Apostila -- Ars Nova -- FIC 2006

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CLÓVIS DE ANDRÉ APOSTILA DE HISTÓRIA DA MÚSICA Idade Média (século XIV — Ars Nova) FIC - Faculdade Integral Cantareira Escola Superior de Música São Paulo agosto/2006

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CLÓVIS DE ANDRÉ

APOSTILA DE HISTÓRIA DA MÚSICAIdade Média (século XIV — Ars Nova)

FIC - Faculdade Integral CantareiraEscola Superior de Música

São Pauloagosto/2006

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FIC 2006 / PROF. CLÓVIS DE ANDRÉ HISTÓRIA DA MÚSICA (SÉC. XIV) – ii

Copyright © Clóvis de André

1ª edição: 2001

6ª edição: 2006

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História da Música ministradas pelo prof. Clóvis de André nesta instituição de ensino.

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ARS NOVA

ROMAN DE FAUVEL

-- poeta: Gervais du Bus (fl. c.1300s–1330s)

-- compilador dos números musicados: Chaillou de Pesstain

-- poesia: 1ª parte escrita em 1310 (1226 versos), 2ª parte escrita em 1314 (2054 versos)

-- música: inclusões até 1316

-- principal manuscrito: F-Pn fr. 146, também conhecido simplesmente pela abreviaturaFauv (único dos manuscritos a conter notação musical)

-- idioma dos números musicados: Francês, Latim

-- polifonia: clausulae, conducti, motetos, etc. -- 2, 3 e 4 vozes

-- monofonia:--> canções seculares (chanson, lais, rondeaux, ballades, etc.);--> cantochão ou cantos sacros em latim (alleluias, antífonas, conducti, etc.).

-- notação musical: Franco-Petroniana e princípio da Ars Nova

O nome "Fauvel" é um acróstico de:

Flatterie ........................... Lisonja, Bajulação, AdulaçãoAvarice ........................... AvarezaVilanie ............................ Vilania (qualidade de quem é vil)Variété ............................ Volubilidade (qualidade de ser volúvel), Leviandade,Envie .............................. Inveja . InconstânciaLascheté ou Lâcheté ....... Covardia

________________________________________

PHILIPPE DE VITRY (1291–1361)

-- Bispo de Meaux (a partir de 1351)

-- Dos 12 ou 16 motetos atribuídos a Vitry, 6 aparecem em Fauv

-- Uma das mais significativas e representativas obras, tanto do Roman de Fauvel,quanto do trabalho de Vitry, é o moteto isorrítmicoGarrit Gallus/In novafert/[Neuma]

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• NOTAÇÃO MUSICAL DO SÉCULO XIV (ARS NOVA) •

ARS NOVA(França)

TRECENTO(Itália)

Tratados

JOHANNES DE MURIS (ca. 1300–1350)

Ars nove musice (ca. 1320)

PHILIPPE DE VITRY (1291–1361)

Ars nova (ca. 1322)

MARCHETTO DA PADOVA (fl. 1305–1326)

Pomerium artis musicae mensuratae

(i. 1318/1319)

Lucidarium in arte musicae planae

(i. 1317/1318)

Influência filosófico-teológica(Universidade de Paris)

Influência filosófico-pagã(Trobadores imigrados)

Utilização (em todos os níveis) deconceitos de imperfeição X perfeição

-- Modus imperfectum vs. perfectum--Tempus imperfectum vs. perfectum-- Prolatio minoris vs. maioris-- Sub-prolatio minoris vs. maioris

Utilização deconceitos de binário & ternário

(cada um seguindo derivações separadas – cf.abaixo)

-- coloratio (color temporis)-- coloração em vermelho utilizada emconjunto com notas negras, indicandomudanças de perfeição para imperfeiçãoou vice-versa

-- apenas notas negras-- mudanças de binário para ternário (ousuas subdivisões) indicadas por símbolos

específicos

Figuras derivadas da semibrevis(Representação & Introdução de conceitos

específicos para figuras menores)-- semibrevis caudata-- minima (ou semibrevis minima)-- semiminima (ou semibrevis semiminima)

Introdução de conceitos relativos a diferentesníveis de divisão (3 divisiones), tendo porbase a semibrevis, sem a necessidade derepresentações gráficas distintas para

semibreves de valores diferentes(cf. diagrama abaixo)

Tetragramas (tenor -- cantus firmus)& Pentagramas (outras vozes)

-- o uso simultâneo destes dois tiposdiferentes de pauta já era corrente pelo menosdesde o final do sec. XII

Hexagramas (para todas as vozes)

-- possivelmente, denotando uma chance deuso de registros vocais mais amplos, oumesmo de uma influência de uma notaçãodestinada a instrumentos

Sinais de Mensuração(cf. abaixo)

-- baseados na identificação de relações detempus (entre brevis e semibrevis) e deprolatio (entre semibrevis e minima)

Sinais de Mensuração(cf. abaixo)

-- baseadas em diferentes símbolos quedenotam níveis (divisiones) e agrupamentosespecíficos de semibreves

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SINAIS DE MENSURAÇÃO

-- ITÁLIA -- fonte princ.: Marchetto da Padova (Pomerium)

DIAGRAMA DOS "NÍVEIS DE DIVISÃO DE SEMIBREVES" (DIVISIONES)

1ª divisio .b. .t. binaria ternaria · ◊ ◊ · · ◊ ◊ ◊ ·

2ª divisio(semibreves caudatae ou SEMIBREVES ou semibreves minimae)

(de 4 a 6 semibreves -- eighth-notes).q. .si. ou .sg. .sp. ou .sy. .n.

