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Artigos São Paulo / ABRIL 2011 1 Texto para o livro “Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos)”, 2º Volume, Dialética, 2011, p. 212, e o 2º Seminário sobre “Controvérsias Jurídico-Contábeis Aproximações e Distanciamentos”, da Dialética, 26.5.2011. Autor: Ricardo Mariz de Oliveira QUESTÕES ATUAIS SOBRE O ÁGIO – ÁGIO INTERNO – RENTABILIDADE FUTURA E INTANGÍVEL – DEDUTIBILIDADE DAS AMORTIZAÇÕES – AS INTER-RELAÇÕES ENTRE A CONTABILIDADE E O DIREITO (BREVES OBSERVAÇÕES) O tema que constitui o título deste texto, proposto pela organização do 2º Seminário da Dialética, sobre Controvérsias Jurídico-Contábeis – Aproximações e Distanciamentos, é muito vasto e, para ser exposto em sua plenitude, exigiria todo um livro. Assim, vou me limitar a algumas breves observações conservando na mente as inter-relações entre a contabilidade e o direito, até porque este aspecto se ajusta ao tema central do evento, que são as aproximações e os distanciamentos entre essas duas ciências. A AVALIAÇÃO DOS INVESTIMENTOS E A FUNDAMENTAÇÃO DOS ÁGIOS (E DESÁGIOS) Como todos sabem, desde a Lei n. 6404, em sua redação original de 1976, havia previsão de distintos critérios para apuração do patrimônio e do lucro líquido contábil em relação aos pertinentes à determinação do lucro real

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Texto para o livro “Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos)”, 2º Volume, Dialética, 2011, p. 212, e o 2º Seminário sobre “Controvérsias Jurídico-Contábeis – Aproximações e Distanciamentos”, da Dialética, 26.5.2011.

Autor: Ricardo Mariz de Oliveira QUESTÕES ATUAIS SOBRE O ÁGIO – ÁGIO INTERNO – RENTABILIDADE FUTURA E INTANGÍVEL – DEDUTIBILIDADE DAS AMORTIZAÇÕES – AS INTER-RELAÇÕES ENTRE A CONTABILIDADE E O DIREITO (BREVES OBSERVAÇÕES)

O tema que constitui o título deste texto, proposto pela organização do 2º Seminário da Dialética, sobre Controvérsias Jurídico-Contábeis – Aproximações e Distanciamentos, é muito vasto e, para ser exposto em sua plenitude, exigiria todo um livro.

Assim, vou me limitar a algumas breves observações conservando

na mente as inter-relações entre a contabilidade e o direito, até porque este aspecto se ajusta ao tema central do evento, que são as aproximações e os distanciamentos entre essas duas ciências.

A AVALIAÇÃO DOS INVESTIMENTOS E A FUNDAMENTAÇÃO DOS ÁGIOS (E DESÁGIOS) Como todos sabem, desde a Lei n. 6404, em sua redação original de

1976, havia previsão de distintos critérios para apuração do patrimônio e do lucro líquido contábil em relação aos pertinentes à determinação do lucro real

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tributável pelo imposto de renda, havendo, inclusive, a previsão legal de que as regras fiscais fossem observadas em livro à parte, sem modificação da escrituração mercantil (art. 177, parágrafo 2º). Sintonizada com este esquema, a lei fiscal igualmente passou a assim dispor, criando o Livro de Apuração do Lucro Real – LALUR (Decreto-lei n. 1598, art. 8º).

Com a harmonização das normas contábeis brasileiras às praxes

internacionais, introduzida pela Lei n. 11638, mais do que nunca ficou necessária a absoluta segregação entre o contábil e o fiscal, eis que as normas contábeis afastaram-se substancialmente dos preceitos da lei tributária, a ponto de se tornarem absolutamente inconciliáveis. Assim, a segregação foi expressamente prescrita pela referida lei ao introduzir o parágrafo 7º no art. 177, além de que, para maior ênfase, alterou o parágrafo 2º.

Indo mais a fundo nessa separação, a Lei n. 11941 modificou

novamente o parágrafo 2º do art. 177 da Lei n. 6404, revogou o recém introduzido parágrafo 7º, e, para substitui-lo, criou um sistema peculiar, que assim pode ser resumido 1:

- para efeitos fiscais, o lucro líquido e o patrimônio devem ser

apurados conforme as normas legais que vigiam até 31.12.2007, com base em escrituração, em forma contábil, de um novo livro fiscal denominado “Controle Fiscal Contábil de Transição - FCONT”; 2

- as diferenças entre os assentamentos contábeis, feitos de acordo

com as novas regras contábeis, e os lançamentos feitos no FCONT, devem ser objeto de ajustes neste livro, e acarretarão acréscimos ao lucro líquido, ou exclusões deste, para fins de apuração do lucro real tributável pelo imposto de renda da pessoa jurídica (IRPJ) e pela contribuição social sobre o lucro (CSL), cujos acréscimos e exclusões devem ser consignados no LALUR;

- no LALUR devem continuar a ser feitos os demais ajustes de

natureza estritamente fiscal, isto é, os não-contábeis. 1 Lei n. 11941, art. 15 a 24, com complementos procedimentais previstos na Instrução Normativa RFB n. 989/09. 2 Ao mesmo tempo, for alterada a redação do art. 8º do Decreto-lei n. 1598, relativo ao LALUR.

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Esse regime foi instituído sob a denominação de “Regime Tributário

de Transição – RTT”, inicialmente em caráter opcional, tendo depois passado a ser obrigatório e permanecido em vigor.

