Art - Construção Do Pensamento Critico Em Dança Contemporanea - Laura

15
64 Construção de pensamento crítico em Dança Contemporânea Laura Junqueira Bruno Mestranda em Artes Cênicas/USP Área de Concentração: Teoria e Prática do Teatro Orientadora: Maria Helena Franco de Araújo Bastos Bolsista CAPES Artista do Projeto DR e pesquisadora do Núcleo Tríade Resumo: O objetivo da pesquisa é contribuir para o estabelecimento do campo de estudos teórico-críticos em dança contemporânea no Brasil. Propõe-se a fazer uma revisão bibliográfica das obras seminais de Ramsay Burt, Judson Dance Theater performative traces; André Lepecki, Exhausting dance performance and the politics of movement, e Andrew Hewitt, Social choreography ideology as performance in dance and everyday movement para, a partir desta revisão, localizar tais debates na cena contemporânea paulistana. Cada uma destas obras estabelece um diálogo epistemológico com a produção artística contemporânea. Pretende-se demonstrar como tais discussões podem ser reconhecidas na produção local, articulando cada uma delas a uma obra da dança contemporânea paulistana. O estágio atual em que a pesquisa se encontra e será compartilhada é o da revisão bibliográfica das obras citadas. Palavras-chave: arte, crítica, teoria. Title: Construction of critical thinking in Contemporary Dance Abstract: The research aims to contribute to the establishment of the field of theoretical and critical studies in contemporary dance in Brazil. It is proposed to do a literature review of the seminal works of Ramsay Burt, Judson Dance Theater performative traces; André Leek, Exhausting Dance performance and the politics of movement and Andrew Hewitt, Social choreography the ideology in dance performance and everyday movement and, from this review, to find such debates in the contemporary scene in São Paulo. Each of these works establishes an epistemological dialogue with the contemporary artistic production. We intend to demonstrate how such discussions can be acknowledged in local production, linking each to a work of contemporary dance in São Paulo. The current stage of the research, in which it will be shared, is the literature review of the mentioned works. Keywords: art, criticism, theory Título: Construcción de pensamiento crítico en Danza Contemporánea Resumen: El objetivo de esta investigación es contribuir al establecimiento del campo de estudios teóricos y críticos en danza contemporánea en Brasil. Se propone hacer una revisión bibliográfica de los trabajos seminales de Ramsay Burt, Judson Dance Theater performative traces, André Lepecki, Exhausting dance performance and the politics of

description

dança

Transcript of Art - Construção Do Pensamento Critico Em Dança Contemporanea - Laura

  • 64

    Construo de pensamento crtico em Dana Contempornea

    Laura Junqueira Bruno

    Mestranda em Artes Cnicas/USP

    rea de Concentrao: Teoria e Prtica do Teatro

    Orientadora: Maria Helena Franco de Arajo Bastos

    Bolsista CAPES

    Artista do Projeto DR e pesquisadora do Ncleo Trade

    Resumo: O objetivo da pesquisa contribuir para o estabelecimento do campo de

    estudos terico-crticos em dana contempornea no Brasil. Prope-se a fazer uma

    reviso bibliogrfica das obras seminais de Ramsay Burt, Judson Dance Theater performative traces; Andr Lepecki, Exhausting dance performance and the politics of movement, e Andrew Hewitt, Social choreography ideology as performance in dance and everyday movement para, a partir desta reviso, localizar tais debates na cena

    contempornea paulistana. Cada uma destas obras estabelece um dilogo epistemolgico

    com a produo artstica contempornea. Pretende-se demonstrar como tais discusses

    podem ser reconhecidas na produo local, articulando cada uma delas a uma obra da

    dana contempornea paulistana. O estgio atual em que a pesquisa se encontra e ser

    compartilhada o da reviso bibliogrfica das obras citadas.

    Palavras-chave: arte, crtica, teoria.

    Title: Construction of critical thinking in Contemporary Dance

    Abstract: The research aims to contribute to the establishment of the field of theoretical

    and critical studies in contemporary dance in Brazil. It is proposed to do a literature

    review of the seminal works of Ramsay Burt, Judson Dance Theater performative traces; Andr Leek, Exhausting Dance performance and the politics of movement and Andrew Hewitt, Social choreography the ideology in dance performance and everyday movement and, from this review, to find such debates in the contemporary scene in So

    Paulo. Each of these works establishes an epistemological dialogue with the

    contemporary artistic production. We intend to demonstrate how such discussions can be

    acknowledged in local production, linking each to a work of contemporary dance in So

    Paulo. The current stage of the research, in which it will be shared, is the literature review

    of the mentioned works.

