executiva, e na aplicação do direito nas contendas dirimidas pelo Poder Judiciário. São normas cogentes, de ordem pública, cujo desrespeito põe imediatamente seus efeitos e autores à margem da lei constitucional. Vale dizer, qualquer decisão, regra ou ato, emanado do Estado, jamais pode redundar em insegurança jurídica ou atentar contra o Estado de Direito.

Não há dúvida de ser este o caso da nossa Constituição, que

caracteriza a República Federativa que se pretendeu construir em 5 de outubro de 1988 como um Estado Democrático de Direito10.

Ora, a opção pela construção de um Estado Democrático de Direito

traz consigo todo um corolário de princípios e regras que devem ser adotados para a sua efetiva concretização na realidade da vida, e entre eles está o direito de defesa. Mas não é suficiente a sua mera previsão formal em dispositivos específicos, positivados no ordenamento, pois o Estado ainda tem que assegurar a sua aplicação e a eles igualmente se submeter.

A toda evidência que não estamos sustentando não estarmos numa

situação de falta de democracia no atual do Estado brasileiro, pois efetivamente vivemos em uma democracia11.

Entretanto, é exatamente neste passo que se revela a contradição

traduzida na atuação do Poder Público e na condução da coisa pública, mormente na seara tributária, como estamos aqui denunciando, sempre que o direito seja pervertido em nome de interesses de momento (sejam da natureza que forem), ou seja violado sob as vestes de escorreita interpretação jurídica, mas configurando gravíssima ofensa institucional que atente contra princípios fundamentais a reger o Estado de Direito e, portanto, firam os direitos e garantias fundamentais do cidadão. 9 Redundando no que Humberto Ávila chama de “normas-princípio”. Idem. 10 A única, aliás, entre todas as oito Constituições que já teve o Brasil, a externar expressamente esse objetivo. 11 Se ela vige com a eficácia e abrangência que se espera num Estado Democrático de Direito, por outro lado, é tema para outro espaço, que não prejudica o que aqui está se dizendo.

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Assim como o princípio da legalidade é corolário do Estado de

Direito, o direito de defesa também o é, até porque também serve como um dos mecanismos de proteção ao próprio princípio da legalidade. Há uma interpenetração evidente entre as três figuras, que se vinculam aos valores tutelados pela Constituição, e são verdadeiros nortes de toda nossa vida jurídica e balizas estruturantes do nosso Estado.

O núcleo duro, por assim dizer, do direito de defesa, encontra-se no

inciso XXXIV, do art. 5º da Constituição, especialmente em sua alínea “a”, que trata do direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidades ou abuso de poder; no subsequente inciso XXXV, que trata do direito de acesso ao Poder Judiciário; e também na proteção do inciso XXXVI, que visa garantir os direitos adquiridos, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada contra eventuais desmandos cometidos na atividade legislativa.

Além, claro, das cláusulas garantidoras do princípio conhecido como

“devido processo legal” (“due processo of law”), como é o caso do inciso LV, que visa assegurar “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral (...) o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, bem como a inserta no inciso LXXVIII, cuja aplicação é obrigatória tanto em âmbito judicial quanto na esfera administrativa, e que visa assegurar a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade da sua tramitação.

Vale observar que contraditório e ampla defesa não se resumem a

permitir que cidadãos, ou cidadão e fisco, peticionem expondo suas razões e contrarrazões, debatendo-se em mais de uma instância, mas, sim, somente se coroam como verdadeiras garantias se aqueles valores forem afinal devidamente respeitados pelos membros dos órgãos julgadores, que devem ter o inteiro e profundo conhecimento da lei e a superioridade intelectual para separar argumentos e fundamentos contraditados amplamente, ditando a sentença com justiça e observância da lei.

A respeito da nobilíssima função de julgar, CÂNDIDO RANGEL

DINAMARCO traz um aspecto especial que não pode ser omitido. É o princípio da imparcialidade do juiz, um dos muitos componentes do feixe de direitos

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consubstanciados no princípio do direito de defesa, que não vem expressamente formulado no texto constitucional, mas é extraído de uma diversidade de dispositivos que tentam minorar as dificuldades materiais de garantir-se a imparcialidade do magistrado, porque se adentra no campo da subjetividade pessoal, a qual, por natureza, é insondável sem que o sujeito nos franqueie acesso a ela.

