Artigo El País

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http://brasil.elpais.com/m/brasil/2015/03/16/opinion/ 1426515080_777708.html O maior risco para o PT, para além do Governo e do atual mandato, talvez não seja a multidão que ocupou as ruas do Brasil , mas a que não estava lá. São os que não estavam nem no dia 13 de março, quandomovimentos como CUT, UNE e MST organizaram uma manifestação que, apesar de críticas a medidas de ajuste fiscal tomadas pelo Governo, defendia a presidente Dilma Rousseff. Nem estavam no já histórico domingo, 15 de março, quando centenas de milhares de pessoas aderiram aos protestos , em várias capitais e cidades do país, em manifestações contra Dilma Rousseff articuladas nas redes sociais da internet, com bandeiras que defendiam o fim da corrupção, o impeachment da presidente e até uma aterradora, ainda que minoritária, defesa da volta da ditadura. São os que já não sairiam de casa em dia nenhum empunhando uma bandeira do PT, mas que também não atenderiam ao chamado das forças de 15 de março, os que apontam que o partido perdeu a capacidade de representar um projeto de esquerda – e gente de esquerda. É essa herança do PT que o Brasil, muito mais do que o partido, precisará compreender. E é com ela que teremos de lidar durante muito mais tempo do que o desse mandato. MAIS INFORMAÇÕES FOTOGALERIA Protestos neste domingo Uma multidão protesta contra o Governo Dilma Três grupos organizam os atos anti-Dilma, em meio a divergências Após 12 anos de governo do PT, parte da esquerda brasileira se vê exilada 'Aos que defendem a volta da ditadura', por ELIANE BRUM 'Belo Monte: a anatomia de um etnocídio', por E. BRUM Tenho dúvidas sobre a tecla tão batida por esses dias do Brasil polarizado. Como se o país estivesse dividido em dois polos opostos e claros . Ou, como querem alguns, uma disputa de ricos contra pobres. Ou, como querem outros, entre os cidadãos contra a corrupção e os beneficiados pela corrupção. Ou entre os a favor e os contra o Governo. Acho que a

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http://brasil.elpais.com/m/brasil/2015/03/16/opinion/1426515080_777708.html

O maior risco para o PT, para alm do Governo e do atual mandato, talvez no sejaa multido que ocupou as ruas do Brasil, mas a que no estava l. So os que no estavam nem no dia 13 de maro, quandomovimentos como CUT, UNE e MST organizaram uma manifestaoque, apesar de crticas a medidas de ajuste fiscal tomadas pelo Governo, defendia a presidente Dilma Rousseff. Nem estavam no j histrico domingo, 15 de maro,quando centenas de milhares de pessoas aderiram aos protestos, em vrias capitais e cidades do pas, em manifestaes contra Dilma Rousseff articuladas nas redes sociais da internet, com bandeiras que defendiam o fim da corrupo, o impeachment da presidente e at uma aterradora, ainda que minoritria, defesa da volta da ditadura. So os que j no sairiam de casa em dia nenhum empunhando uma bandeira do PT, mas que tambm no atenderiam ao chamado das foras de 15 de maro, os que apontam que o partido perdeu a capacidade de representar um projeto de esquerda e gente de esquerda. essa herana do PT que o Brasil, muito mais do que o partido, precisar compreender. E com ela que teremos de lidar durante muito mais tempo do que o desse mandato.MAIS INFORMAES FOTOGALERIAProtestos neste domingo Uma multido protesta contra o Governo Dilma Trs grupos organizam os atos anti-Dilma, em meio a divergncias Aps 12 anos de governo do PT, parte da esquerda brasileira se v exilada 'Aos que defendem a volta da ditadura', por ELIANE BRUM 'Belo Monte: a anatomia de um etnocdio', por E. BRUMTenho dvidas sobre a tecla to batida por esses dias do Brasil polarizado.Como se o pas estivesse dividido em dois polos opostos e claros. Ou, como querem alguns, uma disputa de ricos contra pobres. Ou, como querem outros, entre os cidados contra a corrupo e os beneficiados pela corrupo. Ou entre os a favor e os contra o Governo. Acho que a narrativa da polarizao serve muito bem a alguns interesses, mas pode ser falha para a interpretao da atual realidade do pas. Se fosse simples assim, mesmo com a tese do impeachment nas ruas, ainda assim seria mais fcil para o PT.Algumas consideraes prvias. Se no segundo turno das eleies de 2014,Dilma Rousseff ganhou por