    Keywords: art, criticism, theory

    Ttulo: Construccin de pensamiento crtico en Danza Contempornea

    Resumen: El objetivo de esta investigacin es contribuir al establecimiento del campo de

    estudios tericos y crticos en danza contempornea en Brasil. Se propone hacer una

    revisin bibliogrfica de los trabajos seminales de Ramsay Burt, Judson Dance Theater performative traces, Andr Lepecki, Exhausting dance performance and the politics of

  • 65

    movement y Hewitt Andrew, Social choreography ideology as performance in dance and everyday movement para, a partir de esta revisin, encontrar este tipo de debates en la

    escena contempornea de So Paulo. Cada una de estas obras establece un dilogo

    epistemolgico con la produccin artstica contempornea. Tenemos la intencin de

    demostrar cmo tales discusiones pueden ser reconocidas en la produccin local,

    vinculando cada una de ellas a una obra de danza contempornea en Sao Paulo. La etapa

    actual en que la investigacin se encuentra y que ser compartida, es la revisin

    bibliogrfica de las obras citadas.

    Palabras-clave: arte, crtica, teora

    A ignio desta pesquisa foi dada pelo desejo de contextualizar o debate acerca

    da dana contempornea em que o Projeto DR, do qual fao parte, se insere. Em uma

    retrospectiva sobre a produo de dana brasileira em 2009, a professora e crtica de

    dana Helena Katz afirma em seu balano anual no Caderno 2 do jornal O Estado de S.

    Paulo:

    Nas suas criaes, muitos artistas passaram a priorizar a

    investigao sobre seus processos. Dentre eles destacou-se o Projeto DR, de

    So Paulo. Deixando claro o que pretendem, chamaram seu espetculo, fruto

    da colaborao com Alejandro Ahmed (Cena 11, de Florianpolis) e Georgette

    Fadel (Cia. So Jorge de Variedades, de So Paulo), de Ensaio (KATZ, 2009, p. D19).

    Em crtica, no mesmo veculo, sobre outro espetculo do Projeto DR, Episdico,

    a autora pontua:

    Os assuntos so os mesmos presentes na maior parte da produo

    contempornea. L esto as questes em torno da ressignificao da funo do

    diretor e dos intrpretecolaboradores; a discusso sobre manipulao, hierarquia e poder nos processos de criao; a problematizao sobre autoria e

    colaborao; como construir personagens que se comuniquem com clareza; o

    que sucede quando a informao criada em um corpo precisa ser aprendida por

    um outro tudo isso desenvolvido em situaes de timing preciso e roteiro bem resolvido (KATZ, 2009, p. D8).

    As pontuaes feitas por Katz sobre o trabalho do Projeto DR identificam que as

    questes centrais de sua prtica artstica inserem-se em um contexto mais amplo. Ao

  • 66

    analisar tal contexto mais amplo, sempre no mesmo veculo, Katz afirma sobre o

    Programa Rumos Dana do Instituto Ita cultural, coordenado por Snia Sobral:

    Ao dar visibilidade nacional para o fato de que a pesquisa e so os

    seus processos um dos principais eixos da dana contempornea que se cria no

    Brasil de agora, deixa de ser um festival em ponto pequeno e redefine a sua

    funo com maior propriedade (KATZ, 2010, p. D18).

    J ao escrever sobre o Festival Contemporneo de Dana, a autora pontua:

    [...] dirigido por Adriana Grechi e Amaury Cacciacaro Filho, que

    acaba de realizar sua terceira edio na Galeria Olido, se mantm fiel ao

    formato e tamanho a que se props desde a sua criao, em 2008. Deseja

    comunicar-se com um pblico informado, promovendo seu contato com

    artistas vinculados, de diferentes formas, produo de pensamento crtico em

    dana (KATZ, 2010, p. D6).

    O que significa reconhecer que algumas questes so comuns a uma parcela da

    produo contempornea brasileira? Localiz-las em um contexto abrangente implica em

    reconhecer que uma manifestao esttica nunca se realiza isoladamente, mas parte

    constituinte de um debate formulado por uma rede de prticas artsticas.

    Recentes publicaes sobre dana vm se debruando criticamente sobre a

    produo contempornea. Ramsay Burt, em Judson Dance Theater Performative traces

    expe a conexo entre a histria da dana, ao evocar aquele movimento e a recente

    produo europeia. J Andr Lepecki em Exhausting dance Performance and the

    politics of movement questiona a isonomia moderna entre dana e movimento. Andrew

    Hewitt, em Social choreography Ideology as performance in dance and everyday

    movement, examina a relao entre movimento cotidiano e movimento estetizado

    considerando que toda ao performativa ideolgica.

    Entretanto, importante salientar que a contemporaneidade do objeto faz com

    que a produo bibliogrfica sobre o assunto seja recente e, sobretudo no campo

    especfico da dana de tradio acadmica relativamente mais curta , pouco numerosa.

