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Ruy Mauro Marini: dependência e intercâmbio desigual • 83 Ruy Mauro Marini: dependência e intercâmbio desigual JOÃO MACHADO BORGES NETO * Ruy Mauro Marini é conhecido, sobretudo, como um dos autores da Teoria da Dependência latino-americana; é considerado o principal expoente – ou pelo menos um dos principais – de sua vertente marxista. No interior desta, algumas de suas formulações destacam-se como bastante originais. Entre as quais, está sua argumentação sobre a importância da superexploração do trabalho – ele a considera uma característica básica das economias dependentes, redefinida, mas nunca suprimida, nas várias fases pelas quais passaram as economias capitalistas latino-americanas. Da mesma forma, são originais sua análise das particularidades do ciclo do capital nas economias do subcontinente, e sua interpretação pioneira do caráter subimperialista adquirido pelo capitalismo brasileiro. Além disso, de uma maneira não usual nos outros autores latino-americanos que compartilharam a construção da Teoria da Dependência nos anos 1960 e 1970, Marini recorreu amplamente aos conceitos econômicos de Karl Marx e, em especial, à sua teoria do valor, que procurou utilizar sempre de forma teoricamente rigorosa. 1 Isso torna sua obra de especial interesse para os que trabalham com a economia marxista. * Professor do Departamento de Economia da PUC/SP. 1 Os principais trabalhos de Marini em que o recurso à teoria do valor e aos conceitos econômicos de Marx têm um lugar central são: Dialética da dependência e “Em torno da Dialética da depen- dência” (1973); “La acumulación capitalista mundial y el subimperialismo” (1977); “Las razones del neodesarrollismo” (1978); “Plusvalía extraordinaria y acumulación de capital” (1979); “El ciclo del capital en la economía dependiente” (1979); e “Processo e tendência da globalização capitalista” (1996).

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    Ruy Mauro Marini: dependncia e intercmbio desigualJOO MACHADO BORGES NETO *

    Ruy Mauro Marini conhecido, sobretudo, como um dos autores da Teoria da Dependncia latino-americana; considerado o principal expoente ou pelo menos um dos principais de sua vertente marxista. No interior desta, algumas de suas formulaes destacam-se como bastante originais. Entre as quais, est sua argumentao sobre a importncia da superexplorao do trabalho ele a considera uma caracterstica bsica das economias dependentes, redefinida, mas nunca suprimida, nas vrias fases pelas quais passaram as economias capitalistas latino-americanas. Da mesma forma, so originais sua anlise das particularidades do ciclo do capital nas economias do subcontinente, e sua interpretao pioneira do carter subimperialista adquirido pelo capitalismo brasileiro. Alm disso, de uma maneira no usual nos outros autores latino-americanos que compartilharam a construo da Teoria da Dependncia nos anos 1960 e 1970, Marini recorreu amplamente aos conceitos econmicos de Karl Marx e, em especial, sua teoria do valor, que procurou utilizar sempre de forma teoricamente rigorosa.1 Isso torna sua obra de especial interesse para os que trabalham com a economia marxista.

    * Professor do Departamento de Economia da PUC/SP. 1 Os principais trabalhos de Marini em que o recurso teoria do valor e aos conceitos econmicos

    de Marx tm um lugar central so: Dialtica da dependncia e Em torno da Dialtica da depen-dncia (1973); La acumulacin capitalista mundial y el subimperialismo (1977); Las razones del neodesarrollismo (1978); Plusvala extraordinaria y acumulacin de capital (1979); El ciclo del capital en la economa dependiente (1979); e Processo e tendncia da globalizao capitalista (1996).

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    Desde a dcada de 1980, o prestgio da Teoria da Dependncia e o debate dos formulaes centrais de que se ocupa se reduziram no Brasil; em menor medida, isso aconteceu tambm nos outros pases da Amrica Latina e no plano mundial. Entretanto, essas questes no perderam atualidade; provavelmente, so ainda mais atuais hoje. No foi a prpria evoluo das investigaes tericas que en-fraqueceu a Teoria da Dependncia, o que seria o caso se tivesse ficado claro que os problemas tratados por ela no so pertinentes, ou se outras vertentes tericas tivessem se mostrado mais capazes de contribuir para a compreenso da reali-dade latino-americana. O que mudou, na realidade, foi a conjuntura ideolgica e poltica dessas dcadas.

    Hoje, no Brasil, parece ter se ampliado a percepo de que o pas entrou num processo virtuoso de desenvolvimento. Ou seja, ainda que os contextos histricos sejam muito diferentes, tem sido retomada, nos ltimos anos, uma viso que foi muito forte nos anos 1950 e no incio dos anos 1960.

    Houve, naquele perodo, uma ampla aceitao da ideia de que a superao dos grandes problemas nacionais poderia ser alcanada com o desenvolvimento. Designava-se com esse termo, em geral, um processo de crescimento econmico, de transformaes sociais e de progresso, que aproximaria o capitalismo brasileiro do capitalismo dos pases centrais e contribuiria para que as condies de vida da populao brasileira tambm se aproximassem das existentes nesses pases. Em menor medida, uma viso semelhante, pelo menos nos aspectos estritamente econmicos, foi forte tambm no perodo do chamado milagre brasileiro, no incio da dcada de 1970, ainda que a oposio ditadura militar estimulasse ento vises mais crticas ao curso seguido pela economia brasileira. Nesses dois perodos, existiu uma ampla crena em que a modernizao trazida pelo processo de industrializao e de urbanizao tendia a eliminar o atraso e a criar condies para a boa soluo dos grandes problemas nacionais.

    Hoje no se d a mesma importncia industrializao (e, alis, mesmo autores que avaliam de forma positiva a evoluo atual da economia brasileira admitem estar em curso uma regresso do pas, ou pelo menos uma evoluo problemtica, no plano industrial, levando em conta, por exemplo, a reprimarizao da pauta de exportaes). Menos ainda existe a confiana do passado nas virtudes da urba-nizao que j foi realizada, dando origem a grandes cidades em que a maioria da populao, como se sabe, vive de forma muito precria. Alm disso, atualmente j no possvel desconhecer questes como as ambientais que no eram visveis antes, e que obrigam a colocar em dvida as virtudes de um crescimento econmico qualquer. Mas, de qualquer maneira, muita gente acredita que a acelerao do crescimento est mudando o pas e que algum desenvolvimentismo bastante mais limitado nas suas ambies do que o dos anos 1950, cabe notar est de volta.

    Ora, uma das motivaes bsicas da Teoria da Dependncia, nas dcadas de 1960 e 1970, foi justamente fazer uma contraposio s concepes desenvolvi-mentistas. Como Marini destacou entre outros, havia grande proximidade entre

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    a concepo de Celso Furtado,2 principal desenvolvimentista brasileiro, e a ideia de que o Brasil estava na etapa da revoluo democrtico-burguesa, adotada na poca pelo PCB. Ambas identificavam a burguesia (nacional) e o proletariado como interessados no desenvolvimento, e defendiam uma frente nica dessas classes em favor da industrializao e do desenvolvimento do capitalismo brasi-leiro contra o imperialismo e o latifndio (Marini, 2000, p.73-4). Isso implicava acreditar que os problemas econmicos e sociais que afetavam a formao so-cial latino-americana eram devidos a uma insuficincia de seu desenvolvimento capitalista e que a acelerao deste bastaria para faz-los desaparecer (ibidem, p.137). De outro lado, num artigo de 1978, Marini lembrou que desde o incio dos anos 1960 ainda antes, portanto, do golpe militar formou-se no Brasil uma esquerda revolucionria que rompeu tanto com a concepo da etapa da revoluo democrtico-burguesa quanto com o nacional-desenvolvimentismo burgus. Foi a partir dessa dupla ruptura que se desenvolveu a Teoria da Dependncia como nova teoria explicativa da realidade latino-americana (ibidem, p.171-4).