De modo que, além das diversas regras tendentes a sanar possíveis

focos de desvio da atividade judicante, como o princípio do juiz natural, que proíbe tribunais ad hoc (art. 5º, XXXVII), o duplo grau de jurisdição, ou as garantias constitucionais para a sua atividade, destinadas a proteger a incolumidade do exercício da sua função, postas pelo art. 95 da Carta (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos); além das regras que impõem deveres aos magistrados, como as que tratam das hipóteses de impedimento e suspeição (art. 144 a 148, do CPC), a atividade judicante deve sempre pautar-se, aliás, como todo exercício de atividade estatal, pelos princípios e valores consagrados em nosso ordenamento. O que equivale a sempre exigir-se imparcialidade, lisura e sentimento de justiça de nossos julgadores. Do contrário, estaremos na presença de mais um episódio do Estado agredindo a si próprio. Ouçamos nosso grande processualista:

“Seria absolutamente ilegítimo e repugnante o Estado chamar a si a atribuição de solucionar conflitos, exercendo o poder sobre as partes, mas permitir que seus agentes o fizessem movidos por sentimentos ou interesses próprios, sem o indispensável compromisso com a lei e os valores que ela consubstancia – especialmente com o valor do justo. Os agentes estatais têm o dever de agir com impessoalidade, sem levar em conta esses sentimentos ou interesses e, portanto, com a abstração de sua própria pessoa e de seus próprios interesses.”12

Ainda que o CARF não integre o Poder Judiciário, nem seus

conselheiros sejam magistrados, eles desempenham função judicante com poder decisório. Ora, se a Constituição exige a observância, pelos juízes, de todos os valores acima citados, é evidente que tal observância é exigida também nos

12 DINAMARCO, Cândido Rangel. LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Novo Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 97/98.

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tribunais administrativos, que estão submetidos às mesmas diretrizes cogentes para a atuação judicante.

Pondere-se ainda a circunstância de que, nos processos

administrativos, não é o Estado julgando as partes, mas o Estado, aqui no sentido do próprio Poder Executivo, julgando a si mesmo contra o contribuinte, o que enfatiza ainda mais a necessidade de que o CARF mantenha incólume sua independência, atento inclusive a que a relação de forças nunca é equilibrada numa disputa entre fisco e contribuinte, pois o Estado é evidentemente muito mais forte, inclusive porque começa acusando, cobrando e aplicando, ou propondo aplicar, sanções de vários matizes, acobertado pela presunção de legalidade do ato administrativo.

Nos dizeres de JOSÉ AFONSO DA SILVA, o chamado “princípio da

proteção judiciária, (...) também chamado de princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, constitui em verdade, a principal garantia dos direitos subjetivos. (...) Aí se junta uma constelação de garantias: as da independência e imparcialidade do juiz, a do juiz natural ou constitucional, a do direito de ação e de defesa”. 13

Segundo o ilustre constitucionalista, o princípio da proteção

judiciária funda-se, a seu turno, na regra de separação dos poderes (art. 2º da CF/88), constituindo a clássica divisão tripartite dos poderes uma “garantia das garantias constitucionais”. Após examinar os princípios cardinais que constituem a constelação de garantias que compõem a proteção jurisdicional e seus desdobramentos, conclui nos termos que seguem:

“O princípio do devido processo legal entra agora no Direito Constitucional positivo com um enunciado que vem da Carta Magna inglesa: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, LIV). Combinado com o direito de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV) e o contraditório e a plenitude de defesa (art. 5º, LV), fecha-se o ciclo das garantias processuais. Garante-se o processo e ‘quando se fala em processo, e não em simples procedimento, alude-se, sem dúvida, a formas

13 DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ª ed. São Paulo: editora Malheiros, 2006. p. 430.

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instrumentais adequadas, a fim de que a prestação jurisdicional, quando entregue pelo Estado, dê a cada um o que é seu, segundo os imperativos da ordem jurídica. E isso envolve a garantia do contraditório, a plenitude do direito de defesa, a isonomia processual e a bilateralidade dos atos procedimentais’, conforme autorizada lição de Frederico Marques.”

Acresce dizer que se trata de preceitos que, além da proteção pétrea

dada pelo inciso IV, parágrafo 4º, do art. 60 da Constituição vigente, ostentam a natureza jurídica de “normas constitucionais de eficácia plena”, posto que “desde a entrada em vigor da Constituição, produzem todos os seus efeitos essenciais (ou têm a possibilidade de produzi-los), todos os objetivos visados pelo constituinte, porque este criou desde logo normatividade para isso suficiente, incidindo diretamente sobre a matéria que lhes constitui objeto”, segundo lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA14.