    Ao pesquisar uma bibliografia brasileira que abordasse as questes estticas da

    produo artstica contempornea, deparei-me com a praticamente inexistncia de

  • 67

    publicaes locais. No caso do Brasil, provavelmente os efeitos da somatria da

    contemporaneidade do objeto com a recente tradio acadmica so ainda mais

    flagrantes. Basta observar que h apenas um nico programa de ps-graduao

    inteiramente dedicado linguagem da dana (PPGDana/UFBA), estando todas as outras

    pesquisas na rea abrigadas em departamentos afins. Um campo necessitado de

    contribuies, portanto? Como contribuir para esta produo?

    Prope-se fazer uma reviso bibliogrfica das publicaes internacionais

    supracitadas para, posteriormente, indicar possveis conexes entre as questes por elas

    abordadas e algumas obras da recente produo de dana paulistana. Pretende-se, dessa

    maneira, contribuir para o estabelecimento de uma reflexo terico-esttica acadmica

    sobre a produo artstica brasileira, contextualizando-a em uma problemtica mais

    ampla da dana contempornea atual. O desejo de estabelecer uma discusso esttica com

    a produo artstica local permanece como a motivao mais forte para a realizao desta

    pesquisa. Os recentes estudos crticos de Burt, Lepecki e Hewitt evidenciam a atualidade

    da discusso entre teoria, crtica e a produo de dana contempornea, presente na cena

    paulistana (e brasileira), muito afinada com as discusses propostas pelos autores.

    Parece-me, e espero demonstrar, que ser uma contribuio vlida estabelecer um dilogo

    com as obras destes autores, que examinam de que maneiras a dana tem questionado a si

    prpria, em uma permanente tenso com o mundo em que produzida. Talvez nesta

    tenso esteja a problemtica relevante para a questo anteriormente colocada: sobre a

    dimenso crtica que parte da recente produo de dana contempornea informa.

    Partindo deste recorte crtico, prope-se localizar na cena paulistana esta problemtica;

    apresentando como tal discurso formulado esteticamente.

    Se a dimenso crtica na linguagem da dana inerente a uma parcela da

    produo contempornea, certamente esta encontra modos diversos de se organizar

    esteticamente no hemisfrio Sul para empregar o termo usado por Boaventura Souza

    Santos (SANTOS, 2010) da globalizao. Talvez a esteja outro aspecto relevante em

    estabelecer o debate com os estudos de Burt, Lepecki e Hewitt: reconhecer uma

    problemtica comum, mas apresent-la da singular perspectiva do lado de baixo do

  • 68

    Equador.

    Lepecki e a contemporaneidade moderna

    Agnaldo Farias em Arte brasileira hoje declara qual o pblico alvo de seu livro,

    em captulo introdutrio intitulado: Pequeno guia para os perplexos, Farias afirma:

    Este livro, exclusivamente dedicado a um mapeamento da arte

    contempornea brasileira, destina-se queles que ficam perplexos com muito

    daquilo que se faz em nome da arte. Por exemplo: aqueles que, dotados de boa

    vontade, disposio fsica e sapatos confortveis, se pem a peregrinar pelos

    vastos espaos onde acontece a Bienal de So Paulo e l submergem em meio

    s instalaes, performances, vdeos, obras de fatura conceitual, trabalhos que

    no geral lhes soam incompreensveis, inescrutveis; sucumbem, sobretudo,

    aqueles que para l se encaminham tendo em mente que arte coisa que

    acontece na forma de pinturas, esculturas, desenhos e gravuras. O livro

    especialmente dedicado queles que trocam o que pode haver de estimulante na

    inquietude e no desconcerto proveniente da incompreenso de algo pela

    sensao de estarem sendo enganados ou mesmo insultados por ele. A esses a

    lembrana de que no se deve cobrar transparncia de um livro escrito em

    lngua que se desconhece ou no se domina. Por que ento cobrar isso da arte,

    se arte expresso em toda sua potncia? (FARIAS, 2002, p. 8).

    Em Exhausting Dance performance and the politics of movement, Andr

    Lepecki abre o livro explicitando uma perplexidade similar presente em dois artigos de

    jornal. O primeiro deles, da editora de dana do The New York Times, Anna Kisselgoff,

    afirma:

    Parar e continuar. Chame isso uma tendncia ou um tic, a crescente

    frequncia de sequncias soluadas nas coreografias impossvel de se ignorar.