A Lei n. 11941, é enfática no art. 16, que merece destaque por ser a

pedra angular de todo o regime:

“Art. 16 - As alterações introduzidas pela Lei n., e pelos arts. 37 e 38 desta Lei que modifiquem o critério de reconhecimento de receitas, custos e despesas computadas na apuração do lucro líquido do exercício definido no art. 191 da Lei n. 6404, de 15 de dezembro de 1976, não terão efeitos para fins de apuração do lucro real da pessoa jurídica sujeita ao RTT, devendo ser considerados, para fins tributários, os métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007. Parágrafo único - Aplica-se o disposto no caput deste artigo às normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários, com base na competência conferida pelo parágrafo 3º do art. 177 da Lei n. 6404, de 15 de dezembro de 1976, e pelos demais órgãos reguladores que visem a alinhar a legislação específica com os padrões internacionais de contabilidade.”

Se aplicarmos aos ágios (ou deságios) de investimentos avaliados

pelo patrimônio líquido as disposições legais que constituem o RTT, ou seja, o regime legal tributário válido para o IRPJ e a CSL (além da COFINS e da contribuição ao PIS), não teremos a mínima dificuldade em identificar as normas legais aplicáveis a eles.

Realmente, é bom recordar que até 31.12.2007 ágios e deságios

eram componentes do método de avaliação de investimentos em coligadas e controladas, nas hipóteses descritas na lei, método esse denominado “Método da Equivalência Patrimonial – MEP”.

Também é necessário lembrar que o MEP era previsto no art. 248 da

Lei n. 6404, mas sem haver nessa lei qualquer norma que o disciplinasse em seus vários aspectos, os quais somente vieram ao direito positivo através do Decreto-lei n. 1598, art. 20 e seguintes.

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Por isso mesmo, a Lei n. 6404, que reconhecia a existência de ágios

na subscrição de ações (art. 182, parágrafo 1º, letra “a”), não continha uma única palavra sobre ágio ou deságio como componente do MEP, sendo eles minuciosamente disciplinados no Decreto-lei n. 1598.

Ocorre que esse decreto-lei determinava normas de contabilidade

porque, afinal, o MEP era método relativo à avaliação contábil de determinados investimentos e não tinha caráter ou natureza exclusivamente fiscal, de tal modo que as regras do Decreto-lei n. 1598, pertinentes à contabilização de ágios e deságios, eram obedecidas através de lançamentos contábeis na escrituração mercantil.

Isto foi assim até 31.12.2007, o que se tornou relevante para o RTT,

como se percebe pela leitura do art. 16 da Lei n. 11941, acima transcrito. A partir das alterações das Leis n. 11638 e 11941, o cenário até aqui

descrito foi alterado, porque novas normas contábeis foram criadas com supedâneo em disposições dessas leis, ou em resoluções da CVM que aprovaram regras baixadas pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis - CPC, sendo que aquelas resoluções, mesmo quando contrárias à normas legais, adquiriram validade para fins das demonstrações financeiras requeridas pela Lei n. 6404, porque autorizadas por alterações nesta introduzidas (art. 177, parágrafo 3º, além dos art. 16, parágrafo único, e 17 da Lei n. 11941), sendo obrigatórias para as companhias abertas e facultativas para as demais (parágrafos 3º e 6º do art. 177).

A partir daí, o MEP, para fins contábeis, isto é, das demonstrações

financeiras exigidas pela Lei n. 6404, passou a seguir o Pronunciamento CPC-18, aprovado pela Deliberação CVM n. 605/09. É claro que as regras do CPC-18 não são obrigatórias para as pessoas jurídicas que não sejam companhias abertas, mas espelham os novos conceitos contábeis por excelência, e tendem a ser seguidas de modo geral porque acolhidas pelo Conselho Federal de Contabilidade (Resolução CFC n. 1242/09).

No que nos interessa, a partir daquele pronunciamento,

contabilmente ficamos com o seguinte:

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- quanto ao custo de aquisição, deve considerar a participação da

investidora no valor justo líquido dos ativos e passivos identificáveis da investida, e fica sujeito aos testes de recuperação de valores do ativo, previstos no art. 183, parágrafo 3º, da Lei n. 6404 (CPC-1) e conhecidos como “impairment”;

- quanto ao ágio, é igual ao custo de aquisição menos a participação

da investidora no valor justo líquido dos ativos e passivos identificáveis da investida, e integra o valor contábil, não sendo amortizável;

- o ágio é sempre considerado como relativo à expectativa de

rentabilidade futura, a qual é identificada com o “goodwill”; - quanto ao deságio, que é o resultado contrário ao de ágio

(excedente em relação ao valor justo), deve ser imediatamente amortizado a crédito do resultado (receita) do período.

Para se ter uma ideia das distinções em relação ao regime fiscal

previsto no Decreto-lei n. 1598, art. 20 e seguintes, neste temos o seguinte: - quanto ao custo de aquisição, deve ser obrigatoriamente

desdobrado em valor patrimonial e ágio ou deságio; - quanto ao ágio, é igual ao custo de aquisição menos o valor da

participação da investidora no patrimônio líquido contábil da investida; - o ágio pode ser fundamentado em valor econômico dos bens da

investida (art. 20, parágrafo 2º, letra “a”), ou no valor de expectativa de rentabilidade futura (letra “b”), ou em fundo de comércio, intangíveis ou outras razões econômicas (letra “c”);

- quanto ao deságio, decorre de resultado contrário ao obtido no

caso de ágio, e tem os mesmos fundamentos econômicos; - quanto aos fundamentos econômicos do ágio ou deságio, devem

ser demonstrados pela investidora, sendo a demonstração legalmente erigida à

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condição de comprovante da escrituração (art. 20, parágrafo 3º), motivo pelo qual tem presunção de veracidade, cabendo ao fisco demonstrar o contrário (parágrafos do art. 9º);

- o ágio ou deságio, amortizado contabilmente, tem suas

amortizações consideradas indedutíveis (as do ágio) ou não tributáveis (as do deságio), ficando retidas no LALUR como partes positivas (as correspondentes ao ágio) ou negativas (as correspondentes ao deságio) do custo do investimento, para futura apuração de ganho ou perda de capital quando da alienação do investimento, ou sua baixa por outras razões;

- havendo fusão, incorporação ou cisão entre a investidora e a

investida, após o evento as amortizações do ágio da letra “a” ou da letra “b” são dedutíveis, e as do deságio tributáveis, sendo que este regime também se aplica a investimentos não avaliados por equivalência patrimonial (Lei n. 9532, art. 7º e 8º).