uma pequena margem 54.501.118 votos contra 51.041.155 de Acio Neves , no h dvida de que ela ganhou. Foi democraticamente eleita, fato que deve ser respeitado acima de tudo. No existe at esse momentonenhuma base para impeachment, instrumento traumtico e serssimo que no pode ser manipulado com leviandade, nem mesmo no discurso. Quem no gostou do resultado ou se arrependeu do voto, pacincia, vai ter de esperar a prxima eleio. Os resultados valem tambm quando a gente no gosta deles. E tentar o contrrio, sem base legal, para irresponsveis ou ignorantes ou golpistas.Noresultado das eleiesampliou-se a ressonncia da tese de um pas partido e polarizado. Mas no me parece ser possvel esquecer que outros 37.279.085 brasileiros no escolheram nem Dilma nem Acio, votando nulo ou branco e, a maior parte, se abstendo de votar. muita gente e muita gente que no se sentia representada por nenhum dos dois candidatos, pelas mais variadas razes, esquerda e tambm direita, o que complica um pouco a tese da polarizao. Alm das divises entre os que se polarizariam em um lado ou outro, h mais atores no jogo que no esto nem em um lado nem em outro. E no to fcil compreender o papel que desempenham. No mesmo sentido, pode ser muito arriscado acreditar que quem estava nos protestos neste domingo eram todoseleitores de Acio Neves. A rua , historicamente, o territrio das incertezas e do incontrolvel.Na tese do Brasil polarizado, onde ficam os mais de 37 milhes que no votaram nem em Dilma nem em Acio?H lastro na realidade para afirmar tambm que uma parte dos que s aderiram Dilma Rousseff no segundo turno era composta por gente que acreditava em duas teses amplamente esgrimidas na internet s vsperas da votao: 1) a de que Dilma, assustada por quase ter perdido a eleio,em caso de vitria faria uma guinada esquerda, retomando antigas bandeiras que fizeram do PT o PT; 2) a de votar em Dilma para manter as conquistas sociais e evitar o mal maior, ento representado por Acio e pelo PSDB. Para estes, Dilma Rousseff no era a melhor opo, apenas a menos ruim para o Brasil. Equem pretendia votar branco, anular o voto ou se absterseria uma espcie de traidor da esquerda e tambm do pas e do povo brasileiro, ou ainda um covarde, acusaes que ampliaram, s vsperas das eleies, a ciso entre pessoas que costumavam lutar lado a lado pelas mesmas causas. Neste caso, escolhia-se ignorar, acredito que mais por desespero eleitoral do que por convico, que votar nulo, branco ou se abster tambm um ato poltico.Faz sentido suspeitar que uma fatia significativa destes que aderiram Dilma apenas no segundo turno, que ou esperavam uma guinada esquerda ou evitar o mal maior, ou ambos, decepcionaram-se com o seu voto depois da escolha de ministros comoKtia AbreueJoaquim Levy, direita no espectro poltico, assim como com medidas que afetaram os direitos dos trabalhadores. Assim, se a eleio fosse hoje, provvel que no votassem nela de novo. Esses arrependidos esquerda aumentariam o nmero de eleitores que, pelas mais variadas razes, votaram em branco, anularam ou no compareceram s urnas, tornando maior o nmero de brasileiros que no se sentem representados por Dilma Rousseff e pelo PT, nem se sentiriam representados por Acio Neves e pelo PSDB.Esses arrependidos esquerda, assim como todos aqueles que nem sequer cogitaram votar em Dilma Rousseff nem em Acio Neves porque se situam esquerda de ambos, tampouco se sentem identificados com qualquer um dosgrupos que foi para as ruas no domingo contra a presidente. Para estes, no existe a menor possibilidade de ficar ao lado de figurascomo o deputado federal Jair Bolsonaro (PP)ou de defensores da ditadura militar ou mesmo dePaulinho da Fora. Mas tambm no havia nenhuma possibilidade de andar junto com movimentos como CUT, UNE e MST, que para eles pelegaram quando o PT chegou ao poder: deixaram-se cooptar e esvaziaram-se de sentido, perdendo credibilidade e adeso em setores da sociedade que costumavam apoi-los.No h hoje uma figura nacional para ocupar o lugar de representao da esquerdaEssa parcela da esquerda que envolve desde pessoas mais velhas, que historicamente apoiaram o PT, e muitos at que ajudaram a constru-lo, mas que se decepcionaram, assim como jovens filhos desse tempo, em que a ao poltica precisa ganhar horizontalidade e se construir de outra maneira