    Expectadores interessados em fluxo contnuo de movimento tm encontrado

    poucas ofertas em muitas apresentaes (LEPECKI, 2006, p. 1). 1

    O segundo artigo, do jornal irlands Irish Times, relata a perplexidade de um

    expectador que processou o Festival Internacional de Dana da Irlanda, pela obscenidade

    da nudez na pea Jerome Bel, do coregrafo homnimo. Segundo tal expectador: No

    havia nada na performance que pudesse ser descrito como dana, definida por ele como:

  • 69

    pessoas se movendo ritmicamente, pulando para cima e para baixo, normalmente ao som

    de msica mas nem sempre (LEPECKI, 2006, p. 2).2 Lepecki reconhece nas duas

    declaraes a mesma perplexidade: a de que a dana est ameaada pelas recentes

    produes europeias e norte-americanas, que desmantelam a sua noo de fluxo

    contnuo de movimento e pessoas se movendo ritmicamente, pulando para cima e para

    baixo. Ambas as declaraes denotam, em graus diferentes, que os expectadores

    estariam sendo enganados por esta produo de dana. Lepecki descreve a sensao de

    perplexidade, engano e insulto com similaridade ao que se refere, na citao acima,

    Agnaldo Farias. Tanto os expectadores (e mesmo alguns crticos) de dana

    contempornea como o pblico de arte contempornea encontram semelhante dificuldade

    ao se deparar com uma arte que extrapola as formas de pintura e escultura e uma dana

    que no se realiza por fluxo de movimentos.

    O que Farias prope, logo aps identificar que preciso dominar a linguagem

    artstica para melhor se relacionar com ela, que:

    [...] uma vez que o contemporneo deita suas razes no perodo

    moderno que lhe imediatamente anterior, sua definio passa

    necessariamente pela definio desse movimento quando a arte abandonou a ilustrao de temas para encerrar-se numa discusso sobre sua materialidade,

    sobre o gesto que a formalizou, etc. [...] O desembocar na abstrao foi o

    corolrio desse processo de tematizao de seus prprios elementos

    constitutivos, com a arte dando de costas para qualquer relao de ilustrao do

    mundo (FARIAS, 2002, p. 14).

    E continua:

    A arte contempornea nasce como resposta ao esgotamento desse

    ensimesmamento da arte, com as modalidades cannicas pintura e escultura explorando-se, investigando suas naturezas at o avesso. Entre os ndices desse

    esgotamento figuram desde o retorno de questes e frmulas antes vistas como

    ultrapassadas a pintura e a escultura figurativas, de contedo poltico, etc. at o florescimento de expresses hbridas, como as obras que oscilavam entre

    a pintura e a escultura, os happenings, as performances; as obras que exigiam

    a participao do pblico; as instalaes, etc. (FARIAS, 2002, p. 15).

    Farias concebe a arte contempornea como uma reao crtica aos pressupostos

  • 70

    da arte moderna, em uma diversidade esttica de proposies. O que parece ser comum

    entre elas o questionamento da arte como linguagem ilimitadamente autnoma em

    relao ao mundo em que se realiza.

    O que Lepecki demonstra a seguir, uma operao semelhante de Farias, ao

    reconhecer que a recente produo de dana contempornea vem causando desconforto

    ao dissociar dana do ideal de constante agitao e contnua mobilidade. E situa esta,

    que parece ser uma definio ontolgica de dana, em um contexto histrico:

    Deve ser lembrado que a operao de inextricvel alinhamento entre

    dana e movimento por mais senso comum que tal operao possa soar hoje um desenvolvimento histrico relativamente recente. [...] Esta questo reflete

    como o desenvolvimento da dana como arte autnoma no Ocidente, desde o

    Renascimento, crescentemente alinhou-se com o ideal de contnua mobilidade.

    (LEPECKI, 2006, p. 2). 3

    Citando o crtico Jonh Martin, situa o apogeu desta operao com a dana

    moderna, que revelou a substncia real da dana, que se descobre ser o movimento

    (LEPECKI, 2006, p. 4).4 Segundo Martin, s com a dana moderna descobrindo o

    movimento como sua essncia que a dana se torna pela primeira vez uma arte

    independente. Em seguida, Lepecki dedica seu livro, Exhausting dance: a uma leitura de

    peas de coregrafos europeus e norte-americanos, cujos trabalhos prope, com particular

    intensidade, uma critica dos elementos constitutivos da dana cnica ocidental

    (LEPECKI, 2006, p. 4).5

    O que parece ser pertinente nas reflexes de Farias e Lepecki a relao crtica

    da arte contempornea com a herana moderna de sua constituio. E o que faz com que

    essa relao permanea necessria? Lepecki cita Jameson, um ferrenho crtico do revival

    da palavra Modernidade: o nico significado semntico satisfatrio de modernidade

    reside na sua associao com o capitalismo (LEPECKI, 2006, p. 10).6 Segundo o

    raciocnio de Jameson, faz sentido falar em modernidade uma vez que o modo de

    produo capitalista continua operante. Curiosamente, esta a mesma razo enxergada

    por Bhabha para a vigncia do termo:

  • 71

    [...] o projeto da modernidade em si to contraditrio e no

    resolvido pela defasagem em que emergem os momentos colonial e ps-

    colonial como sinal da histria, que eu sou ctico em relao a essas transies

    para a ps-modernidade que a academia ocidental teoriza (LEPECKI, 2006, p.