O direito de defesa é exemplo de norma desse tipo, assim como o

direito à segurança, à liberdade, o direito à propriedade, o direito à opinião e muitos outros direitos que não dependem de normatização em lei para a fruição imediata dos valores neles tutelados, não se devendo confundir este aspecto com as regras jurídicas destinadas a equipar o Estado com instrumentos para garantir a concretização desses mesmos direitos. Porque aqui estaremos na hipótese de um regime jurídico específico voltado para instrumentalizar o meio pelo qual se protegerá o direito em questão, mas não a sua existência ou o direito à sua fruição.

Portanto, as garantias assim outorgadas operam de per si,

independentemente da atuação concreta do Estado em cada caso. O contrário, isto é, a violação de tais preceitos superiores, é que somente aparece por ações concretas dos órgãos e funcionários estatais.

Ademais, e como já apontado, para além de propiciar mecanismos

de defesa aos direitos individuais e da coletividade, o direito de defesa é uma das vigas mestras do Estado de Direito, porque é o mecanismo constitucional que confere eficácia substantiva ao princípio da legalidade (e por via de

14 DA SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 81/82.

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consequência, ao Estado de Direito), cuidando de harmonizar as relações intersubjetivas entre o Estado e os cidadãos, e destes entre si. Ademais, o direito de defesa, por efeito reverso, permite igualmente à parte contrária se defender, do que decorre o princípio do contraditório e da ampla defesa.

Seguindo as lições de DINAMARCO, trata-se de um sistema de

autolimitações impostas pelo próprio Estado, visando assegurar os valores democráticos tutelados pela Constituição, ostentando, nessa ordem de ideias, o princípio do devido processo legal, “o significado sistemático de fechar o círculo das garantias e exigências relativas ao exercício do poder, mediante uma fórmula sintética destinada a afirmar a indispensabilidade de todas elas e reafirmar a autoridade de cada uma”15.

De modo que qualquer desvio ou supressão desse direito expõe o

Estado a graves problemas de ordem institucional, porque sua previsão, como direito fundamental, viabiliza exatamente a fruição de tais direitos e torna efetivos os objetivos constitucionais decorrentes do que o legislador constituinte originário estipulou como fundamentos do próprio Estado Democrático de Direito, como pode ser visto em uma leitura conjugada do primeiro artigo da nossa Constituição com seu art. 3º.

A respeito desse vínculo institucional entre direitos e garantias na

estruturação do Estado, preciosas são as lições do jurista português J. J. GOMES CANOTILHO:16.

“A interconexão entre ‘direito de acesso aos tribunais’ e ‘direitos materiais’ aponta para duas dimensões básicas de um esquema referencial: (1) os direitos e interesses do particular determinam o próprio fim do direito de acesso aos tribunais, mas este, por sua vez, garante a realização daqueles direitos e interesses; (2) os direitos e interesses são efectivados através dos tribunais, mas são eles que fornecem as medidas materiais de proteção por esses mesmos tribunais.

15 DINAMARCO, Cândido Rangel. LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Novo Processo Civil. São Paulo: ed. Malheiros, 2016. p. 74/75. 16 Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: edições Almedina, 2003. p. 496/497.

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Desta imbricação entre direito de acesso aos tribunais e direitos fundamentais, resultam dimensões inelimináveis do núcleo essencial da garantia institucional da via judiciária. A garantia institucional conexiona-se com o dever de uma garantia jurisdicional de justiça a cargo do Estado. Este dever resulta não apenas do texto da constituição, mas também de um princípio geral (‘de direito’, das ‘nações civilizadas’) que impõe um dever de proteção através dos tribunais como um corolário lógico: (1) do monopólio de coacção física legitima por parte do Estado; (2) do dever de manutenção da paz jurídica num determinado território; (3) da proibição de autodefesa a não ser em circunstâncias excepcionais definidas na Constituição e na lei.” (destaque no original)

Mais especificamente em matéria fiscal, a doutrina batizou de

“Estatuto do Contribuinte” a proteção jurídica contra o Estado tributante, estatuto que é extraído do rol de garantias e direitos fundamentais do art. 5º, conjugado com as “Limitações ao Poder de Tributar”, assim intituladas as previstas nos art. 150 a 152 da Carta. É um todo formado pela somatória de direitos derivados de normas e princípios, aplicados de forma harmônica e coordenada, visando estatuir freios à atuação do Poder Público, garantindo efetividade aos direitos subjetivos das pessoas.