e com mltiplos canais de participao efetiva no encontrou nenhum candidato que a representasse. No primeiro turno, dividiram seus votos entre os pequenos partidos de esquerda, como o PSOL,ou votaram em Marina Silva, em especial por sua compreenso da questo ambiental como estratgica, num mundo confrontado com a mudana climtica, mas votaram com dvidas. No segundo turno, no se sentiram representados por nenhum dos candidatos.Marina Silva foi quem chegou mais perto de ser uma figura com estatura nacional de representao desse grupo esquerda, mais em 2010 do que em 2014. Mas fracassou na construo de uma alternativa realmente nova dentro da poltica partidria. Em parte por no ter conseguido registrar seu partido a tempo de concorrer s eleies,o que a fez compor com o PSB, sigla bastante complicadapara quem a apoiava, e assumir a cabea de chapa por conta de uma tragdia que nem o mais fatalista poderia prever; em partepor conta da campanha mentirosa e de baixssimo nvelque o PT fez contra ela; em parte por equvocos de sua prpria campanha, comoa mudana do captulo do programa em que falava de sua poltica para os LGBTs, recuo que, alm de indigno, s ampliou e acentuou a desconfiana que muitos j tinham com relao interferncia de sua f evanglica emquestes caras como casamento homoafetivo e aborto; em parte porque escolheu ser menos ela mesma e mais uma candidata que supostamente seria palatvel para estratos da populao que precisava convencer. So muitas e complexas as razes.O que aconteceu com Marina Silva em 2014 merece uma anlise mais profunda. O fato que, embora ela tenha ganhado, no primeiro turno de 2014, cerca de 2,5 milhes de votos a mais do que em 2010, seu capital poltico parece ter encolhido, e o partido que est construindo, a Rede Sustentabilidade, j sofreu deseres de peso. Talvez ela ainda tenha chance de recuperar o lugar que quase foi seu, mas no ser fcil. Esse um lugar vago nesse momento.H uma parcela politizada, esquerda, que hoje no se sente representada nem pelo PT nem pelo PSDB, no participou de nenhum dos panelaos nem de nenhuma das duas grandes manifestaes dos ltimos dias,a de 15 de maro vrias vezes maior do que a do dia 13. , porm, muito atuante politicamente em vrias reas e tem grande poder de articulao nas redes sociais. No tenho como precisar seu tamanho, mas no desprezvel. com essa parcela de brasileiros, que votou em Lula e no PT por dcadas, mas que deixou de votar, ou de jovens que esto em movimentos horizontais apartidrios, por causas especficas, que apontam o que de fato deveria preocupar o PT, porque esta era ou poderia ser a sua base, e foi perdida.O partido das ruas perdeu as ruas porque acreditou que no precisava mais caminhar por elasA parcela de esquerda que no bateria panelas contra Dilma Rousseff, mas tambm no a defenderia, aponta a falncia do PT em seguir representando o que representou no passado. Aponta que, em algum momento,para muito alm do Mensalo e da Lava Jato, o PT escolheu se perder da sua base histrica, numa mistura de pragmatismo com arrogncia. possvel que o PT tenha deixado de entender o Brasil. Envelhecido, no da forma desejvel, representada por aqueles que continuam curiosos em compreender e acompanhar as mudanas do mundo, mas envelhecido da pior forma, cimentando-se numa conjuntura histrica que j no existe. E que no voltar a existir. Essa aposta arriscada precisa que a economia v sempre bem; quando vai mal, o cho desaparece.Fico perplexa quando lideranas petistas, e mesmo Lula, perguntam-se, ainda que retoricamente, por que perderam as ruas. Ora, perderam porque o PT gira em falso. O partido das ruas perdeu as ruas menos porque foi expulso, mais porque se esqueceu de caminhar por elas. Ou, pior, acreditou que no precisava mais. Nesse contexto, Dilma Rousseff s a personagem trgica da histria, porque em algum momentoLula, com o aval ativo ou omisso de todos os outros, achou que poderia eleger uma presidente que no gosta de fazer poltica. Estava certo a curto prazo, podia. Mas sempre h o dia seguinte.No adianta ficar repetindo ques bateu panela quem da elite. Pode ter sido maior o barulho nos bairros nobres de So Paulo, por exemplo, mas basta um pequeno esforo de reportagem para constatar que houve batuque de panelas tambm em bairros das periferias. Ainda que as panelas batessem s nos bairros