    14).7

    No que ambos concordam na inextricvel presena do modo de produo

    capitalista e da ideologia moderna na contemporaneidade. Por pontos de vistas oriundos

    de diferentes perspectivas, ambos reconhecem essas indesejveis presenas; o que no

    significa ser favorvel a elas, mas identificar que as relaes capitalistas de produo e a

    condio ps-colonial consequente do projeto moderno sobrevivem. Talvez a resida a

    pertinncia de Lepecki, como Farias, abordar a arte contempornea como crtica

    [resistente] modernidade. Segundo o primeiro, as anlises de coreografias e

    performances que abordam diretamente a impossibilidade de sustentar um fluxo

    contnuo de movimento" so de importncia terica e poltica (LEPECKI, 2006, p. 11). 8

    H, no trabalho de Lepecki, uma novidade na abordagem do significado de

    dana como fluxo contnuo de movimentos. Alm de reconhecer a perspectiva esttica

    modernista que esta abordagem prope, o autor identifica nela a prpria ontologia da

    modernidade. Citando Sloterdijk, Lepecki afirma que ontologicamente, a modernidade

    um puro ser para o movimento (2006, p. 7). Embora tal perspectiva ontolgica no

    seja o foco aqui, este aspecto, de suma importncia no trabalho de Lepecki, ser abordado

    pela crtica esttico-poltica que sugere na recente produo de dana contempornea. Ao

    observar uma srie de peas de coregrafos que apresentaram o no movimento, Lepecki

    aponta que: o no movimento, o esgotamento da dana, abre a possibilidade de pens-lo

    como uma autocrtica da dana contempornea, alm de uma crtica ontolgica, tambm

    uma crtica da ontologia poltica da dana (LEPECKI, 2006, p. 16).

    A dimenso autocrtica da dana contempornea apontada por Lepecki encontra

    ressonncia na afirmao de Farias, quando este reflete que: Cada obra de arte em si

    mesma um sinal de descontentamento. [...] Sintoma de uma insatisfao, cada obra de

    arte traz embutida uma crtica prpria noo de arte e pode mesmo modificar aquilo que

    entendemos por arte (FARIAS, 2002, p. 14). Talvez nesta dimenso crtica da arte

  • 72

    contempornea encontre-se uma perspectiva comum diversidade de proposies da arte

    contempornea, em resposta a uma idia universalista do projeto moderno.

    Burt: dana ps-moderna, moderna ou crtica?

    Em Judson Dance Theater Performative traces, Ramsay Burt debrua-se sobre

    a produo de dana norte-americana dos anos 1960 e 1970, identificando traos deste

    movimento na produo europeia e norte-americana contemporneas. Segundo o autor, o

    que aquele movimento fez, juntamente com Pina Bausch, entre outros, foi desafiar as

    formas convencionais de se produzir dana. Burt afirma ser este o tema principal de seu

    livro:

    O que eu acredito que Bausch e Brown tm em comum a maneira

    que ambas, na verdade, oferecem um desafio semelhante ao tipo de ideias

    sobre a dana pura que Kisselgoff articulou em 1985, formulando a materialidade do corpo que dana de forma que obriga o espectador a

    reconhecer a materialidade dos corpos de seus bailarinos. Ao fazer isso, elas

    contradizem convencionais expectativas estticas (BURT, 2006, p. 2).9

    E que noes de dana esta produo estava desafiando? Tais noes parecem

    ser as mesmas atreladas aos ideais da dana moderna. Burt cita Brown abordando um de

    seus trabalhos:

    Man walking down the side of a building foi exatamente como o ttulo. A

    atividade natural sob o stress do ambiente no-natural. Gravidade negada. Vasta

    escala. Ordem clara. Voc comea no topo, anda em linha reta para baixo, pra

    embaixo. Todas as perguntas densas que surgem no processo de seleo de

    movimento abstrato so resolvidos na colaborao entre o coregrafo e o lugar.

    Se voc eliminar todas aquelas excntricas possibilidades que a imaginao

    coreogrfica pode evocar e apenas ter uma pessoa a andar pela parede, ento

    voc v o movimento como atividade (in BURT, 2006, p. 3).10

    E tambm cita Bausch que, ao ser questionada sobre o uso de palavras em seu

    trabalho, expe o problema de maneira explcita:

  • 73

    simplesmente uma questo de quando dana, quando no .