quaternaria senaria imperfecta (gallica) senaria perfecta (ytallica) novenaria · ◊ ◊ ◊ ◊ · · ◊ ◊ ◊ ◊ ◊ ◊ · · ◊◊ ◊◊ ◊◊ · · ◊◊◊ ◊◊◊ ◊◊◊ · (2/4) (6/8) (3/4) (9/8)

3ª divisio(semibreves caudatae ou SEMIBREVES ou semibreves minimae)

(de 7 a 12 semibreves -- sixteenth-notes).o. .d.

octonaria duodenaria · ◊ ◊ ◊ ◊ ◊ ◊ ◊ ◊ · · ◊ ◊ ◊ ◊ ◊ ◊ ◊ ◊ ◊ ◊ ◊ ◊ ·

(2*/4) (3*/4)-------------------------------------------------------------------------------------

-- ternaria via artis --[ · ◊ ◊ · = ¡ ◊ (semibreve caudata + semibreve) = mínima + semínima]

-- ternaria via naturalis --[ · ◊ ◊ · = semínima + mínima]

-------------------------------------------------------------------------------------_______________________________________________

-- FRANÇA -- fonte princ.: Philippe de Vitry (Ars nova)

==> A presença de perfeição e imperfeição nas relações de tempus (pl.,tempora) e prolatio (pl., prolationes) podiam ser deduzidas de duas maneiras:

-- a partir de indícios como coloratio, pausas, etc.-- a partir de símbolos específicos (mais freqüentes a partir de meados do sec. XIV)

círculo c/ ponto -- Tempus perfectum, prolatio maioris -- 9/8círculo s/ ponto -- Tempus perfectum, prolatio minoris -- 3/4meio-círculo c/ ponto -- Tempus imperfectum, prolatio maioris -- 6/8meio-círculo s/ ponto -- Tempus imperfectum, prolatio minoris -- 2/4

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FORMAS MUSICAIS DO SEC. XIV (ARS NOVA E TRECENTO) (HOPPIN, 1978, cap. 11)

-- Dentre as formas utilizadas no sec. XIV, os estudos musicológicos reconhecem peladesignação 'formes fixes' (lit., 'formas fixas') aquelas utilizadas principalmente noambiente francês. Já aquelas utilizadas no ambiente italiano podem ser chamadassimplesmente de 'formas do trecento'.

--> Formes fixes: • Rondeau ..........................................ABaAabAB• Ballade ............................................ ao acbC• Virelai (ou, Chanson Balladée) ....... Abo bcaA

--> Formas do Trecento • Caccia ................................. aB• Madrigal ............................. aaB ou aaaB• Ballata ................................. Abo bcaA

==> Os ítens acima devem ser entendidos apenas como indicativos dasesquemas básicos, que podem envolver estruturas e procedimentos composicio-nais mais complexos. Sua importância e seleção está principalmente em suaampla utilizadas em composições polifônicas -- embora algumas (principalmenteas francesas formes fixes) não tenham sido exclusivamente polifônicas.

==> N.B.: No texto-base (GROUT, 2001, p. 138), são apresentadas as seguintesgrafias para as formes fixes: Rondel, Balada, Viralai. Nenhuma dessas grafiasdeverá ser utilizada nesta disciplina.

-- Em sua origem, as formes fixes já eram utilizadas pelos trouvères (e,excepcionalmente, até mesmo pelos trobadores), mas se tornaram uma convençãoapenas ao final do sec. XIII e início do sec. XIV (época que corresponde a um declíniodas atividades de trouvères e trobadores). A expansão e cristalização dessas formas ésimultânea ao crescimento (especialmente na França) da polifonia secular, durante ossécs. XIV e XV. Já as formas do Trecento sofreu influência maior por parte dostrobadores, embora seja importante relembrar que apenas raramente esses trobadores(provenientes ou não de outras regiões) utilizaram essas formas cristalizadas (ou mesmooutras correlatas). Assim, a música italiana do sec. XIV ('Trecento') e as formasutilizadas por ela na construção da polifonia não podem ser facilmente incluídas dentroda mesma designação aplicada à música francesa do sec. XIV ('Ars Nova'). De fato, otermo formas do Trecento é apenas um reducionismo pedagógico, criado pelamusicologia moderna a fim de comparar as produções italiana e francesa do sec. XIV --ao contrário do termo formes fixes, que foi utilizado na literatura musical medieval erenascentista.

-- De modo geral, todas foram influenciadas por formas de dança, das quais herdaram apresença de refrão (1 ou 2 versos, no começo, meio e/ou fim das estrofes). Além disso,essas 'formas' representam a epítome da concordância entre as rimas poética e musical.

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RONDEAU

==> O rondeau foi a primeira das três formes fixes a ser virtualmenteestandardizada (já no sec. XIII).

Estrutura

-- A estrutura musical mais comum, que ficou estabelecida a partir das práticas musicaisdo sec. XIV, é a seguinte:

A B a A a b A B

==> Cada letra equivale a um verso.1

==> Note que nesta estrutura predomina a música da seção A.

-- Refrão bipartido (A B) -- i.e., com dois versos.• O refrão pode ser interno à estrofe, ao final da estrofe, ou (no sec. XIV) podeocorrer tambén no início de cada estrofe.

sec. XIII:- usualmente estrofes de 6 versos (ou linhas)- refrões: cada estrofe contendo usualmente apenas refrões interno e definalização

--> A fim de satisfazer estas características, podemos especularsobre a possibilidade de aplicação da estrutura abRabR(genérica), ou de variações que viabilizem a existência de umrefrão bipartido (e.g., aAabAB ou mesmo abAaAB).

sec. XIV:- usualmente estrofes de 8 versos (ou linhas)- refrões: no início, internamente, e como finalização de cada estrofe.