dos ricos e da classe mdia, no um bom caminho desqualificar quem protesta, mesmo que voc ou eu no concordemos com a mensagem, com termos como sacada gourmet ou panelas Le Creuset. Todos tm direito de protestar numa democracia e muitos dos que ridicularizam quem protestou pertencem mesma classe mdia e talvez tenham uma ou outra panelinha Le Creuset ou at pagou algumas prestaes a mais no apartamento para ter uma sacada gourmet, o que no deveria torn-los menos aptos nem a protestar nem a criticar o protesto.Nos panelaos, s o que me pareceu inaceitvelfoi chamar a presidente de vagabunda ou de vaca, no apenas porque fundamental respeitar o seu cargo e aqueles que a elegeram, mas tambm porque no se pode chamar nenhuma mulher dessa maneira. E, principalmente, porque o vaca e o vagabunda apontam a quebra do pacto civilizatrio. nesses xingamentos, janela a janela, que est colocado o rompimento dos limites, o esgaramento do lao social. Assim como, no domingo de 15 de maro, essa ruptura esteve colocada naqueles que defendiam a volta da ditadura. No h desculpa para desconhecer queo regime civil militar que dominou o Brasil pela forapor 21 anostorturou gente, inclusive crianas, e matou gente. Muita gente. Assim, essa defesa inconstitucional e criminosa. Com isso, sim, precisamos nos preocupar, em vez de misturar tudo numa desqualificao rasteira. urgente que a esquerda faa uma crtica (e uma autocrtica) consistente, se quiser ter alguma importncia nesse momento agudo do pas.To ou mais importante do que a corrupo, que no foi inventada pelo PT no Brasil, o fato de o partido ter trado algumas de suas bandeiras de identidadeTambm no adianta continuar afirmando que quem foi para as ruas aquela fatia da populao que contra as conquistas sociais promovidas pelo governo Lula,que tirou da misria milhes de brasileirose fez com que outros milhes ascendessem ao que se chamou de classe C. Pessoas as quais preciso respeitar mais pelo seu passado do que pelo seu presente ficaram repetindo na ltima semana que quem era contra o PT no gostava de pobres nos aeroportos ou estudando nas universidades, entre outras mximas. fato que existem pessoas incomodadas com a mudana histrica que o PT reconhecidamente fez, mas dizer que toda oposio ao PT e ao Governo composta por esse tipo de gente, ou cegueira ou m f.Num momento to acirrado, todos que tm expresso pblica precisam ter muito mais responsabilidade e cuidado para no aumentar ainda mais o clima de dio e disseminar preconceitos j se provou um caminho perigoso. At a negao deve ter limites. E a negao pior no para esses ricos caricatos, mas para o PT, que j passou da hora de se olhar no espelho com a inteno de se enxergar. De novo, esse discurso sem rastro na realidade apenas gira em falso e piora tudo. Mesmo para a propaganda e para o marketing, h limites para a falsificao da realidade. Se para fazer publicidade, a boa aquela capaz de captar os anseios do seu tempo. tambm por isso que me parece que o grande problema para o PT no quem foi para as ruas no domingo, nem quem bateu panela, mas quem no fez nem uma coisa nem outra, mas tambm no tem a menor inteno de apoi-lo, embora j o tenha feito no passado ou teria feito hoje se o PT tivesse respeitado as bandeiras do passado. Estes apontam o que o PT perdeu, o que j no , o que possivelmente no possa voltar a ser.O PT traiu algumas de suas bandeiras de identidade, aquelas que fazem com que em seu lugar seja preciso colocar mscaras que no se sustentam por muito tempo. Traiu no apenas por ter aderido corrupo, que obviamente no foi inventada por ele na poltica brasileira, fato que no diminui em nada a sua responsabilidade. A sociedade brasileira, como qualquer um que anda por a sabe, corrupta da padaria da esquina ao Congresso. Mas ser um partido tico era um trao forte da construo concreta e simblica do PT, era parte do seu rosto, e desmanchou-se. Embora ainda existam pessoas que merecem o mximo respeito no PT, assim como ncleos de resistncia em determinadas reas, secretarias e ministrios, e que precisam ser reconhecidos como tal, o partido traiu causas de base, aquelas que fazem com que se desconhea. Muitos dos que hoje deixaram de militar ou de apoiar o PT o fizeram para serem capazes de continuar defendendo o que o PT acreditava. Assim como compreenderam que o mundo