Por óbvio, o direito à defesa insere-se entre os componentes de tal

“estatuto”, o qual, por sua vez, também não teria sentido se fosse desvinculado da ideia central de Estado de Direito. Na lição de ROQUE ANTONIO CARRAZZA, “o ‘estatuto do contribuinte’ exige que a tributação, livre de qualquer arbitrariedade, realize a ideia de Estado de Direito. Às várias possibilidades de atuação da Fazenda Pública há de corresponder a garantia dos direitos de cada contribuinte”. 17

Enfim, temos que, além de direito fundamental, intimamente ligado

à construção e à existência verdadeira do Estado de Direito, posto possibilitar ao cidadão reagir contra eventuais ilegalidades cometidas pelo Poder Público, o direito de defesa é também medida salutar à manutenção e permanência equilibrada das nossas instituições. 17 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 437.

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E aqui, portanto, reside a gravidade de se constatar haver como que

se incorporado, quase se desenvolvido como uma cultura administrativa, o comportamento reiterado dos agentes públicos na edição de leis, decretos, portarias e instruções normativas, assim como no proferimento de decisões em soluções de consulta e nos acórdãos administrativos, quando se permitem que os seus conteúdos estejam em desacordo com o Sistema Tributário Nacional e com o feixe dos demais direitos e garantias constitucionais que impõem limites a essa mesma atuação.

O fenecimento do direito de defesa. Já manifestamos observações e nos referimos a fatos que denotam o

enfraquecimento do direito de defesa em matéria tributária. Acrescentamos que, infelizmente, parece ser possível (quase

palpável) detectar uma relação de desconfiança mútua entre fisco e contribuinte, surgida, quer nos parecer, de uma visão distorcida, porque generalizante como qualquer preconceito, que para mais de década viceja na administração tributária federal, qual seja, a de que a iniciativa privada do País é descumpridora contumaz de suas obrigações fiscais, até como política de gestão empresarial. Por seu turno, a desconfiança do fisco tem gênese em equivocada concepção da finalidade do exercício das atividades fiscalizadoras e arrecadadoras, açodada por reconhecidos abusos cometidos por contribuintes inescrupulosos, e pavimentada pela incapacidade, ou falta de vontade, de distinguir situações e contribuintes inconfundíveis.

E se essa desconfiança pauta as ações do fisco ou de qualquer órgão

julgador, já fere o direito básico à presunção de inocência, assegurado pelo inciso LVII do art. 5º da Carta.

Não se trata de fechar os olhos para a realidade em que a sonegação

ou o descumprimento não intencional existem e devem ser punidos, sendo saudável e necessário que a RFB esteja bem preparada e equipada para fiscalizar a aplicação da lei tributária e coibir erros, abusos e crimes fiscais. O que é inadmissível, política e juridicamente, é tomar o todo pela parte e equiparar

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aquele a esta, sendo igualmente inaceitável que a válida defesa dos casos justos seja prejudicada por preconceitos e violação dos direitos a ela inerentes.

A norma de lei não comporta comandos individualizados, nem dar

tratamento de regra geral às exceções. E esta é uma das principais formas de esvaziar o direito de defesa, distorcendo de início a discussão de direito.

Ao depois, amparada por atos em desconformidade com o

ordenamento, trata-se a exigência ilegal de tributo como se fosse divergência interpretativa, o que simplesmente desvia o foco da discussão do que deveria realmente ser questionado e objeto de decisão: a legalidade ou não da exação em questão. O verdadeiro debate se perde, emaranhando-se em outras discussões secundárias, que só vêm à luz porque a regra jurídica positivada no ordenamento é relegada a segundo plano, discussões essas que não chegariam a ser suscitadas, ou restariam prejudicadas, se ao menos nos órgãos judicantes o contraditório e o julgamento corressem sob o império dos ditames da lei, e não ao sabor de idiossincrasias ideológicas num país em crise institucional e que precisa ser repensado e reformado profundamente em sua estrutura.

Não é preciso dizer que, se o direito de defesa não é respeitado ou

não pode ser exercido com a plenitude exposta no segmento anterior deste artigo, ele fenece, quando não desaparece.

O que se tem notado é o seu fenecimento no âmbito do processo

administrativo, onde, de tudo quanto foi dito, ressalta-se o desequilíbrio de forças entre fisco e contribuinte, o qual começa porque o fisco acusa, cobra e aplica, ou propõe aplicar, sanções de vários matizes, acobertado pela presunção de legalidade do ato administrativo, para depois o próprio Estado julgar o ato do seu agente.