--> A estrutura clássica ABaAabAB é sem dúvida a maisadequada para a caracterização deste período, sendo este omodelo que prevalecerá para o rondeau na Renascença.

1 Como em esquemas anteriores, o significado das letras é a seguinte: letras iguais indicam

a mesma música (independente de serem maiúsculas ou minúsculas), letras maiúsculas indicam refrão

(A e B, ou em outros casos simplesmente R) e letras minúsculas indicam textos poéticos diferentes do

refrão (a e b). Assim, no esquema estabelecido para o rondeau A e B têm música e poesia diferentes,

enquanto A e a têm versos diferentes, mas colocados sobre a mesma música -- além disso, o primeiro e

o segundo a (versos 3 e 5) também têm versos diferentes, embora aplicados sobre a mesma música.

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Exemplos:

- Trouvère-pastourelle (Adam de la HALLE, "Robin m'aime, Robin m'a", in: Jeude Robin et Marion -- NAWM 9) - ABaabAB

- Trouvère-rondeau (Guillaume d'Amiens, "De ma dame vient") - ABaAabAB

- Ars subtilior (SOLAGE, "Fumeux fume par fumée" -- NAWM 26) -ABaAabAB

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BALLADE

==> Derivada da chanson em forma tripartida aab (embora a chanson nãoutilizasse necessariamente refrões).

Estrutura musical

-- A estrutura musical mais comum é a seguinte:

ao ac b C

==> As letras minúsculas (os dois a e o b) indicam seções que normalmenteincluem de 2 a 3 versos.

==> A letra maiúscula (C) indica um refrão e normalmente equivale a um únicoverso (ocasionalmente 2 versos).

==> As designações o e c (colocadas ao pé da letra a) indicam respectivamente'ouvert' (aberto) e 'clos' (fechado) -- que denotam terminações cadenciaisdistintas (e alternadas) para cada seção a (tendo a segunda seção ac um carátercontrapontisticamente mais conclusivo que a primeira).

Estrutura poética

-- O refrão (aliás, um 'remate' ou 'envio', com função de finalização do poema) temsemelhança com a 'tornada' (ou 'envoy') utilizada pelos trobadores e trouvères, poisassinala um momento em que o poema interrompe a seqüência narrativa normal -- e.g.,voltando-se diretamente ao público, ou a alguma personalidade (fictícia ou não, simbólicaou não) fora do texto, etc. -- cf. explicações sobre os gêneros musicais utilizados pelostrobadores, esp. canso.

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-- A estrutura poética típica consiste de um poema com 3 estrofes (cada uma finalizadapelo refrão) -- assim a estrutura musical aabC é repetida 3 vezes.

-- As estrofes mais comuns variam de 7 a 10 versos (incluindo o refrão) -- videexplicações abaixo referentes às estruturas internas de cada estrofe.

==> As divisões em seções e distribuição de rimas poéticas, usualmenteverificadas nos exemplares sobreviventes de BALLADE, vêm descritas abaixo.

--> Em poemas com estrofes de 7 ou 8 versos, os primeiros 4 versosformam 2 dísticos, usualmente com rimas alternadas (ab ab), emborapossam também ser encontrados dísticos simples e distintos (aa bb).

--> Similarmente, em poemas com estrofes de 10 versos, os primeiros 6versos formam 2 dísticos, também usualmente com rimas alternadas (aabaab), embora outras distribuições de rimas possam ser encontradas.

--> Quanto a rimas, os 3 ou 4 versos restantes não seguem nehumpadrão consistente ou predominante.

==> Na tabela abaixo, as letras em redondo (i.e., texto normal -- nem itálico, nemnegrito) indicam versos diferentes, sendo que letras iguais denotam a mesmarima. As letras em negrito (na última linha) indicam as seções da estruturamusical típica já mencionada acima.

Estrofes de 7 versos: ab ab bc CEstrofes de 8 versos: ab ab ccd DEstrofes de 10 versos: aab aab bcb CForma musical: ao ac b C

==> Devido à seqüência de rimas, a estrutura poética é facilmente dividida emtrês partes (i.e., estrutura tripartida), se o refrão final for desprezado.

==> A tabela acima, elaborada por Hoppin (1978, p. 298), indica as estruturaspoéticas mais comuns, embora mesmo estas não sejam nem invariáveis, nemrepresentantes da totalidade dos exemplares sobreviventes de BALLADES.

==> Métrica poética (no. de sílabas), de acordo com diferentes épocas:

--> (ex. sec. XIII e in. sec. XIV) -- Predominam versos octossílabos (8sílabas) e trissílabos (3 sílabas), embora no final do sec. XIII tambémtenham existido (aparentemente com relativa freqüência) versospentassílabos (5 sílabas) alternando com heptassílabos (7 sílabas).

--> (ex. sec. XIV) -- Predominam versos decassílabos (10 sílabas) eheptassílabos (7 sílabas).

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VIRELAI 2

==> O termo parece ter ganho aceitação apenas durante o sec. XIV.Anteriormente (no sec. XIII), o VIRELAI e a BALLADE eram virtualmenteindiferenciáveis e, apesar das diferenças estruturais cristalizadas posteriormente,mesmo no sec. XIV verifica-se o uso do termo chanson balladée aplicado aoVIRELAI. Como a BALLADE, o VIRELAI também está baseado em uma formatripartida -- vide especificações abaixo, e compare similaridades e diferençasentre as duas formas (cf. também, abaixo, nota sobre o uso de refrão).3

Estrutura musical

-- A estrutura musical mais comum, para cada estrofe, é a seguinte:

A bo bc a A

==> As letras minúsculas (a e os dois b) indicam seções que incluem númerobastante variável de versos, sendo que a música normalmente acompanha otamanho de cada seção -- vide abaixo explicações sobre a estrutura poética.