Portanto, são notáveis as diferenças entre o contábil segundo o CPC-

18 e o fiscal segundo o Decreto-lei n. 1598 e a Lei n. 9532. Claro que, não sendo observado o pronunciamento do CPC (pelas companhias fechadas, a despeito da imposição feita pelo CFC no âmbito profissional), isto é, se a contabilidade for efetuada nos termos das disposições da lei tributária, não há divergência.

As diferenças podem ser demonstradas esquematicamente da

seguinte forma:

CPC - 18 LEI FISCAL VALOR CONTÁBIL = custo de aquisição, sujeito à determinação do valor justo e a “impairment”; o ágio integra o valor contábil; o deságio é excluído a crédito de receita.

VALOR CONTÁBIL = custo de aquisição, sujeito à comparação com o valor patrimonial contábil; o ágio ou deságio é obrigatoriamente segregado, mas mantido no valor contábil inicial.

ÁGIO = custo – valor justo = expectativa de rentabilidade (“goodwill”).

ÁGIO OU DESÁGIO = custo – valor patrimonial contábil, com fundamento demonstrado pelo contribuinte em cada caso.

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CPC - 18 LEI FISCAL FUNDAMENTO ECONÔMICO DO ÁGIO: sempre expectativa de rentabilidade futura = “goodwill”.

FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DO ÁGIO OU DESÁGIO: (a) valor de mercado dos bens; (b) expectativa de rentabilidade; (c) fundo de comércio, intangíveis, outros.

AMORTIZAÇÃO: não existe a do ágio; é imediata a do deságio.

AMORTIZAÇÃO: é neutra; além disso, a tributação imediata do deságio contrariaria o princípio da realização da renda, indissociável do fato gerador do imposto de renda, refletido na Lei n. 9959, art. 4º

GANHO OU PERDA DE CAPITAL NA BAIXA: considera o valor contábil do investimento, os valores lançados a ajustes de avaliação patrimonial por “impairment”; ignora o deságio amortizado.

GANHO OU PERDA DE CAPITAL NA BAIXA: considera o valor contábil do investimento e o ágio ou deságio, amortizado ou não.

APÓS FUSÃO, INCORPORAÇÃO OU CISÃO: não há regras especiais a registrar aqui.

APÓS FUSÃO, INCORPORAÇÃO OU CISÃO: as amortizações das letras “a” e “b” são dedutíveis ou tributáveis.

Neste quadro, o procedimento legal cabível é efetuar no FCONT os

ajustes decorrentes das diferenças entre os novos conceitos contábeis e os preceitos da lei tributária, que, na sua maior parte (a parte substancial), são mandatórios.

Esses ajustes estão perfeitamente integrados no RTT, inclusive

porque recuperam a contabilidade mercantil ao que ela refletiria até 31.12.2007. Neste particular, é bom atentar para que, embora para as

companhias abertas houvesse a obrigatoriedade de observância da Instrução CVM n. 247/06, não se alteram as duas afirmações acima, porque:

- essa instrução era obrigatória apenas para as companhias abertas,

e, mesmo para estas, quando importava em critério distinto dos fiscais, não se aplicava para a determinação do lucro tributável;

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- essa instrução previa dois fundamentos para os ágios e deságios, exatamente os das letras “a” e “b” do parágrafo 2º do art. 20 do Decreto-lei n. 1598, portanto, os dois que podem ter algum reflexo fiscal;

- o princípio da legalidade, imperante em grau maior no direito

tributário, não admitiria regras não previstas em lei, no sentido formal e material, como são as da Instrução CVM n. 247, e também as do CPC-18.

Se não há qualquer dúvida sobre a existência de diferentes regras no

tocante ao modo de determinar o valor contábil do investimento e o valor do ágio ou deságio, assim como quanto ao tratamento para a amortização do ágio ou deságio, alguma dúvida ainda pode subsistir em relação ao seu fundamento econômico.

Mesmo na seara fiscal há quem sustente que ágio por expectativa de

rentabilidade seja residual, vindo após o ágio relativo a fundo de comércio e o ágio em razão do valor de mercado dos bens da controlada ou coligada. Essa visão teórica, que não se coaduna com a realidade do mundo dos negócios e nem mesmo com os conceitos contábeis de antes e depois das Leis n. 11638 e 11941, principalmente também não se fundamenta adequadamente na lei tributária.

Com efeito, ao lado de apreciação mais extensa desta questão, que

fiz em artigo publicado em 2009 3, alguns pontos essenciais podem ser destacados nestas breves observações, os quais servem ao mesmo tempo para justificar que os fundamentos econômicos para ágios e deságios, previstos na lei tributária, são alternativos e não sucessivos ou preferenciais, mas também se prestam para evidenciar ainda mais que o CPC-18 se apresenta como formulador de critérios de avaliação para fins meramente contábeis, inclusive para que as demonstrações financeiras nacionais sejam lidas mais facilmente no exterior, que é a meta maior da reforma, inclusive face à prescrição expressa no parágrafo 5º do art. 177 da Lei n. 6404, com a redação dada pela Lei n. 11638.

3 “Os motivos e os fundamentos econômicos dos ágios e deságios na aquisição de investimentos, na perspectiva da legislação tributária”, in “Direito Tributário Atual n. 23”, do Instituto Brasileiro de Direito Tributário, Dialética, 2009, p. 449.