    Um eixo central dessa teoria3 o argumento de que a dependncia que carac-teriza a Amrica Latina inviabiliza o desenvolvimento capitalista imaginado pelos desenvolvimentistas. A dependncia s poderia ser superada com a supresso das relaes de produo que ela supe ou seja, do prprio capitalismo latino--americano, como escreveu, por exemplo, Marini,4 em Dialtica do desenvolvi-mento (ibidem, p.109). O desenvolvimento brasileiro nos marcos do capitalismo dependente s poderia ser um desenvolvimento monstruoso (ibidem, p.98), em que a superexplorao do trabalho e a dependncia se conservariam.

    A experincia desenvolvimentista da dcada de 1950 e do incio da de 1960 foi encerrada pelo golpe militar de 1964 e pela ditadura que o sucedeu. O semidesenvolvimentismo posterior (de alguns anos da ditadura militar e, num contexto obviamente diferente, da fase inicial da Nova Repblica) foi vencido pela crise da dvida externa e pela acelerao da inflao.

    E o neodesenvolvimentismo (ou talvez neosemidesenvolvimentismo) atual? Pode ser bem sucedido nas suas promessas de progresso econmico e social? Ou a dependncia e a superexplorao do trabalho continuam a marcar o desen-volvimento do capitalismo brasileiro, e no podero ser superadas nesse marco?

    Para tomar um aspecto decisivo dessa discusso: as diferenas da diploma-cia do governo Lula (e de seu sucessor, o governo Dilma) em relao a gestes

    2 Conforme expressa em A pr-revoluo brasileira (1962). 3 Nas suas verses mais radicais, como a de Marini. A verso de Fernando Henrique Cardoso dos

    estudos sobre dependncia (como ele prefere chamar) e outros autores prximos a ele mais matizada. Por outro lado, esse autor, ainda antes de sua eleio para a Presidncia da Repblica, terminou fazendo uma defesa do desenvolvimento associado, que dificilmente pode ser consi-derada compatvel com o campo desenvolvimentista. Ver, a esse respeito, os textos reunidos em Cardoso (1993).

    4 Numa passagem em que defende a formulao de Andr Gunder Frank sobre o desenvolvimento do subdesenvolvimento.

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    anteriores assinalam o avano do pas em direo a uma maior autonomia nacio-nal e conquista de uma voz ativa significativa nas questes internacionais, ou representam uma retomada da poltica subimperialista j analisada por Marini,5 em que o grande capital brasileiro procura ganhar vantagens em relao aos vi-zinhos e a outros pases dependentes, sem reduzir sua subordinao estrutural ao imperialismo estadunidense?

    Avanar na compreenso dessas questes uma necessidade para o pensa-mento de esquerda brasileiro, talvez at maior do que foi nos anos 1960 e 1970. Em consequncia, o reexame das formulaes de Marini e dos outros autores da Teoria da Dependncia muito oportuno.

    Este artigo busca contribuir para isso, ampliando a discusso de um ponto especfico das contribuies de Marini, o tema do intercmbio desigual.6 Marini lhe deu um lugar muito importante em suas anlises desde a Dialtica da de-pendncia, de 1973,7 e vinculou-o superexplorao do trabalho; argumentou que as perdas de mais-valia que as burguesias latino-americanas sofrem com o intercmbio desigual levam-nas a agudizar os mtodos de extrao do trabalho excedente (ibidem, p.113-31).

    A anlise do intercmbio desigual complexa, e sua formulao por Marini foi um dos temas criticados por Jos Serra e Fernando Henrique Cardoso, em texto de 1978. Marini respondeu a essa crtica em As razes do neodesenvolvimentismo, do mesmo ano. Parece-me que o sentido geral dessa resposta correto, mas que ela no inteiramente satisfatria. Justifica-se, assim, a retomada do tema, com a proposta de um tratamento mais sistemtico de toda a questo.

    Para tanto, preciso comear pela retomada dos conceitos de valor e de preo nos vrios nveis de abstrao em que Marx os desenvolve, para depois chegar ao valor e aos preos no plano internacional. Esse o objetivo das duas sees seguintes deste artigo.8 A partir da, ser possvel caracterizar de forma rigorosa o

    5 Num contexto muito diferente dos anos 1960 e 1970, claro; qualquer anlise dessa questo hoje tem de levar em conta o peso crescente da China, o declnio relativo dos Estados Unidos e, consequentemente, a nova configurao do poder mundial.

    6 Alm de Marini, diversos autores das dcadas de 1960 e 1970 deram grande importncia questo do intercmbio desigual; entre os mais importantes podem ser citados Arghiri Emmanuel (1969), Samir Amin (1970 e 1973) e Ernest Mandel (1985, especialmente captulos 2 e 11; livro publicado originalmente em 1972). O tratamento de Emmanuel dessa questo foi, sem dvida, sistemtico, mas sua sistematizao foi muito diferente da que proposta neste artigo.

    7 Na verdade, o tema j est presente em seu artigo de 1967: Uma parte varivel da mais-valia que se produz a [Marini se refere economia exportadora latino-americana] drenada para as economias centrais, seja mediante a estrutura de preos vigente no mercado mundial e as prticas financeiras impostas por essas economias, seja por meio da ao direta dos investidores forneos no campo da produo (Marini, 1977, p.7-8. Traduzido por mim do espanhol). a drenagem de mais-valia pela estrutura de preos vigente no mercado mundial que caracteriza o intercmbio desigual. Segundo Marini, constitudo no perodo da economia exportadora, ele se manter depois.

    8 A interpretao desenvolvida neste artigo da teoria do valor e dos preos de Marx no , por certo, a nica possvel; em alguns aspectos, outros autores tm divergncias com o que ser exposto. A discusso dessas divergncias, no entanto, ultrapassa os limites deste artigo.

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    intercmbio desigual no plano internacional, o que ser feito em seguida. O artigo concludo com alguns comentrios sobre a importncia atual do intercmbio desigual e sobre a resposta de Marini a Serra e Cardoso.

    Valor e preos no plano nacionalMarx comea O capital pela anlise da mercadoria. O valor, para ele, um

    dos fatores das mercadorias (o outro o valor de uso); o contedo comum que permite s mercadorias se igualarem e se trocarem umas pelas outras. A substncia do valor o trabalho humano abstrato (que se contrape ao trabalho til, concreto, adequado fisicamente produo de cada mercadoria) e sua medida imanente o tempo de trabalho socialmente necessrio, que introduzido da seguinte maneira no captulo 1 de O capital:

    Tempo de trabalho socialmente necessrio aquele requerido para produzir um valor de uso qualquer, nas condies dadas de produo socialmente normais, e com o grau social mdio de habilidade e de intensidade do trabalho [...]. Este muda, porm, com cada mudana na fora produtiva do trabalho. A fora produtiva do trabalho determinada por meio de circunstncias diversas, entre outras pelo grau mdio de habilidade dos trabalhadores, o nvel de desenvolvimento da cincia e sua aplicabilidade tecnolgica, a combinao social do processo de produo, o volume e a eficcia dos meios de produo e as condies naturais. [...] Genericamente, quanto maior a fora produtiva do trabalho, tanto menor o tempo de trabalho exigido para a produo de um artigo, tanto menor a massa de trabalho nele cristalizada, tanto menor o seu valor. [...] A grandeza do valor de uma mercadoria muda na razo direta do quantum, e na razo inversa da fora produtiva de trabalho que nela se realiza. (Marx, 1988a, p.48-9)

    Mais adiante, no mesmo captulo, Marx acrescenta uma preciso: na determi-nao do tempo de trabalho socialmente necessrio, o tempo de trabalho contado a partir do trabalho simples.