==> A letra maiúscula (A) indica um refrão.

==> Como no caso da BALLADE (vide explicações acima), as designações o e c(aqui colocadas ao pé da letra b) indicam respectivamente 'ouvert' (aberto) e'clos' (fechado).

2 Segundo Hoppin, a etmologia do termo, apesar de ser ainda objeto de discussão, deve

cuidar para eliminar as especulações errôneas de alguns estudiosos.

Uma sugestão do sec. XV (algumas vezes repetida por autores modernos), de que o

virelai é um lai virado (viré) sobre si mesmo, parece ser o tipo de falsa etmologia que

surge quando o significado original e uso da palavra foi esquecido por longo tempo.

(HOPPIN, 1978, p. 299; tradução minha)

3 Aparentemente, Adam de la Halle compôs os primeiros V IRELAIS relativamente bem

definidos e diferenciados das BALLADES, mas esta forma (como outras das FORMES FIXES) só se tornou

distinta com os trabalhos de Jehan de L'Escurel (a partir de peças de várias formas e gêneros atribuídas a

ele e contidas no Roman de Fauvel).

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Estrutura poética

-- Refrão, sempre no início e fim da estrofe.4

-- A forma tripartida é evidente não apenas considerando estrofes individuais, mastambém a estrutura completa do VIRELAI com todas as estrofes.

--> Se o refrão for desconsiderado por um momento, cada estrofe éclaramente baseada em uma forma tripartida semelhante às estrofes daBALLADE.

--> Considerando a estrutura completo, com 3 estrofes (o númerohabitual de estrofes do VIRELAI), a forma final se encaixaria dentro doseguinte esquema genérico (considerando essa execução completa):

a a a

No entanto, existe discussão entre os estudiosos se o refrão entre cadaestrofe deveria ser enunciado apenas uma vez (como no esquema [1]abaixo -- que é o de maior aceitação no meio musicológico), ou duasvezes (numa diferenciação mais clara em relação à BALLADE, como noesquema [2]).

esquema [1] -- A bba A bba A bba Aesquema [2] -- A bba A A bba A A bba A

-- Como mencionado acima, o número de versos por estrofe não mostra nenhumaconsistência ou padrão predominante, embora exista uma tendência à simetria poéticadentro de cada estrofe, fazendo com que cada seção a tenha aproximadamente o dobrodo número de versos que cada seção b -- cabe assinalar que tal tendência não deve serentendida como regra.

--> A ausência de um padrão palpável (ou predominante) quanto aonúmero de versos por estrofe (ou mesmo por seção) tem sidoidentificado como uma tendência a enfatizar a 'flexibilidade' da forma --sendo esta uma das características que pode ser entendida como fruto deuma herança mais diretamente trobadoresca.

4 De fato, a posição do refrão é uma das maneiras de diferenciação entre o VIRELAI (que traz

refrão no início da estrofe, re-exposto também ao final) e a BALLADE.(que traz o refrão apenas ao final da

estrofe). Por outro lado, no sec. XIII existem também exemplares de BALLADE que trazem refrão no

início da estrofe.

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BALLATA (de "ballare") -- pl., Ballate 5

-- texto poético em idioma italiano

-- melodia acompanhada (polifonia)

-- tessitura reduzida == tessitura (extensãso vocal) "não muito extensa"

-- 3 vozes [3 tipos]- (a) - 3 vozes c/ texto [mesmo texto]- (b) - 2 vozes c/ texto [mesmo texto] + 1 voz instrumental- (c) - 1 voz c/ texto + 2 vozes instrumentais

--> todos os tipos, inclusive (a), podem ter melodias dobradas ou acompanhadasinstrumentalmente

-- relacionada ao VIRELAI (Chanson Balladèe)

-- estrutura:A bo bc a A

--> Apesar da manutenção aqui das indicações bo e bc (denotando asemalhança com o VIRELAI), as designações mais apropriadas em italiano seriam,respectivamente, b aperto/verto (ba ou bv ) e b chiuso (bc).

--> As seções da BALLATA são assim designadas:• A (ripresa)• b (piede - pl., piedi)• a (volta)

--> Tipos de BALLATA, de acordo com o tamanho da ripresa:• ballata piccola (ripresa de 1 verso, endecassílabo [11 sílabas] ou,mais raramente, dodecassílabo [12 sílabas])"• ballata minima (ripresa de 1 verso, heptassílabo [7 sílabas])• ballata minore (ripresa de 2 versos)• ballata mezzana (ripresa de 3 versos)• ballata grande (ripresa de 4 versos)

5 Aparentemente, a BALLATA pode ter sido derivada, ou ter alguma relação com o processo

evolutivo da LAUDA (pl., LAUDE) existente já no sec. XIII. De fato, tanto no séc XIV quanto no

sec. XV há exemplares de BALLATA caracterizados como 'contrafacta' de LAUDE.

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--> Normalmente, os piedi têm o mesmo número de versos que a ripresa (e avolta) ou um verso a menos.

--> Exceto pelas terminações diferentes (aperto/verto e chiuso) os piedi sãomusicalmente indiferenciados. Assim, usualmente a partitura inclui músicaapenas para a ripresa (que servirá também para a volta) e para o primeiro piede-- raramente, a música segundo piede é escrita (i.e., a música do primeiro piederepetida com outros versos) ou sofre modificações significativas além deeventuais acertos de prosódia.

--> Usualmente existem 3 estrofes (como no VIRELAI).

-- caráter dos textos:– de amor– laudatório– líricos

Exemplo:

--> (NAWM 23) "Non avrà ma' pietà" de Francesco Landini (ca. 1325–1397) --também chamado Franciscus Caecus, Francesco degli organi, Franciscus de Florentia.