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Realmente, os três fundamentos de ágios e deságios (o terceiro na verdade um grupo de fundamentos possíveis) são elencados no parágrafo 2º do art. 20 do Decreto-lei n. 1598 como hipóteses alternativas, nem sucessivas nem excludentes umas das outras, assim como não exclusivas ou sujeitas a alguma ordem de preferência. Neste sentido, atente-se para a forma pela qual o comando legal se expressa:

“Parágrafo 2º - O lançamento do ágio ou deságio deverá indicar, dentre os seguintes, seu fundamento econômico: a) valor de mercado de bens do ativo da coligada ou controlada superior ou inferior ao custo registrado na sua contabilidade; b) valor de rentabilidade da coligada ou controlada, com base em previsão dos resultados nos exercícios futuros; c) fundo de comércio, intangíveis e outras razões econômicas.”

“Dentre os seguintes” significa haver múltiplas possibilidades,

variáveis de caso concreto para caso concreto, sem precedência de qualquer das hipóteses. Aliás, não deixa de ser curiosa a preferência por uma ordem que começaria pela última hipótese da lei, prosseguiria voltando à primeira e finalizaria passando para a segunda.

Para mera comparação, veja-se um exemplo no qual, contrariamente

ao que ocorre no Decreto-lei n. 1598, a lei quer que haja ordem, e a estatui inequivocamente. Ele está no CTN:

“Art. 163 - Existindo simultaneamente dois ou mais débitos vencidos do mesmo sujeito passivo para com a mesma pessoa jurídica de direito público, relativos ao mesmo ou a diferentes tributos ou provenientes de penalidade pecuniária ou juros de mora, a autoridade administrativa competente para receber o pagamento determinará a respectiva imputação, obedecidas as seguintes regras, na ordem em que enumeradas: - em primeiro lugar, aos débitos por obrigação própria, e em segundo lugar aos decorrentes de responsabilidade tributária;

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II - primeiramente, às contribuições de melhoria, depois às taxas e por fim aos impostos; III - na ordem crescente dos prazos de prescrição; IV - na ordem decrescente dos montantes.”

Não apenas os textos legais demonstram a alternatividade variável

dos fundamentos econômicos dos ágios e deságios, mas a própria função que eles devem desempenhar na vida econômica real.

Neste ponto, ainda que a lei fiscal receba críticas de autorizados

autores da ciência contábil, ela claramente dispõe de modo diverso do que eles sustentam dentro e fora do País, mormente no que diz respeito ao modo de avaliar investimentos e fundamentar variantes entre os respectivos custos de aquisição e valores que por eles sejam considerados justos.

Ante tais críticas, poder-se-ia até supor que a lei fiscal estaria

“deformando” ou “reconstruindo” a realidade econômica demonstrada pelos critérios contábeis, o que até lhe seria juridicamente possível dentro de limites constitucionais (inclusive de certo modo refletidos nos art. 109 e 110 do CTN), e que poderia estar ocorrendo no caso, como, de resto, ocorre com as demais distinções, relativas ao patrimônio e ao lucro, entre a lei societária e a tributária, distinções estas que sempre foram previstas pela própria Lei n. 6404 e pelo Decreto-lei n. 1598.

Porém, no caso dos ágios e deságios não chega a haver deformação

ou reconstrução da realidade pela lei tributária, eis que esta também se baseia na realidade dos negócios, que é uma realidade até mais consistente do que a maneira como deve ser retratada na contabilidade, dado que antecedente a esta e o próprio objeto de registro.

Em outras palavras, a contabilidade não é uma verdade em si

mesma, mas instrumento para que uma realidade externa a ela seja conhecida e interpretada. E, para isto, ela adota um dentre muitos critérios de interpretação que sejam possíveis para um mesmo evento. Daí mesmo tal critério eleito poder vir a ser substituído.

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No caso, para fins de avaliação do valor de investimentos em coligadas ou controladas, está eleito um critério internacionalmente aceito, dentro do qual o diferencial entre o custo de aquisição e o valor considerado justo é estabelecido com base unicamente no potencial de geração de lucros pela empresa investida, a partir do seu fundo de comércio, sem o qual esse potencial não existiria, e ao qual, para este fim, é atribuída a condição de “goodwill”.

Não obstante, a lei tributária brasileira é, pode-se dizer, mais

abrangente, abraçando a própria condição de cada aquisição de investimento sujeito ao MEP, para determinar um método de avaliação próprio e diferente.

Note-se que sequer cabe criticar a lei tributária sob uma pretensa

velhice dos seus critérios, com base na idéia de que eles foram estatuídos em 1977 mirando uma realidade talvez diferente da atual, eis que seus critérios foram mantidos em 1997 pela Lei n. 9532, que até alargou seu alcance aos investimentos não avaliados pelo MEP. De mais a mais, a cada ano essa lei poderia ter sido alterada, mas, não o tendo sido, mostra-se em pleno vigor.

Sendo assim, ela inequivocamente tem que ser considerada em seus

próprios termos, para ser devidamente respeitada e aplicada. E, para que não se “calunie o legislador” 4 fiscal de modo inútil, perceba-se que ele teve a perfeita noção da variabilidade das razões e das condições que se podem encontrar na realidade negocial, atribuindo a cada uma um tratamento perfeitamente correspondente.