    Ele [o trabalho humano] dispndio de fora de trabalho simples que em mdia toda pessoa comum, sem desenvolvimento especial, possui em seu organismo fsico. Embora o prprio trabalho mdio simples mude seu carter, em diversos pases ou pocas culturais, ele porm dado em uma sociedade particular. Trabalho mais complexo vale apenas como trabalho simples potenciado ou, antes, multiplicado, de maneira que um pequeno quantum de trabalho complexo igual a um grande quantum de trabalho simples. (ibidem, p.51)

    Uma concluso fundamental pode ser tirada desses pargrafos: para Marx, o tempo de trabalho socialmente necessrio no uma grandeza puramente fsica. No pode ser contado apenas pela medio do tempo fsico de trabalho (embora

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    esse seja seu ponto de partida). Isso no se explica apenas por ele ser um tempo mdio, mas tambm por ele depender das caractersticas naturais e histrico-sociais de cada pas e de cada poca, incluindo a, com destaque, as condies tecnolgi-cas. Na verdade, em todos os seus desenvolvimentos sobre o valor, Marx ressalta que ele uma relao social e, logo, socialmente determinado. O mesmo vale, naturalmente, para sua substncia, que o trabalho humano abstrato.

    Outro ponto importante que a determinao social do quantum de trabalho abstrato se faz no mercado, de forma no consciente, no planejada, a partir da igualao das mercadorias. Essa questo referida por Marx vrias vezes; por exemplo, nesta passagem:

    [] os homens relacionam entre si seus produtos de trabalho como valores no porque consideram essas coisas como meros envoltrios materiais de trabalho humano da mesma espcie. Ao contrrio. Ao equiparar seus produtos de diferentes espcies na troca, como valores, equiparam seus diferentes trabalhos como trabalho humano. No o sabem, mas o fazem. (ibidem, p.72)

    H uma consequncia clara disso: se os valores das mercadorias so iguais, o trabalho (socialmente necessrio, socialmente reconhecido) objetivado nelas obrigatoriamente igual. Duas mercadorias iguais, ainda que produzidas por trabalhadores diferentes com diferentes quantidades fsicas de trabalho (ou seja, de trabalho concreto) s podem representar socialmente a mesma quantidade de trabalho abstrato.

    A anlise da mercadoria exige, para Marx, estudar tambm o dinheiro e os preos. Dinheiro, como medida do valor, forma necessria de manifestao da medida imanente do valor das mercadorias: o tempo de trabalho (ibidem, p.86). O preo a denominao monetria do trabalho objetivado na mercadoria (ibidem, p.91). O preo, no entanto, no sendo uma medida imanente do valor, e mesmo derivando-se do valor, tem certa autonomia. Esta se expressa tanto na possibilidade de uma incongruncia qualitativa entre preo e valor (h preos que no correspondem a nenhum valor, ou cuja relao com o valor apenas indireta) quanto na possibilidade de contradio quantitativa: desvios do preo em relao ao valor (ibidem, p. 91).

    No contexto terico dos primeiros captulos de O capital, bem como no nvel de abstrao geral do seu Livro I, no so consideradas as diferenas entre os vrios capitais e a concorrncia entre eles, e nem as diferenas entre os vrios pases. A anlise dessas questes ser feita no Livro III, ainda que haja algumas antecipaes dela no Livro I.

    Uma dessas antecipaes est no captulo 10 do Livro I, que introduz a an-lise da produo de mais-valia relativa. Marx fala a da diferena entre valores individuais e valor social de cada mercadoria. Essa diferena diz respeito ao fato

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    de as diversas empresas que produzem as mesmas mercadorias (em um dado pas; no so levadas em conta, por enquanto, as diferenas entre os pases) terem condies de produo e, logo, nveis de produtividade (ou de fora produtiva do trabalho, como ele prefere dizer) distintos.

    Marx d o exemplo de um capitalista que consegue duplicar a produtividade do trabalho na produo de determinada mercadoria (sem que se alterem os va-lores dos meios de produo utilizados) e que passa, ento, a produzi-la com um quantum de trabalho que corresponde a 9 pence este seu valor individual , abaixo do quantum de trabalho que constitui a norma social, que corresponde a 1 xelim (12 pence) este seu valor social. Comenta ento:

    O verdadeiro valor de uma mercadoria, porm, no seu valor individual, mas sim seu valor social, isto , no se mede pelo tempo de trabalho que custa realmente ao produtor, no caso individual, mas pelo tempo de trabalho socialmente exigido para sua produo. Portanto, se o capitalista que aplica o novo mtodo vende sua mercadoria pelo seu valor social de 1 xelim, ele a vender 3 pence acima de seu valor individual, realizando assim uma mais-valia extra de 3 pence. (ibidem, p.240)

    Portanto, o valor individual de uma mercadoria definido como o tempo de trabalho necessrio ao produtor individual para produzi-la; o valor social, como o tempo de trabalho socialmente necessrio para sua produo; e a mais-valia extra (ou mais-valia extraordinria), como a diferena entre ambos. O valor social o verdadeiro valor. Quando a diferenciao nas condies de produo no interior de cada setor levada em conta, o conceito de valor social substitui o conceito de valor que Marx usa quando no toma em conta essa diferenciao.

    Assim, no caso da empresa que duplicou sua fora produtiva, um tempo de trabalho menor se expressa monetariamente (isto , como valor expresso em dinheiro)9 como um tempo de trabalho socialmente necessrio maior:

    Essa expresso monetria maior do que a expresso monetria do trabalho social mdio da mesma espcie []. O trabalho de fora produtiva excepcional atua como trabalho potenciado ou cria, no mesmo espao de tempo, valores maiores do que o trabalho social mdio da mesma espcie. (Marx, 1988a, p.241)

    Ou seja, o trabalho de fora produtiva excepcional (porque realizado em condies de produo superiores tecnicamente) produz mais valor (valor social) no mesmo tempo, da mesma maneira que o trabalho mais qualificado (chamado

    9 Lembremos que, para Marx, ainda que os valores tenham como medida imanente o tempo de trabalho, eles se expressam, em geral, em dinheiro, como preos.

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    por Marx de trabalho complexo), em relao ao trabalho simples. Assim, a ori-gem da mais-valia extra est na existncia de condies de produo superiores s condies mdias, que potenciam a capacidade do trabalho de criar valor.

    Mais adiante em O capital, no captulo 10 do Livro III, Marx retoma a questo da determinao do valor e da mais-valia extra. Volta a falar de valor individual, como no Captulo 10 do Livro I, mas substitui o termo valor social pelo termo valor de mercado. No parece haver nenhuma questo terica envolvida nessa troca de nomes; valor de mercado e valor social so conceitos equivalentes. E como a redao da verso do Livro I publicada pelo prprio Marx foi posterior do Livro III, deixado por ele na forma de rascunhos, podemos concluir que o termo afinal preferido foi o de valor social, que ser, ento, o termo usado neste artigo. Marini, que se referencia nos seus trabalhos principalmente na edio de O capital da editora mexicana Fondo de Cultura Economica, usa o termo valor comercial, que como o termo valor de mercado foi traduzido naquela edio.

