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    Edio PDF de Fl.Castro, abril 2002

    VOLUME II

    A Paixo de Nosso Senhor Jesus CristoPiedosas e edificantes meditaes

    sobre os sofrimentos de Jesus

    Por Sto. Afonso Maria de Ligrio

    Traduzidas pelo Pe. Jos Lopes Ferreira, C.Ss.R.

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    OPSCULO IV

    CAPTULO I

    Reflexes gerais sobre a paixo

    de Jesus CristoMeu livro.1.Quanto agrada a Jesus Cristo que ns nos lembremos continu-

    amente de sua paixo e da morte ignominiosa que por ns sofreu,muito bem se deduz de haver ele institudo o Santssimo Sacramentodo altar com o fito de conservar sempre viva em ns a memria doamor que nos patenteou, sacrificando-se na cruz por nossa salvao.J sabemos que na noite anterior sua morte ele instituiu este sacra-

    mento de amor e depois de ter dado seu corpo aos discpulos, disse-lhes e na pessoa deles a ns todos que ao receberem a santacomunho se recordassem do quanto ele por ns padeceu: Todasas vezes que comerdes deste po e beber de deste clice, anunciareisa morte do Senhor (1Cor 11,26). Por isso a santa Igreja, na missa,depois da consagrao , ordena ao celebrante que diga em nome deJesus Cristo: Todas as vezes que fizerdes isto, fazei-o em memriade mim. E S. Toms escreve: Para que permanecesse sempre vivaentre ns a memria de to grande benefcio, deixou seu corpo paraser tomado como alimento (Op. 57). E continua o santo a dizer quepor meio de um tal sacramento se conserva a memria do amor imensoque Jesus Cristo nos demonstrou na sua paixo.

    2. Se algum padecesse por seu amigo injrias e ferimentos esoubesse que o amigo, quando se falava sobre tal acontecimentonem sequer nisso queria pensar e at costumava dizer: falemos deoutra coisa que dor no sentiria vendo o desconhecimento de umtal ingrato? Ao contrrio, quanto se consolaria se soubesse que oamigo reconhece dever-lhe uma eterna obrigao e que disso sem-

    pre se recorda e se lhe refere sempre com ternura e lgrimas? Porisso que todos os santos, sabendo a satisfao que causa a JesusCristo quem se recorda continuamente de sua paixo, esto quasesempre ocupados em meditar as dores e os desprezos que sofreu o

    REFLEXES SOBRE A PAIXODE JESUS CRISTO EXPOSTAS

    S ALMAS DEVOTAS

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    amantssimo Redentor em toda a sua vida e particularmente na suamorte. S. Agostinho escreve que as almas no podem se ocupar comcoisa mais salutar que meditar cotidianamente na paixo do Senhor.Deus revelou a um santo anacoreta que no h exerccio mais pr-prio para inflamar os coraes com o amor divino do que o meditar namorte de Jesus Cristo. E a S. Gertrudes foi revelado, segundo Blsio,que todo aquele que contempla com devoo o crucifixo tantas

    vezes olhado amorosamente por Jesus quantas ele o contempla. Ajun-ta Blsio que o meditar ou ler qualquer coisa sobre a paixo traz-nosmaior bem que qualquer outro exerccio de piedade. Por isso escreveS. Boaventura: A paixo amvel que diviniza quem a medita (Stim.div. amor. p. 1. c. 1). E falando das chagas do crucifixo, diz que sochagas que ferem os mais duros coraes e inflamam no amor divinoas almas mais geladas.

    3. Narra-se na vida do Beato Bernardo de Corleone, capuchinho,que desejando seus confrades instru-lo na leitura foi aconselhar-se

    com seu crucifixo e o Senhor lhe respondeu: Que ler, que livros! Teulivro quero ser eu crucificado, no qual lers o amor que te consagro.Jesus crucificado era igualmente o livro predileto de S. Filipe Bencio.Ao morrer, o santo pediu que lhe dessem seu livro. Os assistentesno sabiam a que livro se referia; Frei Ubaldo, porm, trouxe-lhe aimagem do crucificado e ento exclamou o santo: Este o meu livro,e beijando as sagradas chagas entregou a Deus sua bendita alma.Nas minhas obras espirituais escrevi repetidas vezes sobre a paixode Jesus Cristo: julgo, contudo, no ser intil s almas piedosas ajun-

    tar aqui muitas outras coisas e reflexes, que li em diversos livros ouque me vieram ao esprito. Eu quis aqui escrev-las para proveito dosoutros, mas ainda mais para meu prprio proveito, pois, ao escrevereste livrinho, acho-me perto da morte, na idade de 77 anos, e porisso quis reproduzir estas consideraes para aparelhar-me para odia das contas. E de fato eu fao minhas pobres meditaes sobreesse assunto, lendo muito a mido qualquer trecho, para, quandochegar a hora extrema de minha vida, achar-me acostumado a terdiante dos olhos Jesus crucificado, que toda a minha esperana:dessa forma conto ter, ento, a sorte de entregar minha alma nas

    suas mos. Entremos, pois, nas tais reflexes.

    O Salvador.1. Ado peca e se rebela contra Deus e sendo ele o primeiro

    homem, pai de todos os homens, perdeu-se com todo o gnero hu-mano. A injria foi feita a Deus, motivo por que nem Ado nem osoutros homens, com todos os sacrifcios, mesmo oferecendo sua pr-pria vida, poderiam dar uma digna satisfao Majestade divina; paraaplac-la plenamente era necessrio que uma pessoa divina satisfi-zesse a justia divina. E eis que o Filho de Deus, movido compai-xo pelos homens, arrastado pelos extremos de sua misericrdia, se

    oferece a revestir-se da carne humana e a morrer pelos homens, paraassim dar a Deus uma completa satisfao por todos os seus peca-dos e obter-lhes a graa divina que perderam.

    Desce, pois, o amoroso Redentor a esta terra e fazendo-se ho-mem quer curar os danos que o pecado causara ao homem. Portan-to, quer no s com seus ensinamentos mas tambm com os exem-plos de sua santa vida induzir os homens a observar os preceitosdivinos e por essa maneira conseguir a vida eterna. Para esse fimJesus Cristo renunciou a todas as honras, s delcias e riquezas deque podia gozar neste mundo e que lhe eram devidas como ao Se-

    nhor do mundo, e escolhe uma vida humilde, pobre e atribulada atmorrer de dor sobre uma cruz. Foi um grande erro dos judeus pensarque o Messias devia vir terra para triunfar de todos os seus inimigoscom o poder das armas e, depois de os ter debelado e adquirido odomnio do mundo inteiro, deveria tornar opulentos e gloriosos osseus sequazes. Mas se o Messias fosse qual os judeus o desejavam,prncipe soberano e honrado de todos os homens como senhor detodo o mundo, no seria o Redentor prometido por Deus e preditopelos profetas. o que ele mesmo declara quando responde a Pilatos:

    O meu reino no deste mundo (Jo 18,36). Por esse motivo repre-ende S. Fulgncio a Herodes por ter to grande temor de ser privadodo seu reino pelo Salvador, quando ele no viera para vencer o reipela guerra, mas a conquist-lo com sua morte (Serm. 5 de Epiph.).

    2. Dois foram os erros dos judeus a respeito do Redentor espera-do: o primeiro foi que, quando os profetas falavam dos bens espiritu-ais e eternos, eles o interpretavam dos bens terrenos e temporais. Ea f reinar nos teus tempos; a sabedoria e a cincia sero as rique-zas da salvao; o temor do Senhor esse o teu tesouro (Is 33,6).

    Eis os bens prometidos pelo Redentor, a f, a cincia das virtudes, osanto temor, eis as riquezas da prometida salvao. Alm disso pro-mete que dar remdio aos penitentes, perdo aos pecadores e li-berdade aos cativos dos demnios: Enviou-me para evangelizar os

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    mansos, para curar os contritos de corao e pregar remisso aoscativos e soltura aos encarcerados (Is 61,1).

    O outro erro dos judeus foi que pretenderam entender da primei-ra vinda do Salvador o que fora predito pelos profetas da segundavinda, para julgar o mundo no fim dos sculos. Assim, escreve Davido futuro Messias que ele dever vencer os prncipes da terra e aba-ter a soberba de muitos e com a fora da espada subjugar toda a

    terra (Sl 109,6). E o profeta Jeremias escreve: A espada do Senhordevorar a terra de um extremo a outro (Lm 12,12). Isso, porm,entende-se da segunda vinda, quando vier como juiz a condenar osmalvados. Falando, porm, da primeira vinda, na qual deveria consu-mar a obra da redeno, mui claramente predisseram os profetas queo Redentor levaria neste mundo uma vida pobre e desprezada. Eis oque escreve o profeta Zacarias, falando da vida abjeta de Jesus Cris-to: Eis que o teu rei vir a ti, justo e salvador; ele pobre e vemmontado sobre uma jumenta e sobre o potrinho da jumenta (Zc 9,9).

    Esta profecia realizou-se plenamente quando Jesus entrou em

    Jerusalm, assentado sobre um jumento, sendo recebido com todasas honras, como o Messias desejado, segundo o testemunho de S.Joo (Jo 12,14). Tambm sabemos que ele foi pobre desde o seunascimento, tendo vindo a este mundo em Belm, lugar desprezado,e numa manjedoura: E tu, Belm Efrata, tu s pequenina entre osmilhares de Jud, mas de ti que h de sair aquele que h de reinarem Israel e cuja gerao desde o princpio, desde os dias da eterni-dade (Mq 5,2). E essa profecia foi assinalada por S. Mateus (2,6) e S.Joo (7,42). Alm disso escreve o profeta Osias: Do Egito chamarei

    o meu Filho (11,1), o que se realizou quando Jesus Cristo, comomenino, foi levado para o Egito, onde permaneceu sete anos comoestranho no meio de gente brbara, dos parentes e dos amigos, de-vendo viver necessariamente mui pobremente. Continuou, depois devoltar Judia, a levar uma vida pobre. Ele mesmo predisse pelaboca de Davi que pobre deveria ser durante toda a sua vida e atribu-lado pelas fadigas: Eu sou pobre e vivo em trabalhos desde a minhamocidade (Sl 87,16).

    A expiao.

    1. Deus no podia ver plenamente satisfeita a sua justia com ossacrifcios oferecidos pelos homens, mesmo sacrificando-lhe suasvidas e, por isso, disps que seu prprio Filho tomasse um corpohumano e fosse a digna vtima que o reconciliasse com os homens e

    lhes obtivesse a salvao. No quiseste hstia nem oblao, mas tume formaste um corpo (Hb 10,5). E o Filho unignito se ofereceuvoluntariamente a sacrificar-se por ns e desceu terra para comple-tar o sacrifcio com sua morte e assim realizar a redeno do homem:Eis, aqui venho para fazer, Deus, a tua vontade, como est escritode mim no princpio do livro (Hb 10,7).

    Pergunta o Senhor, referindo-se ao pecador: Que importar que

    eu vos fira de novo? (Is 1,5). Isso dizia Deus, para nos dar a entenderque, por mais que punisse os seus ofensores, suas penas no seri-am suficientes para reparar a sua honra ultrajada, e por isso enviouseu prprio Filho a satisfazer pelos pecados dos homens, visto queele podia dar uma digna reparao justia divina. Depois declaroupor Isaas, falando de Jesus feito vtima para expiar nossas culpas:Eu o feri por causa dos crimes de meu povo (53,8), e no se conten-tou com uma pequena satisfao, mas quis v-lo abatido pelos tor-mentos: E o Senhor quis quebrant-lo na sua enfermidade (Is 53,10). meu Jesus, vtima de amor, consumida de dores na cruz para

    pagar os meus pecados, desejaria morrer de dor, pensando quantasvezes vos tenho desprezado depois de tanto me haverdes amado.No permitais que eu continue a viver to ingrato a to grande bon-dade. Atra-me todo a vs: fazei-o pelos merecimentos desse sangueque derramastes por mim!