    Onde que comea? Quando que vamos chamar de danar? Tem de fato algo

    a ver com conscincia, com conscincia corporal, e com a maneira como

    damos forma s coisas. Mas ento no precisa ter esse tipo de forma esttica.

    Pode ter uma forma bem diferente e ainda ser de dana (in BURT, 2006, p.

    3).11

    Burt demonstra como a noo de dana restrita a um fluxo contnuo de

    movimentos aparece tratada criticamente pela sua produo j no final da dcada de

    1970. Se a dana desenvolvida por Pina Bausch e pelos membros da Judson Dance

    Theater problematiza os pressupostos da dana moderna, isso significa que ela ps-

    moderna?

    O autor localiza um debate histrico. Apesar de vislumbrar uma dimenso crtica

    semelhante entre as propostas de Bausch e as da Judson Dance Theater, a primeira ficou

    conhecida como dana-teatro, enquanto a vertente norte-americana ficou largamente

    conhecida como dana ps-moderna. A principal porta-voz do segundo enunciado a

    terica e crtica norte-americana Sally Banes, que localiza o movimento ps-moderno da

    dana como um fenmeno exclusivamente americano. Entretanto, segundo seu ponto de

    vista, a aproximao que Burt prope descabida. Banes postula que, enquanto a dana-

    teatro guarda muita afinidade com um expressionismo moderno, a dana ps-moderna

    americana do mesmo perodo seria mais analtica. O que est em questo neste debate

    novamente a noo modernista de dana como linguagem independente, autnoma, e

    seus aspectos puramente formais. Apesar de chamar a referida produo norte-americana

    de ps-moderna, Banes identifica em suas propostas a verdadeira abordagem modernista:

    Na dana, a confuso que o termo "ps-moderno" cria ainda mais

    complicada pelo fato de que a dana moderna histrica nunca foi realmente

    modernista. Muitas vezes tem sido precisamente na arena da dana ps-moderna

    que as questes do modernismo nas outras artes surgiram: o reconhecimento dos

    meios materiais, a revelao das qualidades essenciais da dana como uma

    forma de arte, a independncia de referncias externas como tema. Assim, em

    muitos aspectos, a dana ps-moderna que funciona como arte modernista

    (BURT, 2006, p. 8).12

    Burt aponta que as propriedades que o crtico John Martin encontrou na

  • 74

    chamada dana moderna histrica, Banes enxergou no movimento da Judson Dance

    Theater. O que estava em jogo, em ambos os casos, era reconhecer os pressupostos

    modernistas estabelecidos pelo crtico de arte Clement Greenberg. Segundo este escreveu

    em 1960, a tarefa do modernismo era:

    Eliminar dos efeitos de cada arte todo e qualquer efeito que poderia

    eventualmente ser emprestado de, ou por meio de, qualquer outra arte. Assim,

    cada arte se tornaria 'pura', e na sua "pureza" encontraria a garantia de seus

    padres de qualidade, bem como da sua independncia (BURT, 2006, p. 7).13

    O vis de Greenberg apontado como exclusivamente formalista, o que

    questionado por historiadores como Jack Flam e tericos como Susan Manning, que

    alegam que o excessivo enfoque no aspecto formalista do modernismo deixa de lado sua

    dimenso ideolgica. Tal dimenso, entretanto, aparece na viso positiva com que Banes

    aborda a chamada dana ps-moderna. A autora vislumbra esse movimento muito

    afirmativamente, como exemplifica o ttulo de sua mais recente publicao de 2003:

    Reinventing dance in the sixties: everything was possible. O tudo que era possvel, no

    entanto, extravasava a dimenso esttica. Banes celebrava o aspecto formal da arte, mas

    acreditando que o progresso deste poderia extrapol-lo:

    As artes de repente pareciam recm-empoderadas... para oferecer

    um meio para - na verdade, incorporar - a democracia. No incio dos anos

    sessenta artistas vanguardistas no visavam passivamente espelhar a sociedade

    em que viviam, eles tentaram mud-la atravs da produo de uma nova

    cultura (BURT, 2006, p. 10).14

    Burt chama ateno para o fato de que a viso positiva de Banes sobre a

    chamada dana ps-moderna e seus corpos efervescentes e democrticos fez com que lhe

    escapasse a dimenso crtica daquela produo artstica. Dito de outra forma, a sua

    prpria ideologia [moderna] fez com que enxergasse naqueles corpos um projeto

    utpico de unidade orgnica que criou uma viso do corpo consciente, no qual a

    mente e o corpo j no eram divididas, mas harmoniosamente integrados (BURT, 2006,

    p. 20).15

    O autor sublinha o potencial crtico daquela produo em obras como

  • 75

    Convalescent dance, em que Yvonne Rainer performou uma verso de Trio A

    convalescendo de uma grande cirurgia e Intravenous lecture, na qual um mdico injetava

    em Steve Paxton uma soluo salina enquanto ele lia sobre a natureza da performance.