    Nesse captulo, Marx explicita que o valor de mercado (ou valor social) determinado pela quantidade de trabalho abstrato necessrio para produzir a mercadoria nas condies mdias de uma esfera de produo. Essas condies mdias, entretanto, no se referem a uma mdia aritmtica, ou a uma mdia matemtica qualquer. Dependendo das relaes entre a estrutura da oferta e a demanda social, podem ser determinadas tanto pelas condies de produo mais favorveis (caso em que o valor de mercado coincide com o menor valor indivi-dual) quanto pelas menos favorveis (caso em que o valor de mercado coincide com o maior valor individual).

    Do mesmo modo que o trabalho em uma empresa cujas condies de produo so superiores s socialmente dominantes produz mais valor10 num mesmo tempo de trabalho e, logo, implica o ganho de mais-valia extra, o contrrio acontece com o trabalho realizado em empresas cujas condies de produo so inferiores s socialmente dominantes. Ele produz menos valor num mesmo tempo de trabalho, e produz tambm menos mais-valia do que a mdia o que equivale a uma mais--valia extra negativa. Excepcionalmente, no produzir mais-valia nenhuma, caso em que a empresa ter de fechar.

    interessante mencionar nesse contexto o conceito de trabalho simples, que o que serve de base para a medida do valor pelo tempo de trabalho. Trabalho simples o trabalho executado pelos trabalhadores mdios no qualificados nas empresas dominantes de cada setor. Assim, o trabalho de trabalhadores no qualificados realizado em empresas cuja produtividade mais elevada, e que pro-duz mais valor no mesmo tempo, funciona em relao ao trabalho realizado nas outras empresas da mesma maneira que um trabalho mais qualificado (chamado

    10 Diversos autores fazem uma interpretao distinta dessa questo: no lugar de falarem no trabalho produzindo mais ou menos valor do que a mdia (ou seja, do que o trabalho simples socialmente necessrio), preferem falar em transferncias de valor entre empresas ou capitais distintos.

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    por Marx de complexo). De fato, Marx utiliza para esse caso uma expresso, trabalho potenciado, que j havia utilizado para se referir ao trabalho complexo. Naturalmente, o trabalho realizado em empresas cuja produtividade inferior socialmente dominante tem uma situao inversa; conta como trabalho inferior ao trabalho simples.

    Por outro lado, levar em conta a existncia da diversidade dos capitais e a concorrncia entre eles no exige apenas, para Marx, complicar o conceito de valor, desdobrando-o em valor social e valor individual. Exige tambm compli-car o conceito de preo.

    Na mesma seo (a seo 2 do Livro III) em que fala da distino entre valores individuais e valor de mercado (social), Marx trata da transformao dos valores em preos de produo. Preos de produo so os preos para os quais as taxas de lucro para os capitais de diversas composies orgnicas11 e diversos tempo de rotao12 se igualam.13 Marx fala ento de trs tipos de preos: preo-valor (o que expressa diretamente o valor social), preo de produo e preo de mercado. Este ltimo o preo emprico, que flutua em torno dos preos de produo.

    A complicao adicional no tratamento dos preos, entretanto, no para a. Ao falar do capital comercial, Marx introduz mais determinaes relativas aos preos. Os trabalhadores do setor comercial (em sentido estrito; isto no se aplica, por exemplo, aos trabalhadores do transporte) so improdutivos, no produzem valor e mais-valia. Para os capitais comerciais poderem cobrir seus custos e ainda obter lucro, devem comprar barato para vender mais caro. De fato, os capitalistas do setor produtivo vendem (no atacado) suas mercadorias com desconto aos co-merciantes. Marx chama esses preos com desconto de preos de produo no sentido estrito, e os preos pelos quais os comerciantes vendem as mercadorias no varejo de preos de venda dos comerciantes (Marx, 1988c, p.205).

    Temos de levar em conta ainda a existncia de preos de monoplio, tambm mencionados por Marx.14

    A questo da diferenciao dos preos em relao ao valor se vincula ao tema das transferncias de valor na circulao, ou seja, no momento da venda. Se uma mercadoria alienada por um preo distinto do seu valor, feita uma transferncia

    11 Composio orgnica do capital a composio em valor c/v (capital constante sobre capital por varivel), que expressa a composio material representada pela proporo entre meios de produo e fora de trabalho.

    12 Tempo de rotao a soma do tempo de produo e do tempo de circulao de cada mercadoria. 13 Mais precisamente, as taxas de lucro se igualam quando as mercadorias so vendidas por seus

    preos de produo, se desconsideramos as variaes devidas s diferenas entre valores individuais e valor social, isto , se desconsideramos os ganhos ou perdas de mais-valia extra.

    14 O tratamento dos preos agrcolas far referncia tambm diferenciao entre valor individual e valor social, correspondendo nesse caso a preo de produo individual e preo de produo regulador do mercado. Por outro lado, se Marx tivesse prolongado sua anlise at a incluso do Estado (e, consequentemente, da tributao), o exame das relaes externas exigiria tambm novos desdobramentos dos preos.

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    de valor entre o comprador e o vendedor. H uma troca desigual, isto , troca combinada com transferncia de valor na circulao.15 Comprar uma mercadoria por um preo inferior a seu valor, por exemplo, significa pagar um valor menor para obter um valor maior.

    Com a anlise da diferenciao entre valores individuais e valores sociais, e das transferncias de valor na circulao, identificamos duas situaes diferentes de desigualdade. Ambas implicam ganhos e perdas, mas so terica e praticamente distintas. Diferenas entre valores individuais e valores sociais dizem respeito a diferenciaes na prpria produo de valor; diferenas entre preos e valores implicam transferncias de valor na circulao. Diferenas entre valores individuais e valores sociais implicam contar quantidades desiguais de trabalho concreto como iguais (quando uma quantidade de um trabalho de fora produtiva superior mdia contada como maior quantidade de trabalho abstrato); diferenas entre preos e valores implicam troca desigual de trabalho abstrato (ou seja, de valor).

    No caso da desigualdade tecnolgica que resulta em diferenciao dos valores individuais, quem perde, isto , quem obrigado a vender com base num valor social inferior a seu valor individual, perde por no conseguir realizar todo o valor in -dividual produzido; perde porque usou trabalho menos produtivo que o trabalho mdio socialmente reconhecido, ou seja, que produz socialmente menos valor no mesmo espao de tempo. No h perda no processo de troca; este apenas sanciona a perda devida s piores condies de produo, perda que j foi sofrida antes da troca. J no caso da troca desigual de valor, a perda se d na circulao, no processo de troca. A mesma diferena existe, naturalmente, para os ganhos nos dois casos.

    Valores e preos no plano internacionalComecemos pelo exame de alguns textos em que Marx tratou explicitamente

    dos valores internacionais. No captulo 20 do Livro I, comentando a diversidade nacional dos salrios, ele escreveu o seguinte:

    Em cada pas vale certa intensidade mdia do trabalho, abaixo da qual o trabalho para a produo de uma mercadoria consome mais tempo que o socialmente necessrio, e por isso no conta como trabalho de qualidade normal. Apenas um grau de intensidade que se eleva acima da mdia nacional, num dado pas, muda a medida do valor pela mera durao do tempo de trabalho. No ocorre o mesmo no mercado mundial, cujas partes integrantes so os vrios pases. A intensidade mdia do trabalho muda de pas para pas; aqui maior, l menor. Essas mdias constituem assim uma escala, cuja unidade de medida a unidade mdia do trabalho universal. Comparado com o menos intensivo, o trabalho nacional mais intensivo

    15 Neste artigo adotada a conveno de chamar de troca desigual os casos de venda por um preo distinto do valor e de reservar o termo intercmbio desigual para ganhos e perdas no comrcio internacional a partir da diferenciao tecnolgica, questo que ser desenvolvida mais adiante.