atual exige interpretaes mais complexas. Chamar a estes de traidores ou de fazer o jogo da direita de uma boalidade assombrosa. At porque, para estes, o PT a direita.A sntese das contradies e das traies do PT no poder no a Petrobras, mas Belo MonteA parcela esquerda que preferiu ficar fora de manifestaes a favor ou contra lembra que to importante quandodiscutir a corrupo na Petrobras debater a opo por combustveis fsseis que a Petrobras representa, num momento em que o mundo precisa reduzir radicalmente suas emisses de gases do efeito estufa. Lembra que estimular a compra de carros como o Governo federal fez contribuir com o transporte privado individual motorizado, em vez de investir na ampliao do transporte pblico coletivo, assim como no uso das bicicletas. tambm ir na contramo ao piorar as condies ambientais e de mobilidade, que costumam mastigar a vida de milhares de brasileiros confinados por horas em trens e nibus lotados num trnsito que no anda nas grandes cidades. Lembra ainda que estimular o consumo de energia eltrica, como o Governo fez, uma irresponsabilidade no s econmica, mas socioambiental, j que os recursos so caros e finitos. Assim como olhar para o colapso da gua visando apenas obras emergenciais, mas sem se preocupar com a mudana permanente de paradigma do consumo e sem se preocupar com o desmatamento tanto da floresta amaznica quanto do Cerrado quanto das nascentes do Sudeste e dos ltimos redutos sobreviventes de Mata Atlntica fora e dentro das cidades um erro monumental a mdio e a longo prazos.Os que no bateram panelas contra o PT e que no bateriam a favor lembram que a forma de ver o pas (e o mundo) do lulismo pode ser excessivamente limitada para dar conta dos vrios Brasis. Povos tradicionais e povos indgenas, por exemplo, no cabem nem na categoria pobres nem na categoria trabalhadores. Mas, ao fazer grandes hidreltricas na Amaznia, ao ser o governo de Dilma Rousseff o que menos demarcou terras indgenas, assim como teve desempenho pfio na criao de reservas extrativistas e unidades de conservao, ao condenar os povos tradicionais ao etnocdio ou expulso para a periferia das cidades, em pobres que so convertidos aqueles que nunca se viram nesses termos. Em parte, a construo objetiva e simblica de Lula e sua forma de ver o Brasil e o mundo encarna essa contradio (escrevi sobre isso aqui), que o PT no foi capaz nem quis ser capaz de superar no poder. Em vez de enfrent-la, livrou-se dos que a apontavam, caso de Marina Silva.O PT no Governo priorizou um projeto de desenvolvimento predatrio, baseado em grandes obras, que deixou toda a complexidade socioambiental de fora. Escolha inadmissvel num momento em que a ao do homem como causa do aquecimento global s descartada por uma minoria de cticos do clima, na qual se inclui o atual ministro de Cincia e Tecnologia, Aldo Rebelo, mais uma das inacreditveis escolhas de Dilma Rousseff. A sntese das contradies e tambm das traies do PT no poder no a Petrobras,mas Belo Monte. Sobre a usina hidreltrica j pesa a denncia de que sa construtora Camargo Corra teria pagado mais de R$ 100 milhes em propinas para o PT e para o PMDB. para Belo Monte que o pas precisaria olhar com muito mais ateno. na Amaznia, onde o PT reproduziu a viso da ditadura ao olhar para a floresta como um corpo para a explorao, que as fraturas do partido ao chegar ao poder se mostram em toda a sua inteireza. E tambm l que a falcia de que quem critica o PT porque no gosta de pobre vira uma piada perversa.A sorte do PT que a Amaznia longe para a maioria da populao e menos contada pela imprensa do que deveria, ou contada a partir de uma viso de mundo urbana que no reconhece no outro nem a diferena nem o direito de ser diferente. Do contrrio,as barbaridades cometidas pelo PTcontra os trabalhadores pobres, os povos indgenas e as populaes tradicionais, e contra uma floresta estratgica para o clima, para o presente e para o futuro, seriam reconhecidas como o escndalo que de fato so. tambm disso que se lembram aqueles que no gritaram contra Dilma Rousseff, mas tambm no a defenderiam.Lembram tambm que o PT no fez a reforma agrria; ficou aqum na sade e na educao, transformandoBrasil, Ptria Educadoranum slogan natimorto; avanou muito pouco numa poltica para as drogas que v alm da proibio e da represso, modelo que