    Quando o Verbo divino se ofereceu para remir os homens, deduas maneiras se podia fazer essa redeno: uma por meio do gozoe da glria, outra das penas e dos vituprios. Ele, porm, que comsua vinda no s pretendia livrar o homem da morte eterna, mas

    tambm ganhar a si o amor de todos os coraes humanos, repeliu ocaminho do gozo e da glria e escolheu o das penas e dos vituprios(Hb 10,34). A fim, portanto, de satisfazer por ns a justia divina ejuntamente para inflamar-nos com seu santo amor, quis qual crimino-so sobrecarregar-se de todas as nossas culpas e, morrendo sobreuma cruz, obter-nos a graa e a vida feliz. justamente o que expri-me Isaas quando afirma: Verdadeiramente ele foi o que tomou so-bre si as nossas fraquezas e ele mesmo carregou com as nossasdores (Is 53,4).

    2. Disso encontram-se duas figuras claras no Antigo Testamento:a primeira era a cerimnia usada todos os anos do bode emissrio sobre o qual o sumo pontfice entendia impor todos os pecados dopovo e por isso todos, cumulando-o de maldies, o enxotavam para

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    a floresta para servir a de objeto ira divina (Lv 16,5). Esse bodefigurava nosso Redentor, que quis espontaneamente sobrecarregar-se com todas as maldies a ns devidas por nossos pecados (Gl3,13), feito por ns maldio, para nos obter as bnos divinas. Eassim escreve o Apstolo em outro lugar: Aquele que desconhecia opecado, f-lo por ns, para que ns fssemos feitos justia de Deusnele (2Cor 5,21). Como explicam S. Ambrsio e S. Anselmo, aquele

    que era a mesma inocncia, f-lo pecado; revestiu-se com as vestesdo pecador e quis tomar sobre si as penas devidas a ns pecadores,para nos obter o perdo e nos tornar justos aos olhos de Deus.

    A segunda figura do sacrifcio que Jesus Cristo ofereceu por nsa seu eterno Pai na cruz, foi a serpente de bronzesuspensa em umposte, que curava os hebreus mordidos pela serpente de fogo, quan-do para ela olhavam (Nm 21,8). Assim escreve S. Joo: Como Moisssuspendeu a serpente no deserto, assim importa que seja levantadoo Filho do homem, para que todo o que cr nele no perea, mastenha a vida eterna (Jo 3,14).

    luz das profecias.1. preciso refletir que no captulo 2. da Sabedoria est predi-

    ta a morte ignominiosa de Jesus Cristo. Ainda que as palavras dessecaptulo possam se referir morte de qualquer homem justo, contu-do, afirma Tertuliano, S. Cipriano, S. Jernimo e muitos outros santosPadres, que de modo especial quadram morte de Cristo: A se dizno versculo 18: Se realmente o verdadeiro filho de Deus, ele oamparar e o livrar das mos dos contrrios. Essas palavras

    correspondem perfeitamente ao que diziam os judeus, quando Jesusestava na cruz: Confiou em Deus: livre-o agora, se o ama; pois disseque era filho de Deus (Mt 27,43). Continua o sbio a dizer: Faa-mos-lhe perguntas por meio de ultrajes e tormentos... e provemos asua pacincia. Condenemo-lo a uma morte a mais infame (Sb 2,19-20). Os judeus escolheram para Jesus Cristo a morte da cruz, queera a mais ignominiosa, para que seu nome ficasse para sempre avil-tado e no fosse mais relembrado, segundo um outro testemunho deJeremias: Ponhamos madeira no seu po e exterminemo-lo da terrados viventes e no haja mais memria de seu nome (Jr 11,19). Ora,

    como podem dizer hoje em dia os judeus ser falso que Jesus fosse oMessias prometido, por ter sido arrebatado deste mundo por umamorte torpssima, quando seus mesmos profetas haviam predito queele deveria ter uma morte to vil?

    2. Jesus aceitou, porm, semelhante morte porque morria parapagar os nossos pecados: tambm por esse motivo quis qual peca-dor ser circuncidado, ser resgatado quando foi apresentado ao tem-plo, receber o batismo de penitncia de S. Joo. Na sua paixo final-mente quis ser pregado na cruz para pagar por nossos licenciosasliberdades, com a sua nudez reparar a nossa avareza, com os opr-brios a nossa soberba, com a sujeio aos carnfices a nossa ambi-

    o de dominar, com os espinhos os nossos maus pensamentos,com o fel a nossa intemperana e com as dores do corpo os nossosprazeres sensuais. Deveramos por isso continuamente agradecer comlgrimas de ternura ao eterno Pai por ter entregue seu Filho inocente morte para livrar-nos da morte eterna. O qual no poupou seuprprio Filho, mas entregou-o por todos ns: como no nos deu tam-bm com ele todas as coisas? (Rm 8,32). Assim fala S. Paulo e oprprio Jesus diz, segundo S. Joo (3,16): Assim Deus amou o mun-do que lhe deu seu Filho unignito. Da exclamar a santa Igreja nosbado santo: admirvel dignao de vossa piedade para conosco!

    inestimvel excesso de vossa caridade! Para resgatar o escravo,entregastes o vosso Filho. misericrdia infinita, amor infinito denosso Deus, santa f! Quem isto cr e confessa, como poder viverser arder em santo amor para com esse Deus to amante e to am-vel?

    Deus eterno, no olheis para mim, carregado de pecados, olhaipara vosso Filho inocente, pregado numa cruz, e que vos oferecetantas dores e suporta tantos ludbrios para que tenhais piedade demim. Deus amabilssimo e meu verdadeiro amigo, por amor, pois,

    desse Filho que vos to caro, tende piedade de mim. A piedade quedesejo que me concedais o vosso santo amor. Ah, atra-me inteira-mente a vs do meio do lodo de minhas torpezas. Consumi, fogodevorador, tudo o que vedes de impuro na minha alma e a impede deser toda vossa.

    Nosso fiador1. Agradeamos ao Pai e agradeamos igualmente ao Filho que

    quis tomar a nossa carne e juntamente os nossos pecados para dar aDeus com sua paixo e morte uma digna satisfao. Diz o Apstolo

    que Jesus Cristo se fez nosso fiador, obrigando-se a pagar as nossasdvidas (Hb 7,22). Como mediador entre Deus e os homens, estabe-leceu um pacto com Deus por meio do qual se obrigou a satisfazerpor ns a divina justia e em compensao prometeu-nos da parte

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    de Deus a vida eterna. J com muita antecedncia o Eclesistico nosadvertia que no nos esquecssemos do benefcio deste divino fia-dor, que, para obter a salvao, quis sacrificar a sua vida (Eclo 29,20).E para mais nos assegurar do perdo, diz S. Paulo, foi que JesusCristo apagou com seu sangue o decreto de nossa condenao, quecontinha a sentena da morte eterna contra ns, e a afixou cruz, naqual, morrendo, satisfez por ns a justia divina (Cl 2,14). Ah, meu

    Jesus, por aquele amor que vos obrigou a dar a vida e o sangue noCalvrio por mim, fazei-me morrer a todos os afetos deste mundo,fazei que eu me esquea de tudo para no pensar seno em vosamar e dar-vos gosto. meu Deus, digno de infinito amor, vs meamastes sem reserva e eu quero tambm amar-vos sem reserva. Euvos amo, meu sumo Bem, eu vos amo, meu amor, meu tudo.

    2. Em suma, tudo o que ns podemos ter de bens, de salvao,de esperana, tudo possumos em Jesus Cristo e nos seus mereci-mentos, como disse S. Pedro: E no h em outro nenhuma salvao,

    nem foi dado aos homens um outro nome debaixo dos cus em quens devemos ser salvos (At 4,12). Assim para ns no h esperanade salvao seno nos merecimentos de Jesus Cristo. Donde S. To-ms, com todos os telogos, conclui que depois da promulgao doEvangelho ns devemos crer explicitamente, por necessidade no sde preceito, como tambm de meio, que somente por meio de nossoRedentor nos possvel a salvao.

    Todo o fundamento de nossa salvao est, portanto, na reden-o humana do Verbo divino, operado na terra. preciso, pois, refletir

    que ainda que as aes de Jesus Cristo feitas no mundo, sendo aesde uma pessoa divina, eram de um valor infinito, de maneira que amnima delas bastava para satisfazer a justia divina por todos ospecados dos homens, contudo s a morte de Jesus foi o grande sa-crifcio com o qual se completou a nossa redeno, motivo pelo qualas Sagradas Escrituras se atribui a redeno do homem principal-mente morte por ele sofrida na cruz: Humilhou-se a si mesmo, feitoobediente at morte e morte de cruz (Fl 2,8). Razo por que escre-ve o Apstolo que, quando tomamos a sagrada eucaristia, nos deve-mos recordar da morte do Senhor: Todas as vezes que comerdes

    deste po e beberdes deste vinho, anunciareis a morte do Senhor,at que ele venha (1Cor 11,26). Por que que diz da morte e no daencarnao, do nascimento, da ressurreio? Porque foi esse tor-mento, o mais doloroso de Jesus Cristo, que completou a redeno.

    Por isso dizia S. Paulo: No julgueis que eu sabia alguma coisaentre vs, seno a Jesus Cristo e este crucificado (1Cor 2,2). Muitobem sabia o apstolo que Jesus Cristo nascera numa gruta, que ha-bitara por trinta anos uma oficina que ressuscitara e subira aos cus.Por que ento escreve que no sabia outra coisa seno Jesus cruci-ficado? Porque a morte sofrida por Jesus na cruz era o que mais omovia a am-lo e o induzia a prestar obedincia a Deus, a exercer a

    caridade para com o prximo, a pacincia nas adversidades, virtudespraticadas e ensinadas particularmente por Jesus Cristo na ctedrada cruz. S. Toms escreve: Em qualquer tentao encontra-se nacruz o auxlio; a a obedincia para com Deus, a a caridade para como prximo, a a pacincia nas adversidades, donde assevera Agosti-nho: A cruz no foi s o patbulo do mrtir, como tambm a ctedrado mestre. (In c. 12 ad Heb.).

    sombra da cruz.1. Almas devotas, procuremos ao menos imitar a esposa dos

    Cnticos, que dizia: Eu assentei-me sombra daquele que tantodesejei (Ct 2,3). Oh! que doce repouso as almas que amam a Deusencontram nos tumultos deste mundo e nas tentaes do inferno emesmo nos temores dos juzos de Deus, contemplando a ss emsilncio o nosso amado Redentor agonizando na cruz, gotejando seusangue divino de todos os seus membros j feridos e rasgados pelosaoites, pelos espinhos e pelos cravos. Oh! como a vista de Jesuscrucificado afugenta de nossas mentes todos os desejos de honrasmundanas, das riquezas da terra e dos prazeres dos sentidos! Da-

    quela cruz emana uma vibrao celeste, que docemente nos des-prende dos objetos terrenos e acende em ns um santo desejo desofrer e morrer por amor daquele que quis sofrer tanto e morrer poramor de ns.

    Deus, se Jesus Cristo no fosse o que ele , filho de Deus everdadeiro Deus nosso criador e supremo senhor, mas um simpleshomem, quem no sentiria compaixo vendo um jovem de nobre li-nhagem, inocente e santo, morrer fora de tormentos sobre ummadeiro infame, para pagar, no os seus delitos, mas os de seusmesmos inimigos e assim libert-los da morte em perspectiva? E como

    possvel que no ganhe os afetos de todos os coraes um Deusque morre num mar de desprezos e de dores por amor de suas cria-turas? Como podero essas criaturas amar outra coisa fora de Deus?Como pensar em outra coisa que em ser gratos para com esse to

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    amante benfeitor? Oh! se conhecesses o mistrio da cruz! disse S.Andr ao tirano que queria induzi-lo a renegar a Jesus Cristo, por terJesus se deixado crucificar como malfeitor. Oh! se entendesses, tira-no, o amor que Jesus Cristo te mostrou querendo morrer na cruzpara satisfazer por teus pecados e obter-te uma felicidade eterna,certamente no te empenharias em persuadir-me a reneg-lo; pelocontrrio, tu mesmo abandonarias tudo o que possuis e esperas nes-

    ta terra para comprazeres e contentares um Deus que tanto te amou.Assim j procederam tantos santos e tantos mr tires que abandona-ram tudo por Jesus Cristo. Que vergonha para ns, quantas tenrasvirgenzinhas renunciaram a casamentos principescos, riquezas reaise todas as delcias terrenas e voluntariamente sacrificaram sua vidapara testemunhar qualquer gratido pelo amor que lhes demonstroueste Deus crucificado.