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    produz pois, em tempo igual, mais valor, que se expressa em mais dinheiro. (Marx 1988b, p.139-40)

    A diferena entre o plano nacional e o internacional, como descrita nesse pargrafo, est em que no interior de um mesmo pas h uma tendncia homo-geneizao da intensidade do trabalho, o que estabelece uma intensidade-padro que serve de base para a medida do valor pela durao do tempo de trabalho os casos de maior ou menor intensidade so ento socialmente avaliados em compa-rao com essa intensidade-padro. No plano internacional, no h tal tendncia homogeneidade (alis, tanto no havia no tempo de Marx como ainda no h hoje), mas ocorre o estabelecimento de uma escala de intensidades mdias nacionais.

    A diferena entre o que se passa no plano internacional e o que acontece no plano nacional se amplia quando levamos em conta a questo da produtividade do trabalho:

    Porm, a lei do valor modificada ainda mais em sua aplicao internacional pelo fato de que no mercado mundial o trabalho nacional mais produtivo conta tambm como mais intensivo, sempre que a nao mais produtiva no seja obrigada pela concorrncia a reduzir o preo de venda de sua mercadoria a seu valor.Na medida em que a produo capitalista desenvolvida num pas, na mesma medida elevam-se a tambm a intensidade e a produtividade nacional do trabalho acima do nvel internacional. As diferentes quantidades de mercadorias da mesma espcie, que so produzidas em tempo igual de trabalho em diferentes pases, tm, portanto, valores internacionais desiguais, que se expressam em preos diferentes, isto , em somas de dinheiro que diferem conforme os valores internacionais. (ibidem, p. 140)

    Se no mercado mundial o trabalho mais produtivo conta tambm como mais intensivo, estabelece-se tambm, para trabalhos em pases de produtividades nacionais desiguais, uma escala internacional, em que o trabalho do pas mais produtivo produzir mais valor internacional sempre que a nao mais produtiva no seja obrigada pela concorrncia a reduzir o preo da mercadoria a seu valor (nesse ltimo caso, o contexto indica que Marx se refere reduo do preo a seu valor individual).

    necessrio examinar essa questo com cuidado; h duas situaes distintas em que essa comparao internacional pode ser feita. Comecemos com o caso mais simples, o da concorrncia entre capitalistas de diversos pases na produo das mesmas mercadorias. Aqui h uma extenso da situao criada pela concorrncia entre capitalistas de um mesmo pas, cujas empresas tm condies tecnolgicas distintas; o valor social, agora, determinado internacionalmente, torna-se valor internacional.

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    Quando fez essa anlise no contexto nacional, Marx usou a expresso trabalho potenciado; agora, no contexto internacional, fala em um trabalho que conta como [trabalho] mais intensivo; mas o sentido das duas formulaes claramente idntico. Assim, tambm no contexto da concorrncia internacional, os capitalistas dos pases mais produtivos ganharo uma mais-valia extra no plano internacional. A diferena que no plano internacional no h tendncia generalizao do progresso tcnico, ou h apenas uma tendncia muitssimo mais lenta. Os ganhos de mais-valia extra, ento, tendem a ser mais duradouros.

    Marx no menciona em qual proporo o trabalho mais produtivo no plano internacional conta como mais intensivo e, logo, produz mais valor no mesmo tempo. Entretanto, no caso que estamos considerando, da concorrncia inter-nacional na produo das mesmas mercadorias, h uma interpretao natural, necessria para preservar a lgica de que quantidades de trabalho representadas em quantidades iguais da mesma mercadoria so socialmente reconhecidas (enquanto quantidades de trabalho abstrato) como iguais. Se, em um tempo de trabalho fsico (concreto) igual, o capitalista que tem a produtividade mdia em um pas produz, por exemplo, o dobro ou o triplo da quantidade de uma determi-nada espcie de mercadoria que outro, produzir tambm o dobro ou o triplo de valor internacional. Os valores internacionais de uma unidade de cada espcie de mercadoria sero, assim, iguais (desconsiderando aqui, para simplificar, eventuais questes vinculadas a custos de transporte e outras semelhantes que, do ponto de vista de Marx, entram tambm na determinao do valor). Alis, o que se espera a partir do funcionamento do mercado.

    Passemos ento anlise do segundo caso, o da comparao do tempo de trabalho necessrio produo de uma mercadoria (chamemos de mercadoria X) produzida em um nico pas (chamemos de pas A), com o tempo de trabalho necessrio produo de outras mercadorias, produzidas em outros pases. Em qual proporo o tempo de trabalho necessrio produo da mercadoria X no pas A corresponder aos tempos de trabalho necessrios produo de outras mercadorias em outros pases?

    Uma soluo simples seria tomar o fator pelo qual o trabalho realizado no pas A na produo de uma mercadoria produzida tambm em outros pases se compara com o trabalho realizado em outros pases na produo da mesma mer-cadoria. preciso, porm, levar em conta que as vantagens de produtividade que pases com maior desenvolvimento tecnolgico tm em relao a pases menos desenvolvidos no obedecem mesma proporo para todas as mercadorias. O progresso tcnico diferenciado. Assim, supondo que A seja (em geral) um pas mais produtivo que B, o valor produzido em uma hora de trabalho em A corres-ponder ao valor produzido em uma hora de trabalho em B multiplicado por um fator diferente para cada espcie de mercadoria.

    As produtividades do trabalho variam internacionalmente de forma distinta para cada mercadoria; a formao de uma escala internacional de produtividades

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    mdias nacionais do trabalho dever ser muito mais complexa do que a formao de uma escala internacional de intensidades do trabalho (j que admitimos que h a tendncia da homogeneizao em cada pas das intensidades de trabalho). claro que sem a formao dessa escala internacional de produtividades nacionais ficaria difcil definirmos o valor internacional de mercadorias especficas produ-zidas apenas em um nico pas (ou em um grupo de pases apenas).

    Uma forma de contornar essa dificuldade foi usada por Arghiri Emmanuel. Entre ramos diferentes, a produtividade do trabalho incomensurvel e o ra-ciocnio sobre a diferena entre valor nacional e valor internacional no tem sentido (Emmanuel, 1972, p.457). A frase resume seu raciocnio; sua concluso que, havendo essa incomensurabilidade, temos de considerar que as horas de trabalho dos diversos pases so igualmente produtivas; o valor internacional (medido em tempo de trabalho socialmente necessrio) , ento, o prprio valor nacional. Esse autor afirmou ainda que essa seria tambm a posio de Marx; na sua interpretao, os pargrafos do captulo 20 do Livro I citados anteriormente referir-se-iam apenas ao caso da concorrncia entre capitalistas de pases distintos que produzem as mesmas mercadorias (ibidem, p.456).

    Mas difcil sustentar tal interpretao. No contexto da discusso feita por Marx no captulo citado, em que o tema central a diversidade dos salrios nacionais e em que so levados em conta nveis distintos de produtividade por pases, faria pouco sentido a referncia apenas ao caso do trabalho que produz mercadorias objeto da concorrncia internacional. Faz muito mais sentido pen-sar que, para Marx, possvel encontrar uma escala internacional unificada de produtividades mdias por pas, considerando tanto a produo das mercadorias especficas de cada um quanto as que so objeto de concorrncia internacional, ainda que a igualao no mercado do valor destas ltimas mercadorias exija escalas diferenciadas, uma para cada.