Destarte, se o órgão administrativo julgador da disputa não cumpre

devidamente sua função constitucional, o direito de defesa saiu prejudicado, ou foi exercido apenas protocolarmente, e a discussão tem que se deslocar para o Poder Judiciário.

Ocorre que o contribuinte vai pedir o socorro dos magistrados em

posição muito mais fraca do que aquela na qual estava no começo do processo

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administrativo, quando, apesar da presunção de legalidade do lançamento tributário, a impugnação a ele e o eventual recurso contra o julgamento da impugnação suspendem a exigibilidade do crédito tributário, independentemente de garantia.

Depois da decisão administrativa, confirmatória do lançamento

fiscal, tudo fica mais difícil. Começa com o andamento da possível formalização de denúncia criminal pelo Ministério Público, caso a fiscalização tenha lavrado representação para fins penais contra dirigentes, empregados e outros funcionários da pessoa jurídica autuada, ou contra o próprio contribuinte se for pessoa física.

Mas na esfera do débito tributário propriamente dito, as

dificuldades também existem em maior grau do que até o final do processo administrativo.

De fato, se de um lado as decisões do CARF não fazem coisa julgada

contra os contribuintes, de outro elas convalidam exigências fiscais que serão inscritas em dívida ativa, fornecendo à Fazenda Nacional um título extrajudicial executivo com presunção legal de certeza e liquidez, o que, na nossa sistemática processual (atual e anterior) a dispensa de provar a natureza e a validade do seu crédito, ou a regularidade da sua anterior discussão administrativa, ficando franqueados a ela, perante o Poder Judiciário, os mecanismos para a execução direta do título executivo, no caso a CDA (art. 784, IX do Código de Processo Civil18). Em outras palavras, inverte-se o ônus de alegar e de provar, com todas as dificuldades que isto representa.

Ademais, haverá novo agravamento do débito em mais 10% quando

da sua inscrição em dívida ativa, e em outros 10% se for ajuizada a execução fiscal.

E como, uma vez ajuizada a execução, o parágrafo 1º do art. 16 da

Lei de Execuções Fiscais19 simplesmente veda a oposição de embargos à

18 Art. 586, VI, do CPC de 1974. 19 Lei n. 6830, de 22.9.1980.

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execução sem que o débito executado esteja garantido pelo embargante20, além do aumento do valor a ser garantido, há o aumento do valor da contingência, o que não somente aumenta o risco do contribuinte, como também reduz o seu grau de solvência e saúde econômico-financeira necessário para suas operações.

Em suma, o exercício do direito de defesa mediante embargos à

execução somente pode usufruído mediante prévia garantia do crédito tributário acertado na decisão final do processo administrativo e refletido na CDA. Acontece que todas as garantias são onerosas e danosas ao patrimônio do contribuinte e à continuidade normal das suas atividades econômicas e sociais.

A concepção deste esquema de garantia do crédito tributário é

aceitável se o crédito tiver sido definitivamente constituído em processo administrativo regular, como diz o art. 201 do CTN, mas o mesmo não ocorre quando o ideal do processo regular não se tenha concretizado, inclusive e especialmente quando o direito de defesa no processo administrativo tenha sido prejudicado por uma das circunstâncias referidas anteriormente.

Daí pergunta-se: ante as amplas garantias e privilégios já previstos

para o crédito tributário, e em nome da indisponibilidade da coisa pública, da supremacia do seu interesse e do bem comum, é razoável inviabilizar o direito de defesa, em ofensa frontal aos direitos de petição e de acesso à prestação jurisdicional, cláusulas pétreas de nosso ordenamento jurídico? Será que essa medida adicional de proteção ao crédito tributário é proporcional ao fim visado, ou extravasa os limites tolerados pela ordem pública por seu potencial lesivo de fazer tábula rasa do direito de defesa?

No processo administrativo, lembre-se que o Supremo Tribunal de

Justiça julgou inconstitucional a exigência de garantia para apresentação de recurso, tendo entendido que “a exigência de depósito ou arrolamento prévio de bens e direitos como condição de admissibilidade de recurso administrativo 20 O novo Código de Processo adota normatização semelhante na regulamentação da execução civil. Embora o art. 914 autorize a oposição de embargos, independentemente de penhora, o art. 919 dispõe que os embargos não têm efeito suspensivo, mas que pode ser concedido pelo juiz se verificados os requisitos para a concessão da tutela provisória e desde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes.