    2. Como explicar ento que a muitos cristos a paixo de Cristofaz to pouca impresso? Isso provm do pouco que consideram nos

    padecimentos sofridos por Jesus Cristo por nosso amor. Ah, meuRedentor, tambm eu estive no nmero desses ingratos. Vssacrificastes vossa vida sobre uma cruz, para que no me perdesse,e eu tantas vezes quis perder-vos, bem infinito, perdendo a vossagraa! Ora, o demnio, com a recordao de meus pecados, preten-deria tornar-me dificlima a salvao, mas a vista de vs crucificado,meu Jesus, me assegura que no me repelireis de vossa face se eume arrepender de vos haver ofendido e quiser vos amar. Oh! sim, eume arrependo e quero amar-vos com todo o meu corao. Detesto

    aqueles malditos prazeres que me fizeram perder a vossa graa. Amo-vos, amabilidade infinita, e quero amar-vos sempre e a recordaode meus pecados servir para me inflamar ainda mais no vosso amor,que viestes em busca de mim quando eu de vs fugia. No, no que-ro mais separar-me de vs, nem deixar mais de vos amar, meuJesus. Maria, refgio dos pecadores, vs que tanto participastes dasdores de vosso Filho na sua morte, suplicai-lhe que me perdoe e meconceda a graa de o amar.

    CAPTULO II

    Reflexes particulares sobre ospadecimentos de Jesus Cristo na sua morte

    O homem das dores.1. Vamos considerar as penas particulares que Jesus Cristo so-

    freu na sua paixo e que j h muitos sculos foram preditas pelosprofetas, especialmente por Isaas no captulo 53. Este profeta, comodizem S. Ireneu, S. Justino, S. Cipriano, e outros falou to claramentedos sofrimentos de nosso Redentor, que parece ser um outroevangelista. S. Agostinho afirma que as palavras de Isaas, referen-

    tes paixo de Jesus Cristo, requerem mais as nossas reflexes elgrimas que explicaes dos sagrados intrpretes.

    Hugo Grotius escreve que os prprios judeus antigos no pude-ram negar que Isaas falava do Messias prometido por Deus (De ver.relig. Cti. l.5, 19). Alguns quiseram aplicar os passos de Isaas aoutros personagens nomeados nas Escrituras, fora de Jesus Cristo.Mas diz Grotius: Quem poder nomear um dos reis ou dos profetas aquem quadrem essas coisas? Seguramente ningum. Assim escre-ve esse autor, apesar de ele mesmo ter vrias vezes tentado aplicar

    a outras pessoas as profecias que falavam do Messias.Isaas escreve: Quem deu crdito ao que nos ouviu? E a quemfoi revelado o brao do Senhor? (53,1). Isso se realizou exatamente,como diz S. Joo, quando os judeus, no obstante terem visto tantosmilagres operados por Jesus Cristo, que bem o mostravam como oMessias enviado por Deus, no quiseram crer nele (Jo 12,37-38).Quem dar crdito a quanto foi por ns ouvido? perguntava Isaas, equem reconheceu o brao, isto , o poder do Senhor? Com essaspalavras predisse Isaas a obstinao dos judeus em no querer crerem Jesus Cristo como o seu Redentor. Figurava-se-lhes que o Messi-

    as deveria circundar-se neste mundo de uma grande pompa, vivendoentre homens de sua grandeza e poder, triunfando de todos os seusinimigos, enchendo de riquezas e honras o povo judeu. Mas a coisaera outra. O profeta ajunta as palavras acima referidas: Subir como

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    arbusto diante dele e como raiz que sai de uma terra sequiosa (Is52,2). Julgavam os judeus que o Salvador deveria aparecer qual so-berbo cedro do Lbano. Isaas, porm, predisse que se faria ver comoum arbusto humilde ou como uma raiz que nasce de uma terra rida,privada de toda a beleza e esplendor: No tem beleza nem formosu-ra!

    2. Continua ento Isaas a descrever a paixo de Jesus Cristo: Ens o vimos e no tinha aparncia e ns o desejamos (Is 53,2). Ten-do-o contemplado, desejamos reconhec-lo, mas no o pudemos,porque nada mais divisamos que um homem de dores: Um objeto dedesprezo e o ltimo dos homens, um homem de dores... por issonenhum caso fizemos dele (Is 53,3). Ado, pelo orgulho de no que-rer obedecer ao preceito divino, trouxe a runa para todos os homens.O Redentor, com sua humildade, quis curar uma tal desgraa, con-tentando-se com ser tratado com o ltimo e mais abjeto dos homens,reduzido a extrema baixeza. Isso faz S. Bernardo exclamar:

    baixssimo e altssimo! humilde e sublime! oprbrio dos homens eglria dos anjos! Ningum mais sublime que ele, ningum mais hu-milde (Serm. 37). Se, pois, o Senhor mais alto que todos, ajunta osanto, se tornou o mais baixo, nenhum de ns deve ambicionar seranteposto aos demais e temer ser preferido por algum. Eu, porm, meu Jesus, tenho medo de ser posposto a algum, e desejaria serpreferido a todos. Senhor, dai-me humildade.

    Vs, meu Jesus, com tanto amor abraais os desprezos, paraensinar-me a ser humilde e amar a vida oculta e abjeta e eu quero ser

    estimado por todos e fazer figura em tudo. Ah, meu Jesus, dai-me ovosso amor, que ele me tornar semelhante a vs. No me deixeisviver mais ingrato ao amor que me dedicais. Vs sois o todo podero-so, tornai-me humilde, tornai-me santo, tornai-me todo vosso.

    O varo de dores, denominou-o ainda Isaas. A Jesus Crucifica-do muito bem se aplica o texto de Jeremias: Grande como o mar atua dor (Lm 2,13). Como no mar desguam todas as guas dos rios,assim em Jesus Cristo se reuniram para atorment-lo todas as doresdos enfermos, todas as penitncias dos anacoretas e todas as contu-ses e vilipndios suportados pelos mrtires. Ele foi cumulado de

    dores na alma e no corpo. E todas as tuas ondas fizeste vir sobremim (Sl 87,8). Meu Pai, dizia nosso Redentor pela boca de Davi,dirigistes sobre mim todas as ondas de vosso desprezo e na morteafirmava que expirava submerso num mar de dores e de ignomnias:

    Cheguei ao alto mar, e a tempestade me submergiu (Sl 68,3). Es-creve o Apstolo que Deus, mandando seu Filho pagar com seu san-gue as penas devidas s nossas culpas, queria com isso demonstrarquo grande era a sua justia. Jesus Cristo, a quem Deus propspara ser vtima de propiciao pela f em seu sangue, a fim de mani-festar a sua justia (Rm 3,25). Notai, para manifestao de sua justi-a!

    Em forma de escravo.1. Para fazer idia do quanto padeceu Jesus Cristo durante sua

    vida e especialmente na sua morte, preciso considerar o que disseo mesmo Apstolo na carta aos Romanos: Deus, enviando seu Fi-lho em carne semelhante do pecado, condenou o pecado na carnepor causa do mesmo pecado ( Rm 8,3). Jesus Cristo, enviado peloPai a remir o homem, revestido da carne infecta do pecado de Ado,apesar de no ter contrado a mancha do pecado, contudo tomousobre si as misrias contradas pela natureza humana em castigo do

    pecado, e se ofereceu ao Padre eterno a satisfazer com suas penas ajustia divina por todas as culpas dos homens: Foi oferecido porqueele mesmo quis e o Pai carregou sobre ele a iniqidade de todosns, como escreve Isaas (53,7 e 6). Eis, pois, Jesus carregado comtodas as blasfmias, com todos os sacrilgios, torpezas, furtos, cru-eldades, com todas as malvadezas que cometeram e cometero ain-da todos os homens. E ei-lo em suma feito o objeto de todas as mal-dies divinas aos homens por seus crimes. Cristo nos remiu damaldio da lei, fazendo-se por ns maldito (Gl 3,13). As dores, que

    Jesus sofreu, tanto internas como externas, sobrepujaram imensa-mente todas as possveis nesta vida (III q. 46 a. 6).Quanto dor externa do corpo, basta saber que Jesus recebeu

    do Pai um corpo adaptado especialmente para sofrer. Preparastes-me um corpo (Hb 10,5). Nota S. Toms que Nosso Senhor padeceuno tato, pois lhe foram rasgadas as carnes; no gosto, com fel e vina-gre; no ouvido, com as blasfmias e zombarias que lhe dirigiam; navista, vendo sua me assisti-lo na morte. Padeceu tambm em todosos seus membros: a cabea foi atormentada com os espinhos, asmos e os ps com os cravos, a face com as bofetadas e escarros,

    todo o seu corpo com os aoites, na maneira j indicada por Isaas,isto , que o Redentor na sua paixo ia se tornar semelhante a umleproso, que no possui um membro so, causando horror a quem ov, por ser uma s chaga da cabea aos ps. Basta dizer que Pilatos

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    julgou poder livrar Jesus da morte, apresentando-o ao povo depoisde flagelado, e por isso o conduziu varanda, dizendo: Eis aqui ohomem. S. Isidoro diz que os homens, quando a dor intensa epersistente, perdem a sensao da dor pela agudeza da prpria dor.Mas isso no se deu com Jesus: as ltimas dores foram igualmentemais atrozes como as primeiras e os primeiros golpes da flagelaoforam to dolorosos quanto os ltimos, porque a paixo de nossoRedentor no foi obra dos homens, mas da justia de Deus, que quiscastigar o Filho com todo o rigor que mereciam os pecados dos ho-mens.

    E assim, meu Jesus, com a vossa paixo quisestes relevar-me apena que por meus pecados me era devida. Por isso, se eu vos tives-se ofendido menos, menos tereis de padecer na vossa morte. E eu,cnscio disso, poderei viver para o futuro sem vos amar e sem choraras ofensas que vos fiz? Meu Jesus, arrependo-me de vos haver des-prezado e amo-vos sobre todas as coisas. Logo, no me desprezeis:permiti que vos ame, pois no quero mais amar seno a vs. Muits-

    simo ingrato seria eu se, depois de tantas misericrdias usadas paracomigo, amasse no futuro outro objeto alm de vs.

    2. Eis como Isaas anunciou tudo de antemo: E ns o reputa-mos como um leproso, ferido por Deus e humilhado. Mas ele foi feridopelas nossas iniqidades, foi quebrantado pelos nossos crimes: ocastigo que nos devia trazer a paz caiu sobre ele e ns fomos cura-dos por suas contuses. Todos ns andamos desgarrados, como ove-lhas, cada um se extravia por seu caminho; e o Senhor carregou so-

    bre ele a iniqidade de todos ns (Is 53,4-6). Jesus, cheio de carida-de, de boa vontade, se ofereceu, sem rplica, a executar a vontadedo Padre, que queria v-lo dilacerado pelos carnfices a seu bel-pra-zer: Foi oferecido porque ele mesmo o quis e no abriu sua boca... e,como um cordeiro diante do que o tosquia, no abriu sua boca (Is53,7). Como um cordeiro que se deixa tosar sem se lamentar, assimnosso amoroso Salvador em sua paixo deixou-se tosar, isto , ar-rancar-lhe a pele sem abrir a boca. Que obrigao tinha ele de satis-fazer por nossos pecados? Nenhuma, e contudo quis sobrecarregar-se deles para livrar-nos da condenao eterna. Cada um de ns, pois,

    tem obrigao de ser-lhe grato e dizer-lhe: Vs, porm, livrastes aminha alma para que ela no perecesse; lanastes para trs de vos-sas costas todos os meus pecados (Is 38,17).

    E assim fazendo-se Jesus voluntariamente fiador de todas as

    nossas dvidas, por sua bondade, quis sacrificar tudo por ns, at dara vida entre as dores da cruz, como ele mesmo o atesta em S. Joo:Eu ponho minha vida... ningum a tira de mim, mas eu de mim mes-mo a ponho (Jo 10,17).