encarcera milhares de pequenos traficantes num sistema prisional sobre o qualo ministro da Justia, Jos Eduardo Cardozo, j disse que prefere morrer a cumprir pena; cooptou grande parte dos movimentos sociais (que se deixaram cooptar por convenincia, importante lembrar); priorizou a incluso social pelo consumo, no pela cidadania; recuou em questes como o kit anti-homofobia e o aborto; se aliou ao que havia de mais viciado na poltica brasileira e aos velhos cls do coronelismo, como os Sarney.Isso to ou mais importante do que a corrupo, sobre a qual sempre se pode dizer que comeou bem antes e atravessa a maioria dos partidos, o que tambm verdade. Olhar com honestidade para esse cenrio depois de mais de 12 anos de governo petista no significa deixar de reconhecer os enormes avanos que o PT no poder tambm representou. Mas os avanos no podem anular nem as traies, nem os retrocessos, nem as omisses, nem os erros. preciso enfrentar a complexidade, por toda as razes e porque ela diz tambm sobre a falncia do sistema poltico no qual o pas est atolado, para muito alm de um partido e de um mandato.H algo que o PT sequestrou de pelo menos duas geraes de esquerda e essa a sua herana mais maldita. E a que vai marcar dcadas, no um mandato. Tenho entrevistado pessoas que ajudaram a construir o PT, que fizeram dessa construo um projeto de vida, concentradas em lutas especficas. Essas pessoas se sentem tradas porque o partido rasgou suas causas e se colocou ao lado de seus algozes. Mas no tradas como algum de 30 anos pode se sentir trado em seus ltimos votos. Este tem tempo para construir um projeto a partir das novas experincias de participao poltica que se abrem nesse momento histrico muito particular. Os mais velhos, os que estiveram l na fundao, no. Estes sentem-se trados como algum que no tem outra vida para construir e acreditar num novo projeto. algo profundo e tambm brutal, a prpria vida que passa a girar em falso, e justamente no momento mais crucial dela, que perto do fim ou pelo menos nas suas ltimas dcadas. um fracasso tambm pessoal, o que suas palavras expressam um testemunho de aniquilao. Algumas dessas pessoas choraram neste domingo, dentro de casa, ao assistir pela TV o PT perder as ruas, como se diante de um tipo de morte.O sequestro dos sonhos de pelo menos duas geraes de esquerda a herana mais maldita do PT, ainda por ser desvendada em toda a sua gama de sentidos para o futuroO PT, ao trair alguns de seus ideias mais caros, escavou um buraco no Brasil. Um bem grande, que ainda levar tempo para virar marca. No adianta dizer que outros partidos se corromperam, que outros partidos recuaram, que outros partidos se aliaram a velhas e viciadas raposas polticas. verdade. Mas o PT tinha um lugar nico no espectro partidrio da redemocratizao, ocupava um imaginrio muito particular num momento em que se precisava construir novos sentidos para o Brasil. Era o partido diferente. Quem acreditou no PT esperou muito mais dele, o que explica o tamanho da dor daqueles que se desfiliaram ou deixaram de militar no partido. A decepo sempre proporcional esperana que se tinha depositado naquele que nos decepciona. essa herana que precisamos entender melhor, para compreender qual a profundidade do seu impacto no pas. E tambm para pensar em como esse vcuo pode ser ocupado, possivelmente no mais por um partido, pelo menos no um nos moldes tradicionais. Como se sabe, o vcuo no se mantm. Quem acredita em bandeiras que o PT j teve precisa parar de brigar entre si assim como de desqualificar todos os outros como coxinhas e encontrar caminhos para ocupar esse espao, porque o momento limite. O PT deve sociedade brasileira um ajuste de contas consigo mesmo, porque o discurso dos pobres contra ricos j virou fumaa. No d para continuar desconectado com a realidade, que s uma forma estpida de negao.Para o PT, a herana mais maldita que carrega o silncio daqueles que um dia o apoiaram, no momento em que perde as ruas de forma apotetica. O PT precisa acordar, sim. Mas a esquerda tambm.Eliane Brum escritora, reprter e documentarista. Autora dos livros de no ficoColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ningum v, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentose do romanceUma Duas. Site:desacontecimentos.comEmail:[email protected]:@brumelianebrum