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constitui obstáculo sério (e intransponível, para consideráveis parcelas da população) ao exercício do direito de petição (CF, art. 5º, XXXIV), além de caracterizar ofensa ao princípio do contraditório (CF, art. 5º, LV). A exigência de depósito ou arrolamento prévio de bens e direitos pode converter-se, na prática, em determinadas situações, em supressão do direito de recorrer, constituindo-se, assim, em nítida violação ao princípio da proporcionalidade” (Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1976-DF).

Se os fundamentos constitucionais para esse entendimento são os

mesmos para o processo judicial, “ubi eadem ratio, ibi eadem dispositio”. Vai se dizer que na execução fiscal já houve o processo administrativo no qual foi exercida a ampla defesa sem necessidade de garantia, mas sabemos que nem toda execução é precedida de processo administrativo, e também que, em nossos dias, os processos administrativos não asseguram a certeza e liquidez do que neles foi decidido, ou de que a defesa tenha sido efetivamente assegurada. Realmente, para existir efetivamente como presunção “juris tantum”, e não ser mera ficção emanada de uma fórmula literal vazia de realidade, ela depende de anteriormente ter havido o devido processo legal administrativo, o qual somente preenche este requisito se for findado com uma decisão justa e correta, absolutamente livre de parcialismos ou artificialismos.

Mas, não e só. Uma vez citado, o art. 8º da LEF concede cinco dias

para o contribuinte que está sendo executado pagar o débito, com os juros e multa de mora e encargos indicados na CDA, ou garantir a execução, sem a qual, como visto, não poderá se defender. E o art. 9º lista taxativamente quais bens poderão garantir a dívida, o que pode ser feito com depósito em dinheiro (inciso I), oferecimento de fiança bancária ou seguro garantia (inciso II), nomeação de bens à penhora, cuja natureza e ordem de preferência é dada pelo art. 11 (inciso III), ou indicação de bens de terceiros à penhora, desde que aceitos pela Fazenda Pública.

Note-se que tais garantias sempre têm custos, econômicos ou de

dificuldades para as atividades do contribuinte. E na hipótese de o contribuinte não poder pagar o débito cobrado,

nem conseguir que as garantias oferecidas sejam aceitas, o que é muito possível de ocorrer especialmente nos casos envolvendo valores mais elevados, vem em

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socorro do fisco o art. 10 da LEF, o qual, nessas circunstâncias, dispõe que “a penhora poderá recair em qualquer bem do executado, exceto os que a lei declare absolutamente impenhoráveis”.

Mais ainda, caso o contribuinte não pague a dívida exigida, não faça

depósito nem apresente qualquer das outras garantias admitidas, e também não sejam encontrados bens penhoráveis, “o juiz determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos, comunicando a decisão, preferencialmente por meio eletrônico, aos órgãos e entidades que promovem registros de transferência de bens, especialmente ao registro público de imóveis e às autoridades supervisoras do mercado bancário e do mercado de capitais, a fim de que, no âmbito de suas atribuições, façam cumprir a ordem judicial”, conforme exige o art. 185-A, incluído no corpo do CTN, em 9.2.2005, pela Lei Complementar n. 11821.

É certo que o contribuinte pode afastar os mencionados ônus da

execução fiscal através de outros meios processuais, mas todos eles requerem garantia, salvo o mandado de segurança ou tutela que assegure a suspensão da cobrança, o que nas mais das vezes é muito difícil de ser conseguido.

Em outras palavras, o direito de socorrer-se do Poder Judiciário nem

sempre será suficiente para assegurar que todas as vicissitudes passadas na esfera administrativa sejam neutralizadas ou minoradas, porque muitos dos seus efeitos vão afetar o próprio processo judicial, além da existência de outras regras que, a propósito de proteger o crédito tributário e o bem comum, estão inseridas no iter total dessa relação e contribuirão para igualmente esvaziar o direito de defesa.

Destarte, resta ao contribuinte obter ou medida liminar

suspendendo a exigência do crédito, seja em mandado de segurança ou em qualquer outra espécie de ação judicial com tutela antecipada (art. 151, incisos IV e V do CTN), sob pena de a exigência do crédito inscrito em dívida ativa 21 A Lei Complementar n. 118/05, recordamos, foi o ato normativo por meio do qual o Poder Público, além de instituir o iníquo instituto da penhora on line, acima comentado, tentou aplicar a mudança de entendimento jurisprudencial quanto à contagem do prazo decadencial nos lançamentos por homologação (tese dos 5+5), para situações anteriores à sua edição, pretendendo estar apenas interpretando o dispositivo do inciso I do art. 168 do CTN.