    Rei dos mrtires.1. S. Ambrsio, falando da paixo de nosso Senhor, escreve que

    Jesus, nas dores que por ns sofreu, teve mulos; nunca, porm,imitadores (In Lc 22). Procuraram os santos imitar Jesus Cristo nossofrimentos, para se tornarem semelhantes a ele, mas qual deleschegou a igual-lo nos seus tormentos? Ele cer tamente padeceu porns mais do que todos os penitentes, todos os anacoretas e todos osmrtires, pois Deus o encarregou de satisfazer por todos os pecadosdos homens ao rigor de sua divina justia: E o Senhor ps sobre elea iniqidade de todos ns (Is 53,2). S. Pedro diz que Jesus carregoucom os nossos pecados em seu corpo sobre o madeiro (1Pd 2,24) eS. Toms escreve que Jesus Cristo ao remir-nos no s teve em vista

    a virtude e o mrito infinito que possuam as suas dores, mas quistambm sofrer uma dor que bastasse para satisfazer plenamente ecom rigor por todos os pecados do gnero humano (III q. 46, a. 6). ES. Boaventura: Quis sofrer tanta dor como se tivesse feito todos ospecados! O prprio Deus soube agravar as penas de Jesus que elasfosse proporcionadas ao inteiro pagamento de todas as nossas dvi-das, com o que combina o dito de Isaas: E o Senhor quis tritur-lona sua enfermidade (Is 53,10).

    Pelo que se l na vida dos santos mrtires, parece que alguns

    deles sofreram dores mais acerbas que Jesus Cristo. Mas S.Boaventura diz que as dores de mrtir algum podero ser compara-das em vivacidade s do nosso Salvador, que foram as maiores pos-sveis na vida presente (De pass. Cti.). O mesmo confirmado por S.Toms. As dores de Cristo foram as maiores possveis na vida pre-sente (III q. 46, a. 6). E S. Loureno Justiniano diz que Nosso Senhorem cada tormento que sofreu, em razo da acerbidade da dor, expe-rimentou todos os suplcios dos mrtires (De agon. Cti.). Tudo isso jo predissera em poucas palavras o rei Davi, quando, falando da pes-soa de Cristo, dizia: Sobre mim se desfechou o teu furor... Sobre mim

    passaram as tuas iras (Sl 87,8-17). Assim toda a ira divina concebidacontra os nossos pecados foi descarregada sobre a pessoa de JesusCristo, tornando-se claro o que dele diz o Apstolo: Fez-se por nsmaldito (Gl 3,13).

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    2. At agora temos falado seno unicamente das dores externasde Jesus Cristo. Mas quem poder explanar as suas dores internas,que sobrepujaram mil vezes as externas? Essas penas internas fo-ram to acerbas, que no horto de Getsmani o fizeram suar sanguede todo o seu corpo e afirmar que bastavam para dar-lhe a morte:Triste est a minha alma at morte (Mt 26,38). E se essa tristezaera suficiente para mat-lo, por que no morre? Porque ele mesmoimpede a morte, responde S. Toms, querendo conservar a vida parapoder sacrific-la pouco depois do patbulo da cruz. Essa tristeza dohorto afligiu to dolorosamente a Jesus Cristo, porque ele a suportoudurante sua vida inteira, visto que desde que comeou a viver tevesempre diante dos olhos os motivos de sua dor interna. Entre essesmotivos, o mais doloroso foi-lhe ver a ingratido dos homens ao amorque lhes testemunhava na sua paixo.

    Apesar de aparecer no horto um anjo a confort-lo, segundo S.Lucas (22,43), contudo esse conforto em vez de aliviar-lhe a penamais a acerbou. O conforto no diminuiu, mas aumentou a dor, diz o

    Ven. Beda. O anjo o confortou a padecer com mais nimo pela salva-o do homem, representando-lhe a grandeza do fruto de sua pai-xo, mas no lhe diminuiu a grandeza da dor. Imediatamente depoisda apario do anjo, escreve o evangelista, Jesus entrou em agoniae suou sangue em abundncia, chegando a molhar a terra. (Lc 22,43e 44).

    S. Boaventura afirma que a dor de Jesus chegou ao auge, demaneira que o aflito Senhor ao ver as penas que devia sofrer no fimde sua vida ficou to espavorido que suplicou a seu Pai que o livrasse

    desse tormento: Meu Pai, se for possvel, passe de mim este clice(Mt 26,39). Isso ele o diz no para se ver livre de tal pena, j que elese oferecera a sofr-la espontaneamente: Foi oferecido porque elemesmo o quis, mas para nos fazer compreender a angstia que sen-tia, submetendo-se a essa morte to dolorosa para os sentidos. Se-guindo, porm, a razo, ele, tanto para secundar a vontade do Pai,como para obter-nos a salvao que tanto desejava, ajuntou imedia-tamente: Contudo no se faa como eu quero, mas como vs oquereis. E continuou a rezar assim e a resignar-se: E rezou pelaterceira vez, repetindo as mesmas palavras (Mt 26,39 e 44).

    A vtima.1. Mas sigamos as predies de Isaas. Ele predisse as bofeta-

    das, as punhadas, os escarros e outros maus tratos que Jesus sofreu

    na noite que precedeu a sua morte, por meio dos carrascos que oconservaram preso no palcio de Caifs para conduzi-lo na manhseguinte a Pilatos, a fim de o condenar morte de cruz: Eu entregueio meu corpo aos que me feriam e as minhas faces aos que me arran-cavam cabelos da barba; no virei o meu rosto dos que me afronta-vam e cuspiam em mim (Is 50,6). Esses maus tratos foram descritospor S. Marcos, que ajunta que esses algozes, tratando Jesus de falsoprofeta, escarneceram-no, cobrindo-lhe a face com um pano, dando-lhe punhadas e bofetadas e o importunavam a que profetizasse quemlhe havia batido (Mc 14,65).

    Continuando, Isaas fala da morte de Jesus: Ser levado mortecomo uma ovelha ao matadouro (53,7). L-se nos Atos dos Apsto-los (8,32) que o eunuco da rainha Candace, lendo esse passo, per-guntou a S. Filipe de quem se entendiam essas palavras e o santoexplicou-lhe todo o mistrio da redeno, operado por Jesus Cristo.O eunuco ento por Deus iluminado quis ser batizado imediatamen-te. Isaas prediz em seguida o grande fruto que recolheria o mundo

    da morte do Salvador, devendo ela produzir espiritualmente muitossantos: Se tiver dado sua alma pelo pecado, ver a sua descendn-cia perdurvel... com sua cincia, aquele mesmo justo, meu servo,justificar a muitos (53,10 e 11).

    2. Davi tambm predisse outras circunstncias mais particularesda paixo de Jesus, especialmente no salmo 21. A, afirmou que de-veria ter as mos e os ps atravessados por cravos, podendo-se con-tar todos os seus ossos (21,18 e 19).Predisse que antes de ser cruci-

    ficado lhe arrancariam as vestes, que seriam distribudas entre oscarnfices: isso quanto s vestes exteriores, porque a interior, que erainconstil, deveria ser posta em sorte (v. 19). Essa profecia foi relata-da por S. Mateus (c. 27 v. 35) e S. Joo (c. 19 v. 23). O que escreve S.Mateus das blasfmias e zombarias dos judeus contra Jesus prega-do na cruz: E os que passavam por ali o blasfemavam, movendosuas cabeas e dizendo: Ah, tu que destris o templo de Deus e emtrs dias o reedificas! salva-te a ti mesmo; se s o Filho de Deus,desce da cruz! Do mesmo modo tambm os prncipes dos sacerdo-tes, escarnecendo com os escribas e ancios, diziam: Salvou a ou-

    tros e a si mesmo no se pode salvar; se o rei de Israel, desaagora da cruz e ns creremos nele. Confiou em Deus, livre-o agorase o ama, pois disse: Que sou o Filho de Deus (Mt 27,39 a 43), jDavi havia predito com estas palavras: Todos os que me viam escar-

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    neciam de mim, falavam com os lbios e menearam com a cabea.Esperou no Senhor, livre-o, salve-o se que o ama (Sl 21,8-9).

    Abandonado por todos.1. Predisse ainda Davi o grande tormento que Jesus deveria so-

    frer na cruz, vendo-se abandonado de todos e at de seus discpulos,afora S. Joo e a Santssima Virgem. Esta me amorosa com suaspresena no diminua a pena do Filho, mas antes a aumentava, emrazo da compaixo que sentia Jesus, vendo-a to aflita, por causade sua morte. E assim que o pobre Senhor nas angstias de suamorte no teve quem o consolasse, o que j foram profetizado porDavi: Esperei que algum se entristecesse comigo e ningum apa-receu e esperei que algum me consolasse e no o achei (Sl 68,21).Mas a maior pena de nosso atribulado Redentor foi a de ver-se aban-donado at por seu eterno Pai, exclamando ento, como j previraDavi: Deus, olhai para mim! Por que me abandonastes? Os clamo-res de meus pecados so causa de estar longe de mim a salvao

    (Sl 21,2). Como se dissesse: Meu Pai, os pecados dos homens (quechamo meus, porque deles me encarreguei) me impedem de me li-bertar destas dores, que me do cabo da vida e vs, meu Deus, porque me abandonais no meio de tantas aflies? A estas palavras deDavi correspondem as de S. Mateus, narrando o que disse Jesuspouco antes de sua morte: Eli, Eli, lamma sabacthani? Deus meu,Deus meu, por que me abandonastes? (Mt 27,46).

    2. De tudo isso bem se deduz quo injustamente se recusaramos judeus a reconhecer Jesus Cristo como seu Messias e Salvador,por ter ele padecido uma morte to ignominiosa. Eles, porm, no sedo conta de que se Jesus Cristo, em vez de morrer como ru nacruz, tivesse tido uma morte honrosa e gloriosa aos olhos dos ho-mens, no seria mais o Messias prometido por Deus e predito pelosprofetas, os quais muitos sculos antes haviam anunciado que nossoRedentor deveria morrer saciado de dores. Oferecer a face ao queo ferir e ser saciado de oprbrios (Lm 3,30). Todas essas humilha-es e todos esses sofrimentos de Jesus Cristo, j preditos pelosprofetas, no chegaram nem sequer ao conhecido de seus discpulos

    seno depois de sua ressurreio e ascenso ao cu. No tiveramconhecimento destas coisas anteriormente seus discpulos, mas quan-do Jesus foi glorificado recordaram-se de que essas coisas foramescritas a respeito dele e assim lhe fizeram (Jo 12,16).

    Copiosa redeno.1. Em suma, com a paixo de Jesus Cristo, suportada com tantas

    dores e ignomnias, se realizou o que escreveu Davi: A justia e apaz se deram o sculo (Sl 84,11), pois, pelos merecimentos de Je-sus Cristo, os homens obtiveram a paz com Deus e em razo damorte do Redentor a justia divina ficou satisfeitasuperabundantemente. Diz-se superabundantemente, porque, pararemir-nos, no era necessrio que Jesus sofresse tantos tormentos etantos oprbrios, mas bastava uma s gota de seu sangue, uma sim-ples splica sua para salvar o mundo inteiro. Ele, porm, para au-mentar a nossa confiana e para mais nos inflamar em seu amor,quis que nossa redeno no fosse simplesmente suficiente, massuperabundante, como predisse Davi: Espere Israel no Senhor, por-que no Senhor est a misericrdia e nele se encontra copiosa reden-o (Sl 129,6).

    A mesma coisa exprimira J quando, falando da pessoa de Cris-to, disse: Oxal pesassem numa balana os meus pecados, pelos

    quais mereci a ira e a calamidade que padeo: Ver-se-ia que esta eramais pesada que a areia do mar (J 6,2). Tambm aqui Jesus porboca de J chamou pecados seus e nossos pecados, j que se obri-gara a satisfazer por ns, para fazer nossa a sua justia (st. Ag. s. 21).Por isso a glossa assim comenta o citado texto de J: Na balana dajustia divina a paixo de Cristo pesa mais que os pecados da natu-reza humana. S. Loureno Justiniano por essa razo encoraja todopecador realmente arrependido a esperar com certeza o perdo pe-los merecimentos de Jesus Cristo, dizendo-lhe: Mede teus delitoscom as aflies que Cristo padeceu. As vidas de todos os homensno seriam suficientes para satisfazer por um s pecado, mas os tor-mentos de Jesus Cristo pagaram por todos os nossos delitos. Ele apropiciao pelos nossos pecados (1Jo 2,2). Isso significa: Pecador,no meas tuas culpas com tua contrio, desde que todas as tuasobras no podem obter-te o perdo; mede-as antes com os sofrimen-tos de Jesus Cristo e deles espera o perdo, pois teu Redentor pa-gou abundantemente por ti.