Realmente, suponha-se que uma mesma empresa esteja à venda por

determinado preço equivalente ao que possa ser obtido no mercado (superior ao valor patrimonial contábil), e que haja dois interessados na aquisição, porém com objetivos distintos, hipótese em que:

- se o interessado quiser, após a aquisição, desmontar os ativos da

empresa para vendê-los item a item, certamente ele paga ágio em função do valor de mercado que os bens possam alcançar e que ele espera obter, não tendo qualquer sentido para ele pensar no ágio como fundado em expectativa de rentabilidade da pessoa jurídica adquirida ou no seu fundo de comércio; mesmo

4 Conforme Proudhon, referido por Paulo Restiffe Neto.

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na ótica da Lei n. 9532, a dedução da amortização do ágio nesta circunstância deve representar compensação pela tributação dos ganhos de capital obtidos na alienação dos bens que compunham o ativo da empresa adquirida;

- se o interessado pretender explorar a empresa, caso em que

considera os ativos tangíveis (bens do ativo imobilizado) e intangíveis (bens que compõem o fundo de comércio) como instrumentos para a geração de lucros, certamente ele paga ágio em função do retorno de capital através dos lucros que espera obter, não tendo o menor significado para ele quanto aqueles ativos valham no mercado; isto porque o adquirente não os vai alienar, dado que a sua pretensão é explorar a empresa, dentro da qual estão aqueles ativos, circunstância em que, também para a Lei n. 9532, a dedução da amortização do ágio deve representar compensação pela tributação dos lucros advindos da exploração empresarial, ou seja, da empresa como um todo.

E é mesmo possível haver uma mistura de interesses diferentes,

derivados dos objetivos que o adquirente visa com a compra da empresa, situação esta na qual existe mais de um fundamento para o ágio. Isto pode ocorrer, por exemplo, quando o adquirente da empresa pretende explorá-la (quanto ao que paga um ágio com expectativa de lucros), mas também pretende vender bens inservíveis para a exploração (quanto aos quais paga um ágio pela maior valia no mercado).

Daí a variabilidade e a alternatividade dos fundamentos econômicos

dos ágios e deságios para fins tributários, e não uma unicidade ou uma lista fixa sequencial de fundamentos, obrigatórios em todos os casos, ainda que inocorrentes numa determinada situação real, e neste caso conducente a tratamento irreconhecível perante a realidade.

Quanto a este último ponto, há que se lembrar de tantas lições

imorredouras, as quais demonstram que o direito tem seu sangue na realidade dos fatos que visa normatizar. 5

5 Rubens Gomes de Sousa, Gilberto de Ulhôa Canto, Carlos Maximiliano, Louis Josserand, e tantos outros.

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Nesta linha, portanto, o fundo de comércio como fundamento econômico de algum ágio, além da sua efetiva existência passível de identificação e avaliação, requer a existência de alguns fatores que o coloquem, em determinado caso concreto, como ponto central na motivação para que o pagamento supere o valor patrimonial contábil do investimento.

É o que ocorre, por exemplo, quando o fundo de comércio seja

destinado pelo adquirente do investimento à exploração do empreendimento a que se refere, em prazo longo e indeterminado, sem expectativa de geração de lucros possível de ser calculada (embora previsível), ou prevista para prazo longo a ponto de tornar insegura ou impossível qualquer cálculo antecipado de resultados que justifique prazo de amortização inferior e lastreada em expectativa de rentabilidade futura.

Outrossim, o direito brasileiro reconhece a figura do fundo de

comércio, e apenas por comparação se o identifica ou iguala à noção estrangeira de “goodwill”, valendo notar que esta palavra não existe no vocabulário da Lei n. 6404, mesmo após as Leis n. 11638 e 11941, assim como o CTN conhece apenas a expressão “fundo de comércio”. O mesmo quanto ao Decreto-lei n. 1598 e à Lei n. 9532, diplomas que regem o trato fiscal para investimentos em coligadas e controladas.

Para nós, juristas do Brasil, o fundo de comércio é o conjunto

orgânico de bens intangíveis que são utilizados para a produção dos lucros da empresa, mas não estes próprios, já que estes são resultados decorrentes do adequado emprego daqueles.

Porém, mais do que isso, na verdade, os lucros derivam não apenas

do fundo de comércio, assim entendido como complexo de bens intangíveis, já que também dependem do emprego dos demais fatores de produção, notadamente o capital e o trabalho, e, numa concepção mais estrita, também dos bens materiais que formam classes apartadas dos intangíveis, tais como os ativos imobilizados e os estoques, estes quando for o caso.

Embora algumas definições doutrinárias incluam bens materiais

dentro do fundo de comércio, esta não parece ser a melhor conceituação, nem corresponde à que foi adotada pela Lei n. 6404 a partir das suas recentes

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alterações, pelas quais os intangíveis são designados separadamente dos bens materiais, e em cuja descrição é feita expressa referência ao fundo de comércio (veja-se o inciso VI do art. 179 e se o compare com o inciso IV).

Outrossim, como o fundo de comércio é passível de alienação, a

ponto de o adquirente poder suceder o seu alienante nas obrigações tributárias anteriores à alienação e pertinentes ao fundo alienado (conforme o art. 133 do CTN), é necessário compreender que, enfim, o fundo de comércio, como ocorre com os demais bens do patrimônio, não são os bens imateriais em si, mas, sim, os direitos sobre eles, ou melhor, as relações jurídicas que atribuem sobre eles direitos reais ou pessoais. Note-se, neste sentido, os termos dos vários incisos art. 179, que sempre se referem a “direitos” ao classificar os grupos do ativo.

Destarte, os bens que usualmente são identificados como

integrantes do fundo de comércio são os objetos das relações jurídicas que atribuem ao titular do patrimônio direitos sobre eles.

Mais ainda, neste sentido, e considerando a unicidade, organicidade

e funcionalidade do fundo de comércio, ele é um bem coletivo, segundo a concepção dos art. 89 e 90 do Código Civil 6, mas, por ser um conjunto de direitos protegidos pelas respectivas relações jurídicas, identifica-se como uma espécie do gênero universalidade jurídica, ou universalidade de direito participante da noção de bens coletivos, a teor da definição do art. 91 do Código Civil, qual seja: “Constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico”.