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prosseguir, mesmo que à revelia de outras ações judiciais em que se esteja discutindo o débito, mas não se tenha logrado a obtenção de medida liminar ou cautelar suspendendo sua exigência.

E o contribuinte nessa situação se vê em meio a novas

circunstâncias que vão igualmente tornando inane seu direito de defesa. Em sede de mandado de segurança, por exemplo, ele terá que

convencer o juízo de primeiro grau de que o valor (por vezes chegando à casa dos bilhões) que o fisco lhe está exigindo, várias vezes sob acusação de fraude e sonegação fiscal, na verdade advém de negativa a direitos constitucionalmente garantidos, inclusive de sérios prejuízos ao direito de defesa e do desrespeito ao “due process of law”.

Mas isto precisa ser demonstrado pelo contribuinte sem dilação

probatória e em sede de cognição preliminar, dificultando não só a obtenção da medida, como a demonstração do próprio cabimento da via mandamental22, dificuldade igualmente enfrentada na obtenção de proteção judicial em outras ações, pelo motivo que será mencionado a seguir.

Coroando esse rosário de dificuldades contrárias ao direito de

defesa, à luz do art. 1012 do CPC, não se tem certeza de que as garantias serão executadas somente após o trânsito em julgado da decisão que confirmar a validade do crédito tributário. Independentemente da discussão sobre a aplicabilidade desta regra em processos de execução fiscal, trata-se de mais um empecilho surgido no direito positivo, a que o contribuinte possa praticar a ampla defesa, com pleno contraditório, e exercer esse direito inclusive mediante os recursos cabíveis e regulamente interpostos.

22 Apesar de a via mandamental estar amparada pela Súmula 625 do STF, a qual reza que a “controvérsia sobre matéria de direito não impede a concessão de mandado de segurança”, além de diversas decisões do STF no sentido de que “a complexidade dos fatos não exclui o caminho do mandado de segurança, desde que todos se encontrem comprovados de plano” (STF-RT 594/248), muitas vezes os juízes são recalcitrantes em reconhecer o direito, ainda mais em causas envolvendo valores exorbitantes.

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A executar-se a sentença antes do final da ação, e caso esta seja julgada a favor do contribuinte, estará revivido o odioso solve et repete, que há décadas foi justamente banido do ordenamento jurídico tributário nacional.

E esta ressurreição se dá em momento particularmente difícil, que

não se verificava quando o pagar antes e repetir depois foi excluído do nosso cenário, que é a calamitosa situação das contas públicas, as quais produzem outras circunstâncias detrimentosas para o direito de defesa.

Realmente, o contribuinte que ganha ação contra o fisco, por

exemplo, uma ação de repetição do indébito, jamais consegue obter a satisfação da sentença em tempo justo, tendo que aguardar anos e anos ou ceder seu direito com altíssimos deságios. Ou o contribuinte que prefere discutir com depósito judicial do valor envolvido, ao ser proclamado vencedor não tem certeza da pronta devolução do que lhe é devido.

Nestes casos, estão ao mesmo tempo aviltados o direito de defesa e

a soberania das decisões do Poder Judiciário! Nem mesmo a compensação do direito de crédito do contribuinte

que já tenha sido reconhecido judicialmente, para extinção de outros débitos fiscais seus, instituída pela lei alternativamente ao recebimento do precatório, é conseguida sem dificuldades e riscos. As Delegacias da Receita Federal de Julgamento e as turmas do CARF e da CSRF estão abarrotadas de processos originados de negativas das repartições em homologar as compensações feitas e das multas impostas sobre elas.

Neste mundo conturbado da defesa, repentinamente aparece o

direcionamento das autuações e das execuções, nestas muitas vezes em redirecionamento, para quem não é o contribuinte, mas simplesmente algum dia trabalhou para ele.

São indivíduos trazidos para o bojo dos processos, que não

participaram das infrações possivelmente cometidas por terceiros, que não tiveram qualquer proveito eventualmente decorrente delas, e que, entretanto, têm a sua tranquilidade pessoal e familiar solapada, além de que, para sua maior infelicidade, nem sempre conseguem se defender, pois os elementos de prova

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não estão ao seu alcance, e até mesmo não têm o mínimo conhecimento dos fatos. São comuns casos em que trabalharam para o contribuinte há muitos anos e perderam total contato com ele, sendo estas as situações em que a própria Fazenda Pública não consegue encontrar o devedor, e injustamente quer receber de quem não deve, custe o que custar, e doe a quem doer.