    2. Salvador do mundo, nas vossas carnes dilaceradas pelos

    flagelos, nos espinhos, nos cravos, reconheo o amor que me tendese a minha ingratido cumulando-vos de injrias depois de tanto amor:vosso sangue, porm, minha esperana, pois, com o preo dessesangue, me livrastes do inferno tantas vezes por mim merecido.

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    Deus, que seria de mim por toda a eternidade, se no tivsseis pen-sado em salvar-me por meio de vossa morte? Miservel que sou, eusabia que, perdendo a vossa graa, me condenava a mim mesmo aviver para sempre no desespero e longe de vs no inferno, e assimmesmo ousei muitas vezes voltar-vos as costas. Torno, porm, a re-petir: vosso sangue minha esperana. Oh! tivesse antes morrido eno vos tivesse ofendido. bondade infinita, mereceria ficar cego evs me iluminastes com nova luz; mereceria ficar mais endurecido evs me comovestes e compungistes. Agora detesto mais do que amorte os desprezos que vos fiz e sinto um grande desejo de vosamar. Estas graas que de vs recebi asseguram-me que j meperdoastes e que me quereis salvar. Ah, meu Jesus, e quem poderdeixar de amar-vos no futuro e amar alguma coisa fora de vs? Euvos amo, meu Jesus, e em vs confio, aumentai em mim esta con-fiana e este amor, para que de hoje em diante me esquea de tudoe no pense seno em amar-vos e dar-vos prazer. Maria, Me deDeus, obtende-me que seja fiel a vosso Filho, e a meu Redentor.

    CAPTULO III

    Reflexes sobre a flagelao, a coroaode espinhos e crucifixo de Jesus Cristo

    Sobre a flagelao.1. Escreve S. Paulo a respeito de Jesus Cristo: Aniquilou-se a si

    mesmo, tomando a forma de escravo (Fl 2,7). S. Bernardo acrescen-ta o seguinte a esse texto: No s a tomou a forma e escravo, paraviver sujeito, mas a de mau escravo para ser aoitado. certo que aflagelao foi o tormento mais cruel que abreviou a vida de nossoRedentor, porque a grande efuso de sangue (j por ele predita, quan-do disse: Este o meu sangue do Novo Testamento, que ser derra-mado por muitos (Mt 26,2), foi a causa principal de sua morte. ver-dade que esse sangue foi derramado primeiramente no horto, na co-roao de espinhos, na crucifixo, em maior abundncia, porm, naflagelao. Ela foi para Jesus Cristo sumamente vergonhosa eoprobriosa, pois era o castigo reservado aos escravos, como se de-duz do L. Servorum f. f. de Poenis. Os tiranos, depois de haver conde-nado morte os santos mrtires, mandavam que fossem antesflagelados e depois trucidados. Nosso Senhor, porm, foi flagelado

    antes de ser condenado morte. Ele mesmo havia anunciado a seusdiscpulos de modo particular essa flagelao: Ser entregue aosgentios, encarnecido e aoitado (Lc 18,32), querendo significar-lheas grandes dores que lhe traria esse tormento.

    2. Foi revelado a S. Brgida que um dos algozes mandou queJesus se despojasse por si mesmo de suas vestes; ele obedeceu eabraou em seguida a coluna qual foi amarrado e ento flageladoto cruelmente que seu corpo ficou todo dilacerado. Diz a revelaoque os aoites no s feriam como tambm rasgavam suas carnessacrossantas (Revel. 1.4 c. 70). E foi de tal maneira dilacerado, quese viam no peito as costelas descobertas. Quadra com isso o queescreve S. Jernimo: Os aoites retalharam o sacratssimo corpo deDeus (In Mt) e S. Pedro Damio, afirmando que os algozes tanto se

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    fatigaram na flagelao que chegaram a perder as foras. Tudo issoh havia predito Isaas, quando dizia: Ele foi quebrantado por nossoscrimes (53,5). Quebrantado significa o mesmo que modo, pisado. meu Jesus, sou eu um dos vossos mais cruis carrascos, que vosflagelei com os meus pecados; tende, porm, piedade de mim. meuamvel Salvador, muito pouco um corao para vos amar. No que-ro viver mais para mim mesmo, mas viver s para vs, meu amor,meu tudo. Digo-vos, pois, com S. Catarina de Gnova: amor, amor, no mais pecados. Basta quanto vos ofendi; espero agora servosso e com vossa graa quero ser sempre vosso por toda a eterni-dade.

    Sobre a coroao de espinhos.1. A Santssima Virgem revelou a S. Brgida que a coroa de espi-

    nhos cingia toda a sagrada cabea de seu Filho at ao meio da frontee que os espinhos foram enterrados com tanta violncia que o san-gue escorria em torrentes pela face, de modo que o rosto de Jesus

    parecia todo coberto de sangue (Revel. c. 70). Escreve Orgenes queessa coroa de espinhos no foi retirada da cabea do Senhor senodepois de haver ele expirado na cruz. Sendo a veste interior de Jesusno costurada, mas tecida por inteiro, no foi dividida entre soldados,como as outras vestes exteriores, mas posta a sorte, segundo S. Joo(19,20 e 24). Ora, devendo tirar-se essa veste pela cabea ao serJesus dela despojado, segundo a opinio de vrios autores, foi-lhetirada a coroa e novamente reposta antes de ser cravado na cruz.

    2. Est escrito no Gnesis: Amaldioada ser a terra na tua obra...ela te produzir espinhos e abrolhos (Gn 3,17-18). Esta maldio foifulminada por Deus contra Ado e contra toda a sua descendncia.Sob a expresso terra entende-se a no somente a terra material,mas tambm a carne humana que, infeccionada pelo pecado de Ado,no gera seno espinhos de culpas. Para remediar justamente estainfeco, diz Tertuliano (Lb. cont. Hebr.), era necessrio que JesusCristo oferecesse a Deus em sacrifcio esse grande tormento da co-roao de espinhos. Esse tormento de espinhos, alm de ser extre-mamente doloroso, foi acompanhado de bofetadas, de escarros e

    dos sarcasmos dos soldados, como escrevem S. Mateus e S. Joo.E tecendo uma coroa de espinhos, puseram-lha sobre a cabea euma cana em sua direita e ajoelhando-se perante ele o escarneciamdizendo: Ave, rei dos judeus, e cuspindo-lhe no rosto tomavam-lhe a

    cana e batiam-lhe na sua cabea (Mt 27,29 e 30). E o envolveramcom uma veste purprea e chegando-se a ele diziam-lhe: Ave, rei dosjudeus, e davam-lhe bofetadas (Jo 19,2). Ah, meu Jesus, quantosespinhos eu ajuntei a essa coroa com meus pensamentos a que deiconsentimento! Desejaria morrer de dor; perdoai-me pelos mritosdaquelas dores que suportastes justamente para me perdoardes. Ah,meu Senhor to dilacerado e vilipendiado, vs vos sobrecarregaiscom tantas dores e desprezos para mover-me e compadecer-me devs e para que vos ame ao menos por compaixo e no vos causemais desgosto: Basta, meu Jesus, no insistais em padecer mais: jestou persuadido do amor que me tendes e eu vos amo com toda aminha alma. Vejo, porm, que para vs no bastante, no estaissaciado de penas, o que se dar s depois de vos ver morto de doresna cruz. bondade, caridade infinita, infeliz o corao que vos noama.

    Sobre a crucifixo.

    1. A cruz comeou a atormentar a Jesus Cristo antes mesmo deser nela pregado, j que depois da condenao de Pilatos teve delevar at ao Calvrio a cruz em que devia morrer e ele, sem oposio,tomou-a sobre seus ombros. E levando sua cruz s costas, saiu paraaquele lugar que se chama Calvrio (Jo 19,17). Falando desse acon-tecimento, escreve S. Agostinho: Se se atender crueldade, queusou com Jesus Cristo, fazendo-o carregar pessoalmente seu pat-bulo, foi isso um grande oprbrio; mas se se olhar para o amor comque Jesus Cristo abraou a cruz, foi um grande mistrio (In Jo. trat.117). Levando a cruz, quis o nosso capito desfraldar a bandeira soba qual deveriam arrolar-se e militar os seus sequazes nesta terra,para assim se tornarem depois seus companheiros no reino dos cus.

    S. Baslio, falando deste passo de Isaas: Nasceu-nos um meninoe foi-nos dado um filho e sobre seus ombros foi posto o principado (Is9,6), diz que os tiranos da terra agravam seus sditos com encargosinjustos, para aumentar o seu poder: Jesus Cristo, pelo contrrio, queraliviar-nos o peso da cruz e lev-la morrendo nela para obter-nos asalvao. tambm certo que os reis da terra colocam seu poder nafora das armas e no acervo de riquezas. Jesus Cristo, porm, fun-

    dou seu principado no ludbrio da cruz, humilhando-se e padecendo,e de boa vontade se sujeitou a lev-la nessa viagem dolorosa para,com seu exemplo, dar-nos coragem de abraar com resignao asua cruz e assim segui-lo. Fala a todos os seus discpulos: Se al-

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    gum quer vir aps mim, abnegue-se a si mesmo, tome sua cruz esiga-me (Mt 16,24).

    2. Vem a plo notar aqui as belas expresses com que S. JooCrisstomo sada a cruz. Ele a chama: Esperana dos despreza-dos. Que esperana de salvar-se teriam os pecadores, se no fossea cruz em que Jesus Cristo morreu para remi-los? Guia dosnavegantes. A humilhao que nos vem da cruz (isto , da tribula-o) a causa de obtermos nesta vida como num mar cheio de peri-gos, a graa de observar a lei divina e, se a transgredimos, a de nosemendar, segundo afirma o Profeta: Para mim foi bom que me humi-lhaste, para que eu aprenda as tuas justificaes. (Sl 118,17).Conselheira dos justos. Os justos tiram da adversidade motivo erazo para unirem-se mais com Deus. Alvio dos atribulados. Dondetiram os aflitos maior lenitivo seno do aspecto da cruz, na qual mor-reu, cheio de dores por seu amor, seu Redentor e seu Deus? Glriados mrtires. Foi esta a glria dos santos mrtires, poder unir suas

    penas e morte s que Jesus Cristo suportou na cruz, como diz S.Paulo: Para mim, no h outra glria do que a cruz de Nosso SenhorJesus Cristo (Gl 6,14). Mdico dos doentes. Oh! que grande rem-dio a cruz para muitos que esto enfermos de esprito! As tribula-es os esclarece e os desprendem do mundo. Fonte para os quetm sede. A cruz, isto , sofrer por Jesus Cristo, o desejo dossantos. S. Teresa dizia: Ou padecer ou morrer, e S. Maria Madalenade Pazzi ia adiante e dizia: Padecer e no morrer, como se recusas-se morrer e ir gozar no cu para ficar nesta terra a padecer.

    Afinal, falando em geral dos justos e dos pecadores, a cada umtoca a sua cruz. Os justos, apesar de gozarem da paz de conscin-cia, tm as suas vicissitudes: ora so consolados pelas visitas deDeus, ora afligidos pelas contrariedades e enfermidades corporais eem especial pelas desolaes, pelas trevas e tdio de esprito, pelosescrpulos, pelas tentaes, pelos temores da prpria salvao. Mui-to mais pesada, porm, a cruz dos pecadores, os remorsos de cons-cincia que os atormentam, os temores dos castigos eternos que dequando em quando se apoderam deles, e as angstias que sofremnas adversidades. Os santos nas contrariedades se resignam com a

    vontade divina e sofrem em paz. Mas como poder resignar-se o pe-cador com a vontade de Deus, se ele vive em sua inimizade? Aspenas dos inimigos de Deus so s penas sem nenhum confor to. Porisso dizia S. Teresa que quem ama a Deus abraa a cruz e com isso

    no a sente, mas quem no ama a Deus abraa a cruz e com issono a sente, mas quem no ama a Deus, arrasta a fora a cruz eassim no pode deixar de sentir-lhe o peso.