Em suma, nos limites do presente estudo, e para seus fins, fundo de

comércio é meio instrumental para a geração de lucros, mas não estes mesmos, nem a expectativa dos mesmos no futuro por haver fundo de comércio numa empresa adquirida, sendo mesmo coisas apresentadas separadamente na lei tributária como possíveis fundamentos econômicos para ágios e deságios.

6 “Art. 89 - São singulares os bens que, embora reunidos, se consideram de per si, independentemente dos demais. Art. 90 - Constitui universalidade de fato a pluralidade de bens singulares que, pertinentes à mesma pessoa, tenham destinação unitária. Parágrafo único - Os bens que formam essa universalidade podem ser objeto de relações jurídicas próprias.”

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Essa separação, por sua vez, encontra explicação e razão de ser no fato de que pode haver expectativa de lucro sem haver um fundo de comércio identificável. Aliás, em direito há opiniões no sentido de que fundo de comércio se confunde com estabelecimento, embora a rigor o fundo de comércio seja o conjunto de bens intangíveis (direitos de propriedade industrial, localização estratégica, tecnologia, etc.) empregados para a realização das atividades empresariais do estabelecimento (correspondente ao conceito anglo-saxônico de “goodwill”), e o estabelecimento (que pode existir sem haver algum conjunto de intangíveis) não é apenas o local físico (sentido no qual a palavra também é aplicada a segmentos da pessoa jurídica, tanto pelo Código Civil 7 quanto pela legislação tributária 8), mas também a universalidade de bens materiais e imateriais em atividade (conceito de “going concern” 9). 10

Não é à toa que o art. 1142 do Código Civil define estabelecimento

como “todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”.

Também não é à toa que o art. 179, da Lei n. 6404 considera que o

ativo imobilizado é composto pelos “direitos que tenham por objeto bens corpóreos destinados à manutenção das atividades da companhia ou da empresa ou exercidos com essa finalidade, inclusive os decorrentes de operações que transfiram à companhia os benefícios, riscos e controle desses bens”, e destaca os bens intangíveis para outro grupo, definindo-os como “os direitos que tenham por objeto bens incorpóreos destinados à manutenção da companhia ou exercidos com essa finalidade, inclusive o fundo de comércio adquirido”.

Consentaneamente com sua natureza natural (a natureza própria

das coisas) e jurídica (a conformação que o direito atribui às coisas), e com sua

7 Por exemplo, art. 75, parágrafo 1º, 127, 969 e outros. 8 No CTN, art. 46, inciso II, 49 e 51, parágrafo único. Na legislação inferior são incontáveis os dispositivos neste sentido. 9 O conceito de “going concern”, segundo o Black’s Law Dictionary, é o seguinte: “A commercial enterprise actively engaging in business with the expectation of indefinite continuance” (Brian A. Garner Editor, Eighth Edition, p. 712). 10 De se notar que a distinção entre estabelecimento e fundo de comércio também pode ser encontrada no art. 133, que estabelece as condições para a sucessão tributária em virtude da aquisição de um ou de outro.

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destinação econômica, os bens do ativo imobilizado comportam depreciação, amortização ou exaustão do seu custo, ao passo que os do ativo intangível podem ter seu custo amortizado (art. 183, incisos V e VII). Já os investimentos avaliados pelo MEP, além dos ajustes derivados de lucros ou perdas da investida e de outros fatores associados ao nível de participação da investidora no patrimônio líquido da investida, legalmente somente admitem provisão para perdas prováveis na realização do seu valor (estas indedutíveis fiscalmente). Legalmente, sequer os testes de “impairment” são aplicáveis às contas de investimentos, eis que prescritos para os ativos imobilizados e intangíveis (parágrafo 3º do art. 183 da Lei n. 6404).

Igualmente interessante é voltar a observar que o CPC-18 identifica

todo ágio como relativo à expectativa de rentabilidade, e identifica esta com “goodwill” (correspondente a fundo de comércio), e assim o faz na busca de harmonização com normas contábeis externas. Todavia, são conceitos distintos dos que vigoram no Brasil, não apenas pelo que já foi dito acima, mas também porque:

- expectativa de rentabilidade inegavelmente é algo distinto de

fundo de comércio (correspondente a “goodwill”), porque são entidades que estão arroladas em alíneas distintas do dispositivo da lei fiscal que trata dos fundamentos do ágio, e também dos incisos do dispositivo da lei societária que tratam dos investimentos (onde pode haver expectativa de rentabilidade) e dos intangíveis (onde pode haver fundo de comércio, até por menção expressa no inciso VI do art. 179);

- a expectativa de rentabilidade está ligada às atividades

empresariais a serem desenvolvidas e aos resultados que elas poderão render no mercado, ao passo que o fundo de comércio, quando existente identificadamente, é um dos instrumentos para as atividades, tanto quanto o são outros fatores de produção, inclusive os bens do ativo imobilizado;

- neste sentido, a expectativa de rentabilidade depende, tanto

quanto a própria concretização dos lucros, não apenas do fundo de comércio, mas também dos demais fatores de produção, todos atuando simultaneamente;

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- a própria Instrução CVM n. 247 distinguia uma coisa da outra, e nota explicativa dela dizia: “Uma outra modificação introduzida pela nova Instrução é que ela prevê apenas dois tipos de ágio e deságio com fundamento econômico: i) ágio/deságio decorrente da diferença entre o valor de mercado dos bens e respectivo valor contábil; e ii) ágio/deságio em função de expectativa de resultado futuro (art. 14, parágrafos 1º e 2º). A existência de ágio por fundo de comércio, intangíveis etc., está diretamente relacionada à expectativa de rentabilidade futura”; ou seja, a despeito de respeitáveis opiniões em contrário entre os contabilistas, quer me parecer que o direto relacionamento se devia não a que fundo de comércio, intangíveis e outros elementos fossem a própria rentabilidade futura esperada, mas, sim, meios para obtê-la;

- mesmo no direito norte-americano fundo de comércio tem

conceito nitidamente específico e coincidente com a nossa noção de fundo de comércio (“fonds de commerce” para os franceses, “avviamento” na Itália), assim expresso no Black’s Lax Dictionary 11: “A business’s reputation, patronage, and other intangible assets that are considered when appraising the business, esp. for purchase; the ability to earn income in excess of the income that would be expected from the business viewed as a mere colletion of assets. Because an established business’s trademark or servicemark is a symbol of goowill, trademark infringement is a form of theft o goodwill. By the same token, when a trademark is assigned, the goodwill that it carries is also assigned”.