    Tais obras corroboram a afirmao de Peggy Phelan: Na passagem da gramtica das

    palavras gramtica do corpo, se move da esfera da metfora ao reino da metonmia.

    Para a arte prpria da performance, no entanto, o referente sempre o corpo agonizante

    do performer (BURT, 2006, p. 18).16

    na mudana da esfera da metfora para o reino da metonmia que Burt

    reconhece a diferena entre o expressionismo do incio da dana moderna e a nova dana

    antiexpressiva de Rainer e seus pares. Citando Phelan:

    Metfora funciona, assegurando uma hierarquia vertical de valor e

    reprodutiva funciona apagando dissimilaridade e negando a diferena, que se

    traduz em um. Metonmia aditivo e associativo, que funciona para fixar um

    eixo horizontal de contiguidade e deslocamento. A chaleira est fervendo

    uma frase que assume que a gua contgua com a chaleira. A questo no

    que a chaleira como a gua (como na metfora o amor como uma rosa),

    mas sim que a chaleira est fervendo, porque a gua dentro da chaleira est.

    (BURT, 2006, p. 17). 17

    Segundo Burt, no incio da dana moderna o corpo era apresentado

    metaforicamente, enquanto a nova dana dos anos 60 tratava a experincia corporal de

    maneira metonmica. Seus exemplos: Lamentation, de Graham, no era sobre um luto

    especfico, mas sobre uma experincia universal que transcende qualquer experincia

    individual. J Convalescent dance, de Rainer, era sobre a particular experincia daquele

    corpo convalescente; seu peso, sua fraqueza, sua debilidade.

    A passagem da abordagem metafrica para a metonmica significa, para Burt,

    sublinhar o aspecto poltico da performance. Andrew Hewitt, em Social choreography

    Ideology as performance in dance and everyday movement, tambm opta por abordar a

    dana de uma maneira no metafrica, com o mesmo intuito. Suas reflexes sero

    enfocadas no prximo tpico a ser desenvolvido.

  • 76

    Referncias

    BANES, Terpsichore in sneakers Post-Modern Dance. Hanover: Wesleyan University Press. 1987.

    BASTOS, Helena. DanaCorpos ViraCorpos Trnsitos compartilhados. Sala Preta, So Paulo, Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, n. 10, p. 155-162,

    2010.

    BRITTO, Fabiana Dultra. Mecanismos de comunicao entre corpo e dana:

    parmetros para uma histria contempornea. Tese (Doutorado Comunicao e

    Semitica) Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 2002.

    BURT, Ramsay. Judson Dance Theater Performative traces. New York: Routledge, 2006.

    FARIAS, Agnaldo. Arte brasileira hoje. So Paulo: Publifolha, 2002.

    GREINER, Christine. O corpo Pistas para estudos indisciplinares. So Paulo: Annablume, 2005a.

    ______. A performance e a dana: o corpo em crise. Manifesto Internacional de

    Performance. Belo Horizonte: Ceia, 2005b.

    ______. O corpo em crise Novas pistas e o curto-circuito das representaes. So Paulo: Annablume, 2010.

    HRCOLES, Rosa. Epistemologias em movimento. Sala Preta, So Paulo, Escola de

    Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, n. 10, p. 199-203, 2010.

    HEWITT, Andrew. Social choreography Ideology as performance in dance and everyday movement. Durham: Duke University Press, 2005.

    KATZ, Helena. Um, dois, trs A dana o pensamento do corpo. Belo Horizonte: FID Frum Nacional de Dana Editorial, 1998.

    KATZ, Helena. Quatro corpos que investigam o poder no processo criativo. O Estado

    de S. Paulo, So Paulo, 4 jul. 2009a. Caderno 2.

    ______. O melhor esteve fora do circuito oficial de exibio. O Estado de S. Paulo,

    So Paulo, 30 dez. 2009b. Caderno 2.

    ______. Um Festival para desalojar as certezas. O Estado de S. Paulo, So Paulo, 25

  • 77

    nov. 2010a. Caderno 2.

    ______. Um rumo para a dana: valorizar as pesquisas. O Estado de S. Paulo, So

    Paulo, 11 dez. 2010b. Caderno 2

    ______. Por uma dramaturgia que no seja uma liturgia da dana. Sala Preta, So Paulo,

    Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, n. 10, p. 163-167, 2010c.