Novamente quanto aos responsáveis tributários, manifesta-se o já

referido fenômeno de que o ideal legislativo amiúde não se configura na realidade, mas os meios de cobrança e pressão de que o fisco e a Fazenda Pública dispõem são postos em funcionamento com todo o seu peso, contra indivíduos que legalmente não deveriam ser responsabilizados e que, contudo, para conseguirem escapar da responsabilidade injustamente atribuída a eles, precisariam poder contar com a plena possibilidade de exercer o seu direito de defesa, com amplo contraditório e os recursos cabíveis, sem qualquer peia direta ou indireta, e obter rápida solução para o seu drama.

Mas nada disso lhe é efetivamente assegurado! Há casos dramáticos sob o ponto de vista meramente humano, e

ilegais sob o ponto de vista do direito, nos quais o direito de defesa está próximo da inexistência pela impossibilidade de ser verdadeiramente exercido.

Certamente não é este o Estado Democrático de Direito que foi

pensado em 1988 e que até hoje é almejado pelo povo brasileiro! Considerações finais O Brasil passa hoje por um momento inegavelmente crítico da sua

vida política, marcado por acentuada insegurança jurídica, insegurança derivada não só das oscilações verificadas na jurisprudência dos nossos tribunais, mas, também, e principalmente, pela insalubre relação que foi se consolidando entre cidadão e Estado, em todas as esferas de Poder.

Realmente, não é só a interpretação e aplicação do Direito que cada

vez mais vem sendo ditada pelos interesses de momento, mas a própria feitura das leis. E quando acrescemos a este quadro a lembrança da atuação política do Poder Executivo e da condução da administração pública, é possível

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compreender o sentimento de desconfiança que o brasileiro hoje nutre em relação ao Estado, e de ojeriza aos seus agentes políticos.

Numa perspectiva mais lata, a presente crise pode ser lida como

uma prova a que está sendo submetida a Constituição de 1988 e o projeto de país nela consubstanciado.

Percebe-se uma incômoda coincidência temporal entre a atuação da

administração tributária federal, na forma aqui tratada, e os anos em que se passaram os episódios de malversação da coisa pública, que culminou com a enxurrada de escândalos de corrupção que não cessam de vir à luz, em escala até então insuspeitada, cujos atores principais concentram-se no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo, mas que atingiram outros setores. Eloquente também são os desastrosos efeitos econômicos deles decorrentes, os quais são inequivocamente sentidos por todos os extratos da nossa sociedade.

Outros sintomas, no entanto, não são tão evidentes, ao menos para a

grande maioria da população, embora sejam de consequências igualmente graves e nefastas, talvez até mais, porque feitos de maneira insidiosa e vão minando paulatinamente direitos igualmente fundamentais. É o que tentamos aqui analisar, inclusive sob o ponto de vista de que, em qualquer caso, os efeitos são os mesmos, inclusive um esvaziamento paulatino dos meios de defesa e um enfraquecimento reflexo das instituições que estruturam nossa democracia.

Especificamente em torno do direito de defesa no campo da

tributação, somente vislumbramos sua melhora através da recuperação da qualidade e da independência dos órgãos administrativos de julgamentos administrativos em seus graus de recursos, e da instituição de uma justiça especializada em matéria tributária, pois uma das dificuldades atuais é o pouco contato que o Poder Judiciário teve até aqui com as grandes e mais complexas questões tributárias, o que exige dos magistrados, quando chamados a julgá-las, uma atuação quase que sobre-humana, pois não é razoável que todos possam conhecer as intrincadas normas desse ramo do direito, e todos os pressupostos jurídicos e extrajurídicos que o cercam, além de terem que julgar matérias de outros ramos, e na quantidade de processos submetidos à sua apreciação.

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São Paulo / NOVEMBRO 2016

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Destarte, tanto quanto o CARF, bem ou mal, se reestruturou para ter mais turmas e poder enfrentar a complexidade e a quantidade atual dos processos que chegam até ele, em cujo âmbito, entretanto, ainda é necessário que o preenchimento dos seus cargos judicantes seja feito com pessoas realmente conhecedoras do direito tributário, na sua teoria e na sua prática, com independência subjetiva e objetiva para julgar, o Poder Judiciário precisa adotar medidas correspondentes.

A não ser assim, vamos assistir a continuidade do fenecimento do

direito de defesa no processo administrativo, e a incapacidade do Poder Judiciário de corrigir as injustiças e os erros lá perpetrados.