    Chegamos crucifixo.1. Foi revelado a S. Brgida que quando o Salvador se viu estendi-

    do na cruz, colocou por si mesmo a mo direita no lugar em quedevia ser cravada (Revel. 1. 7, c. 15). Em seguida cravaram-lhe aoutra mo e depois os sagrados ps e deixou-se Jesus Cristo morrernesse leito de dor. Diz S. Agostinho que o suplcio da cruz era umtomento acerbssimo, porque na cruz, se protraa a morte para que ador no tivesse logo termo (In Jo. trat. 36). Deus, que assombrohavia de causar ao cu ver o Filho do eterno Padre crucificado entredois ladres. J Isaas o havia profetizado: E ele foi posto no nmerodos malfeitores (Is 53,12). S. Joo Crisstomo, considerando Jesusna cruz, exclama cheio de admirao e amor: Vejo-o como mdio nocu entre o Pai e o Esprito Santo; vejo-o no monte Tabor entre dois

    santos, Moiss e Elias, e como pois v-lo crucificado no Calvrio en-tre dois ladres? Mas assim devia ser, porque, segundo o decretodivino, ele devia morrer para satisfazer com sua morte os pecadosdos homens e salv-los, conforme o predissera Isaas: E foi reputa-do como malfeitor e carregou com os pecados de muitos (53,12).

    Pergunta o mesmo profeta: Quem este que vem de Edom, deBosra, cm as vestes tintas? (Is 63,1) este formoso em seu traje quecaminha na multido de sua fortaleza? (Is 63,1). Quem este homemto belo e forte que vem de Edom com as vestes tintas de sangue?Edom significa a cor vermelha, algum tanto escura como se depreendedo Gnesis (25,30). E lhe responde: Eu sou o que falo a justia e quecombato para salvar (Is 63,1). Quem assim responde, como expli-cam os intrpretes, Jesus Cristo, que diz: Eu sou o Messias prome-tido, que vim para salvar os homens, triunfando de seus inimigos.

    2. Em seguida vem de novo a mesma interrogao: Por que vermelha a tua veste e as tuas roupas como as dos que pisam numlagar? (Is 63,2); e responde-se: Eu sozinho calquei o lagar e dasgentes no h um s homem comigo (63,3).Tertuliano, S. Cipriano e

    S. Agostinho tomam o lagar pela paixo de Jesus Cristo, na qual assuas vestes (i. , suas carnes sacrossantas) ficaram ensangenta-das, como escreve S. Joo: E estava vestido com uma veste tingidade sangue e seu nome Verbo de Deus (Ap 19,13). S. Gregrio,

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    explicando esta palavra Eu sozinho calquei o lagar, escreve: O la-gar em que foi pisado e calcou ao mesmo tempo (Hom. 13 in Eseq.).Diz calcou, porque Jesus Cristo com sua paixo venceu os demni-os. diz-se foi pisado, porque na paixo seu corpo foi esmagado episado como se faz com as uvas no lagar, conforme um outro teste-munho de Isaas, que diz: E o Senhor quis esmag-lo em sua enfer-midade (Is 53,10).

    Sem beleza nem forma.1. E eis que o Senhor, que era o mais formoso dos homens (Sl

    44,3), aparece no Calvrio to disforme pelos tormentos que causahorror a quem o v. Essa deformidade, porm, o faz aparecer maisbelo ainda aos olhos das almas que o amam, j que aquelas chagas,aquelas pisaduras, aquelas carnes dilaceradas so provas e sinaisdo amor que ele nos tem, coo delicadamente cantou Petrucci: Porns como ru e flagelado apareceis e aspecto to disforme e feioofereceis; tanto mais belo, porm, e doce vos aclamam os coraes

    amantes que por vs clamam. Ajunta S. Agostinho: Ele pendia dis-forme, na cruz, mas a sua deformidade constitua a nossa beleza(Serm. 22 de verb. Ap.). Sim, porque aquela deformidade de Jesuscrucificado foi a causa da beleza de nossas almas que, at entodisformes, lavadas no seu precioso sangue, tornaram-se graciosas ebelas, segundo o que escreve S. Joo: Esses que esto revestidosde estolas brancas, quem so e donde vieram? So os que vieramde uma grande tribulao e lavaram as suas vestes e asembranqueceram no sangue do Cordeiro (Ap 7,13). Todos os santoscomo filhos de Ado (exceto a Santssima Virgem) estiveram por al-gum tempo recobertos com uma veste srdida, mas lavadas com osangue do Cordeiro tornaram-se cndidas e agradveis a Deus.

    2. meu Jesus, vs dissestes que, quando exaltado na cruz,havereis de atrair tudo a vs (Jo 12,32 e 33).Vs, realmente, nuncadeixastes de conquistar o afetos de todos os coraes: E j muitssi-mas almas felizes, vendo-vos crucificado e morto por seu amor, aban-donaram tudo, posses, dignidades, ptria e parentes, chegando at aabraar os tormentos e a morte, para se entregarem inteiramente a

    vs. Infelizes daqueles que resistem vossa graa, que lhes obtivestescom tantas fadigas e dores. Deus, ser esse seu maior tormentono inferno, pensar que tiveram um Deus que para ganhar seu amordeu sua vida por eles na cruz e que eles quiseram perder-se de livre

    vontade e que no haver mais remdio para eles por toda a eterni-dade.

    Ah, meu Redentor, eu j mereci cair nessa desgraa pelas ofen-sas que vos fiz. Quantas vezes eu resisti vossa graa que procura-va atrair-me a vs e para seguir as minhas inclinaes desprezei ovosso amor e voltei-vos as costas. Oh! tivesse morrido antes de ofen-der-vos. Oh! se sempre vos tivesse amado! Agradeo-vos, meu amor,que me suportastes com tanta pacincia e que em vez de abando-nar-me, como eu merecia, duplicastes os convites e me cumulastesde luzes e impulsos amorosos. Eternamente cantarei as misericrdi-as do Senhor. No deixeis, meu Salvador e minha esperana, decontinuar a atrair-me e a cumular-me de vossas graas, para que nocu eu possa vos amar com mais fervor, pensando em tantas miseri-crdias de que fui objeto depois de tantos desgostos que vos causei:Tudo espero daquele sangue precioso que derramastes por mim edaquela morte to dolorosa que por mim sofrestes. Santssima Vir-gem Maria, protegei-me e rogai a Jesus por mim.

    Jesus na cruz.1. Jesus na cruz foi um espetculo que encheu de admirao o

    cu e a terra: ver um Deus onipotente, senhor de tudo, morrer numpatbulo infame, condenado como um celerado entre dois malfeito-res. Foi esse um espetculo da justia, vendo o Padre eterno, quepara satisfazer a sua justia pune os pecados dos homens na pessoade seu Filho unignito, que lhe era to caro como sua prpria pessoa.Foi um espetculo principalmente de amor ver um Deus que oferecee d a vida para remir da morte os escravos seus inimigos. Esseespetculo foi e ser sempre o objeto mais caro da contemplaodos santos, pelo qual desprezaram a se despojaram de todos os bense prazeres da terra e abraaram com af a alegria as penas e a mor-te, para mostrar de algum modo sua gratido a um Deus que morreupor seu amor.

    Confortados com a vista de Jesus desprezado na cruz, os santosamaram os desprezos mais do que os mundanos prezam todas ashonras do mundo. Vendo Jesus morrer nu na cruz, procuraram aban-donar todos os bens da terra. Vendo-o todo coberto de chagas sobre

    a cruz, escorrendo sangue de todos os seus membros, abominaramtodos os prazeres sensuais e procuraram o mais possvel crucificar asua carne para acompanhar com suas dores as dores do Crucifixo.Vendo a obedincia e a uniformidade da vontade de Jesus com a de

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    seu Pai, esforaram-se por vencer todos os apetites que no eramconformes vontade divina e muitos, ainda que ocupados em obrasde piedade, sabendo que o privar-se da prpria vontade o sacrifciomais grato ao corao de Deus, procuraram entrar em determinadaOrdem Religiosa, para levar uma vida de obedincia e submeter avontade prpria dos outros. Vendo a pacincia de Jesus Cristo emquerer sofrer tantas penas e oprbrios por nosso amor, aceitaram empaz e com alegria as injrias, as enfermidades, as perseguies e ostormentos dos tiranos. Vendo, finalmente, o amor que Jesus Cristolhes demonstrou, sacrificando por ns sua vida sobre a cruz, sacrifi-caram a Jesus tudo quanto possuam, bens, prazeres, honras e vida.

    2. Como ento possvel que tantos outros cristos, ainda quesaibam pela f que Jesus Cristo morreu por seu amor, em vez dededicar-se a seu servio e amor, se empenham em ofend-lo edesprez-lo por prazeres breves e miserveis? Donde nasce to gran-de ingratido? Provm do esquecimento da paixo e morte de Jesus

    Cristo. Mas, Deus, qual ser o seu remorso e vergonha no dia dojuzo, quando o Senhor lhes lanar em face quanto fez e padeceu poreles? No deixemos ns de ter sempre diante dos olhos, almas pie-dosas, a Jesus crucificado que morre entre tantas dores e ignomniaspor nosso amor. Todos os santos receberam da paixo de Jesus Cris-to aquelas chamas de caridade, que os levaram a despojar-se detodos os bens deste mundo e at de si mesmos, para se entregarexclusivamente ao amor e servio desse divino Salvador, que, ena-morado dos homens, no podia fazer mais do que fez para ser ama-do por eles. A cruz, isto , a paixo de Jesus Cristo, que obter avitria sobre todas as nossas paixes e sobre todas as tentaes quenos suscitar o inferno para nos separar de Deus. A cruz o cami-nho, a escada para subir ao cu. Bem-aventurado quem a abraarem vida e no a deixar seno na morte. Quem morre abraando acruz tem um penhor seguro da vida eterna, a qual j foi prometida atodos os que com ela seguem a Jesus crucificado.

    Meu Jesus crucificado, vs, para vos fazer amar dos homens,nada poupastes, chegando at a dar a vossa vida com uma morteto dolorosa. Como ento esses homens que amam seus parentes,

    seus amigos e at os animais, dos quais recebem qualquer sinal deafeio, so to ingratos convosco, que por bens miserveis e vosdesprezam a vossa graa e o vosso amor? Ah, infeliz de mim, eu souum desses ingratos, que por uma ninharia renunciei vossa amizade

    e vos dei as costas. Mereceria ser lanado de vossa face, como euvos expulsei da minha. Mas eu percebo que continuais a pedir-me omeu amor. Amars o Senhor teu Deus. Sim, meu Jesus, desde quedesejais que eu vos ame e me ofereceis o perdo, eu renuncio atodas as criaturas e de hoje em diante no quero amar seno a vss, meu Criador e meu Redentor. Vs sereis o nico amor de minhaalma. Maria, Me de Deus, e refgio dos pecadores, rogai por mim,obtende-me a graa de amar a Deus e nada mais vos suplico.

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    CAPTULO IV

    Reflexes sobre os improprios feitosa Jesus Cristo enquanto pendia na cruz

    Por tua causa sofro improprios.1. A soberba, como dissemos, foi a causa do pecado de Ado e,

    por conseguinte, a runa do gnero humano; por isso veio Jesus Cris-to e quis reparar esse desastre com sua humildade, no desdenhan-do abraar a confuso de todos os oprbrios que lhe prepararamseus inimigos, como j predissera Davi: Porque por vossa causa su-portei o oprbrio e a vergonha cobriu a minha face (Sl 68,8). A vida

    inteira de vosso Redentor foi cheia de confuso e desprezos que re-cebeu dos homens, e ele no recusou suport-los at morte, a fimde nos livrar da confuso eterna: Tendo-lhe sido oferecido o gozo,sofreu a cruz, desprezando a ignomnia (Hb 12,2).