    LEPECKI, Andr. Exhausting dance Performance and the politics of movement. New York: Routledge, 2006.

    PAIXO, Paulo. Quando o drama se apodera da dana. Sala Preta, So Paulo, Escola de

    Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, n. 10, p. 205-211, 2010.

    SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do

    Sul. So Paulo: Cortez, 2010.

    1 Stop and go. Call it a trend a tic, the increasing frequency of hiccupping sequences in choreography is

    impossible to ignore. Viewers interested in flow or a continuum of movement have been finding slim

    pickings in many premieres. [Traduo nossa].

    2 people moving rhythmically, jumping up and down, usually to music but not always. [Traduo nossa].

    3 It should be remembered that the operation of inextricably aligning dance's being with movement - as

    commonsensical as such an operation may sound today - is a fairly recent historical development. [] This question reflects how the development of dance as an autonomous art form in the West, from the

    Renaissance on, increasingly aligns itself with an ideal of ongoing motility. [Traduo nossa].

    4 the actual substance of the dance, which it found to be movement. [Traduo nossa].

    5 I dedicate each chapter of this book to a close reading of a few select pieces by European and North

    American contemporary choreographers, visual artists and performance artists whose work proposes, with

    particular intensity, a critique of some constitutive elements of Western theatrical dance. [Traduo nossa].

    6 the only satisfactory semantic meaning of modernity lies in its association with capitalism. [Traduo

    nossa].

    7 the project of modernity is itself rendered so contradictory and unresolved through the insertion of the

    time-lag in which colonial and post-colonial moments emerge as sign and history, that I am skeptical of

    those transitions to postmodernity that western academy theorizes. [Traduo nossa].

    8 this is where analyses of choreographies and performances that directly address the impossibility of

    sustaining 'flow or continuum movement' are of theoretical and political import. [Traduo nossa].

    9 What I believe Bausch and Brown have in common is the way that they both, in effect, offer a similar

    challenge to the sorts of ideas about 'pure dance' that Kisselgoff articulated in 1985, by framing the

    materiality of the dancing body in ways that force the spectator to acknowledge the materiality of the

    bodies of their dancers. In doing so, they contradict conventional aesthetic expectations. Such challenges

    are a major theme in this book. [Traduo nossa].

    10 Man walking down the side of a building was exactly like the title. A natural activity under the stress of

  • 78

    unnatural setting. Gravity negated. Vast scale. Clear order. You start at the top, walk straight down, stop at

    the bottom. All those soupy questions that arise in the process of selecting abstract movement are solved in

    collaboration between choreographer and place. If you eliminate all those eccentric possibilities that the

    choreographic imagination can conjure up and just have a person walk down a aisle, then you see

    movement as activity. [Traduo nossa].

    11 It is simply a question of when is it dance, when is it not. Where does it start? When do we call it dance?

    It does in fact have something to do with consciousness, with bodily consciousness, and the way we form

    things. But then it needn't have this kind of aesthetic form. It can have quite a different form and still be

    dance. [Traduo nossa].

    12 In dance, the confusion the term 'post-modern' creates is further complicated by the fact that historical

    modern dance was never really modernist. Often it has been precisely in the arena of post-modern dance

    that issues of modernism in the other arts have arisen: the acknowledgement of the medium's materials, the

    revealing of dance's essential qualities as an art form, the separation of external references as subjects. Thus

    in many respects it is post-modern dance that functions as modernist art. [Traduo nossa].

    13 Eliminate from the effects of each art any and every effect that might conceivably be borrowed from or

    by the medium of any other art. Thereby each art would be rendered 'pure', and in its 'purity' find the

    guarantee of its standards of quality as well as of its independence [Traduo nossa].

    14 The arts suddenly seemed freshly empowered... to provide a means for - indeed, to embody -

    democracy. The early sixties avant-garde artists did not aim to passively mirror the society they lived in;

    they tried to change it by producing a new culture. [Traduo nossa].

    15 created a vision of the "conscious body" in which mind and body were no longer split but harmoniously

    integrated. [Traduo nossa].

    16 In moving from the grammar of words to grammar of the body, one moves from the realm of metaphor

    to the realm of metonymy. For performance art itself however, the referent is always the agonizingly body

    of the performer. [Traduo nossa].

    17 Metaphor works by securing a vertical hierarchy of value and is reproductive; it works by erasing

    dissimilarity and negating difference; it turns in to one. Metonymy is additive and associative; it works to

    secure a horizontal axis of contiguity and displacement. The kettle is boiling is a sentence which assumes

    that water is contiguous with the kettle. The point is not that the kettle is like water (as in the metaphorical

    love is like a rose), but rather that the kettle is boiling because the water inside the kettle is. [Traduo nossa].