É importante considerar que estas observações, em seus aspectos

gerais e também nos particulares referidos ao longo deste texto, têm por pressuposto a distinção entre fundo de comércio e expectativa de rentabilidade, premissa esta que se apresenta com caráter indiscutível em virtude de que os dois fundamentos são independentes um do outro, eis que arrolados separadamente na lei fiscal e podem gerar efeitos tributários distintos ao serem amortizados.

Em continuidade a esse pressuposto, deve-se ter em vista que as

normas tributárias para amortização de ágios (ou deságios) num e noutro caso (num e noutro fundamento econômico), que diferem entre si, são lógicas e correlatas às suas razões.

11 Brian A. Garner Editor, Eighth Edition, p. 715.

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Por fim, quero fazer uma consideração sobre o fundo de comércio

como fundamento econômico para ágios e deságios, em contraposição ao da expectativa de rentabilidade, isto tendo em vista que a letra “c” do parágrafo 2º do art. 20 do Decreto-lei n. 1598 também inclui intangíveis em geral.

Assim, tendo em conta minha afirmação de que do fundo de

comércio participam apenas bens intangíveis, alguém poderia supor que haveria uma redundância na redação da lei e, por algum raciocínio qualquer, também poderia pretender dizer que isto justificaria a equiparação do fundo de comércio à expectativa de rentabilidade.

Porém, além da ilogicidade de um tal raciocínio, a referida alínea

tem que ser devidamente compreendida no seguinte sentido: - quando ela alude pura e simplesmente a “intangíveis”, está se

referindo a qualquer bem não material que, de per si e isoladamente, possa desempenhar um papel apreciável na atividade econômica, e que, por si mesmo, possa influenciar o preço pago pelo investimento na empresa em que ele é utilizado;

- já quando alude a “fundo de comércio”, está se referindo ao

conjunto orgânico de bens imateriais (universalidade) que, em bloco, são empregados na atividade empresarial, e que, assim em conjunto, influenciam o preço pago pelo investimento da empresa em que ele é utilizado.

Portanto, são coisas distintas e ambas podem, qualquer uma delas,

ser motivo e fundamento para o ágio (ou deságio) conforme o emprego que vá ter em cada situação concreta.

É deste modo que tais bens são considerados como fundamentos

possíveis para ágios e deságios, diferentemente do valor de mercado dos bens do ativo imobilizado dessa mesma empresa e também da expectativa de rentabilidade que ela possa apresentar.

Do mesmo modo, a expectativa de rentabilidade pode ser motivo e

fundamento para o ágio (ou deságio) em cada situação concreta, ainda que, para

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a expectativa de rentabilidade se concretizar, o investimento adquirido seja relativo a uma empresa onde haja ativos imobilizados, ativos intangíveis isolados ou formadores de um fundo de comércio, e outros fatores de produção.

Outrossim, como tudo converge para o lucro, razão mesma da

existência das sociedades empresárias, a catalogação de três esferas de fundamentos econômicos demonstra sua alternatividade e independência, em aplicação conforme as condições de cada aquisição de investimento, sem qualquer primazia de qualquer uma sobre as demais.

O ÁGIO INTERNO Para completar o trabalho solicitado pela organização do Seminário,

resta fazer algumas observações sobre o ágio interno, que representa uma questão especial, mas diretamente relacionada com a generalidade do regime jurídico dentro do qual os ágios aparecem.

A questão também é oportuna em virtude da ocorrência, nos últimos

tempos, de muitos autos de infração em que é alegada a existência de ágio interno, ou, como algumas vezes se diz, de “ágio de si mesmo”.

Do mesmo modo que existem abusos por parte de contribuintes na

tentativa de criação artificial de ágios internos a grupos empresariais, e às vezes até onde não exista um grupo de empresas, mas apenas uma única pessoa jurídica, também há exagerada acusação, pela fiscalização, em casos nos quais não se materializa infração deste tipo.

Na verdade, há ágios internos reais e ágios internos supostos, ou

meramente aparentes. Todo o problema se resume à exata interpretação e aplicação da

própria norma legal que determina (não autoriza apenas, pois prescreve imperativamente) a segregação de ágios e deságios na primeira avaliação de um investimento pelo MEP. Diz a lei, “in verbis”:

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“Art. 20 - O contribuinte que avaliar investimento em sociedade coligada ou controlada pelo valor de patrimônio líquido deverá, por ocasião da aquisição da participação, desdobrar o custo de aquisição em: I - valor de patrimônio líquido na época da aquisição, determinado de acordo com o disposto no artigo 21; e II - ágio ou deságio na aquisição, que será a diferença entre o custo de aquisição do investimento e o valor de que trata o número I.”

As palavras destacadas no “caput” (e também no primeiro inciso)

referem-se ao aspecto temporal da norma, mas também contêm elemento relevante na definição da sua própria hipótese de incidência, qual seja, a ocorrência de aquisição de uma participação societária relativa a investimento avaliado pelo valor do patrimônio líquido, ou seja, pelo MEP.