    Deus, quem no choraria de ternura e no amaria a JesusCristo se cada um considerasse quanto ele sofreu naquelas trs ho-ras que esteve suspenso e agonizando na cruz? Todos os seus mem-bros estavam feridos e doloridos, sem que um pudesse socorrer ooutro. Nosso aflitivo Senhor nesse leito de dor no podia mover-se,

    estando com as mos e ps cravados: todas as suas carnes sacros-santas cheias de feridas, sendo as das mos e ps as mais doloro-sas, visto que deviam sustentar todo o corpo. No ponto em que ele seapoiava naquele patbulo, ou fosse sobre as mos ou sobre os ps, aaumentava a dor. Bem se poderia dizer que Jesus naquelas trs ho-ras de agonia sofreu tantas mortes quantos foram os momentos queele esteve na cruz. Cordeiro inocente, que tanto sofrestes por mim,tende compaixo de mim: Cordeiro de Deus, que tirais os pecadosdo mundo, tende compaixo de mim.

    2. E essas penas externas de seu corpo eram as menos acerbas:muito maiores foram as penas internas da alma. Sua alma benditaestava toda desolada, privada de toda a gota de consolao ou alviosensvel: tudo nela era tdio, tristeza e aflio. Isso exprimiu-o com

    estas palavras: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonais? Equase submerso neste mar de dores internas e externas, quer termi-nar sua vida nosso amvel Salvador, como j tinha predito pela bocade Davi: Cheguei ao alto mar e a tempestade me submergiu (Sl68,3).

    Eis que na mesma ocasio em que agonizava sobre a cruz e seavizinhava a morte, todos os que ento o circundavam, sacerdotes,escribas, ancios e soldados, se esforavam por afligi-lo ainda maiscom improprios e derrises. S. Mateus escreve: E os que iam pas-sando blasfemavam dele, movendo suas cabeas (Mt 27,39). Davi jo predissera, quando se referia pessoa de Cristo: Todos os que meviam zombavam de mim, falavam com os lbios e moviam suas cabe-as (Sl 21,8). Aqueles que passavam diante dele exclamavam: Ol,tu que destris o templo de Deus e em trs dias o reedificas, salva-tea ti mesmo; se s o Filho de Deus, desce da cruz (Mt 27,40). Diziam:tu te gloriaste de destruir o templo e de novamente reergu-lo em trsdias. Jesus, porm, no havia dito que podia destruir o templo mate-

    rial e reconstitu-lo em trs dias, mas Destru este templo e em trsdias recomp-lo-ei. (Jo 2,19). Com estas palavras quis ainda frisar oseu poder, nos propriamente falou em alegoria (como escreve Eutmioe outros), predizendo que os judeus, matando-o, separariam sua almade seu corpo, mas ele dentro de trs dias ressuscitaria.

    Escarnecido em seu poder.1. Salva-te a ti mesmo. Homens ingratos! Se este grande Filho

    de Deus, fazendo-se homem, quisesse salvar-se a si mesmo, noteria escolhido espontaneamente a morte. Se s o Filho de Deus,desce da cruz. Mas se Jesus descesse da cruz e no completasse anossa redeno com a sua morte, no poderamos mais nos livrar damorte eterna. No quis descer, diz S. Ambrsio (Lib. 10 in Lc), parano descer em seu favor, mas para morrer por mim. Escreve Teofilactoque eles assim falavam por instigao do demnio, que procuravaimpedir a salvao que Jesus nos devia alcanar por meio da cruz (Incap. 15 Mc).E ajunta que nosso Senhor no teria subido cruz sequisesse de l descer sem consumar a nossa redeno. Diz igual-mente S. Joo Crisstomo que os judeus assim falavam para que ele

    morresse como um impostor na presena de todos, apontando-o comoincapaz de livrar-se da cruz depois de haver afirmado ser o filho deDeus. (In Mt 27,42).

    Nota ainda o mesmo S. Crisstomo que mui erradamente diziam

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    os judeus: Se s o filho de Deus, desce da cruz. Pois se Jesustivesse descido da cruz antes de morrer, no seria o Filho de Deusprometido, que com sua morte nos deveria salvar. Porque o Filho deDeus no desce da cruz, pois ele veio justamente para ser crucifica-do por ns (In Mt 27). O mesmo escreve S. Atansio dizendo quenosso Redentor queria ser reconhecido como verdadeiro Filho deDeus, no descendo da cruz, antes nela permanecendo at morte(Serm. de pass. Domini). Pois que isso j estava predito pelos profe-tas, que nosso Redentor deveria morrer crucificado, segundo o teste-munho de S. Paulo: Cristo nos remiu da maldio da lei, tornando-semaldito por ns, porque est escrito: amaldioado todo aquele que pendurado no lenho (Gl 3,13).

    2. S. Mateus continua a referir os outros improprios que os ju-deus dirigiam a Jesus: Salvou os outros e no pode salvar-se a simesmo (Mt 27,52). Tratavam-no assim de impostor a respeito dosmilagres por ele operados, restituindo a vida a muitos mortos, e de

    incapaz de salvar a sua prpria vida. Mas responde-lhes S. Leo queento no era o tempo conveniente para o Salvador ostentar o seupoder divino e que ele no devia descurar a redeno humana paraimpedir as suas blasfmias (Serm. de pass. 27 c. 2). S. Gregrio aduzum outro motivo por que Jesus no quis descer da cruz. Se desces-se ento da cruz, no nos teria dado o exemplo da pacincia (Hom.21 in Evang.). Muito bem poderia Jesus Cristo libertar-se da cruz e detantos improprios, mas no era o tempo oportuno de demonstrar oseu poder, mas de ensinar-nos a pacincia nos trabalhos para obe-decer vontade de Deus e por isso no quis Jesus livrar-se da morte,antes de cumprir a deciso de seu Pai e para no privar-nos dessegrande exemplo de pacincia. Porque ensinava a pacincia, diferia aostentao do poder (S. Agost. Trat. 37 in Jo.). A pacincia que prati-cou Jesus Cristo na cruz, suportando a confuso de tantos improp-rios que os judeus lhe fizeram, alcanou-nos a graa de sofrer compacincia e paz as humilhaes do mundo. S. Paulo, falando da idade Jesus Cristo ao Calvrio carregado da cruz, exorta-nos aacompanh-lo, dizendo: Saiamos, pois, ao seu encontro fora dos ar-raiais, levando sobre ns o seu oprbrio (Hb 13,13). Os santos, quando

    injuriados, no pensavam em vingar-se nem se perturbavam, antessentiam-se consolados vendo-se desprezados como Jesus Cristo. Nonos envergonhemos, portanto, de abraar por amor de Jesus Cristoos desprezos que nos forem feitos, desde que Jesus tantos sofreu

    por nosso amor. Meu Redentor, no procedi assim no passado, masno futuro quero sofrer tudo por vosso amor: dai-me fora para cumpri-lo.

    Escarnecido em sua confiana.1. Os judeus, no satisfeitos com as injrias e blasfmias proferi-

    das contra Jesus Cristo, se revoltam tambm contra Deus Padre, di-zendo: Confiou em Deus, que ele o livre, se o preza, disse ele queera o Filho de Deus (Mt 27,53). Esta exclamao sacrlega dos ju-deus j fora predita por Davi, quando fala em nome de Cristo: Todosos que me viram, escarneceram de mim; falaram com os lbios eabanaram suas cabeas: esperou no Senhor, que ele o livre e que osalve se o tem em apreo (Sl 21,8). Ora, os que assim falavam foramchamados por Davi, no mesmo salmo, touros, ces e lees: Fostestouros me cercaram. Porque muitos ces me obsediaram. Salvai-medas fauces do leo (Sl 21,13). Assim, dizendo os judeus que o livrese o estima, declararam ser eles os touros, ces e os lees preditos

    por Davi. Estas mesmas blasfmias, que haveriam um dia de pronun-ciar contra o Salvador e contra Deus, foram tambm preditas pelosbio: Ele assegura que tem a cincia de Deus e se chama a si Filhode Deus e se gloria de ter a Deus por Pai... Se verdadeiro Filho deDeus, ele o amparar e o livrar das mos dos contrrios. Faamos-lhe perguntas por meio de ultrajes e tormentos, para que saibamos oseu acatamento e provemos a sua capacidade: condenemo-lo a umamorte torpssima (Sb 2,13-20).

    Os prncipes dos sacerdotes estavam cheios de inveja e dio deJesus Cristo e por isso o injuriavam. Mas ao mesmo tempo no esta-vam isentos do temor de qualquer grande castigo, no podendo maisnegar os milagres feitos pelo Senhor. Assim, todos os sacerdotes eprncipes da sinagoga estava inquietos e temerosos, querendo porisso assistir pessoalmente sua morte, para, dessa maneira, se li-bertarem do temor que os atormentava. Vendo-o, pois, j pregado nacruz e que seu Pai no o livrara dela, lanavam-lhe em rosto, com amaior audcia, a sua fraqueza e a presuno de se ter dado porFilho de Deus. Diziam: Pois que confia em Deus, a quem chama seuPai, porque ento Deus no o livra, se o ama como filho? Enganam-

    se, porm, grosseiramente, os malvados, pois Deus amava a JesusCristo e o amava como filho e justamente o amava porque estavasacrificando sua vida na cruz pela salvao dos homens, em obedi-ncia a seu Pai. E isso mesmo dizia o prprio Jesus: Eu dou minha

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    vida por minhas ovelhas... por isso me ama o Pai, porque eu entregominha vida por elas (Jo 10,15 e 17). O Pai j o havia destinado paravtima daquele grande sacrifcio, que devia trazer-lhe uma glria infi-nita, sendo o sacrificado homem e Deus, e ocasionar a salvao detodos os homens.. Mas se o Pai tivesse livrado Jesus da morte, osacrifcio teria ficado incompleto e dessa forma o Pai ficaria privadodaquela glria e os homens, conseqentemente, da salvao.

    2. Escreve Tertuliano que todos os oprbrios feitos a Jesus Cristoforam um remdio secreto contra a nossa soberba. Essas injrias,que eram injustas e indignas dele, eram necessrias nossa salva-o e no dedignadas por um Deus que quis padecer tanto para sal-var o homem (Lib. 2 cont. Mc c. 7). Envergonhemo-nos, pois, ns quenos gloriamos de ser discpulos de Jesus Cristo, de suportar comimpacincia os desprezos que recebemos dos homens, desde queum Deus feito homem os sofre com tanta pacincia por nossa salva-o. E no nos envergonhemos de imitar a Jesus Cristo, perdoando

    a quem nos ofende, ainda mais que ele afirma que no dia do juzo seenvergonhar daqueles que, durante a vida, dele se envergonharam:quem se envergonhar de mim e de minhas palavras, desse se enver-gonhar o Filho do homem quando vier em sua majestade (Lc 9,26).

    meu Jesus, como posso eu queixar-me de qualquer afrontaque recebo, eu que tantas vezes mereci ser calcado pelos demniosdo inferno. Ah, pelo merecimento de tantos desprezos que sofrestesna vossa paixo, dai-me a graa de sofrer com pacincia todos osdesprezos que me forem feitos, por vosso amor, que por meu amortanto suportastes. Eu vos amo sobre todas as coisas e desejo pade-cer por vs, que tanto padecestes por mim. Tudo espero de vs, queme resgatastes com vosso sangue. E tambm espero na vossa inter-cesso, minha Me Maria.

    CAPTULO V

    Reflexes sobre as sete palavrasde Jesus na cruz

    Primeira palavra.Pai, perdoai-lhes, porque no sabem o que fazem(Lc 23,34).1. ternura do amor de Jesus Cristo para com os homens! Diz S.

    Agostinho que o Salvador, na mesma hora em que recebia injrias deseus inimigos, procurava-lhes o perdo: no atendia tanto s injriasque deles recebia e morte a que o condenavam, como ao amor queo obrigava a morrer por eles. Mas, dir algum, por que foi que Jesus

    pediu ao Pai que lhes perdoasse, quando ele mesmo poderia perdo-ar-lhes as injrias? Responde S. Bernardo que ele rogou ao Pai, noporque no pudesse pessoalmente perdoar-lhes, mas para nos ensi-nar a orar pelos que nos perseguem. Em outro lugar diz o santoabade: Coisa admirvel! Ele exclama: Perdoai-lhes, e os judeus: Cru-cifica-o (Serm. de pass. fer. IV). Arnoldo Carnotense ajunta: EnquantoJesus se esforava por salvar os judeus, estes trabalhavam em secondenar, mas junto de Deus podia mais a caridade do Filho, que acegueira daquele povo ingrato (Serm. de 7 verb.). E S. Cipriano es-

    creve: Pelo sangue de Jesus Cristo foram vivificados at aquelesque derramaram o sangue de Cristo (Lib. de bono pt.). Jesus Cristo,ao morrer, teve um desejo to grande de salvar a todos, que nodeixou de fazer participantes de seu sangue mesmo seus prpriosinimigos, que lhe extraam o sangue fora de tormentos. Olha parateu Deus pregado na cruz, diz S. Agostinho, escuta como ele ora porseus inimigos, e depois nega o perdo ao irmo que te ofende.