    H um argumento importante nessa direo: mesmo havendo diferenciao na fora do progresso tcnico para cada mercadoria, h tambm uma evoluo tecnolgica geral de cada pas, determinada, por exemplo, pela difuso do co-nhecimento tcnico-cientfico, pelo grau geral da educao e da qualificao dos trabalhadores, pelo progresso da infraestrutura. Nesses aspectos, todo o tra-balho realizado no pas no espao econmico unificado em que o aumento da produtividade se d que se torna mais produtivo. Se, de um lado, a evoluo da produtividade para cada mercadoria distinta, h, por outro lado, uma ten-dncia geral comum.

    O problema do clculo de uma escala internacional unificada de produtivi-dades mdias por pas pode ser formulado de uma maneira anloga (ainda que mais complexa) ao clculo de uma escala internacional de produtividades para capitalistas de diversos pases que produzem a mesma mercadoria. No clculo para uma mercadoria, os valores internacionais de unidades dessa mercadoria produzidas em pases distintos devem ser iguais; esse critrio permite encontrar o

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    fator pelo qual a hora de trabalho concreto do pas mais avanado produzir mais valor internacional. Para encontrarmos produtividades mdias por pas, podemos substituir a unidade de uma mercadoria por uma cesta16 representativa do conjunto das mercadorias. O fator que procuramos o que expressa a proporo em que o pas mais produtivo produz numa hora de trabalho concreto maior quantidade dessas cestas, fazendo que os valores internacionais de tal cesta sejam iguais.

    Ora, hoje em dia dispomos de um clculo bastante conhecido que permite encontrar o fator que iguala o preo em uma moeda de referncia internacional (o dlar estadunidense) de uma cesta representativa de mercadorias. a taxa de cmbio que estabelece a paridade de poder de compra (mais conhecida na sua sigla em ingls, PPP, Purchasing Power Parity) entre as moedas dos diversos pases.17 No a mesma coisa que uma taxa que estabelea a igualdade em valor, mas se aproxima o suficiente disso para poder servir de proxy18 dela.

    Por outro lado, a igualdade dos valores (ou dos preos) da cesta de bens no estabelecida de forma simples a partir do mercado, tal como acontece para a mercadoria individual, j que parte significativa das mercadorias que a compem no transacionada internacionalmente. Mas possvel argumentar que o mercado age nesse sentido, fazendo que, aproximadamente, a hora de trabalho mdia em cada pas produza o mesmo valor no plano internacional. Isso no ser exato, pela j mencionada vantagem relativa distinta nas produtividades para mercadorias distintas. Mas, apesar disso, uma interpretao bastante razovel de um caminho, coerente com a teoria do valor de Marx, para estabelecer a escala internacional em que o trabalho concreto dos pases mais produtivos produz mais valor.19

    Intercmbio desigual como desigualdade na produo de valorO termo intercmbio desigual tem sido usado no sentido de ganhos e perdas

    no comrcio internacional a partir das desigualdades entre, de um lado, pases com clara superioridade em termos de tecnologia e, consequentemente, de pro-dutividade e, de outro, pases com clara inferioridade.

    Dois tipos de situaes diferentes costumam receber essa designao.Curiosamente, a situao que mais tem atrado a ateno dos autores que se

    dedicam a esse tema no se refere propriamente desigualdade no intercmbio,

    16 Cesta de mercadorias um termo usual entre economistas para fazer referncia a um conjunto de mercadorias.

    17 Clculos com base na PPP so amplamente utilizados em comparaes entre pases; no cabe fazer aqui um exame mais detalhado de como eles so feitos.

    18 Varivel proxy uma varivel mais fcil de ser obtida, que se relaciona suficientemente com outra (mais difcil de obter) para poder represent-la.

    19 Outros autores j recorreram aos clculos em termos de paridade de poder de compra para fazer comparaes internacionais do valor de mercadorias produzidas em pases de nvel de produti-vidade muito diferente. Veja-se, por exemplo, Khler (1998), artigo tambm interessado no tema do intercmbio desigual. H, entretanto, diferenas importantes entre o tratamento dado a essa questo por Khler e o dado por este artigo.

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    mas sim aos ganhos e perdas a partir da diferena na produo de valor inter-nacional pelo trabalho concreto de cada pas. Aps a anlise da formao dos valores internacionais das mercadorias, o mecanismo desses ganhos e perdas fica razoavelmente claro. Quando mercadorias produzidas por um pas com menor desenvolvimento tecnolgico passam a concorrer com mercadorias produzidas em pases de maior desenvolvimento tecnolgico, uma espcie de redutor aplicado ao valor produzido por seus trabalhadores. E se o progresso tecnolgico nesse pas for mais lento, esse redutor se amplia. O trabalho realizado nos pases produ-tivamente mais atrasados , portanto, desvalorizado. Os capitalistas nesses pases sofrem perdas apropriam-se de menos valor e, consequentemente, de menos mais-valia, em relao ao tempo de trabalho dos seus assalariados.

    Tudo isso mais claro para o trabalho realizado na produo de mercadorias para exportao, ou na produo de mercadorias produzidas para o mercado interno que passam a sofrer a concorrncia de mercadorias importadas. Mas, como vimos, podemos interpretar que coisa semelhante acontece tambm com as mercadorias produzidas para exportao que no sofrem concorrncia de similares.

    Inversamente, o trabalho realizado nos pases mais desenvolvidos tecnolo-gicamente tende a ser supervalorizado, produz mais valor por tempo concreto de trabalho. Os capitalistas desses pases tm ganhos no comrcio internacional, apropriam-se de mais valor e, consequentemente, de mais mais-valia.

    As perdas e ganhos a partir das desigualdades internacionais so bem reais e se originam do desenvolvimento do comrcio internacional. Isso justifica falar em intercmbio desigual. Entretanto, no h propriamente intercmbio desigual, no sentido de que os ganhos e perdas no ocorrem no momento da troca; ocorrem, como vimos, no momento da produo. Por isso, no se pode falar em transferncia de valor entre os pases. Alis, os ganhos e perdas de uns no compensam os ga-nhos e perdas de outros, o que deveria acontecer se o caso fosse de transferncias de valor. Como vimos, o valor social em um pas e, da mesma maneira, o valor internacional (que uma extenso do valor social para pases distintos) no se estabelecem obrigatoriamente como uma mdia matemtica qualquer dos valores individuais. No limite, podem coincidir com o maior valor individual ou com o menor. Na primeira hiptese, ningum perderia, e todos os que no estivessem na pior posio ganhariam; na segunda hiptese, ningum ganharia, e todos os que no estivessem na melhor posio perderiam.

    Marini trata esses ganhos e perdas como transferncias de valor (2000, p.177), o que, segundo a exposio feita neste artigo, no correto. No entanto, isso no tem nenhuma consequncia negativa sobre o conjunto de sua argumentao. O que importante para ela a existncia de ganhos e perdas (do ponto de vista dos pases dependentes, naturalmente, o que h so perdas), e no esses ganhos ou perdas se explicarem como transferncias de valor.

    Antes de passar ao outro caso de intercmbio desigual, convm salientar uma consequncia que pode ser especialmente destrutiva para pases retardatrios tec-

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    nologicamente: toda difuso de progresso tcnico implica uma reavaliao dos estoques existentes das mercadorias cuja produo afetada, de modo direto ou indireto. Isso especialmente importante para os estoques de capital, ou seja, de mercadorias que funcionam como meios de produo (que podem sofrer o que Marx chamava de obsolescncia moral). Isto : se, como vimos, a acelerao do progresso tcnico pode provocar um empobrecimento de setores retardatrios tecnicamente, esse empobrecimento agravado por no se referir apenas capa-cidade presente de produo, ou seja, por incluir a perda de riqueza j acumulada (perda no estoque de capital).