O mesmo ocorre quando os incisos I e II tratam do aspecto

quantitativo, firmando que o elemento patrimônio líquido é o aferido na época da aquisição, e que o ágio ou deságio é a diferença entre o valor patrimonial e o custo de aquisição.

Destarte, as palavras-chave são “aquisição da participação” e “custo

de aquisição”, nas quais, portanto, desponta a palavra “aquisição”. Em suma, para haver ágio ou deságio é necessário que haja uma

aquisição, a que título for, isto é, por qualquer meio legal (qualquer ato ou negócio jurídico) que tenha por efeito a transmissão da propriedade de participação em coligada ou controlada.

Correlatamente, como deve haver a transmissão da propriedade

pela qual a investidora adquira a participação, salvo a hipótese excepcional de aquisição por doação ou subvenção sempre há uma contraprestação, e esta corresponde ao custo, por ser a obrigação da adquirente necessária a adquirir a participação. Também como consequência da falta de especificação, na norma, do meio de aquisição da propriedade, a contraprestação, que corresponde ao custo, pode ser qualquer uma, e, portanto, é aquela que for apropriada ao ato ou negócio jurídico pelo qual a participação seja adquirida, ou, em outras palavras,

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é a contraprestação inerente e própria à causa do ato ou negócio jurídico de aquisição.

Portanto, para haver ágio ou deságio há que haver uma aquisição e

um custo de aquisição, o que parece ser acaciano, mas coloca a questão do ágio interno, que em tese existe exatamente quando não haja uma aquisição real.

Estas considerações não representam um mero exercício de

palavras, ou uma simples interpretação literal, embora a exegese do texto legal tenha que começar por ela, ou melhor, a compreensão da norma contida no texto parte da compreensão do sentido gramatical do texto.

Acontece que, em adição e correlatamente, a interpretação lógica e

teleológica confirma a conclusão haurida da leitura do art. 20. Com razão, seja pelo texto legal, isto é, comparando o custo com o

valor patrimonial contábil da participação, seja no contexto do CPC-18, isto é, comparando o custo com o valor justo da participação, ágio ou deságio têm um significado econômico que repercute no seu significado jurídico.

Esse significado é o pagamento, a mais ou a menos do que o valor de

comparação (patrimonial contábil ou justo), ter alguma razão econômica peculiar ao negócio.

Assim, o adquirente pode pagar ágio em relação ao valor de

referência porque o preço ainda é inferior ao valor que a participação obteria no mercado (mesmo este sendo básico para a determinação do valor justo), ou por ter um grande interesse na aquisição em virtude de alguma destinação prevista e desejada para a participação, como, por exemplo, entrar num novo mercado, aumentar sua fatia de mercado, adquirir uma tecnologia, obter uma rentabilidade maior do que outros negócios disponíveis, ou ainda para afastar o concorrente, etc..

Ao contrário, o deságio pode decorrer de uma necessidade do

alienante se desfazer da participação societária, necessidade esta de tal monta que o leve a vendê-la por valor inferior ao que poderia obter em outras

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circunstâncias, ou por preço que seja o máximo possível no mercado, mas, ainda assim, inferior ao patrimonial contábil.

Estas são apenas hipóteses exemplificativas e ilustrativas, pois,

evidentemente, as possibilidades da vida econômica real são infindáveis. Aliás, foi a sensibilidade do legislador do Decreto-lei n. 1598 que o

levou a arrolar um amplo leque de fundamentos econômicos para o ágio ou deságio, os quais estão no fundo da própria razão da sua existência.

Doutra feita, o ágio pode ser uma necessidade de determinado ato

ou negócio jurídico, a fim de evitar prejuízo para o alienante ou para terceiros. Realmente, nestas situações encontramos, por exemplo, a hipótese

em que o detentor da participação em uma pessoa jurídica a aliena apenas parcialmente para outro sócio, conservando para si outra parte, a qual ficaria desvalorizada perante um preço pago por seu sócio nessa empresa, que fosse incompatível com determinado critério de valorização perante a realidade da empresa. Em outras palavras, pagando menos, o adquirente ficaria numa posição econômica mais vantajosa em relação às proporções de participações na empresa, a sua e a do alienante, que seriam resultantes do negócio entre eles concluído e nas suas repercussões sobre o patrimônio da empresa e seus lucros futuros.

Também encontramos a situação em que o ágio ocorre no ato

jurídico de aumento de capital, que não seja subscrito por todos os sócios nas mesmas proporções, ou em que um novo sócio entre na sociedade subscrevendo aumento de capital.

Em síntese, há sempre uma justificativa econômica para ágio ou

deságio, e essa justificativa dá suporte para o respectivo tratamento jurídico. Pois é exatamente quando não haja essa justificação que se pode

falar em ágio interno, bastando utilizar os exemplos acima no sentido negativo, ou seja, notadamente quando não haja aquisição ou haja uma aquisição na qual nenhum sentido econômico possa ser encontrado para o pagamento de ágio.

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Assim, também meramente em tese, pode-se dizer que não há razão para ágio quando todos os sócios subscrevam aumento de capital nas mesmas proporções de suas participações anteriores, ou quando uma controladora de uma subsidiária integral aumente o capital desta.

Porém, há, sim, situações em que se justifica ágio dentro de um

grupo de empresas, como, por exemplo, e em tese, quando uma pessoa jurídica subscreva capital de outra cujo controlador seja a mesma pessoa física ou jurídica que a controle, mas cujas pessoas jurídicas (a que aumenta o capital e a que o subscreva) tenham acionistas minoritários distintos entre elas, hipótese que ocorre comumente quando se trata de companhias abertas

A verdade, portanto, é a que decorrerá da realidade da situação

existente, e da sua criteriosa consideração perante a norma jurídica a que deva se subsumir.