    2. Escreve S. Leo que foi em virtude dessa orao de Jesus queao depois de se converterem tantos milhares de judeus com a prdica

    de S. Pedro, como se l nos Atos dos apstolos (Serm. 11). Mesmoento, escreve S. Jernimo, no quis Deus que ficasse sem efeito asplica de Jesus Cristo e por isso operou naquela mesma hora quemuitos judeus abraassem a f (Ep. ad Elv. q. 8). Mas por que no se

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    converteram todos? Responde-se que a splica de Jesus foi condici-onal, isto , que aqueles, pelos quais pedia, no fossem do nmerodos tais aos quais foi dito: Vs resistis ao Esprito Santo.

    Tambm ns pecadores fomos ento includos naquela palavrade Jesus Cristo e por isso ns todos podemos dizer a Deus: Padreeterno, ouvi a voz desse amado Filho que vos pede perdo por ns. verdade que no mereceremos tal perdo, mas Jesus o mereceu,satisfazendo com sua morte superabundantemente por nossos pe-cados. No, meu Deus, eu no quero ficar obstinado como os judeus;arrependo-me, meu Pai, de todo o meu corao, de vos haver des-prezado e, pelos merecimentos de Jesus Cristo vos peo perdo. Evs, meu Jesus, j sabeis que sou um pobre doente, quase desenga-nado por meus pecados, mas descestes de propsito do cu terrapara curar os enfermos e salvar os perdidos, que se arrependem devos ter ofendido. De vs disse Isaas: Veio para salvar o que haviaperecido (Is 61,1) e S. Mateus afirma a mesma coisa: O Filho dohomem veio para salvar o que estava perdido (18,11).

    Segunda palavra.Em verdade eu te digo: Hoje estars comigo no paraso(Lc

    23,43).1. Escreve o mesmo S. Lucas que dos ladres crucificados com

    Jesus Cristo um permaneceu obstinado e o outro se converteu. Este,vendo que seu prfido companheiro blasfemava contra o Senhor, di-zendo: Se tu s o Cristo, salva-te a ti mesmo e a ns (Lc 23,39),volta-se contra ele e repreende-o: Ns somos justamente punidos,pois recebemos o que merecemos: esse, porm, no fez nenhummal (Lc 23,41). E voltando-se para Jesus disse-lhe: Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu reino. Com estas palavras reco-nhecia-o por seu verdadeiro Senhor e como rei do cu. Jesus prome-te-lhe ento o paraso para o mesmo dia: Em verdade eu te digo quehoje estars comigo no paraso. Escreve um douto autor que comessa palavra o Senhor nesse mesmo dia, imediatamente depois desua morte, se lhe mostrou sem vu, fazendo-o imensamente feliz,embora no lhe conferisse todas as delcias do cu antes de entrarnele.

    Arnoldo Carnotense, no seu Tratado das 7 palavras, consideratodas as virtudes que o bom ladro S. Dimas praticou na sua morte:Ele cr, se arrepende, confessa, prega, ama, confia e ora. Praticoua f, dizendo: Quando chegares no teu reino, crendo que Jesus

    Cristo depois de sua morte havia de entrar vitorioso no reino de suaglria. Teve por perto que havia de reinar quem ele via morrer, diz S.Gregrio. Exerceu a penitncia, confessando seus pecados: Nspadecemos justamente, pois recebemos o que merecemos. Diz S.Agostinho: No ousou dizer: lembra-te de mim, seno depois da con-fisso de sua iniqidade e de depor o fardo de suas iniqidades (Serm.130 de templ.). E S. Atansio: bem-aventurado ladro, que roubas-te o cu com essa confisso. Outras belas virtudes praticou entoesse santo penitente: a pregao, anunciando a inocncia de Jesus:Este, porm, nenhum mal praticou. Exerceu o amor para com Deus,aceitando a morte com resignao em castigo de seus pecados: Re-cebemos o que merecemos. S. Cipriano, S. Jernimo, S. Agostinhono duvidam por isso de cham-lo mrtir, porque os algozes, ao que-brarem-lhe as pernas, o fizeram com maior atrocidade, por ter louva-do a inocncia de Jesus, aceitando esse sofrimento por amor de seuSenhor.

    2. Notemos neste passo a bondade de Deus, que concede sem-pre mais do que se lhe pede, como diz S. Ambrsio: O Senhor sem-pre concede mais do que se lhe pede; o ladro pedia que se recor-dasse dele e Jesus lhe respondeu: Hoje estars comigo no Paraso.E S. Joo Crisstomo escreve: No encontrars nenhum homem quetenha merecido tal promessa antes do bom ladro (Hom. de cruc. etlatr.). Realizou-se o que Deus disse por Ezequiel que, quando o pe-cador se arrepende deveras de suas culpas, ele o perda de tal modo,como se esquecesse todas as ofensas que lhe foram feitas (Ez 21,22).E Isaas nos faz saber que Deus to inclinado ao nosso bem que,quando o imploramos, ele nos atende imediatamente (Is 30,19). E S.Agostinho diz que Deus est sempre pronto para abraar os pecado-res penitentes (Mn c. 23). A cruz do mau ladro, suportada com impa-cincia, aumentou sua desgraa no inferno; pelo contrrio, a cruz dobom ladro, levada com pacincia, tornou-se uma escada para o cu. feliz ladro, que tiveste a sorte de unir a tua morte com a morte deteu Salvador. meu Jesus, eu vos sacrifico doravante a minha vida evos suplico a graa de poder unir na hora de minha morte o sacrifciode minha vida com aquele que oferecestes a Deus na cruz. Por ele

    espero morrer na vossa graa e amando-vos com puro amor despo-jado de todo o afeto terreno para continuar a amar-vos com todas asminhas foras por toda a eternidade.

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    Terceira palavra.Mulher, eis a teu filho. Eis a tua me(Jo 19,26 e 27).1. L-se em S. Marcos que no Calvrio estavam muitas mulheres

    fazendo companhia a Jesus crucificado, mas de longe: Estavam pre-sentes, porm, muitas mulheres que olhavam de longe, entre as quaisse achava Maria Madalena (Mc 15,40). Assim, julgava-se que entreessas mulheres se encontrava tambm a divina Me. S. Joo, porm,afirma que a Santssima Virgem no estava longe, mas perto da cruz,juntamente com Maria Clofas e Maria Madalena (Jo 19,25). Eutmioprocura resolver esta dificuldade, dizendo que a Santssima Virgem,vendo que seu Filho estava prestes a expirar, aproximou-se mais queas outras mulheres da cruz, vencendo o temor dos soldados que acircundavam e sofrendo com pacincia todos os insultos e injriasque lhe dirigiam os mesmos soldados que guardavam os condena-dos. O mesmo afirma um douto autor que escreveu a vida de JesusCristo: Ali estavam os amigos que o observavam de longe. Mas aSantssima Virgem, Madalena e uma outra Maria estavam junto da

    cruz com Joo. Vendo ento Jesus sua Me e S. Joo, disse-lhes:Mulher, eis a teu filho. Escreve Guerrico, abade: Realmente meque no abandonava o filho nem no terror da morte. Fogem as mes vista de seus filhos agonizantes: o amor no lhes permite assistir atal espetculo, tendo de v-los morrer sem os poder socorrer. ASantssima Virgem, porm, quanto mais o Filho se avizinhava da morte,mais se aproximava da cruz.

    2. Estava, pois, a aflita Me junto cruz, e, assim como o Filhosacrificava a vida, sacrificava ela a sua dor pela salvao dos ho-mens, participando com suma resignao de todas as penas e opr-brios que o Filho sofria ao expirar. Diz um autor que desabonam aconstncia de Maria os que a representam desfalecida aos ps dacruz: ela foi a mulher forte que no desmaia, no chora, como escre-ve S. Ambrsio: Leio que estava em p e no leio que chorava (Incap. 23 Lc). A dor, que a Santssima Virgem suportou na paixo doFilho, superou a todas as dores que pode padecer um corao huma-no. A dor, porm, de Maria no foi uma dor estril, como a das outrasmes vendo os sofrimentos de seus filhos; foi, pelo contrrio, uma

    dor frutuosa: pelos merecimentos dessa dor e por sua caridade, dizS. Agostinho, assim como ela me natural de nosso chefe JesusCristo, tornou-se ento me espiritual dos fiis membros de Jesus,cooperando com sua caridade para nosso nascimento e para fazer-

    nos filhos da Igreja (Lib. de sanc. virgin. c. 6).Escreve S. Bernardo que no monte Calvrio estes dois grandes

    mrtires, Jesus e Maria, se calavam: a grande dor que os oprimiatirava-lhes a faculdade de falar. (De Mar.). A Me contemplava o Filhoagonizante na cruz, e o Filho, a Me agonizante ao p da cruz, todaextenuada pela compaixo que sentir apor suas penas.

    Eis a teu filho.1. Estavam, pois, Maria e Joo mais prximos da cruz do que as

    outras mulheres, de maneira que no meio daquele grande tumultopodiam ouvir mais facilmente a voz e distinguir os olhares de JesusCristo. Escreve S. Joo: Tendo, pois, Jesus Visto sua me e o disc-pulo que amava, disse sua me: Mulher, eis a teu filho (Jo 19,26).Mas se Maria e Joo estavam em companhia das outras mulheres,por que se diz que Jesus viu a Me e o discpulo, como se no enxer-gasse as outras mulheres? Responde S. Crisstomo (Serm. 78) queo amor faz que se veja com mais clareza os objetos que mais esti-

    mam. E S. Ambrsio escreve igualmente: natural que vejamos an-tes dos outros os que mais amamos (De Jo. patr. c. 10). Revelou amesma Virgem santssima a S. Brgida que Jesus para ver sua Meque estava junto cruz teve de comprimir as plpebras para afastarde seus olhos o sangue que lhe impedia a vista (Rev. 1. 4, c. 70).

    2. Ento disse Jesus: Mulher, eis a teu filho, acenando com osolhos a S. Joo, que estava ao lado. Por que, porm, a chama mulhere no me? Chamou-a mulher, porque, estando j prximo da morte,falou-lhe despedindo-se dela como se lhe dissesse: Mulher, dentroem pouco estarei morto, e no ters mais outro filho na terra: deixo-teJoo, que te servir e amar como filho. Com isto deu a entender queJos j era morto, porque se ele ainda vivesse no o teria separadode sua esposa. Toda a antigidade atesta que S. Joo foi semprevirgem e foi justamente por essa prerrogativa que ele foi dado a Mariapor filho e distinguido com a honra de ocupar o lugar de Jesus Cristo.Por isso canta a santa Igreja: Ele entregou a este que era virgem suavirgem-me. E desde o momento em que morreu o Senhor, comoest escrito, S. Joo acolheu Maria em sua casa e a assistiu e serviu

    durante toda a sua vida como a sua prpria me (Jo 19,27). QuisJesus Cristo que este seu discpulo predileto fosse testemunha ocu-lar de sua morte, para poder depois atestar mais decididamente emseu Evangelho e dizer: Quem o viu que d o testemunho (Jo

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    19,35),e em sua epstola: O que vimos com os nossos olhos... etestificamos e anunciamos a vs (1Jo 1,2).Foi por isso que o Senhor,enquanto os outros discpulos o abandonaram, deu a S. Joo a forade o acompanhar at mor te no meio de tantos inimigos.

    Eis a tua me.1. Mas voltemos Santssima Virgem e examinemos a razo mais

    intrnseca por que Jesus chamou Maria mulher e no de me. Queriacom isso significar que ela era a grande mulher predita no Gnesis,que deveria esmagar a cabea da serpente. Porei inimizade entre tie a mulher e a tua descendncia e a sua: ela te esmagar a cabea edebalde tentars contra o seu calcanhar (Gn 3,15). Ningum duvidaque essa mulher fosse a Santssima Virg