    Intercmbio desigual como diferenas entre preos e valoresPassando ento segunda situao que caracterizada como intercmbio

    desigual: tratam-se de transferncias de valor na circulao, de desvios dos preos internacionais efetivos em relao aos valores internacionais. Nesse caso, sim, h propriamente intercmbio desigual.20

    necessrio, entretanto, ir mais longe para caracterizar com maior preciso o que pode ser chamado de intercmbio desigual nesse plano, no sentido de ganhos e perdas resultantes das desigualdades entre pases com desigual desenvolvimento tecnolgico. Como vimos, h diversos exemplos de transferncias de valor no momento da venda trocas desiguais que so normais, isto , que ocorrem no interior de um mesmo pas, ou em relaes entre pases de desenvolvimento tecnolgico semelhante. Ou seja, que no tm relao com o tipo de desigualdade entre pases que caracteriza o intercmbio desigual.

    Um desses casos o da transformao dos valores em preos de produo. No h consenso entre os diversos autores quanto a se ela se verifica no plano internacional ou seja, se h formao de preos de produo internacionais ou se verificada parcialmente;21 mas o que importa aqui assinalar que as trans-ferncias de valor que porventura acontecerem nesse processo no constituem propriamente intercmbio desigual. Outro caso o da compra com descontos por parte do capital comercial. Se esses descontos fazem parte da lgica geral das relaes entre capitais industriais e capitais comerciais, tampouco se pode falar aqui em intercmbio desigual.

    O intercmbio desigual entre pases ocorrer, ento, se as transferncias de valor forem suficientemente sistemticas a favor ou contra um pas e se, o que

    20 Emmanuel (1969) um dos poucos autores que define o intercmbio desigual exclusivamente a partir das diferenas entre preos e valores internacionais na sua argumentao, as que importam so as provocadas pela existncia de salrios mais baixos nos pases dependentes. Ainda que em certos casos este raciocnio se aplique, a generalizao que ele faz, bem como sua explicao geral das diferenas de salrios e, mais ainda, as concluses polticas extradas por ele de sua anlise, so muito questionveis.

    21 Marini acredita que a partir da etapa imperialista do capitalismo h formao internacional de preos de produo (2000, p.158).

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    mais importante, elas se explicarem pelas desigualdades entre pases avanados e pases atrasados tecnologicamente.

    Uma explicao fundamental das desigualdades entre preos internacionais e valores internacionais a existncia de uma taxa de cmbio corrente que leva a preos inferiores aos valores internacionais nos pases dependentes e superio-res nos pases centrais. Embora a determinao das taxas de cmbio seja muito complexa e reflita, numa medida aprecivel, movimentos de capitais, podemos dizer que ela depende basicamente das produtividades dos diversos pases no setor de mercadorias comercializadas internacionalmente (tradables). Em geral, o crescimento da produtividade no setor de mercadorias no comercializadas internacionalmente (non-tradables), no qual os servios tm grande participao, muito mais lento do que no setor de tradables; isso faz que a diferena entre a produtividade no setor de tradables (maior) e a produtividade no setor de non--tradables (menor) cresa quando o nvel de produtividade de um pas se eleva. Essa a razo do afastamento das taxas de cmbio correntes e da taxa PPP nos pases dependentes. medida que a produtividade de um pas cresce, seu nvel de preos cresce tambm, e sua taxa de cmbio tende, portanto, a se apreciar. Esse fato chamado na literatura econmica de efeito Harrod-Balassa-Samuelson (Obstfeld e Rogoff, 1996, p.210-4).

    Como vimos, no caso de mercadorias especficas de cada pas (e o argumento pode ser estendido para mercadorias especficas de grupos de pases), podemos argumentar que seu valor internacional depende da produtividade mdia relativa do pas, considerando-se o conjunto de suas mercadorias, e no apenas os tradables. Logo, as taxas de cmbio correntes tendem a levar a preos internacionais inferiores.

    Um processo semelhante ocorre com os salrios: nos pases mais atrasados, eles tendem a ser mais baixos, tal como expressos internacionalmente, do que os que corresponderiam diferena nas foras produtivas mdias do trabalho de cada pas. Pode acontecer, alm disso, que em muitos casos eles sejam ainda mais baixos. Vrias razes podem explicar essa possibilidade; por exemplo, um pas mais atrasado, tendo mo de obra rural em processo de expulso do campo, pode ter um exrcito industrial de reserva maior. O rebaixamento adicional dos salrios pode ser usado para aumentar a competitividade dos produtos de exporta-o, levando ento a uma queda adicional dos seus preos. Marx fez referncia possibilidade de uma reduo dos salrios desse tipo (1988b, p.131), referncia essa citada por Marini (2000, p.177, nota 10).

    Essa uma maneira em que a hiptese de Emmanuel (intercmbio desigual a partir de salrios mais baixos nos pases dependentes) pode ser aceita; no necessrio para isso compartilhar todo seu quadro terico.

    Outro fator de intercmbio desigual a necessidade para pases mais atrasados de desvalorizarem sua moeda o que implica subvalorizar suas horas de trabalho para poder equilibrar seu balano de pagamentos. Isso significa que sua insero

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    no mercado mundial capitalista os obriga a ceder parte do valor produzido no pas, vendendo mercadorias abaixo de seu valor internacional. Do mesmo modo, se um pas pode vender suas mercadorias por um preo superior ao seu valor, por ter uma insero mais favorvel no comrcio internacional (tendncia superavitria no balano de pagamentos, controle de sistemas de distribuio etc.), estar se apropriando de parte do valor produzido em outros pases.

    O intercmbio desigual tambm pode ocorrer na venda de certos produtos semiacabados, ou mesmo acabados, por pases dependentes. O preo de venda dos produtores de pases mais atrasados pode ser baixo o bastante para permitir que capitais dos pases mais adiantados se apropriem do grosso da mais-valia. Muitos dados recentes indicam que os ganhos obtidos por capitais dos pases centrais por essa via e, do outro lado, as perdas nos pases dependentes podem ser enormes. Michel Chossudovsky cita diversos exemplos disso; assim, uma empresa de vesturio compra uma camiseta desenhada em Paris por entre US$ 3 e US$ 4 em Bangladesh, no Vietn ou na Tailndia, e a revende por um preo cinco a dez vezes maior (Chossudovsky, 1999, p.78-9).22 O livro de Naomi Klein, Sem logo, abunda de exemplos semelhantes. E o que mais importante: aproveitar esses tipos de ganho passou a ser uma estratgia central de diversas empresas, que mantm nos pases de origem as atividades de design, marketing e centralizao das vendas e deslocam a produo para o Terceiro Mundo (Klein, 2002).

    Essa enorme desigualdade explicada sobretudo pelo controle que a firma fundamentalmente comercial (comercial no sentido de que no produz de fato suas mercadorias) exerce sobre as firmas produtoras e sobre todo o circuito comercial.

    At aqui, tratamos do intercmbio desigual a partir das diferenas econmicas. Naturalmente, se levarmos em conta que os pases tecnicamente mais avanados so tambm imperialistas, e os tecnicamente mais atrasados so tambm depen-dentes, devemos incorporar na anlise elementos mais especificamente polticos. Os pases imperialistas podem forar atravs de meios polticos a reduo dos preos internacionais dos pases dependentes, e isso amplia as possibilidades de intercmbio desigual.