• Esta obra esta incluída no MS denominado Squarcialupi Codex(ca. 1380–1420) -- referenciado pela abreviatura Sq (ou pela sigla I-Fl 87).Esse MS contém o maior número de obras de Landini num único manuscrito.• Cabe notar, nesta peça, a existência da chamada 'cadência de Landini ' e da'cadência de dupla sensível'.

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MADRIGAL

==> Este termo pode ter sido derivado de "mandriale" (que contém o radical"mandria") qualificativo de 'ambiente pastoral', ou de "matricale", qualificativoque faz referência à 'língua materna' (i.e., 'vernáculo').

-- texto poético em idioma italiano

-- 2 vozes c/ texto

-- polifonia -- habitualmente "a cappella"

-- presença de ochetus

-- tessitura reduzida

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-- estrutura:a a B ou a a a B -- a seção B é denominada ritornello

-- caráter dos textos:--> idílico, pastoral, de amor, satírico, moral(izante)--> mais descritivo/menos lírico que a BALLATA; menos descritivo/mais lírico que aCACCIA

--> 2 (ou 3) estrofes de 3 versos (linhas) -- mesma música--> ritornello com 1 ou 2 versos (linhas), contendo:

• música diferente do restante da estrofe• normalmente em outra organização rítmica• reminiscentes da 'tornada' Trobadoresca

Exemplos:

--> "Quando i oselli canta"-- Anônimo-- 1º madrigal trecentista (ca. 1330?)

--> "Fenice fù" (NAWM 22)-- Jacopo da Bologna (fl. 1340–?1360)

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CACCIA (Fr., chace, chasse; Lat., fuga) -- fl. 1345–1370

-- texto poético em idioma italiano

-- 2 vozes c/ texto + 1 instrumental

-- tessitura reduzida

-- uso de imitação (canon -- uníssono) -- aparentemente prática popularmente difundida

-- pode haver uso de ochetus, eco e outros recurso expressivo-descritivos

-- estrutura bipartida: a B-- a -- bastante extensa.-- B -- curta, podendo tomar a forma de um ritornello (c/ mudança de metrorítmico), podendo ser analisado como reminiscente da tornada Trobadoresca.

-- caráter dos textos:– idílico, vivaz, humor/espirituoso (batalhas, festas, flores, pássaros, etc.), maistarde também textos de amor– descritivo

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GUILLAUME DE MACHAUT (ca.1300-?1377)

-- Grafias -- Além da consagrada grafia Machaut, a alternativaMauchault foi proposta por Armand Machabey (1886-1966,musicólogo) com base na grafia moderna da cidade homônima (naregião de Champagne -- noroeste da França). No entanto, acredita-se queGuillaume de Machaut tenha nascido na cidade de Reims (tambémgrafada Rheims, que pertence à mesma região de Machault), onde eleveio a falecer. Ainda com base na pesquisa de Machabey junto àmunicipalidade de Reims, foi encontrado o registro de um certoWillaume Machaux (que lá teria vivido e atuado por volta de 1310),possivelmente pai de Guillaume. Para maiores informações ver o livro deMachabey intitulado Guillaume de Machault: la vie e l'oeuvre musicale(Paris, 1955). Outras grafias encontradas são: Machaud, Machaud e(na versão latinizada) Guillelmus de Machaudio.

-- 1323 ----> Serviu a Jean, Conde de Luxemburgo e Rei da Bohemia, como seu secretário(cargo ocupado até a morte do Rei -- morto na Batalha de Crécy, durante aGuerra dos Cem Anos, em 1346).

-- 1324 ----> Data mais antiga de registro de uma composição de Machaut: o moteto Bonepastor Guillerme/Bone pastor qui pastores/[tenor] -- em comemoração àeleição de Guillaume de Trie ao cargo de Arcebispo de Reims.

-- 1327-30 ----> Provavelmente acompanhou o Rei "em suas diversas perigrinações eexpedições bélicas pelo território europeu" (TNG 1, v. 11, p. 428; traduçãominha).

-- 1330 ----> Bulas papais (pelo papa Bento [ou Benedito] XII)

(a) concedendo a Machaut o cargo de Canon (Cônego) em Reims;

(b) "permitindo a ele que retivesse o cargo de Canon de St. Quentin" e deCapelão "na diocése de Arras" (HOPPIN, 1978, p. 397; tradução minha);

(c) declarando que Machaut era "um 'funcionário, secretário e familiar' (i.e.,membro da residência) de Jean da Bohemia" (HOPPIN, 1978, p. 397; traduçãominha).

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-- post 1346 ----> Após a morte do Rei da Bohemia, Machaut esteve sob a proteção de (e serviua) diversos patronos nobres.

--> Bonne de Luxemburgo (filha de Jean, Rei da Bohemia), que morreuem 1349.

--> Charles, Rei de Navarre (1322-1387), conhecido como Charles II(i.e., Carlos II), o Mau, que aspirava ao trono da França, em posse de seusogro, Jean II, Rei da França (rei, 1350-1364), preso pelos ingleses em1356 na Batalha de Poitiers (durante a Guerra dos Cem Anos),aparentemente com a colaboração de Charles.

--> Charles V, Rei da França, o Sábio (1337-80; rei, 1364-80), sucedeu aseu pai Jean II, que morreu na Inglaterra em 1364. Charles V [i.e., CarlosV] parece ter feito uma visita pessoal a Machaut, em Reims, em 1361.

--> Amadeus de Savoy, para quem Machaut parece ter produzidomanuscritos de suas obras.

--> Jean, Duque de Berry (irmão de Charles V), parece ter sustentadoMachaut por volta de 1371. Machaut também parece ter produzidomanuscritos de suas obras para ele.

-- 1348-49 ----> Peste Negra -- Período em que a peste se espalhou pela França e o piorperíodo epidêmico desta doença pela Europa inteira (incl. Inglaterra) -- esta foiprovavelmente a época que Machaut se referia quando, em um poema, relata terse fechado em sua casa, fugindo à vida urbana, à espera da morte e ouvindo osgritos, clamores e gemidos dos que passavam pelas ruas.

==> Os primeiros indícios da doença na Europa foram observados em1346; os últimos indícios, em 1351-52.

-- décadas de 1340-50 ----> Cerco inglês à cidade de Reims, durante a Guerra dos Cem Anos(possivelmente extendendo-se de 1339 a 1360).

-- 1361-65 ----> Período (segundo Machabey) no qual Machaut desenvolveu sua relação comPéronne d'Armentières (então no final da adolescência, provavelmente com 19anos).

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ORGANIZAÇÃO DAS OBRAS DENTRO DOS MANUSCRITOS

==> De acordo com o manuscrito Mach A (F-Pn, fr. 1584, provavelmente oterceiro na cronologia) -- cf., abaixo, o item CRONOLOGIA PROVÁVEL DOS

CHAMADOS "MANUSCRITOS DE MACHAUT", além de (HOPPIN, 1978, p. 400).

Poesia

1. Prologue (1371?), em 4 das 6 folhas iniciais, não-numeradas, adicionadas ao iníciodo MS.

--> Este prólogo enfatiza a importância das composições musicais e dopoema intitulado Remède de Fortune.)

2. Le Dit du Vergier f. 1 3. Le Jugement du Roi de Behaigne (a. 1346) f. 9v 4. Le Jugement du Roi de Navarre (1349) f. 22v

5. Remède de Fortune (1342–49?) f. 49v

--> Propósito didático

--> 4 peças monofônicas:

lai (Qui n'aroit autre depot) [12 estrofes regulares]virelai (Dame, a vous sans retollir)[6/8,trocáico/iâmbico]complainte (Tels rit au main qui au soir)chanson royale (Joie, plaisence et douce norriture)

--> 3 peças polifônicas:

rondeau (Dame, mon cuer en vous) - 3vvballade (En amer a douce vie) - 3vv [AAB]ballade (Dame de qui toute ma joie vient) - 3 vv [AABB]

6. Dit Du Lyon (1342) f. 80v 7. Dit de L'Alerion (a. 1349) f. 96v 8. Confort d'Ami (1357) f. 127 9. Dit de la Fonteinne Amoureuse (ca.1361) f. 15410. Dit de la Harpe f. 17411. La Louange des Dames (268 poemas líricos) f. 177v12. Dit de la Marguerite f. 213v13. Le Complaintes (8 textos) f. 214v

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14. [Le] Livre du Voir Dit (c.1365) f. 221

--> 46 cartas em prosa (trocadas entre Machaut e Péronne), entremeadasde poemas que estabelecem uma ligação e uma "explicação poética" àscartas.

--> Inclui 8 peças musicais: lai (1); rondeau (3); ballade (4).

-- Em uma das cartas, Machaut menciona a omissão de umrondeau adicional, porque ele não havia terminado suacomposição, e aponta alguns de seus procedimentoscomposicionais: (a) poesia e melodia principal (cantus); (b)adiciona tenor e contratenor. No caso desse rondeau, ele o teriaomitido por faltarem ainda as partes de tenor e contratenor.

-- O Rondeau intitulado Dix et sept, cinc, trese (no. 17 dentre os22 de Machaut, mas integrante do Livre du voir dit), apresentaum anagrama (ou acróstico) numérico do nome de Péronne.

15. La Prise d'Alexandrie (p. 1369) f. 30916. Dit de la Rose f. 365v17. Les biens que ma dame me fait f. 366

Música

18. Lais (22; 6 sem música; nos. 17 and 18 faltando) f. 36719. Motets (23) f. 414v20. Missa f. 438v21. Ochetus David f. 451v

22. Ballades (38; nos. 39 and 40 missing) f. 454

--> As primeiras 16 ballades parecem ter sido compostas (tanto poesiaquanto música) antes de 1349, representando assim aprox. 40% do totalde 42 ballades (i.e., incluindo 2 do Remède).

23. Rondeaux (19; nos. 16 and 21 missing [no.16, s/ mús. em MS posterior]) f. 47524. Virelais (38; 6 sem música) f. 482–494v

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==> A organização apresentada no MS A é compartilhada (com modificaçõesbastante pequenas) por todos os manuscritos.

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==> A ordem das obras da parte poética é virtualmente (embora nãocompletamente) cronológica.

==> Na parte musical, as composições são inicialmente agrupadas por gêneroou forma. Internamente a esses agrupamentos, acredita-se que Machaut tenhamantido uma ordem também virtualmente cronológica -- este fato parece sercorroborado por análises e especulações quanto ao desenvolvimento de umidioma musical próprio (características e estilo) Machaut.

==> Parece que, até ca. 1349, Machaut teria composto aprox. 30% de suaprodução total (incluindo poesia e composições musicais). Assim, se a data doPrologue (?1371) for interpretada como a data do MS A em si, dever-se-áassumir que os restantes 70% da obra de Machaut podem ter sido compostosnos 22 a 25 anos seguintes.