    Sem pretender tratar de modo extenso desse tema, mencionemos apenas uma das maneiras em que os pases dependentes tm perdido devido sua dependncia poltica e econmica. Como amplamente conhecido, o Banco Mundial e o FMI

    22 Chossudovsky faz uma observao importante, enquanto comenta outro exemplo: O preo de varejo das mercadorias produzidas no Terceiro Mundo com frequncia at dez vezes maior que aquele pelo qual foram importadas. Desse modo, um valor agregado correspondente criado de modo artificial dentro da economia de servios dos pases ricos, sem que ocorra nenhum tipo de produo material. Esse valor agregado ao PIB do pas rico. Por exemplo, o preo do varejo do caf sete a dez vezes mais alto do que o FOB e aproximadamente vinte vezes o pago para o produtor rural no Terceiro Mundo (ver Tabela 3.1) (Chossudovsky, 1999, p.77). Ou seja, o conhecido declnio do Terceiro Mundo no comrcio mundial , pelo menos em parte, falso: exagerado pelo fato de os fluxos comerciais oficiais no contabilizarem o tipo de transferncia de valor citado aqui.

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    tm imposto a diversos pases que recorrem a eles as chamadas polticas de ajuste estrutural. Uma das suas consequncias mais comuns a obrigao de aumentar as exportaes, para pagar tanto a dvida externa quanto as maiores importaes que se seguem a polticas de abertura comercial. Uma vez que essas polticas so impostas mais ou menos ao mesmo tempo para pases que tm caractersticas semelhantes, levam a que muitos tentem ampliar simultaneamente as vendas ex-ternas dos mesmos produtos. Obviamente, isso provoca uma queda drstica dos seus preos. Susan George e Fabrizio Sabelli analisam de forma detalhada como isso aconteceu, sobretudo para pases africanos, desde os anos 1980, no quadro da crise da dvida externa (George e Sabelli, 1994, p.93-113). Michel Chossudovsky (1999) e ric Toussaint (2002), entre outros, tambm analisam esse processo.

    Essas quedas dos preos por razes de poltica econmica constituram em algumas dcadas uma das principais variantes do intercmbio desigual. Os pre-os ficaram muito abaixo de seus valores. Alm disso, o esforo excepcional de exportar leva a uma depreciao adicional da taxa de cmbio, ampliando a perda comentada anteriormente: alm de vender muito barato, os pases presos nessa armadilha so obrigados a comprar ainda mais caro.

    Fica caracterizada, assim, a existncia de amplas possibilidades de intercmbio desigual de valor no comrcio internacional, em favor dos pases tecnicamente mais avanados e em detrimento dos pases tecnicamente mais atrasados.

    Toda essa discusso terica no dispensa, claro, a avaliao das implicaes prticas do intercmbio desigual. Sem pretender entrar nesse tema aqui, cabe fazer uma observao final. A conjuntura econmica atual tem propiciado uma situao excepcionalmente favorvel no comrcio internacional para os pases dependentes e, em particular, para o Brasil (principalmente com a elevao dos preos das commodities). As taxas de cmbio correntes tm permitido que as moedas dos pases dependentes venham tendo um valor mais alto que o usual, e ainda assim, em geral, sem grandes dficits na conta corrente do balano de pagamentos.23 Ainda assim, as taxas de cmbio correntes subestimam o valor dessas moedas em relao ao que deveriam valer segundo a PPP. Isso , como vimos antes, uma indicao de que est havendo alguma perda vinculada ao intercmbio desigual.

    Uma polmica em torno do intercmbio desigual guisa de concluso, interessante fazer um breve comentrio da crtica de

    Serra e Cardoso a Marini a propsito do intercmbio desigual, e da resposta de Marini, para depois dizer alguma coisa sobre a importncia do tema.

    A crtica mais severa de Serra e Cardoso ao uso por Marini do argumento do intercmbio desigual est na seguinte passagem:

    23 verdade que a situao do balano de pagamentos brasileiro j est deixando de ser cmoda, mas ela ainda menos desfavorvel do que em diversos outros momentos.

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    Em primeiro lugar, no entraremos aqui no problema da transferncia de valor atravs do comrcio exterior, assunto muito complicado que Marini d, com ligei-reza, por resolvido. Que a questo no simples o demonstra, entre outros, o fato de que no havendo mobilidade da fora de trabalho fica difcil estabelecer-se, em escala internacional, o conceito de tempo de trabalho socialmente necessrio, o qual, por sua vez, crucial como requisito para a operao da lei do valor. [...]O erro central da anlise, no sujeito s controvrsias que suscita a questo assi-nalada no pargrafo acima sobre se a lei do valor opera em escala internacional, consiste em supor, e no haveria por que faz-lo, que o aumento da produtividade na produo de bens manufaturados nos pases centrais implica na reduo da taxa de lucro na periferia. (Serra e Cardoso, 1979, p.49)

    Como em outros lugares de seu texto, Serra e Cardoso procuram ser morda-zes, desqualificando os raciocnios de Marini. Este acha curiosa a deciso dos dois autores de no entrar no tema da transferncia de valor atravs, ou a partir, do comrcio exterior, e com razo; de fato, eles no apenas no entram no tema da transferncia de valor como, dessa maneira evitam qualquer discusso do tema do intercmbio desigual propriamente dito. Antes dos pargrafos citados, ocuparam-se fundamentalmente da discusso da tese da deteriorao dos termos de intercmbio, tema relacionado com o intercmbio desigual, mas claramente distinto dele. Marini diz corretamente, por exemplo, que a questo da mobilidade internacional da fora de trabalho no condio para a vigncia da lei do valor, e tambm que Serra e Cardoso mostram ter um conhecimento muito rudimentar da teoria do valor (Marini, 2000, p.178-80). No entanto, parece-me que sua resposta nesse ponto no foi inteiramente satisfatria.

    Uma razo disso o fato de ele no distinguir entre as duas situaes em que se costuma falar de intercmbio desigual, como foi exposto antes. No caso de que ele se ocupa, a questo fundamental no a de transferncia de valor. Mas mais importante, a meu juzo, que h formas mais claras e mais fortes de fun-damentar sua posio criticada por Serra e Cardoso, ou seja, a posio segundo a qual o aumento da produtividade na produo de bens manufaturados nos pases centrais implica, sim, a reduo da taxa de lucro na periferia. Como vimos, o que torna desnecessrio repetir aqui o argumento, esse aumento na produtividade nos pases centrais leva diminuio do valor internacional das mercadorias produzi-das na periferia, desvaloriza o trabalho a realizado e, consequentemente, reduz a produo de valor e de mais-valia; logo, reduz, sim, a taxa de lucro.

    A contra-argumentao de Marini (ibidem, p.179-80) se centra no desconhe-cimento por parte de Serra e Cardoso de que movimentos de preos implicam em movimentos do valor. Trata-se de um argumento correto, mas que no toca no que mais importante nesse contexto a desvalorizao do trabalho na periferia, isto , a reduo de sua capacidade de produzir valor (valor internacional) a partir do atraso tecnolgico.

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  • Ruy Mauro Marini: dependncia e intercmbio desigual 103

    A crtica de Serra e Cardoso teve muita influncia no Brasil. Uma autora que, anos depois, procurou repensar a dependncia, chegou a referir-se a ela como uma crtica arrasadora e definitiva s posies de Marini (Goldenstein, 1994, p.34). No poderia haver juzo mais equivocado.

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  • 104 Crtica Marxista, n.33, p.83-104, 2011.

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