==> Tanto em Remède de Fortune quanto em La Prise d'Alexandrie, Machautescreveu trechos (internos aos poemas, mas não-musicados) em que ele catalogadiversos instrumentos.6

==> Hoppin declara:

Apesas de poucas irregularidades [...], a maioria dos manuscritosapresenta, aproximadamente na mesma ordem, os tipos musicaisimportantes e as peças individuais. Dessa forma, eles [os manuscritos]nos revelam o alcance extraordinariamente amplo das realizaçõesmusicais de Machaut.(HOPPIN, 1978, p. 403; tradução minha)

Embora isto possa ser verdade, parece mais importante especular sobre as razõespelas quais isto revela um "alcance extradiornariamente amplo [de] realizações".Em primeiro lugar, ele denota um extraordinário controle e poder de Machautsobre a produção de cópias de seus trabalhos. (Se Machaut acompanhou aprodução daqueles manuscritos diretamente ou se foi apenas à distância, tal fatoatesta em favor de um poder de interferência que ele soube reservar a si mesmo,inclusive com requintes em termos da própria ordem e organização interna. Poroutro lado, se ele não tivesse acompanhado a produção daqueles manuscritos tãodiretamente quanto se acredita atualmente, então seu poder de interferência éainda mais corroborado, pois seria advindo não de sua direta intervenção epresença, mas de sua fama como poeta e músico, através de sua ausência.) Emsegundo lugar, ele denota que Machaut tinha uma forte noção histórica, tanto

6 É interessante notar que esta tendência ao catálogo será utilizada dramaticamente em óperas

da segunda metade do sec. XVIII e início do sec. XIX (ou mesmo mais tarde), ou mesmo na literatura

modernista dos sec. XIX e XX.

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de sua herança passada, quanto de sua possível influência e contribuição aofuturo. Em terceiro lugar, não deve haver dúvidas de que o cuidado de Machaut(na produção de manuscritos) e seu senso histórico (ou consciência) devem tersido acompanhados por um aguçado senso de individualidade (ou mesmo deum possível egocentrismo, pelo menos para seu tempo), assim como por umapercepção sobre a importância dessa individualidade e sua influência nasociedade da época.

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CRONOLOGIA PROVÁVEL DOS CHAMADOS "MANUSCRITOS DE MACHAUT"

Mach A -- F-Pn, fr. 1584 ......................... 3Mach B -- F-Pn, fr. 1585 ......................... 4Mach C -- F-Pn, fr. 1586 ......................... 1 -- (o mais antigo - p.a. 1400)Mach E -- F-Pn, fr. 9221 ......................... 6 -- (o mais tardio - 1400)Mach F-G -- F-Pn, fr. 22545-22546 (em 2 volumes) ......... 5 -- (o maior)---- Vg -- US-NY (Wildenstein Galleries--Vogüé MS) ...... 2 -- (c.1396)

==> Para tentativas mais apuradas de cronologia, veja os seguintes títulos:

REANEY, Gilbert. "Towards a Chronology of Machaut's Musical Works,"Musica Disciplina, v. 21 (1967), p. 87–96.

MACHABEY, Armand. Guillaume de Machault: la vie e l'oeuvre musicale.Paris: s.ed., 1955.

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* MISSA DE 'NOTRE DAME' (MESSE DE NOSTRE DAME) * +

-- Missa a 4 vozes (do grave ao agudo: contratenor, tenor, motetus/duplum, triplum)

-- A importância da Missa de 'Notre Dame' pode ser entendida através de diversosaspectos:

--> é a obra musical de Machaut de maiores proporções;--> é a única obra de Machaut com função litúrgica;--> é a primeira (i.e., mais antiga) Missa polifônica completa sobrecantos do Ordinarium (Kyrie; Gloria; Credo; Sanctus; Agnus Dei; Ite,missa est) na qual apenas um único compositor é identificado -- videabaixo observação a respeito de composições feitas sobre cantos doOrdinarium.

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Cantos do Ordinarium Estilo composicional Base do modo eclesiástico

Kyrie moteto isorrítmico Protus

Gloria "estilo simultâneo" Protus

Credo "estilo simultâneo" Protus

Sanctus moteto isorrítmico Tritus

Agnus Dei moteto isorrítmico Tritus

Ite, missa est moteto isorrítmico Tritus

-- Movimentos isorrítmicos

--> Utilizam melodias baseadas no repertório de cantochão tradicional: Kyrie IV(LU, 25); Sanctus e Agnus Dei XVII (LU, 61–62); Ite, missa est (LU, 38) -- esteúltimo extraído do Sanctus VIII, ao invés de um dos cantos utilizados anteriormente,como seria usual dentro do repertório de cantochão.

--> Demonstram tendência a não utilizar o recurso da repetição-de-tenor, ou seja,apresentam apenas uma color, embora dividida em diversas taleae.

--> Muitas vezes o procedimento isorrítmico é verificado também no contratenor, oumesmo nas vozes superiores (nestas, apenas parcialmente isorrítmicas).

--> Vozes superiores costumam fazer uso de síncopas e de ochetus.

==> Peças polifônicas sobre cantos do Ordinarium já haviam sido compostas nossec. XII e XIII, embora tenha havido um maior número de composições sobre cantos doProprium -- talvez porque a necessária presença de solistas nesses cantos pode terfacilitado a execução polifônica. Parece inevitável, no entanto, conjecturar quecomposições polifônicas sobre cantos do Ordinarium poderiam adquirir algum caráterpragmático, pois seus textos são repetidos diariamente e, portanto, as composiçõespodem ser mais facilmente utilizadas e assimiladas -- mas não existe qualquer indíciodocumental de que tal conceito de pragmatismo tenha sido utilizado. De qualquer modo,datam do início do sec. XIV (ou de finais do sec. XIII) os primeiros exemplares deMissas completas -- de fato, "é no sec. XIV que a palavra Missa (como composiçãomusical) adquiri o sentido específico mantido até os nossos dias" (HOPPIN, 1978,p. 377; tradução minha). No entanto, apesar dessa nova tendência polifônica sobre oOrdinarium, os manuscritos apresentam Missas onde virtualmente não há qualquerrelação musical entre os vários cantos, sendo aceito entre os musicólogos que cada umdeles pode ter sido composto por autores diferentes (todos anônimos). A Missa deMachaut é a primeira com todas as partes declaradamente compostas por um único autor(identificado).

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PERFORMANCE NO SEC. XIV(indícios que possibilitam discernir se há ou não uso e/ou participação de instrumentos)

-- Conduções melódicas tipicamente vocais versus conduções melódicas instrumentais.

-- Presença ou ausência de texto.

-- Possibilidade de cantores dobrados por instrumentos, ou alternando cominstrumentos.

-- Presença inequívoca de arranjos em idioma instrumental (e.g., notação por meio detablaturas) de peças aparentemente destinadas ao canto.

ARS SUBTILIOR (ca. 1370–1420)

-- Origem do termo -- Antigamente chamado de Maneirismo da Idade Média (oumesmo Maneirismo da Ars Nova) o termo ARS S UBTILIOR foi proposto pela musicólogaUrsula Günther em 1963, a partir de termos semelhantes, em tratados teóricos da época,que falavam da capacidade (ou possibilidade) de 'sutileza' que poderia ser transmitida (eatingida) através da notação musical da época -- a um tempo também chamada denotação maneirista.

-- Eventos marcantes-- 1377-- Morte de Guillaume de Machaut

-- Papa Gregório XI deixa Avignon e re-estabelece o papado em Roma-- 1378 -- O Grande Cisma propriamente dito se inicia, terminando com o

Concílio de Constância 1410–1414/17 -- De 1378 a 1410, doispapas: Urbano VI (em Roma), e Clemente VII (fugido de Roma einstalado em Avignon). De 1410 a 1417, três papas: Urbano VI,Bento XIII [sucessor de Clemente VII], e João XXIII.

-- Influência -- A ARS SUBTILIOR foi influenciada principalmente pela da músicafrancesa, tendo o retorno do papado a Roma (após o período de Avignon)desempenhado um importante papel nesse aspecto. Compositores italianos quehaviam sido trazidos a Avignon (e seus sucessores) assimilaram a notação, técnica,formas e conceitos musicais franceses. Ao mesmo tempo, compositores francesesforam levados para Roma como parte da nova capela papal.

==> Este é inclusive um período em que se encontram compositoresitalianos compondo em francês, e compositores franceses migrandopara a Itália.

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-- Notação -- A notação da ARS SUBTILIOR é caracterizada por uma grande amálgamaentre as notações francesa e italina (em termos de conceitos, formas de apresentaçãográfica, mensuração, etc.). No entanto, existe uma clara predominância da notaçãofrancesa, que pode ser facilmente entendida como base para o desenvolvimento danotação subtilior. Em qualquer dos entendimentos, a notação subtilior foi vista, emsua própria época, como um recurso que deveria facilitar e influenciar a realizaçãomusical; ou seja, que deveria impressionar o intérprete aberta- e sutilmente. O temor"Augenmusik" (lit., "Música para os olhos") foi aplicado à notação deste períodopara representar esse aspecto gráfico e as intenções de realização embutidas nanotação, tendo o intérprete como alvo. Esses intérpretes, por sua vez, deveriam ser(naturalmente) bem-ensinados nesta nova arte notacional, pois deveriam estarhabilitados a ler e interpretar divesos símbolos (muitos abandonados mais tarde) queserviam à precisão rítmica, ou mesmo a varições de altura e inflexão.

-- Precursores da profissionalização -- Nesta época, se inicia um processo decontratação (ainda que incipiente) de artistas pelas cortes européias (tantoeclesiásticas quanto seculares), alimentando aquilo que se transformaria no sistemade PATRONATO, vigorando desde o Renascimento até o Classicismo. Assim, músicosseriam paulatinamente caracterizados como empregados (servos) das cortes;conseqüentemente se profissionalizando.

-- Público-alvo -- Trata-se de uma arte aristocrática, feita para a aristocracia e porpessoas altamente eruditas, pois inclui complexidades tanto no plano musical(notação; tratamentos harmônicos, melódicos e rítmicos), quanto no plano literário(simbolismos e alegorias; críticas sociais; etc.).

-- Tratamento harmônico e melódico -- "Harmonias" e melodias elaboradas, muitasvezes "cromáticas" (pelo menos aos ouvidos modernos)

-- Tratamento rítmico -- Ritmo altamente elaborado (síncopas, suspensões, mudançasfreqüentes de metro, execução aparentemente "livre"/"rubato")

-- Alguns compositores

-- Solage (fl. 1370–1390)

-- Baude Cordier (fl. in. sec. XV)

-- Anthonello de Caserta (fl. ex. sec. XIV – in. sec. XV)

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-- Matteo da Perugia (fl. in. sec. XV; † a. 1418)

-- Johannes Ciconia (ca. 1370–1412) <== datas de acordo com estudos +recentes- considerado por muitos musicólogos como o 1º compositor da geração

franco-flamenga e, portanto, um compositor de transição entre o finalda Idade Média e o Renascimento.

-- Principais manuscritos -- O repertório de Ars Subtilior foi transmitido aos dias dehoje principalmente através de dois manuscritos, ambos produzidos tardiamentedentro das duas primeiras décadas do sec. XV: Modena Codex (abrev.: Mod) eChantilly Codex (abrev.: Ch)

Exemplo:

==> "Fumeux fume par fumee" -- Solage (fl. 1370–1390)- Rondeau (ABaAabAB)- Síncopas (esp. na voz interna -- "Contratenor": mesma tessitura que o "Tenor")- Fumo/fumaça

(simbolismos)-- como um 5º humor (cólera, sanguínea, fleugma, melancolia)-- como inalação de fumaça-- dificilmente se referia ao ato de 'fumar'